Historia Da Teologia

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BENGT HAGGLUND HISTÓRIA DA TEOLOGIA Traduzido do inglês por MÁRIO L. REHFELDT e GLÂD1S KNAK REHFELDT 1989 4 a Edição Faculdade Luterana de Teologia *001290* 230.09 H165h História da teologia CONCÓRDIA EDITORA LTDA Matriz Av. São Pedro, 633 Fone: (0512)42-2699 90230 - Porto Alegre, RS Filial Rua 24 de Maio, 116 - Lojas 32,33 térreo Fone: (011)222-7015 01041 - São Paulo, SP

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Bength Hagglund

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BENGT HAGGLUND

HISTÓRIA DA TEOLOGIA

Traduzido do inglês por

MÁRIO L. REHFELDT e GLÂD1S

KNAK REHFELDT

1989 4a

Edição

Faculdade Luterana de Teologia

*001290* 230.09 H165h História da teologia

CONCÓRDIA EDITORA LTDA

Matriz Av. São Pedro, 633 Fone: (0512)42-2699 90230 - Porto Alegre, RS

Filial Rua 24 de Maio, 116 - Lojas 32,33 térreo Fone: (011)222-7015 01041 - São Paulo, SP

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PARTE

A ERA DOS PAIS ECLESIÁSTICOS

CAPITULO 1

OS PAIS APOSTÓLICOS

Çuando falamos nos Pais Apostólicos, geralmente nos referimos a alguns autores cristãos do fim do primeiro século e do inicio do segundo, cujos escritos chegaram até nós. Estes escritos — em sua grande maioria de natureza incidental (cartas, homilias) — são de valor para nós porque, ao lado do Novo Testamento, são as fontes mais antigas que possuímos como testemunho da fé cristã. Estes escritos, no entanto, não pretendem ser apresentações doutrinárias no sentido restrito do termo, e como resultado, não podemos esperar deles um quadro completo dos artigos de fé. E, enquanto sua contribuição para o desenvolvimento da teologia foi relativamente pequena, eles contribuíram de forma notável para elucidar o conceito de fé e os costumes da igreja que prevaleceram nas primeiras con-gregações.

Os mais importantes destes escritos são os seguintes:

— A Primeira Epístola de Clemente, escrita em Roma, por volta de 95. — As Epístolas de Inácio; sete cartas a vários destinatários, escritas por volta de 115

durante a viagem de Inácio a Roma e para sua morte de mártir já prevista.

— A Epístola de Policarpo, escrita em Esmirna, por volta de 110. — A Epístola de Barnabé, provavelmente escrita no Egito, por volta de 130. — A Segunda Epístola de Clemente, escrita em Roma ou Corinto, por volta de 140.

— O Pastor de Hermas, escrito em Roma, por volta de 150.

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— Fragmentos de Papias, escritos em Hierápolis na Frigia, por volta de 150, citados nas obras de Eusébio e Irineu (entre outros).

— A Didaché («Os Ensinamentos dos Doze Apóstolos»), escrita na primeira metade do século, provavelmente na Síria.

CARACTERÍSTICAS GERAIS

Apesar de, cronologicamente, os escritos dos Pais Apostólicos estarem próximos dos apóstolos e do Novo Testamento, a diferença entre estas fontes é grande e evidente, tanto com respeito à forma como quanto ao conteúdo. Alguns destes escritos foram incluídos, por algum tempo, no cânone do Novo Testamento, mas não foi pOT acidente que afinal foram ex-cluídos. A diferença entre os livros do Novo Testamento e os escritos dos Pais Apostólicos se manifesta de muitas maneiras. Tem-se feito tentativas de determinar qual dos apóstolos (Pedro ou Paulo, por exemplo) influenciou os homens que produziram estes escritos. Mas, evidenciou-se que esta pesquisa é desnecessária. A teologia dos Pais Apostólicos não pode ser atribuída a qualquer membro individual do grupo apostólico; reflete, ao invés disso, a fé da congregação típica dos primeiros anos da história cristã. As semelhanças entre estes escritos e o Novo Testamento não dependem necessariamente do fato que os Pais Apostólicos foram influenciados direta-mente por um autor canónico ou outro; refletem, antes, o fato que ambas as fontes tratam da mesma fé.

Comparados com o Novo Testamento,os Pais Apostólicos se distinguem especialmente devido a sua ênfase no que geralmente se denomina moralismo (Anders Nygren usa a palavra «nomismo»; em português também se emprega o termo «legalismo»). A proclamação da lei ocupa lugar de destaque nos escritos dos Pais Apostólicos. Isto acontece em parte porque se dirigem a novas congregações cujos membros recentemente abandonaram o paganismo. Fazia-se necessário substituir seus antigos hábitos com praxe e costumes cristãos. A fim de realizá-lo, o costume judaico de pregar a lei foi usado até certo ponto, juntamente com outras praxes con-gregacionais judaicas, apesar do fato de haver marcada oposição ao judaísmo e à lei cerimonial. O evangelho era apresentado como nova lei que Cristo ensinara mostrando o caminho da salvação. Dizia-se que a antiga lei tinha sido abolida e era obsoleta, mas nos ensinamentos de Cristo havia nova lei. A vida cristã dizia-se consistir, acima de tudo, em obediência a esta nova lei.

O moralismo não se encontrava na proclamação da lei como tal, mas na maneira como isto era feito. Entre os Pais Apostólicos havia forte tendência de ressaltar a obediência à lei, bem como a imitação de Cristo, como sendo o caminho à salvação e o conteúdo essencial da vida cristã. A morte e ressurreição de Cristo eram enfatizadas como constituindo o fundamento para a salvação dos homens. Por causa da obra de Cristo o homem pode

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OS PAIS APOSTÓLICOS

receber o perdão dos pecados, o dom da vida, imortalidade e libertação dos poderes da corrupção. Mas mesmo no contexto em que tais assuntos eram discutidos, os Pais Apostólicos comumente faziam recair forte ênfase na lei e no novo modo de vida. A análise de alguns dos pontos fundamentais mais frequentemente mencionados elucidará um pouco mais esta tendência.

Justiça, como regra geral, não se descrevia como dádiva de Deus outorgada aos homens de fé (cf. Rm 3.21 ss.), mas, em vez disso, era apresentada em termos de conduta cristã apropriada. Era, muitas vezes, apresentada como o poder de Cristo que capacita o homem a fazer o que é correto e bom, mas ao mesmo tempo também se dizia, de maneira um tanto unilateral, que a nova obediência é exigência prévia para perdão e salvação. Esta era considerada não como dom da graça pura, dado aqui e agora àqueles que crêem, mas como algo outorgado após esta vida, especialmente como recompensa aos que obedeceram a Cristo. Com a exceção de Primeiro Clemente, os escritos dos Pais Apostólicos têm muito pouco em comum com a ênfase paulina de justificação pela fé. Não é a graça imerecida que se situa no centro desta teologia, mas, antes, a nova vida que Cristo ensinou e para a qual ele capacita os homens. Deve-se, no entanto, lembrar que o caráter destes escritos, bem como o objetivo que os autores tinham em mente, eram, em parte, responsáveis por tal ênfase. Além disso, o fato que eram escritos casuais, que não pretendiam ser completos, é outra faceta da história. Estes escritos pressupunham que seus leitores também tinham ouvido a proclamação oral em que outros aspectos da fé cristã devem ter sido acentuados de maneira apropriada.

Salvação é apresentada, na maioria das vezes, em termos de imortalidade e indestrutibilidade em vez de em termos de perdão dos pecados. Outro aspecto fortemente acentuado nesta conexão é conhecimento. Cristo nos trouxe o conhecimento da verdade. Ele é o Revelador enviado por Deus a fim de que possamos conhecer o Deus verdadeiro e assim sermos libertados da servidão da idolatria e da falsa antiga aliança. Os Pais Apostólicos não diziam, no entanto, que Cristo é mero ensinador; ensinavam que é Deus, aquele por cuja morte e ressurreição o dom da imortalidade é outorgado.

Pecado é descrito como corrupção, maus desejos e cativeiro sob o poder da morte, além de erro e ignorância; a ideia de culpa não é muito acentuada. Notamos aqui um paralelo ao que foi dito sobre salvação; os Pais Apostólicos consideravam-na como sendo imortalidade ou a iluminação decorrente da verdade, tal como se encontra em Cristo. A relação entre salvação e perdão ou redenção também se encontra neles — especialmente em Barnabé — mas não ocupa o mesmo lugar que em Paulo ou, Por exemplo, na tradição protestante. Associa-se a salvação à vida física, em termos de libertação da morte e corrupção. Luz' e vida, que formam seu conteúdo, relacionam-se com a lei. O caminho da obediência é o caminho à vida.

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A tendência moralista dos Pais Apostólicos aparece com maior evidência em seu conceito de graça. No Novo Testamento graça é o amor de Deus revelado em Cristo. Relaciona-se, por isso, com o próprio Deus, e com a obra redentora de Cristo. O homem é justificado por graça, não devido à força de suas próprias obras. Entre os Pais Apostólicos este conceito neotestamentário de graça é substituído por outro, no qual a graça é considerada um dom que Deus outorga ao homem por intermédio de Cristo. Este dom, que algumas vezes é situado na mesma categoria do conhecimento que chegou até nós mediante Cristo, é imaginado como sendo um poder interno associado com o Espirito Santo, peio qual o homem pode buscar a justiça e andar no caminho da nova obediência. A graça é, por conseguinte, o pressuposto necessário à salvação, mas não no sentido neotestamentário — que a justiça é o dom de Deus outorgado aos que crêem em Cristo. Os Pais Apostólicos, pelo contrário, dizem que a graça confere o poder pelo qual o homem pode alcançar a justiça e afinal ser salvo.

A linha de pensamento aqui apresentada, claramente indica a relação entre o conceito medieval de graça, com sua ênfase em «boas obras», e o padrão anteriormente estabelecido nesta tradição (cf. Torrance, The Doc-trine of Grace in the Apostolic Fathers, 1948). Há ao mesmo tempo, contudo, expressões que se relacionam majs intimamente com a doutrina paulina da justificação. Além disso, é também necessário que se observe a esta altura, que estamos aqui tratando de literatura exortativa, destinada a educar as pessoas na nova vida, salientando fortemente o chamado à obediência aos 'mandamentos de Cristo. Esta ênfase era feita a fim de se providenciar uma influência que contrabalançasse a moralidade pagã que dominava o ambiente no qual viviam as pessoas a quem estes escritos eram dirigidos. Como resultado não é licito usar os escritos dos Pais Apostólicos para. tirar conclusões extremas com respeito a toda a proclamação cristã desse período.

CONCEITO DE ESCRITURA

Assim como acontece nos livros do Novo Testamento, os Pais Apostólicos julgavam que os livros do Antigo Testamento possuíam sua própria autoridade intrínseca. O fato que citam o Antigo Testamento tão frequentemente, é tanto mais surpreendente quanto lembramos que seus escritos foram dirigidos, na maioria dos casos, a cristãos que tinham vindo de ambiente pagão.

A igreja era considerada o Novo Israel e, como tal, a herdeira dos escritos associados com a antiga aliança. O verdadeiro propósito da lei e dos profetas era de natureza espiritual, fato revelado através das palavras e obras de Cristo. A Epístola de Barnabé, que tratou deste problema de modo especial, não faz qualquer distinção óbvia entre o que mais tarde se denominou interpretação tipológica e interpretação alegórica livre. Pres-

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OS PAIS APOSTÓLICOS

supunha-se desde o início que a lei de Moisés tinha objetivo mais profundo. Çuando, por exemplo, a lei de Moisés proíbe que se comam animais impuros, julgava-se que a lei, com estes preceitos, condenava os pecados que tais animais simbolizavam. Referências a Cristo e ao Novo Testamento eram encontradas mesmo nos pormenores mais insignificantes (cf. por exemplo: Barnabé IX, 8). Na base de tudo isto se encontrava a convicção que a Escritura era verbalmente inspirada pelo Espirito Santo; imaginando-se que mesmo as minúcias externas ocultavam sabedoria espiritual de alguma espécie, que os judeus com seu método de interpretação literal foram incapazes de descobrir.

Os Pais Apostólicos também testificam em termos insofismáveis que os quatro evangelhos e os escritos dos apóstolos estavam começando a ser reconhecidos como Escritura Sagrada com a mesma autoridade do Antigo Testamento, mesmo que o Novo Testamento ainda não tivesse alcançado sua forma final em sua época. Çuase todos os livros que chegaram a ser incluídos no Novo Testamento são citados ou referidos nos Pais Apostólicos. A tradição oral que se originara com os apóstolos também era considerada como tendo autoridade decisiva para a fé e praxe congregacio-nais. Segundo Inácio, o bispo era o portador desta tradição válida.

A DOUTRINA DE DEUS; CRISTOLOGIA

Os Pais Apostólicos ensinavam um conceito bíblico da natureza de Deus, baseado na ideia de Deus encontrada no Antigo Testamento. Concebiam Deus como o todo-poderoso que criou o mundo e revelou sua vontade, sua justiça e sua graça aos homens. Assim o expressa o Pastor de Hermas: «Crê acima de tudo que Deus é um, aquele que criou e ordenou todas as coisas e formou do nada tudo o que existe.» Enfatiza-se a fé no único Deus verdadeiro. A doutrina do Deus Trino ainda não aparece plenamente desenvolvida, mas a fórmula trinitária era empregada; por exemplo, no batismo, a fé na Trindade estava, naturalmente, implícita. A explicação da maneira como as três pessoas da divindade se relacionam entre si pertence, todavia, a período posterior.

A divindade de Cristo é salientada enfaticamente nos Pais Apostólicos. Plínio, o Moço, dá testemunho disto na bem-conhecida frase incluída numa carta ao Imperador Trajano, ao dizer que os cristãos «cantam a Cristo como cantam a Deus». Considerava-se Cristo como o Filho preexistente de Deus, que participou na obra da criação; é o Senhor do céu, que aparecerá como juiz dos vivos e dos mortos. Cristo é especificamente denominado Deus, notadamente nas epístolas de Inácio. «Nosso Deus, Jesus Cristo, nascido de Maria segundo o decreto de Deus, verdadeiramente de Davi, mas também do Espírito Santo», escreveu ele em sua Epístola aos Efésios. (XVIII, 2).

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Afirmavam estar Cristo presente na congregação como seu Senhor, e os cristãos se unem a ele como participantes em sua morte e ressurreição. Esta união com Cristo é destacada de modo especial por Inácio. Escreveu aos cristãos em Esmirna: «Chegou a meu conhecimento que estais estabelecidos em fé sincera, firmemente unidos à cruz de Cristo tanto no corpo como na alma, constantes no amor mediante o sangue de Cristo, e convencidos que nosso Senhor é na verdade descendente de Davi segundo a carne, e Filho de Deus segundo a vontade e o poder de Deus.» (Primeira Epístola aos Esmirneanos).

Também encontramos em Inácio várias afirmações dirigidas explicitamente contra (ou provocadas pêlos) gnósticos judaico-cristãos, nas quais enfatiza a verdadeira humanidade de Cristo. A vida real de Cristo na terra é vindicada em oposição àqueles que mantinham que Jesus tão-somente parecia existir em forma humana, que apenas parecia ter sofrido na cruz e que depois da ressurreição retornou a uma existência espiritual incorpórea. Tal opinião é conhecida como docetismo (do grego dokein). O conflito contra o docetismo foi uma das facetas mais significativas da teologia cristã primitiva, visto contradizer o docetismo aquilo que era básico na proclamação apostólica, a verdadeira morte e ressurreição de Cristo. A salvação resultava do que realmente acontecera dentro do contexto da história, e do que os apóstolos foram testemunhas oculares. Çuando o docetismo, por meio de suas interpretações, eliminou a morte e a ressurreição de Cristo, a salvação era relacionada a um ensinamento abstraio e não ao que Deus realizara em Cristo. O docetismo assumiu várias formas: ou negava a verdadeira humanidade de Cristo empregando teorias sobre corpo fantasmagórico, ou então escolhia certos aspectos da vida terrena de Cristo como sendo potencialmente verídicos, enquanto negava o restante dos relatos evangélicos através de suas explicações. Certo gnóstico, Cerinto, habitante da Ásia Menor, tinha a opinião que Jesus fora unido a Cristo, o Filho de Deus, por ocasião de seu batismo, e que Cristo abandonou o Jesus terreno antes da crucificação. Acreditava-se que o sofrimento e a morte de Jesus eram incompatíveis com a divindade de Cristo. Outra teoria do-cética, associada a Basílides, sugeria que ocorrera um engano, que Simão, o Cireneu fora crucificado em lugar de Cristo, escapando Jesus, desse modo, da morte na cruz.

Conforme Irineu, o Evangelho de João foi escrito com esta finalidade, entre outras, a saber, a de refutar o gnóstico Cerinto mencionado acima. O ponto de vista deste se caracterizava pelo contraste nítido que estabelecia entre o homem Jesus e o ser celestial. Cristo, que podia residir em Jesus apenas por breve período de tempo. Em oposição a isto, o Evangelho de João nos diz que «o Verbo se fez carne»; de modo semelhante a Primeira Epístola de João afirma que «Jesus Cristo veio em carne». (2.22; 4.2-3).

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OS PAIS APOSTÓLICOS

Pode-se notar oposição desta mesma espécie no conflito de Inácio contra o docetismo. Contra aqueles que diziam que Cristo apenas parecia ter sofrjdo, Inácio expressou a convicção que Cristo realmente nasceu de Maria, foi realmente crucificado e que ressuscitou. Cristo estava «na carne» mesmo depois de sua ressurreição, disse Inácio; não era «espírito incorpóreo».

CONCEITO DE IGREJA

Podemos determinar, com base nos Pais Apostólicos, quais eram os regulamentos eclesiásticos que estavam sendo consolidados na época. O cargo de bispo desenvolveu-se a ponto de distinguir-se do colégio dos anciãos. Segunda Inácio, o bispo era o símbolo da unidade cristã e o portador da tradição apostólica. As congregações, em vista disso, eram admoestadas a aterem-se firmemente a seus bispos e a lhes obedecerem. Dizia-se que a unidade consistia, em primeiro lugar, num corpo de doutrina comum, e se explicava a posição dominante do bispo na congregação com base no fato que era o representante da doutrina verdadeira. Esta harmonia, que tinha como centro os bispos, era enfatizada como proteção contra heresias, que ameaçavam destruir a unidade da igreja. Originalmente os anciãos e os bispos estavam no mesmo nível, mas a esta altura dos acontecimentos os bispos ocuparam posição superior a dos presbíteros. Este assim chamado episcopado monárquico apareceu em primeiro lugar na Ásia Menor e é claramente salientado nas epístolas de Inácio, enquanto Primeiro Cle-mente e o Pastor de Hermas, que foram escritos de Roma, não mencionam cargo superior ao colégio dos anciãos ou presbíteros. Mas Primeiro Clemente também ressalta o significado do cargo de bispo e insiste que os que ocupam tal cargo são os sucessores dos apóstolos. A ideia de sucessão apostólica desenvolveu-se a partir de protótipo Judaico. Duas coisas entravam em jogo: primeiro, os bispos receberam o ensinamento verdadeiro dos apóstolos, assim como os profetas aprenderam de Moisés (sucessão doutrinária), e segundo, tinham sido designados pêlos apóstolos e seus sucessores em linha ininterrupta, assim como apenas a família de Arâo tinha o direito de constituir sacerdotes em Israel (sucessão de ordenação).

Como resultado, desenvolveu-se na igreja cristã primitiva um tipo de ordem congregacional mais definida, com jurisdição eclesiástica. Este desenvolvimento tem sido avaliado de maneiras diferentes. O conhecido historiador jurídico Rudolph Sohm propôs a ideia que cada lei eclesiástica está em oposição à essência da igreja. É apenas o Espirito Santo quem governa a igreja e, por este motivo, o surgimento de «instituições» eclesiásticas significa afastamento do espirito original do cristianismo (Kirchenrecht, l, 1892). Outros, contudo, negaram sua tese, salientando que ordenanças são necessárias. Este desenvolvimento não é acréscimo posterior; sua origem nos leva ao próprio tempo dos apóstolos. O que aconteceu posterior-

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mente foi aplicação estrita de formas existentes e aceitação de novas (Seeberg). Também se disse neste contexto, e apropriadamente, que o Espírito Santo e os cargos eclesiásticos não são mutuamente contraditórios, pelo contrário, pertencem juntos. O fato que a igreja é criada pelo Espírito Santo não exclui o desenvolvimento de regras, cargos e tradições. Os ministérios e cargos da igreja se relacionam com a obra do Espírito Santo. (Linton, Das Problem der Urkirche in der neueren Forschung, 1932).

ESCATOLOGIA

A escatologia dos Pais Apostólicos incluía a ideia que o fim dos tempos era iminente, e alguns deles (Papias, Barnabé) também sustentavam a doutrina de um milénio terreno. Barnabé aceitava a ideia judaica que o mundo existiria por 6.000 anos, prefigurados nos seis dias da criação. E, por conseguinte, dizia-se, que seguiria o sétimo milénio, em que Cristo reinaria visivelmente na terra com a ajuda de seus fiéis (cf. Ap 20). Este daria lugar ao oitavo dia, a eternidade, que tinha seu protótipo no domingo. Papias, também, apoiava a doutrina de um milénio terreno, e descrevia a condição bendita que prevaleceria durante este tempo. Este ponto de vista («milenismo» ou «quiliasmo») foi amplamente desacreditado em tempos mais recentes. Realmente, Eusébio o fez em sua avaliação dos escritos de Papias. (História Eclesiástica, III, 39).

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CAPITULO 2

OS APOLOGISTAS

Os autores do segundo século que, acima de tudo, procuraram defender o cristianismo de acusações em voga na época, de procedência grega e judaica são, em geral, conhecidos como os apologistas. Para estes homens o cristianismo era a única verdadeira filosofia, substituto perfeito para a filosofia dos gregos e a religião dos judeus, que nada mais podiam fazer do que apresentar respostas insatisfatórias às perguntas cruciais do homem.

O mais notável dos apologistas foi Justino, cognominado «o mártir», cujas duas «apologias» datam de meados do segundo século. Seu Diálogo com o Judeu Trifo foi escrito na mesma época. Entre os outros encontram-se Aristides, que escreveu a mais antiga «apologia» cujo texto ainda temos, Taciano (Discurso aos Gregos, panfleto dirigido contra a cultura grega, por volta de 165), e Atenágoras (De ressurrectione mortuorum e Suppiicatio pró Christianis, ambas escritas por volta de 170). Os seguintes também podem ser incluídos neste grupo: Teófilo de Antioquia (Ad Autolycum libri três, 169-182), e a Epistola a Diogneto, cujo autor é desconhecido e a igualmente anónima Cohortatio ad Graecos, que surgiu pouco antes da metade do terceiro século. Esta última erroneamente foi atribuída a Justino. Os apologistas também escreveram outras obras, que foram perdidas e que conhe-cemos só de nome. (Cf. por ex.: Eusébio, História Eclesiástica, IV, 3).

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Os apologistas ocupam lugar de destaque na história do dogma, não só devido a sua descrição do cristianismo como a verdadeira filosofia como também por sua tentativa de elucidar ensinamentos teológicos com o auxílio de terminologia filosófica contemporânea (por exemplo: na assim chamada «cristologia do Logos»). O que neles encontramos, por conse-guinte, é a primeira tentativa de definir, de maneira lógica, o conteúdo da fé cristã, bem como a primeira conexão entre teologia e ciência, entre cristianismo e filosofia grega.

Os apologistas refutaram as acusações dirigidas contra os cristãos. Atenágoras (em sua Suppiicatio) discutiu três criticas principais: impiedade, hábitos anormais e inimizade ao estado. Em resposta atacavam a cultura grega, por vezes de maneira bem severa (Taciano, Discurso aos Gre-

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gos; Teófilo). Mas sua contribuição mais importante, do ponto de vista da história do dogma, foi a. maneira positiva em que apresentaram o cristianismo como a verdadeira filosofia.

CRISTIANISMO E FILOSOFIA

O modo como os apologistas conceberam a relação entre cristianismo e filosofia reflete-se na obra autobiográfica de Justino, Diálogo com o Judeu Trifo. Justino apresenta-se como alguém que tem a filosofia em alta estima e que procurou respostas satisfatórias para as questões filosóficas em um sistema filosófico após outro. O propósito da filosofia, segundo Justino, é proporcionar conhecimento verdadeiro de Deus e da existência, e assim fazendo, promover um sentimento de bem-estar nas mentes humanas. A filosofia visa reunir Deus e o homem. Justino investigou os estóicos, os peripatéticos e os pitagóricos, mas todos o deixaram indiferente. Por último chegou a um platonista e pensou ter encontrado com ele a verdade. Então encontrou-se com um velho, desconhecido, que dirigiu sua atenção aos profetas do Antigo Testamento, insistindo que tão-somente eles tinham visto e proclamado a verdade. «Apenas eles ensinaram o que ouviram e viram com a ajuda do Espírito Santo.» O testemunho desse ancião convenceu Justino da veracidade do cristianismo. «Minha alma inflamou-se ime-diatamente, e ansiei pelo amor dos profetas e dos amigos de Cristo. Re-fleti sobre seus escritos, e neles encontrei a única filosofia útil e fidedigna. Desta maneira, e com este fundamento, tornei-me um filósofo.» (Vil; VIII).

O fato que o cristianismo é a única filosofia verdadeira significa, portanto, que tão-somente ele possui as respostas correias para as questões filosóficas. Filosofia, neste sentido, também abrange a questão religiosa concernente ao verdadeiro conhecimento de Deus. Apenas o cristianismo pode fornecer este conhecimento; a filosofia o procura, mas é incapaz de encontrá-lo. Tal linha de pensamento, em si, não afirma que o cristianismo depende da filosofia e a ela está subordinado, como às vezes se sugere. O cristianismo fundamenta-se na revelação, e os apologistas não acreditavam que a revelação pudesse ser substituída por deliberações racionais. Neste sentido, o cristianismo se opõe a toda filosofia. Sua verdade não se baseia na razão; tem origem divina. «Ninguém, a não ser os profetas, pode instruir-nos sobre Deus e a verdadeira religião, pois eles ensinam no poder da inspiração divina» (palavras finais da Cohortatio ad Graecos).

Ao mesmo tempo, no entanto, a maneira como os apologistas abordaram a verdade cristã incluía a tendência de intelectualizar seu conteúdo. A razão (lógos) era o conceito mais marcante de seus escritos, e ressaltavam de maneira especial a comunicação da verdade.

Avaliavam a filosofia de diversas maneiras. Alguns dos apologistas se opunham enfaticamente à filosofia grega. Toda sabedoria pagã devia ser substituída pela revelação. Justino, por sua vez, mantinha atitude mais

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OS APOLOGISTAS

positiva face aos gregos. Todavia, é preciso enfatizar que a verdade que pode ser discernida em filósofos como Homero, Sócrates e Platão derivava-se basicamente da revelação. Havia também a ideia correlata que alguns dos sábios da Grécia tinham visitado o Egito e lá tinham-se familiarizado com os escritos dos profetas de Israel. Outra ideia sugeria que os filósofos pagãos compartilhavam o lógos spermatikós, que foi implantado em todos os homens. Mesmo a sabedoria humana depende, deste modo, da revelação — raios dispersos da razão divina que brilhou com toda sua clareza em Cristo. Os filósofos possuem certos fragmentos da verdade. Em Cristo a verdade está presente em sua plenitude, pois ele é a própria razão de Deus, o Lógos que se tomou homem.

CRISTOLOGIA DO LÓGOS

O conceito de Lógos, derivado da filosofia contemporânea, especialmente do estoicismo com sua doutrina da razão universal, foi usado pêlos apologistas para explicar como Cristo se relacionava com Deus Pai. Algo do Lógos, diziam, encontra-se em todos os homens. A razão, como um embrião, encontra-se implantada dentro deles (lógos spermatikós). Mas os apologistas, em contraste com os estóicos, não diziam ser ela uma espécie de razão universal concebida panteisticamente. Em vez disso, identificavam o Lógos com Cristo. Com base nisto podiam dizer que Platão e Sócrates também eram cristãos, na medida em que exprimiam a razão. Sua sabedoria lhes foi transmitida por Cristo através dos profetas ou mediante revelação geral.

O termo grego lógos significa tanto «razão» como «palavra». O Lógos esteve com Deus, como sua própria razão, desde toda a eternidade (lógos endiáthetos). Posteriormente, esta razão procedeu da essência de Deus,' conforme a própria decisão de Deus, como o lógos proforikós, a Palavra que se originou em Deus. Isto aconteceu quando da criação do mundo. Deus criou o mundo de acordo com sua razão e mediante a Palavra que procedeu dele. Desta maneira, Cristo se fizera presente na criação do mundo. É a Palavra, nascida do Pai, mediante a qual tudo chegou a existir. «Na plenitude do tempo» esta mesma razão divina revestiu-se de forma física e tornou-se homem.

Com esta aplicação do conceito de Lógos os apologistas encontraram uma maneira de descrever a relação entre o Filho e o Pai na Divindade, empregando termos filosóficos correntes. Assim como a palavra procede da razão, ou — para usar outra analogia — assim como a luz procede da lâmpada, assim o Filho procedeu do Pai como o primogénito, sem diminuir o Pai ou destruir a unidade da Divindade. Esta cristologia do Lógos visa responder a questão mais difícil da fé cristã na linguagem da época. Os apologistas escolheram um conceito da filosofia contemporânea e o usaram para descrever o que para a mentalidade grega era absurdo — que Cristo é Deus mas que, com isso, a unidade da Divindade não é negada.

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

Nesta maneira de pensar está implícito o fato que, embora o Logos sempre tenha feito parte da essência divina, como a razão que habita nela, ainda assim não procedeu da Divindade até o tempo da criação do mundo. Cristo, portanto, teria sido gerado no tempo, ou no início do tempo. Esta doutrina filosófica do Logos também parecia sugerir que Cris'J ocupa posição subordinada relativamente ao Pai. A cristologia dos apologia—.3, como resultado, frequentemente é descrita como «subordinacionismo». Pode parecer que é, do ponto de vista de épocas posteriores. A ideia da geração do Filho no tempo, por exemplo, foi combatida (Orígenes, cf. abaixo), bem como o emprego da doutrina filosófica do Logos no campo da cristologia (Irineu). Mas é preciso lembrar também que os apologistas postulavam a preexistência do Logos em termos inequívocos, embora julgassem que seu aparecimento como «Filho» tivesse ocorrido inicialmente quando da criação. Além disso, não podemos esquecer que na época dos apologistas a terminologia empregada para exprimir as diferenças entre as «pessoas» da Trindade ainda não tinha sido cunhada. Em vista disso, portanto, não é justo deduzir que os apologistas especificamente ensinaram que o Filho é subordinado ao Pai. (Cf. Kelly, Early Christian Doctrines, pp. 100 s.).

Se Cristo é apresentado como Logos, a razão divina, é natural considerar sua obra principalmente em termos pedagógicos. Ele nos transmite o verdadeiro conhecimento de Deus e nos instrui na nova lei, que nos guia ao caminho da vida. Interpreta-se salvação em categorias intelectuais e moralistas. Identifica-se pecado com ignorância. Acredita-se que o homem é livre para fazer o bem, mas apenas Cristo pode mostrar o verdadeiro caminho da justiça e da vida. Enfatiza-se a necessidade de viver segundo a lei, e neste sentido o conceito de vida cristã dos apologistas concorda com o dos Pais Apostólicos. Considera do ponto de vista do desenvolvimento histórico do dogma, a principal contribuição dos apologistas foi sua tentativa de correlacionar o cristianismo com a erudição grega, tentativa que encontrou sua expressão mais marcante na doutrina do Logos e sua aplicação à cristologia.

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CAPÍTULO 3

CRISTIANISMO JUDAICO E GNOSTICISMO

CRISTIANISMO JUDAICO

O termo «cristianismo judaico, significa várias coisas diferentes, e é usado de maneiras diversas pêlos pesquisadores. Pode referir-se ao cristianismo da Palestina no período subsequente à ascensão, isto é, aos cristãos de origem judaica, que viviam na Palestina e tinham como centro a congregação em Jerusalém — em contraste com os cristãos que tinham origem pagã. Em algumas ocasiões, contudo, o termo é empregado para identificar certos grupos sectários que derivaram da congregação de Jerusalém depois de se ter transferido esta para a região a leste do Jordão por volta do ano 66. É neste sentido que se usará o vocábulo aqui. Uma das características mais proeminentes deste cristianismo judaico herético, também conhecido como «ebionismo» (derivado do termo veterotestamen-tário evjonim, «os pobres», originalmente nome honroso dos cristãos de Jerusalém), era sua confusão de elementos judaicos e cristãos. De acordo com as informações que chegaram até nós, os cristãos judaicos podem ter-se unido aos monges essênios, que se tornaram conhecidos recentemente através das descobertas dos manuscritos do Mar Morto. A história do ebionismo, em sua maior parte, está envolta em trevas. Nem os fragmentos de literatura preservados, nem as referências encontradas nos Pais Eclesiásticos nos fornecem um quadro minucioso das ideias e costumes desse grupo. Todavia, certas linhas mestras de pensamento podem ser reconstruídas.

Os ebionitas sustentavam a validade da lei de Moisés; uma fração julgava que isto só se aplicava a eles, mas outra fração, mais militante, insistia que os cristãos de origem pagã também eram obrigados a cumprir a lei de Moisés. Outra ideia básica associada aos ebionitas era que esperavam o estabelecimento de um reino messiânico em Jerusalém. Isto reflete sua identificação de judaísmo e cristianismo.

É verdade, sem dúvida, que a igreja universal se considera continuação da comunidade do Antigo Testamento, o verdadeiro Israel, mas isto não impede o repúdio veemente ao «judaísmo» e à interpretação judaica da lei. Paulo, por exemplo, combateu os que pretendiam reintroduzir a circuncisão (cf. Gl 5), e demonstrou como a liberdade em Cristo excluía a hipótese de se fazer depender da lei o caminho da justiça. Os ebionitas, que conservavam os preceitos judaicos e os consideravam válidos para a vida congregacional, repudiavam a interpretação paulina da lei, e recusavam aceitar suas epístolas. \

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Nos escritos dos cristãos judaicos (dos quais o mais importante é o assim chamado «Pseudo-Clemente», que contém entre outras coisas, «A Pregação de Pedro», além de vários evangelhos apócrifos) Cristo é colocado no mesmo nível dos profetas do Antigo Testamento. Ele é ai descrito como nova forma de revelação do «verdadeiro profeta», que apareceu anteriormente em Adão e Moisés, entre outros. O conceito de Cristo como o novo Moisés expressava a união de judaísmo e cristianismo, destacada de maneira especial no ebionismo. Dizia-se ser Cristo «um homem nascido de homens» (cf. Justino: Diálogo com o Judeu Trifo, p. 48), ou, como frequentemente se diria mais tarde: «única e simplesmente homem». Os ebionitas, por conseguinte, negavam a preexistência de Cristo; alguns deles também negavam a encarnação e o nascimento virginal. Supunham que Jesus recebera o Espírito Santo por ocasião de seu batismo, sendo desta maneira escolhido para ser o Messias e o Filho de Deus. A salvação não era associada com a morte e ressurreição de Cristo; em vez disso julgava-se que se tornaria realidade apenas por ocasião da segunda vinda de Cristo, quando, conforme suas expectativas, teria inicio um milénio terreno.

Com fundamento nestas ideias, o ebionismo forneceu o protótipo para uma cristologia que concebia Cristo em termos puramente humanos e que supunha que não fora Filho de Deus até ser «adotado como tal por ocasião de seu batismo ou ressurreição» (a «cristologia adopcionista»). Os atributos de Cristo eram assim rejeitados.

Visto à luz da história, o cristianismo Judaico não exerceu grande influência sobre o desenvolvimento da teologia cristã. Dividiu-se em vários grupos, e em pouco tempo desapareceu. É bem provável que não tenha existido por mais de 350 anos, no máximo. Por outro lado, no entanto, exerceu forte influência sobre o islamismo, no qual algumas de suas ideias reapareceram em forma diferente. Uma destas foi o conceito do «verdadeiro profeta», outra foi o paralelo traçado entre Moisés e Jesus.

Se o cristianismo judaico representa uma confusão de elementos judaicos e cristãos, o gnosticismo era resultado da mistura da religião he-lenística com o cristianismo. Portanto, o ebionismo diferia muito do gnosticismo; opunha-se particularmente a Marcião e seu repúdio da lei (cf. o tópico seguinte). Apesar disto, no entanto, em certas regiões podemos ver uma combinação de ideias gnósticas e judaico-cristâs. Isto se dá, por exemplo, com os elcasitas, que provavelmente receberam este nome devido a um certo Elcasai, que pode ter sido o autor do documento que ostenta seu nome. Outro exemplo encontramos nos adversários mencionados em Cl 2, que também parecem ter reunido ideias gnósticas e judaicas (cf. a referência aí feita a «filosofia e vãs sutilezas» (v. 8) e «aparência de sabedoria, como culto de si mesmo» (v. 23). Contudo, não é correto dizer que os principais conceitos do cristianismo judaico tiveram forma e origem gnóstica. (Schoeps, Theologie und Geschichte dês Ju-denchristentums, 1949).

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O GNOSTICISMO

Gnosticismo é o nome comum aplicado a várias escolas diferentes de pensamento que surgiram nos primeiros séculos da era cristã. No que tange à «gnose» cristã, isto se refere à tentativa de incluir o cristianismo num sistema geral filosófico-religioso. Os elementos mais importantes neste sistema eram certas especulações místicas e cosmológicas, além do marcado dualismo entre o mundo do espírito e o mundo material. Sua doutrina de salvação salientava o livramento do espírito de sua servidão na esfera material. Esta religião tinha seus próprios mistérios e cerimónias sacramentais, além de uma ética que preconizava ou o ascetismo ou a libertinagem.

Origens. A questão da origem do gnosticismo tem sido amplamente debatida, e não parece haver qualquer resposta simples. A maior parte da literatura gnóstica foi perdida. Todavia, parte dela foi preservada em tradução copta no Egito, por exemplo: a «Pistis Sofia», o «Evangelho de Tomé» e o «Evangelho da Verdade». As duas últimas obras citadas encontram-se entre os manuscritos descobertos na vila de Nag Hammadi (perto de Luxor) em 1946. Entre os itens aí encontrados, num jarro de cerâmica preservado na areia, havia 13 códices, inclusive nada menos de 48 escritos, todos de origem gnóstica. Esta descoberta ainda não foi comple-tamente avaliada ou tornada acessível aos pesquisadores. A maior parte de nosso conhecimento do gnosticismo chegou até nós através dos escritos dos Pais Eclesiásticos. Citam autores gnósticos, ou se referem a seus escritos em suas obras polémicas.

Os Pais Eclesiásticos concordam que o gnosticismo iniciou com Si-mão, o Mágico (At 8), mas no mais seus relatos divergem. Segundo um certo Hegesipo, citado por Eusébio (IV, 22), o gnosticismo principiou entre certas seitas judaicas. Pais Eclesiásticos posteriores (Irineu, Tertuliano, Hi-pólito), por sua vez, sustentavam a opinião que a filosofia grega (Platão, Aristóteles, Pitágoras, Zenão) era a principal fonte da heresia gnóstica. Se aqui nos limitamos ao gnosticismo que se desenvolveu em solo cristão, estes relatos não são necessariamente contraditórios. Pois este tipo de gnosticismo era um sistema sincrético que combinava correntes de pensamento opostas entre si.

Çuando falamos de gnosticismo, em geral pensamos no sistema que se desenvolveu no período cristão, na «heresia gnóstica» que os Pais Eclesiásticos combateram com tanto empenho. Mas o gnosticismo já existia quando o cristianismo surgiu; era então fenómeno religioso um tanto vago, uma doutrina especulativa de salvação com contribuições de várias tradições religiosas diferentes. Veio do Oriente, onde foi influenciado pelas religiões da Babilónia e da Pérsia. Os mitos cosmológicos atestam sua origem babilónica, enquanto seu dualismo extremado o relaciona com a religião da Pérsia. O mandenismo é um exemplo de formação religiosa gnóstica na

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área persa. Subsequentemente o gnosticismo apareceu na Síria e em solo judaico, particularmente na Samaria, e lá assumiu coloração judaica. Foi esta a forma de gnosticismo existente por volta do início da era cristã, e que os apóstolos encontraram com Simâo, o Mágico, que andava pela Samaria. Daí em diante começou a desenvolver-se uma escola gnóstica dentro da esfera cristã, com elementos derivados do cristianismo. Em vista dessa semelhança, o gnosticismo não surgiu como inimigo do cristianismo. Procurava, ao invés disso, reunir elementos cristãos a outros elementos especulativos já presentes nele numa espécie de sistema religioso universal. Foi nesta forma que o gnosticismo surgiu no segundo século, com seus principais expoentes na Síria (Saturnino), Egito (Basílides) e Roma (Valentino). Este sistema posterior também foi profundamente influenciado pelo filosofia religiosa grega. Durante muito tempo o gnosticismo foi o adversário mais perigoso do cristianismo. A polémica cristã contra o gnosticismo foi acompanhada por desenvolvimento do pensamento teológico sem precedente na história da igreja até aquela data.

Tendências. Como já vimos, encontravam-se dentro do gnosticismo numerosas tendências divergentes. As mitologias e os sistemas que surgiram em seu meio foram muitos e discrepantes.

Conforme At 8.9-24, Simâo, o Mágico, apareceu na Samaria, onde o gnosticismo encontrou uma de suas raízes. Simâo identificava-se com o «poder de Deus» e, portanto, pretendia ser figura messiânica. Também proclamava libertação da lei. Ensinava que a salvação vinha, não por intermédio de boas obras, mas pela fé nele. De acordo com os Pais Eclesiásticos a doutrina de Simâo, o Mágico, era o protótipo de todas as heresias.

Saturnino apareceu na Síria no inicio do segundo século. Seu sistema gnóstíco revela influência oriental.

Basílides trabalhou no Egito por volta do ano 125. Seu gnosticismo tinha natureza mais filosófica, e a influência grega era mais forte.

Valentino, que pregou em Roma de 135 a 160, nos legou a apresentação clássica do sistema gnóstico. A contribuição grega também é importante em sua obra.

Marcião também foi incluído entre os gnósticos pêlos Pais Eclesiásticos. Sua doutrina é similar ao gnosticismo em vários pontos. Mas ele foi, também, o fundador de sua escola sui-generis de pensamento, e seu sistema era, em muitos aspectos, original. Como veremos com maior clareza no que segue, a posição teológica sustentada por Marcião e os gnósticos frequentemente era idêntica. Mas há uma diferença, como Adolf von Harnack enfatizou em sua História do Dogma. Pois, enquanto o gnosticismo era um pot-pourri religioso, em que cristianismo e filosofia grega eram misturados, Marcião procurou reorganizar o cristianismo de modo radical com base em certas ideias respigadas de Paulo juntamente com a eliminação de todos os elementos judaicos.

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Conceitos principais. Excetuando Marcião, o gnosticismo contém certos conceitos básicos ensinados por todas as suas escolas e sistemas, embora a mitologia e os costumes litúrgicos variem.

A metafísica fundamental do gnosticismo, definida mais especificamente na obra de Valentino, foi descrita pelo Pai Eclesiástico Irineu (Adversus haereses, l) e por outros. É apresentada em forma mitológica com a personificação de vários conceitos abstratos tais como verdade, sabedoria e razão. O ponto de vista básico é de natureza dualista, o que vale dizer que tem seu ponto de partida no contraste entre o mundo do espírito e o mundo material, juntamente com o contraste entre o bem e o mal e entre esfera superior e inferior.

Em virtude de seu dualismo, o gnosticismo distinguia entre o Deus supremo e uma divindade inferior, e foi esta última, diziam, que criou o mundo. O Deus supremo era concebido em termos corapletamente abstratos como sendo a essência espiritual última; não se faziam tentativas de descrever este Deus mais especificamente, e não era associado a qualquer revelação. Julgava-se estar ele tão longe do mundo como possível. Os gnósticos também insistiam que este Deus não podia ter criado o mundo. O mundo, afinal, é mau, e, por conseguinte, deve encontrar sua origem numa essência espiritual inferior, na qual existia o mal. Este deus criador, ou demiurgo, dizia-se ser o Deus do Antigo Testamento — o Deus judaico. O gnosticismo era antagónico ao Antigo Testamento; também rejeitava a lei, insistindo que o homem podia adquirir percepções superiores que o libertariam da submissão a ela. Foi, acima de tudo, por este motivo, que os Pais Eclesiásticos combateram o gnosticismo — para defender a crença cristã no Deus único que criou o mundo e se revelou aos profetas.

A doutrina gnóstica de Deus se relacionava com especulações mirabolantes relativas ao mundo espiritual e à origem do mundo material (a assim chamada doutrina dos «eons»). Valentino, por exemplo, supunha que 30 eons tinham emanado da Divindade em processo teogônico. O mundo material se derivara do eon mais baixo como resultado de uma queda. O Deus supremo, ou Progenitor, formava o primeiro eon, também conhecido como búthos (abismo). Do «abismo» procederam «o silêncio», ou «a ideia» (sigé ou énnoia), e destes dois, «o espírito» e «a verdade» (nous e aléetheia). Desta vieram, por sua vez, «razão» e «vida» (lógos e zooée), e destas «homem» e «a igreja» e 10 outros eons apareceram. «Homem» e «a igreja» juntos produziram 12 eons, o último dos quais «sabedoria» (sofía). Os eons, agindo unanimemente, formavam o mundo do espírito, o Pléroma, que contém os arquétipos do mundo material. O último dos eons caiu do Pléroma como resultado de ataque de paixão e ansiedade, e foi por causa desta queda que o mundo material chegou a existir. O demiurgo que criou o mundo procedeu deste eon caído.

Cristo e o Espírito Santo se originaram num dos eons mais elevados. A tarefa de Cristo é a de restaurar ao Pléroma o eon caído e, ao mesmo

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tempo, livrar as almas dos homens de seu cativerio ao mundo material e trazê-las de volta ao mundo do espírito. Sobre esta base desenvolveu-se o conceito gnóstico de salvação. Dizia-se consistir a salvação no livramento das almas do mundo material a fim de que pudessem ser purificadas e trazidas de volta à esfera divina de onde vieram. Tal como acontece no neoplatonismo, que tinha muito em comum com o sistema de Valentino, a história do mundo era concebida em termos cíclicos. A alma humana era lançada para dentro deste processo cíclico. O homem caiu do mundo da luz e era conservado cativo no mundo material. A salvação consistia na libertação do mundo material de modo que o homem novamente pudesse ascender ao mundo espiritual, ao mundo da luz, de onde viera.

De acordo com o gnosticismo, tal salvação era possível devido è percepção superior (gnõosis, «gnose») dos gnósticos; essa percepção era uma forma de sabedoria esotérica que proporcionava conhecimento relativo ao Pléroma e ao caminho que para lá conduzia. Mas nem todos podiam alcançar essa salvação; apenas os assim chamados «pneumáticos», que possuíam o poder necessário para receber esse conhecimento, eram capazes de atingi-la. Todos os outros homens, que os gnósticos denominavam de «materialistas», eram incapazes de utilizar esse conhecimento. Ocasionalmente, os gnósticos faziam referência a uma categoria intermediária entre os pneumáticos e os materialistas, os assim chamados «psíquicos», em cuja categoria os cristãos geralmente eram colocados. Acreditava-se ser possível aos psíquicos a obtenção do conhecimento necessário à salvação. O gnosticismo, portanto, ensinava uma forma de predestinação: apenas os pneumáticos podiam ser salvos. Esta separação dos homens em classes diferentes era combatida pêlos Pais Eclesiásticos. Eles também repudiavam o conceito gnóstico de conhecimento superior, que era colocado acima do nível da fé e pretendia elevar o homem à esfera da divindade.

O gnosticismo tomou de empréstimo certos elementos do cristianismo e os introduziu em seu conceito geral de salvação. Cristo, por exemplo, era considerado pêlos gnósticos como o salvador, visto que diziam ter sido ele quem trouxera o conhecimento salvífico ao mundo. Mas este não é o Cristo da Bíblia; o Cristo do gnosticismo era uma essência espiritual que emanara dos eons. Este Cristo não podia ter assumido a forma de homem. Çuando apareceu sobre a terra, diziam os gnósticos, só parecia ter corpo físico. Ao mesmo tempo, os gnósticos também ensinavam que este Cristo não sofreu e morreu. O gnosticismo, em outras palavras, proclamava uma cristologia docética.

O sofrimento e a morte de Cristo não tinham importância alguma para o gnosticismo; o que ele fez para iluminar os homens, por seu turno, foi enfatizado a ponto de excluir tudo o mais. Ele foi o transmissor daquele conhecimento de que o homem necessita para principiar a jornada de volta ao mundo da luz, «a jornada em direção ao Pléroma».

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O gnosticismo ensinava que a salvação vinha ao homem por meio de mistérios que eram característicos da religião gnóstica. Os principais destes mistérios eram o batismo e a ceia do Senhor (deturpações dos sacramentos cristãos) além de vários ritos sagrados adicionais de natureza similar. Por intermédio deles os gnósticos recebiam os segredos da salvação contida no conhecimento superior. As fórmulas místicas assim adquiridas os protegeriam contra os poderes que guardavam o caminho através do mundo espiritual. Além disso, em virtude de sua participação nos mistérios, os gnósticos recebiam força interior (providenciada de maneira exclusivamente física através dos sacramentos), e era esta que os capacitaria a vencer o mal e ascender ao Pléroma.

A ética do gnosticismo se relacionava com seu dualismo básico. Se a salvação consiste na libertação do espírito do mundo material, é evidente que o ideal ético seria concebido em termos ascéticos. Certas seitas pregavam uma forma extremamente estrita de abstinência, como, por exemplo, os assim chamados encratitas (cf. Eusébio, História Eclesiástica, IV, 28-29). Mas o ponto de vista oposto também era sustentado por alguns. Considerando o fato que o espírito nada tinha a ver com o material, pensava-se que as ações externas não tinham importância alguma. Alguns diziam que a independência da matéria só podia ser obtida quando a gente se entregava completamente às concupiscências da carne (libertinismo).

O dualismo extremado do gnosticismo (entre o espiritual e o material) refletia sua relação com o pensamento grego. Este se caracterizava por seu conceito deísta de Deus, e o gnosticismo também isto assimilou. A luz destas convicções, podemos entender porque o gnosticismo não podia aceitar a ideia que Cristo é Deus e homem ao mesmo tempo (cf. os ebionitas). O gnosticismo pretendia transformar o cristianismo numa especulação mitológica. Sua doutrina da salvação implicava na negação daquilo que é mais essencial à fé cristã. A simples fé do cristianismo deveria ser substituída pelo conhecimento superior dos gnósticos, que assumiu a forma de convicção pessoal concernente às realidades do mundo espiritual. Desta maneira, para todos os efeitos práticos, o gnosticismo tornou-se uma forma de especulaçãoreligiosa filosófica quedou rejeitava ou reinterpretava o conteúdo básico do cristianismo. O gnosticïsmo combatia a crença cristã na criação divina: o criador, afirmava, não era o Deus supremo, e a própria criação era considerada vil e má (blasphemia creatoris). O Segundo Artigo do Credo era rejeitado ou reinterpretado pêlos gnósticos com base em sua cristologia docética, que negava a existência terrena de Cristo e sua expiação. Considerava-se Cristo o transmissor da gnose, enquanto seu sofrimento e morte eram rejeitados como de somenos importância. A purificação que se recebia mediante os mistérios baseava-se sobre fundamento mitológico. Os gnósticos também repudiavam o conteúdo do Terceiro Artigo do Credo. O Espírito Santo era introduzido em sua mitologia como essência espiritual que emergira de um dos eons. Irineu afirmou que os gnósticos nunca re-

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ceberam os dons do Espirito Santo e que desprezavam os profetas (Epi-deixis, 99 s.). Também negavam a ressurreição do corpo, fundamentados na ideia que tudo o que é físico ou material é mau e não espiritual. Portanto, o gnosticismo era uma interpretação idealista do cristianismo, que se procurou introduzir num sistema sincretista. Isto se evidencia especialmente em sua blasphemia creatoris, sua cristologia docética e sua negação da ressurreição do corpo. O gnosticismo não possuía escatologia: ao invés de aceitar o fato que a vida atinge sua plenitude em termos da segunda vinda de Cristo, falava-se da ascensão da alma ao Pléroma.

Muitas ideias gnósticas reapareceram posteriormente na forma do neo-platonismo e outras escolas de pensamento idealistas correlatas. Além disso, certos conceitos teológicos fortemente influenciados pela filosofia grega revelam tendências que nos fazem lembrar o gnosticismo.

Os contemporâneos de Marcião o consideraram gnóstico, e, no que respeita a pontos de vista básicos (blasphemia creatoris, docetismo, negação da ressurreição do corpo), Marcião concordava com os gnósticos. Mas em outros sentidos, era pensador independente, e propunha muitas ideias divergentes do gnosticismo. Marcião, por exemplo, não era sincretista, desejava reformar o cristianismo rejeitando tudo o que, em sua opinião, não pertencia ao evangelho. Além disso, Marcião não aceitou as especulações mitológicas que caracterizavam o gnosticismo. Nem tampouco aludia ele a qualquer gnose particular que só era acessível aos assim chamados pneumáticos. Tudo o que queria fazer era proclamar uma fé bem simples. Nada ensinava sobre a divisão da humanidade em classes diferentes. Os pontos de vista em que Marcião diferia dos gnósticos recentemente receberam muita atenção crítica (especialmente de Adolf von Harnack), e agora é visto como completamente distinto dos gnósticos. É considerado um reformador, que redescobriu o apóstolo Paulo, que os demais tinham esquecido, e que pro-clamava a salvação pela fé tão-somente, numa época em que o moralismo era a tendência dominante na teologia.

Quando os Pais Eclesiásticos disseram que Marcião era o mais perigoso de todos os heréticos, percebemos que outros aspectos de sua teologia, tais como sua doutrina de Deus e de Cristo, além de sua separação radical de lei e evangelho, eram as que mais se destacavam no sistema teológico. Foi por causa destas doutrinas que Marcião foi considerado semelhante aos gnósticos, pois elas implicavam na negação dos ensinamentos básicos da igreja. Ambas as facetas da história têm seu lugar numa análise da posição teológica de Marcião, e aqueles aspectos que o distinguem dos gnósticos nos levam a considerá-lo com base em seus próprios méritos.

No inicio, Marcião aceitava a fé da igreja, mas então sofreu a influência do gnóstico sírio Kerdo, principiando assim o processo de formação de sua própria teologia original. Chegou a Roma por volta de 140; quando foi expulso pela congregação local, organizou sua própria igreja, que em pouco 32

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tempo cresceu consideravelmente. Vestígios desta organização ainda puderam ser encontrados em vários lugares até mesmo no século VI.

O ponto de partida básico da teologia de Marcião encontra-se na distinção que fazia entre lei e evangelho, entre a Antiga Aliança e o Novo Testamento. Paulo dissera que o cristão está livre da lei, e Marcião interpretou tal afirmação como significando que a lei fora superada e que o evangelho devia ser pregado sem qualquer referência à lei. A lei, dizia, fora substituída por nova ordem de coisas. Para ele, o evangelho era mensagem nova, anteriormente desconhecida, que não apenas substituíra a lei mas também se opunha a ela. Tertuliano caracterizou esta atitude com as seguintes palavras: «A separação de lei e evangelho é a obra principal e mais característica de Marcião.» (Contra Marcionem, 1, 19).

Essa linha de pensamento aproximou Marcião da doutrina gnóstica dos dois deuses. Em Marcião — e isto era característica sua — o Deus criador do Antigo Testamento era o Deus da lei, que considerava um deus de severidade e ira, que se vingava de seus inimigos e mantinha seus seguidores em servidão sob a lei. O Deus supremo, como Marcião o concebia, não era tanto uma essência espiritual abstrata, um Deus infinitamente transcendental; era,antes,o Deus desconhecido que se revelou ao mundo em Cristo. Marcião o conceituava como o Deus da graça e misericórdia, o Deus do amor puro. Este Deus, dizia Marcião, combateu e conquistou o Deus da lei e da justiça e, por graça pura, salvou os que creram nele. Esta faceta da teologia de Marcião era interpretação deturpada e unilateral do conceito paulino de justificação. Conforme Marcião, o Deus de amor nada tinha a ver com a lei. Fez distinção radical entre justiça e misericórdia, entre ira e graça.

Cristo foi quem proclamou o evangelho do Deus do amor. Na realidade, ele era este Deus mesmo, que se manifestou aqui na terra durante o reinado de Tibério César. Apareceu, todavia, como figura fantasmagórica. Por ser ele diferente do Deus criador, não podia ter assumido a roupagem da carne humana. A cristologia de Marcião era docética, mas, apesar disso, ele acreditava no significado redentor do sofrimento e da morte de Cristo. Isto, naturalmente, contradizia sua cristologia docética, mas também o distinguia dos gnósticos. Tal fato foi notado por Irineu: «Como podia ele ter sido crucificado, e como podiam sangue e água ter jorrado do seu peito traspassado se não era verdadeiramente homem, mas apenas tinha aparência de homem?» (Adversas haereses).

O Deus de Marcião era um deus que os fiéis não precisavam temer visto ser concebido como bondade pura. Em vista disso, poder-se-ia esperar que Marcião fosse completamente indiferente à moralidade. Mas, o que a-conteceu foi exatamente o contrário, pois, nesta questão, assim como os gnósticos, Marcião era extremamente ascético. Julgava, por exemplo, que o matrimónio era mau. Marcião ensinava que um código ascético de ética ajudaria a libertar o homem do Demiurgo, o Deus criador, o Deus da lei.

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Marcião também se notabilizou por sua radical alteração do cânone. Rejeitou o Antigo Testamento dizendo que só era a proclamação do Deus da lei, o Deus judaico. O Messias dos judeus nada tinha em comum com Cristo. Marcião não permitia nem mesmo a interpretação alegórica. Com respeito ao Novo Testamento, Marcião desejava que fosse rejeitado tudo o que se referisse à lei ou ao judaismo. Reteve apenas 10 das epístolas de Paulo (as Epístolas Pastorais: l e II Timóteo e Tito, foram rejeitadas) e uma versão mutilada do Evangelho Segundo Lucas. Assim fazendo, Marcião tentou de modo extremado determinar, com base em seu próprio conceito da essência do cristianismo, quais escritos deviam ser normativos.

A oposição dos Pais Eclesiásticos a Marcião abrangia os mesmos pontos de doutrina do conflito com o gnosticismo em geral. Opunham-se a ele por negar que Deus criou o mundo e por ensinar que havia outro Deus além do Deus que criou o céu e a terra. Outro ponto em conflito era o fato de Marcião negar a encarnação, baseado em sua cristologia docética. Além disso, o fato que negava a ressurreição do corpo era fortemente atacado. Marcião acreditava que só a alma podia ser salva e não o corpo, que pertencia ao mundo material.

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CAPITULO 4

OS PAIS ANTIGNÓSTICOS

O conflito com o gnosticismo deixou sua marca impressa de várias maneiras na teologia desenvolvida pêlos Pais Eclesiásticos nos primeiros séculos. A apresentação da fé cristã, que encontramos nos assim chamados pais antignósticos, deve ser entendida contra o pano de fundo desta situação polémica. Para estes teólogos da igreja primitiva, a crença na criação divina ocupou lugar central de modo mais destacado que na tradição ocidental posterior, onde a doutrina da salvação foi frequentemente enfatizada às custas de outras facetas do cristianismo. Foi o idealismo gnóstico, com seu repúdio da criação, que levou os Pais Eclesiásticos a tratar tão pormenorizadamente da doutrina de Deus e da criação, bem como o problema do homem, a encarnação e a ressurreição do corpo. Outra característica evidente foi o ponto de vista moralizante que pode ser encontrado, por exemplo, em Tertuliano. Isto também se explica, em parte, pela oposição ao gnosticismo, com sua doutrina da libertação da lei e sua deturpação antinomista do conceito paulino da justificação.

IRINEU

Irineu veio da Ásia Menor, onde na juventude fora aluno de Policarpo de Esmirna, que, por sua vez, tinha sido discípulo de João. Sua teologia, além disso, exemplifica a tradição joanina associada à Ásia Menor. A maior parte de sua vida, no entanto, passou no Ocidente. Tornou-se bispo de Lyonç por volta de 177, e ali permaneceu até sua morte (no inicio do terceiro século).

Apenas dois escritos de Irineu chegaram até nós. Um deles é sua ampla refutação dos gnósticos, Adversus haereses, do qual permanecem um fragmento do original grego e uma tradução latina. O segundo, Epideixis, apresenta as doutrinas básicas da «proclamação apostólica». Este, por muito tempo, só era conhecido pelo nome, mas foi redescoberto em tradução arménia em 1904.

O principal objetivo da obra teológica de Irineu era defender a fé apostólica contra as inovações gnósticas. A gnose de Valentino foi a maior ameaça ao cristianismo, em sua opinião, pois ameaçava a unidade da igreja bem como procurava destruir a distinção entre o cristianismo e as especulações religiosas pagãs.

Irineu é denominado o pai da dogmática católica. Há algo de verdade nesta expressão, visto ter sido ele o primeiro a procurar apresentar um

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sumário uniforme de toda a Escritura. Irineu rejeitou o conceito de cristianismo mantido pêlos apologistas, a saber, que ele é a verdadeira filosofia. Recusou o auxilio da especulação grega, e não concordou com os que diziam que o conteúdo da revelação era simplesmente uma nova e mais perfeita filosofia. Para ele, a Bíblia era a única fonte de fé.

Irineu, portanto, era teólogo bíblico no verdadeiro sentido do termo. Enquanto os gnósticos buscavam a revelação em sabedoria oculta que, ao menos, em parte, era independente da Bíblia, em mitos e sabedoria de mistérios, Irineu afirmava ser a Escritura a única base para a fé. O Antigo e o Novo Testamento eram os meios pêlos quais a revelação e a tradição original nos atingem. Além do Antigo Testamento, que julgava ser, acima de tudo, o fundamento da doutrina da fé, Irineu faz referência a uma coleçâo de escritos do Novo Testamento, que considerava de igual autoridade e que, em traços gerais, é o mesmo cânone hoje aceito. A palavra «testamento», naturalmente, não era empregada neste contexto. O cânone ainda não tinha sido formalmente determinado. Alguns dos escritos neotestamentários eram considerados demasiadamente controversos; eram aceitos como canónicos em alguns círculos, enquanto em outros sua autoridade apostólica era posta em dúvida. Em traços gerais, no entanto, os limites do cânone do Novo Testamento já tinham sido definidos mesmo antes da época de Irineu. O modo como ele emprega os escritos do Novo Testamento, demonstra, até certo ponto, este fato.

Irineu nada diz sobre a diferença entre Escritura e tradição que apareceu mais tarde no campo da dogmática. A tradição oral que cita como tendo autoridade decisiva era o que apóstolos e profetas ensinavam, e que confiaram à igreja, e fora perpetuado nela pêlos que tinham recebido o evangelho dos apóstolos. Com relação ao conteúdo, isto nada era além da proclamação conservada em forma escrita no Antigo e no Novo Testamento. Os gnósticos, por sua vez, deturpavam os ensinamentos da Bíblia fundamentando-se em tradições que não procediam dos apóstolos. Em passagem bem conhecida (Adversas haereses, III, 3, 3) Irineu se refere à cadeia ininterrupta de bispos romanos, começando com a época dos após-tolos, para demonstrar que era a igreja — e não os heréticos — que tinha preservado a tradição correta. Seria erro, contudo, procurar ver nesse texto o conceito de sucessão apostólica desenvolvido posteriormente. Irineu, em última análise, estava preocupado, em primeiro lugar, com conteúdo doutrinário e não com teorias sobre ordenação.

Em algumas ocasiões Irineu fala da autoridade doutrinária em termos de regula veritatis, «a regra da verdade». De modo semelhante, os Pais Eclesiásticos frequentemente mencionam a regula fidei, «a regra da fé», como o fator determinante em questões relativas às doutrinas cristãs. O significado destes conceitos tem sido amplamente debatido; alguns afirmam constatar neles referência à confissão batismal solene que surgiu no conflito com o gnosticismo, enquanto outros interpretam a regra da fé como 36

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OS PAIS ANTIGNOSTICOS

referindo-se à Escritura Sagrada. Essa «verdade» que, segundo Irineu, era a «regra» (o termo grego kanóon era empregado nesta conexão) era o plano da salvação revelado, do qual a Bíblia dá testemunho e que a confissão batismal resume. «A regra da fé» não estava, pois, fixada numa fórmula específica; nem tampouco designava a Escritura como código doutrinário. Referia-se, em vez disso, à verdade revelada como esta se apresentava, não apenas na confissão batismal e nas Escrituras, mas também na pregação da igreja. Foi esta verdade revelada que Irineu usou para combater os gnósticos, e foi esta que procurou interpretar e descrever de maneira a fazer justiça à genuína tradição apostólica.

Irineu, portanto, derivou sua teologia da Escritura. O que desejava fazer, acima de tudo, era apresentar o plano de salvação de Deus desde a criação até o cumprimento final (oikonomia salutis). O tempo, em sua opinião, era época limitada; principiou com a criação e terminará com o cumprimento. Em ambas as extremidades circunda-o a eternidade. É dentro do contexto do tempo que a salvação ocorre. Dentro deste contexto Deus realizou as ações testemunhadas pela Escritura, e das quais depende a salvação dos homens. Para os gnósticos a salvação não era algo que se realizava dentro da história; era uma ideia, um sistema especulativo que supunha poder a alma elevar-se acima do temporal e reunir-se com sua origem divina mediante a gnose. Para Irineu tudo isto era história real, cujo cumprimento se esperava para o fim dos tempos. A diferença entre a cos-movisão grega e o conceito cristão de tempo evidencia-se nestes pontos de vista opostos.

A criação fazia parte do plano divino da salvação. O Filho de Deus, o Salvador, estava presente antes do princípio do tempo em seu estado preexistente. O homem foi criado para que o Salvador não estivesse só, de modo que houvesse alguém para salvar (cf. Gustav Wingren, Man and the Incarnation According to Irenaeus, 1947, p. 28). Tudo foi criado mediante o Filho e para o Filho. A salvação foi realizada pelo mesmo motivo porque Deus criou: a fim de que o homem pudesse ser semelhante a Deus. O homem foi criado à imagem de Deus, mas, como resultado da queda, essa semelhança foi perdida. O significado da salvação é tornar possível ao homem concretizar seu destino mais uma vez, a saber, que o homem possa tornar-se a imagem de Deus segundo o protótipo discernível em Cristo. O homem se encontra no centro da criação. Tudo o mais foi criado para o homem usar. Mas o homem foi criado para Cristo e para tornar-se como Cristo, que é o centro de toda existência, Aquele que abrange tudo no céu e na terra. (Cf. Adversus haereses, V, 16, 2).

Consideradas deste ponto de vista, criação e .salvação unem-se integralmente, porque há apenas um Deus que tanto cria como salva. A doutrina gnóstica de dois deuses é blasfémia contra o Criador. Também im-plica no fato de ser a salvação impossível. Pois, se Deus não criou, então

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

a criação não pode ser salva. Se Deus não é o Criador, então não irá salvar a criação. Mas este é o alvo de todo o plano de salvação.

A salvação, para os gnósticos, consistia em libertar-se o espirito do homem da criação, do mundo material e retornar à pura espiritualidade. Para Irineu, no entanto, salvação significava que a própria criação seria restaurada a seu estado orginal, que a criação finalmente atingiria o destino que Deus lhe reservara. Em outras palavras, salvação, para Irineu, não significava que o espírito do homem se libertaria de suas cadeias materiais, mas em vez disso, que o homem inteiro, corpo e alma, seria libertado do domínio do diabo, retornando a sua pureza original e tornando-se como Deus.

O homem foi criado, segundo Gn 1.26, à «imagem» e «semelhança» de Deus. É frequente ouvir-se que Irineu foi o primeiro a introduzir a ideia (de grande aceitação, posteriormente) de que estes dois conceitos se referiam a duas qualidades distintas no homem. Isto, todavia, não corresponde aos fatos. Pois Irineu, com frequência, empregou estes dois conceitos para expressar a mesma coisa, e estas passagens parecem ser decisivas. (Cf. Wingren).

Çuando se diz que o homem foi criado à imagem de Deus, isto, de acordo com Irineu, indica o verdadeiro destino do homem. Não significa que o homem é a imagem de Deus, mas antes, que foi criado para tornar-se isso. Cristo, que é o próprio Deus, é a imagem de Deus segundo a qual o homem foi criado; o destino do homem, portanto, é tornar-se como Cristo. Este é o alvo da salvação e da obra do Espírito Santo.

Çuando da criação, o homem era criança; não estava plenamente de-senvolvido, mas foi criado para crescer. Se o homem tivesse vivido em conformidade com a vontade de Deus, teria crescido, e através do poder de Deus teria atingido seu destino — completa semelhança com Deus. Irineu entendia o crescimento, não como desenvolvimento interno, mas como resultado da atividade criadora continua de Deus.

Mas o homem abandonou o caminho da obediência, tendo sido tentado pelo diabo, um dos anjos que, ardendo de inveja contra os homens, rebelaram-se contra Deus. Foi desta maneira que o homem chegou a ficar sob o domínio do diabo. O homem está envolvido no conflito entre Deus e Satanás.

O objetivo do plano da salvação, portanto, é o de libertar das garras do demónio aqueles que ilegalmente foram aprisionados por ele. Esta é a obra da redenção, que foi realizada através de Cristo. Ele venceu o diabo e, deste modo, obteve a libertação do homem. Mas, apesar disso, o conflito continua. Contudo, é preciso dizer, que ingressou em nova fase após a ressurreição de Cristo. Como resultado, a batalha decisiva já foi travada. O que agora acontece é que homens são atraídos para a vitória de Cristo e assim recebem a vida que perderam na queda de Adão. 38

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OS PAIS ANTIGNÓSTICOS

Este plano de salvação pode ser retratado de várias maneiras, como livramento da servidão ou como vitória após o combate (cf. acima). Também pode ser descrito em termos legalistas: naturalia praecepta — lex Mosaica — Cristo, a nova aliança, a restauração da lei original. A lei original, tendo sido entregue na criação, expressa a vontade divina para o homem. O destino do homem é viver de maneira condigna com esta lei, em obediência ao mandamento de Deus. Assim fazendo, o homem recebe vida e justiça da mão de Deus e prossegue em direção ao alvo da perfeição e semelhança com Deus. Esta lei foi escrita no coração, e o homem está livre para obedecer-lhe ou transgredi-la. Mas quando o homem contraria o mandamento de Deus, coloca-se sob o domínio do pecado. Em vista disso, Deus firmou nova aliança com os homens, através dos israelitas, e deu aos homens a lei mosaica. O propósito desta lei era o de disciplinar os homens, revelar o pecado e conservá-lo em seu lugar, e o de manter a ordem exteriormente até a vinda de Cristo. Considerada neste contexto, a tarefa de Cristo era a de ab-rogar a lei mosaica e restaurar a lei que fora entregue na criação e que tinha sido obscurecida pêlos regulamentos farisaicos. Cristo liberta da escravidão da lei por meio de seu Espirito que regenera o homem e cumpre a lei dentro dele. O Espírito Santo restaura a obediência, e desta maneira, o homem é regenerado segundo a lei que foi outorgada na criação. Esta lei original revelava o que constituíra a seme-lhança do homem com Deus. Há portanto, um paralelo entre a afirmativa que o homem foi criado à imagem de Deus e o que se diz sobre a lei natural.

Vida e morte relacionam-se com a lei, e Irineu descreve o plano da salvação igualmente nestas categorias. Vida e obediência à lei andam de mãos dadas. Çuando o homem obedece aos mandamentos de Deus, recebe vida de Deus, mas quando cai na desobediência, coloca-se sob o poder da morte. Pois desobediência a Deus equivale à morte. Foi por causa da desobediência que a corrente da vida foi rompida, e quando isto aconteceu a morte surgiu no mundo dos homens. A morte, portanto, não se associa com o corpo e com a vida criados, de modo eo ipso; é antes algo imposto aos homens por causa do pecado. Isto se reflete em Gn 2.17: «No dia em que dela comeres, certamente morrerás.» Salvação significa que a vida foi restaurada pela vitória de Cristo sobre a morte. Crendo em Cristo, o homem pode recuperar a vida que perdeu pela queda. A salvação outorga o dom da imortalidade. Ç corpo certamente morrerá por causa do pecado, a fim de que o poder do pecado possa ser vencido. A nova vida no Espírito é ativada pela fé, e alcança sua plenitude depois da morte. Então não haverá nada mais no homem que se relacione com a morte. O homem que foi restaurado percebe para que destino foi criado — para tornar-se semelhante a Deus e viver sem morrer,

A ideia básica da apresentação de Irineu do plano da salvação é que a obra da criação foi restaurada e recapitulada na salvação realizada por

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intermédio de Cristo. Em oposição aos gnósticos, que julgavam consistir a salvação no livramento do espírito do mundo material, Irineu insistia que Deus e homem, corpo e alma, céu e terra, são capazes de ultrapassar a ruptura provocada pela invasão do pecado e serem reunidos novamente. Isto, para Irineu, era o significado da salvação.

Cristo é o segundo Adão, o reverso do primeiro Adão. Este trouxe morte e ruína à criação por causa de sua desobediência. Cristo, por intermédio de sua obediência, restaura a criação a seu estado de pureza. Adão cedeu à tentação da serpente caindo assim sob o dominio do diabo. Cristo resistiu à tentação e, desse modo, destruiu o poder do tentador sobre a humanidade. Em sua vida representa toda a raça humana, tal como o primeiro Adão o fizera. Pelo poder de sua obediência e obra de expiação, 'tornou-se o cabeça de nova humanidade. Tornou perfeito o que fora arruinado pela queda de Adão. Por intermédio dele a humanidade continua a crescer para o alvo da perfeição. A criação é restaurada, seu destino se torna realidade. A obra redentora de Cristo principia com seu nascimento da virgem Maria e alcançará sua plenitude na ressurreição geral, quando todos os inimigos tiverem sido subjugados a Cristo, e Deus será tudo em tudo.

Irineu resumiu toda esta oeconomia salutis num conceito singular: re-capitulatio (anakefalaioosis). Este termo significa «recapitulação»; também sugere «restauração». Deriva-se este conceito de Ef 1.10, onde se menciona o decreto de Deus relativo ao plano «de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as cousas, tanto as do céu como as da terra*.

Para Irineu, portanto, «recapitulação» é termo que descreve toda a atividade redentora de Cristo desde o seu nascimento até o Dia do Juízo. Ao realizar esta obra, Cristo repetiu o que acontecera na criação, embora o fizesse, por assim dizer, em sequência inversa. «Ele recapitulou a primeira criação em si mesmo. Pois assim como o pecado entrou no mundo pela desobediência de um homem, e a morte pelo pecado, assim também a justiça veio ao mundo pela obediência de um homem, trazendo vida aos que anteriormente estiveram mortos.» (Adversus haereses, 111, 21, 9-10).

Recapitulação também lembra perfeição, ou plenitude. Aquilo que foi dado por intermédio de Cristo, e que chega a existir mediante sua obediência, é superior àquilo que foi dado na criação. O homem então era ainda um «filho» daquela época. Em virtude da salvação que foi obtida, o homem pode crescer até à plena semelhança com Deus, como representada na pessoa de Cristo.

Irineu desenvolveu sua cristologia em oposição ao ponto de vista do-cético defendido pelo gnosticismo. A obra da salvação pressupõe que Cristo é tanto verdadeiro homem como verdadeiro Deus. -Se os inimigos do homem não foram vencidos pelo homem, não podem ter sido verdadei-

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ramente vencidos; além disso, se nossa salvação não procede de Deus, não podemos estar plenamente seguros que estamos salvos. E se o homem não se unisse com Deus, não lhe seria possível compartilhar a imortalidade» (III, 18, 7; Cf. Gustav Aulen, History of Dogma, p. 32). Encontramos aqui forte ênfase na humanidade de Cristo: um homem real tinha de andar na trilha da obediência a fim de que a ordem que fora destruída pela desobediência de Adão pudesse ser restaurada. Ao mesmo tempo, apenas Deus podia realizar a obra da redenção. Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus (vere homo, vere deus).

O Filho existiu com o Pai desde toda a eternidade. Mas como o Filho veio do Pai não é revelado. Em vista disso, o homem nada pode saber a respeito deste assunto. Irineu rejeitou as especulações em torno do Logos feitas pêlos Apologistas, nas quais o nascimento do Filho era comparado ao modo como a Palavra procedeu da razão. «Dever-se-ia perguntar: Como o Filho procedeu do Pai? esta é nossa resposta: Relativamente a sua geração, ou nascimento, ou manifestação, ou revelação, ou como se quiser expressar seu inefável nascimento, ninguém sabe; nem Marciâo, nem Saturnino, nem Basílides. Apenas o Pai, que o trouxe à luz, e o Filho, que nasceu, sabem algo sobre isto» (II, 28, 6). Os Apologistas diziam que ocorreu um nascimento no tempo (a Palavra procedeu da razão divina quando da criação). Irineu, por sua vez, parece ter conjeturado um nascimento na eternidade, mas não se expressa de modo específico neste ponto.

Era típico de Irineu recusar explicação mais precisa de como foi que Cristo procedeu do Pai; o mesmo ocorre com respeito à relação entre Deus e homem em Cristo. Procurou apresentar o conteúdo da Escritura sem o auxílio da filosofia e aderir à regra da fé sem entregar-se a meras especulações. Em Adversus haereses, l, 10, 1 Irineu forneceu um sumário breve da fé que fora transmitida desde os apóstolos: «A igreja se estende pelo mundo inteiro, às regiões mais remotas da terra. Recebeu sua fé dos apóstolos e seus seguidores. Essa, é fé em um só Deus, Pai todo-poderoso, que fez os céus e a terra e os mares e tudo o que há dentro deles; e em Cristo Jesus, o Filho de Deus, o qual, para nos redimir, assumiu forma humana; e no Espírito Santo, o qual, através dos profetas, proclamou o plano de salvação de Deus, o duplo advento do Senhor, seu nascimento de virgem, sua paixão, sua ressurreição dos mortos, sua ascensão física ao céu, e seu retorno do céu na glória do Pai. Cristo retornará a fim de 'res-taurar todas as coisas" e ressuscitar toda carne em toda a raça humana, d® modo que todos os joelhos se prostrarão perante Jesus Cristo e todas as línguas o louvarão, a ele, que segundo o invisível beneplácito do Pai, é nosso Salvador e Rei.»

Há na teologia de Irineu um paralelo à doutrina quiliasta, mas evita ïalar de «1.000 anos». Prefere, em vez disso, referir-se ao «reino do Filho», "o qual o domínio de Cristo se manifestará de maneira visível na terra. Além disso, o Anticristo será derrotado, a natureza se renovará, e os fiéis

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

reinarão com Cristo neste «reino do Filho». Isto precederá a segunda ressurreição e o Dia do Juízo. A eternidade principiará após o final do julgamento, quando o Filho entregará o Reino ao Pai, e Deus será «tudo em tudo». (Cf. Wingren, pp. 212 ss.).

TERTULIANO

Em longa série de escritos profundos e incisivos, Tertuliano envolveu-se nas controvérsias eclesiásticas de seu tempo a fim de defender a fé cristã e de instruir os fiéis. Foi o primeiro dos Pais Eclesiásticos com «estilo tipicamente ocidental», e de várias maneiras foi o fundador da tradição teológica ocidental.

Tertuliano nasceu em Cartago em meados do segundo século; originalmente pagão, converteu-se ao cristianismo já adulto. Exerceu a advocacia em Roma por algum tempo, mas após sua conversão retornou à vida privada em Cartago, onde se devotou ao estudo e a escrever. Sua atividade literária restringiu-se aproximadamente ao período entre 195 e 220. Por volta do ano 207 Tertuliano associou-se ao movimento montanista, que posteriormente manifestou tendências sectárias.

Como autor, Tertuliano era bem original. Em contraste com os escritores que o precederam, empregou estilo formal. Destacava-se no campo da retórica, e sua erudição era ampla e profunda. Não era filósofo, no entanto; estava mais interessado em questões sociais, e possuía bom domínio da lei. Era observador acurado da vida em geral, e seus escritos manifestam seu ponto de vista altamente individualista. Seu profundo interesse em questões práticas e sua firme adesão à realidade são características da teologia ocidental. Assim KarI HolI descreveu Tertuliano: «Nele o espírito do Ocidente falou claramente pela primeira vez.» (Gesammelte Aufsaetze, 111, 2).

Entusiasmo apaixonado e dialética engenhosa caracterizam os escritos polémicos de Tertuliano. Devido a seu estilo irregular, paradoxal e sucinto, às vezes é difícil entendê-lo.

Os escritos teológicos de Tertuliano exerceram influência ampla e significativa. Isto se deve especialmente ao fato de ter ele produzido formulações que se tornaram populares. Também cunhou certa terminologia que ficou fazendo parte da literatura teológica desde então (na língua latina que ele usava). Além disso, alguns de seus conceitos forneceram os protótipos para desenvolvimentos posteriores no campo da teologia. Isto acontece, por exemplo, com respeito à doutrina da Trindade, cristologia e pecado original. Tertuliano foi o precursor de Cipriano, que se tornou seu discípulo, bem como de Agostinho.

As contribuições de Tertuliano à época em que viveu se encontram em seus escritos polémicos, bem como em seus pronunciamentos relativos

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OS PAIS ANTIGNÓSTICOS

a problemas eclesiais práticos. Tal como os apologistas, defendeu o cristianismo da religião pagã (cf. Apologeticum). Para ele, como para Irineu, o gnosticismo era o principal adversário (cf. Adversas Marcionem; De pra-escriptione haereticorum). Por último, voltou-se contra o modalismo (cf. Adversos Praxean). Tertuliano escreveu bom número de livros com o obje-tivo de desenvolver suas convicções doutrinárias e para dar sua opinião com respeito a questões práticas congregacionais.

A teologia de Tertuliano foi, em grande parte, condicionada pelo seu conflito com os gnósticos. Suas conhecidas afirmações contra a filosofia devem ser vistas neste contexto, pois em sua opinião, a filosofia era a fonte de heresia gnóstica. Valentino aprendera de Platão, Marciâo dos estóicos, e como resultado transformaram o cristianismo numa filosofia religiosa pagã. Escreve Tertuliano: «Os filósofos e os hereges discutem os mesmos assuntos, e empregam os mesmos argumentos complexos. Pobre Aristóteles! Foi você quem lhes ensinou dialética, para se tornarem hábeis em construir e derrubar. Eles são tão sutis em suas teorias, formais em suas inferências, t^o seguros sobre suas provas, tão solenes em seus debates, que se tornam fatigantes em virtude do fato que tratam de tudo de tal modo que, em última análise, não se tratou de nada. Çue tem Atenas a ver com Jerusalém? Que tem a academia a ver com a igreja? Çue têm os hereges a ver com os cristãos? Nossa doutrina flui da sala de pilares de Salomão, que aprendera que é preciso buscar o Senhor com inocência de coração. A mim pouco importa, quem quiser que produza um cristianismo estóico, platónico e dialético. Visto como o evangelho de Cristo nos foi proclamado, não precisamos mais inquirir ou perscrutar esses assuntos. Se temos fé, não desejamos qualquer coisa além da fé. Pois este é o primeiro principio de nossa fé: Nada há além desta fé em que precisamos crer» (De praescript., 7). Se alguém deseja algo além da fé, revela assim o fato que realmente não tem fé. Tal homem, em vez disso, tem fé naquilo que procura (ibid., 11). Os gnósticos vão além da fé em sua sabedoria. O cristão, pelo contrário, adere à fé simples que é revelada na Escritura e preservada na tradição apostólica. «Nada conhecer em oposição à regra (de fé) é conhecer todas as coisas.» (Ibid., 14).

A rejeição da filosofia por parte de Tertuliano relacionava-se, pois, com seu conflito contra os heréticos. «Os filósofos são os pais dos heréticos», escreveu (Adversas Hermogenem, 8). Mas essa rejeição também pode ser explicada do seguinte modo: Tertuliano reconheceu uma distinção fundamental entre fé e razão em epistemologia. O que o homem crê não pode ser compreendido com sua razão. O conhecimento da fé é diferente do conhecimento da razão. Aquele possui sua própria sabedoria, que nada tem a ver com prova racional. Relativamente à ressurreição de Cristo, Tertuliano disse: «É verdadeira porque é Impossível»'(De carne Christi, 5; cf. De baptismo, 2). É esta espécie de «irracionalismo» que em geral se caracteriza com a expressão credo quia absurdum («Creio porque é absurdo»).

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

Esta frase não se encontra em Tertuliano, mas seguramente expressa seu modo de pensar.

O que foi dito acima, contudo, representa apenas uma faceta da concepção de fé e razão de Tertuliano. Outras passagens em seus escritos apresentam sua opinião mais positiva no tocante à razão humana. Ele o faz sem recorrer ao auxilio da filosofia para fortalecer seus argumentos. Nesta questão, Tertuliano não faz es mesmas exigências rigorosas à teologia como Irineu.

É comum ouvir-se dizer que há um traço racionalista na assim chamada teologia natural de Tertuliano. Ocasionalmente, disse que o não cristão possui conhecimento natural do Deus único; que a alma humana é naturaliter Christiana. Tertuliano também utilizava a prova cosmológica da existência de Deus: a beleza e ordem da criação são provas da presença do Criador no mundo. Estes pensamentos e outros semelhantes, no entanto, destinavam-se a demonstrar a universalidade do cristianismo, e a apoiar a doutrina cristã da criação divina. Em vista disso, não se pode, com justiça, acusar Tertuliano de racionalismo.

Embora criticasse severamente a filosofia, Tertuliano muitas vezes empregava ideias e formulações filosóficas. Em oposição ao espiritualismo característico do gnosticismo, por exemplo, tomou de empréstimo certas linhas de pensamento dos estóicos, que então reorganizou numa teoria «realista». É este realismo que, pelo menos até certo ponto, distingue o pensamento ocidental do grego. Mas Tertuliano o levou a um extremo: a teologia, disse, deve relacionar-se com alguma realidade manifesta em todos os pontos. O corpo físico fornece o padrão para toda realidade. «Tudo que existe é corpo de algum tipo; nada é incorpóreo exceto o que não existe» (De carne Christi, 11). Como consequência desta tese, Tertuliano atribuiu corporeidade até mesmo a Deus, e também conjeturou a possibilidade de ter a alma corpo invisível. Sua teoria sobre a origem da alma também se relacionava com isso; a alma, segundo Tertuliano, se transmite por nascimento natural de uma geração à seguinte. Este conceito costuma-se denominar traducianismo. A outra teoria relativamente à origem da alma é chamada criacionismo, que sustenta que a alma de cada homem é nova criação, diretamente saída da mão de Deus. (Cf. Karpp, Probieme altchristii-cher Anthropologie, 1950).

A doutrina da Trindade ocupa lugar de destaque na teologia de Tertuliano. Ao lidar com esta faceta de sua teologia, Tertuliano adotou os conceitos de Logos dos apologistas e os desenvolveu mais ainda. Suas formulações serviram de base para fórmulas trinitárias e a cristologia que a igreja aceitou posteriormente.

Tertuliano aplicou o conceito de Logos do mesmo modo como os Apologistas. Cristo, afirmou ele, é a Palavra divina, que procedeu da razão de Deus quando da criação. Ao dizer Deus: «Haja luz», nasceu a Palavra

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OS PAIS ANTIGNOSTICOS

(o Verbo). Cristo é um com Deus, e ainda assim é distinto do Pai. Procedeu da essência de Deus como os raios emergem do sol, as plantas de suas raízes, ou o rio de sua fonte. Portanto, o Filho está subordinado ao Pai. É aquele que revelou a Deus, enquanto Deus mesmo é invisível. Assim como os apologistas, Tertuliano empregou a expressão «subordinacionis-mo». Ressaltou enfaticamente que o Filho e o Espirito Santo são um com o Pai, mas ao mesmo tempo algo diferente do Pai. «O Pai não é o Filho; ele é maior do que o Filho; pois aquele que gera é diferente daquele que nasce; o que envia é diferente do que é enviado» (Adversus Praxean, 9). Com o objetivo de expressar a relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, Tertuliano cunhou o termo persona, que mais tarde tornou-se o vocábulo geralmente aceito neste contexto. O Filho, como pessoa independente, veio do Pai. O Logos tem existência independente. E, todavia, as três pessoas são um, assim como os raios do sol são um com o sol. Para expressar esta unidade, Tertuliano usou o termo substantia, que é paralelo ao vocábulo grego ousia, «essência» ou «substância». Este termo, também, chegou a ser geralmente aceito na formulação da doutrina da Trindade.

As três pessoas preexistiam em Deus. Mas quando procederam de Deus e ingressaram no tempo, isto ocorreu de acordo com o plano da salvação. O Filho procedeu do Pai a fim de declarar o plano da salvação. As três pessoas denotam etapas diferentes na revelação de Deus, mas são, apesar disso, um só — assim como as raízes produzem a planta, e a planta carrega frutos, enquanto juntos formam uma e a mesma planta. Esta concepção da Trindade é usualmente denominada doutrina «económica» da Trindade. A diferença entre as pessoas é descrita com base em sua ativi-dade no plano da salvação.

Tertuliano desenvolveu sua cristologia em oposição ao modalismo (do qual se falará ainda, posteriormente). Traçou distinção nitida entre as qualidades divinas e humanas em Cristo. Referem-se a duas substâncias diferentes, diz ele, que se uniram numa pessoa, Cristo, mas não se combinaram. Çuando Cristo disse: «Deus meu. Deus meu, por que me desamparaste?» não foi Deus Pai quem clamou («Pois caso o fosse, a que Deus clamaria?») — foi o homem, o Filho, que clamou ao Pai. Cristo sofreu só como Filho, afirmou Tertuliano, rejeitando desta maneira o patripassionismo (Praxeas), que confundiu Deus e Cristo a tal ponto que dizia ter sido o Pai quem sofreu. É preciso ressaltar, entretanto, que Tertuliano usou ex-pressões como Deus mortuus e Deus crucifixus, que não necessariamente contradizem o que foi dito acima. Mas nada disse de específico sobre a relação entre as qualidades divinas e humanas. O Logos apareceu em carie, revestido de forma corpórea, mas não se transformou em carne. A doutrina subsequente das duas naturezas de Cristo baseou-se em Tertuliano. Sua terminologia pode ser apresentada esquematicamente da seguinte maneira:

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

Uma substância (ousia) — três pessoas (upostáseis): Pai, Filho, Espirito Santo. A pessoa de Cristo — natureza divina e humana (a substância do Criador e substância humana).

Irineu apresentou Cristo como o Salvador do poder do pecado, que, através do seu Espirito, redime o homem da corrupção do pecado a fim de que o homem possa ser restaurado a sua pureza original. A salvação era descrita, em outras palavras, em termos de recuperação de saúde e integridade. Tertuliano deu ênfase a outro ponto de vista: apresentou Cristo como o mestre que proclama nova lei (nova lex), fortalecendo, desta maneira, a vontade livre do homem a fim de que possa viver de acordo com os mandamentos de Deus. Viver de maneira compatível com a lei de Deus é, segundo Tertuliano, o alvo da salvação. Isto se alcança mediante instrução na lei. O conceito de mérito é dominante. Deus recompensa ou pune com base em mérito. A relação entre Deus e o homem é concebida em termos de sistema judicial. Se Deus não vingasse e punisse, não haveria razão para temê-lo e fazer o que é correto. A salvação, diz Tertuliano, é dada como recompensa pelo mérito humano. As boas ações, bem como as más, devem ser recompensadas por Deus. Esta interpretação claramente opõe-se à de Marcião, que enfatizara o amor de Deus a ponto de negar todas as considerações de retribuição e ira.

A doutrina da graça de Tertuliano também foi introduzida nesta estrutura. É a graça que salva — com o que Tertuliano quer dizer que a graça retira a corrupção que aderia à natureza humana como resultado da invasão do pecado. A ideia que esta corrupção se encontra na própria natureza, e é transmitida pelo nascimento, igualmente aparece em Tertuliano. É aí onde a doutrina do pecado original começa a tomar forma. Através da graça o homem pode receber o poder indispensável para viver a nova vida. A graça é concebida como o poder que é outorgado ao homem, capacitando-o a viver vida meritória. Com base nesta doutrina de pecado — graça — mérito, que Tertuliano desenvolveu no decurso de sua controvérsia com Marcião (que ressaltava o amor de Deus), foi lançado o fundamento para a doutrina da salvação, que dominou a teologia medieval do ocidente e, mais tarde, a do catolicismo romano.

Como foi dito acima, Tertuliano filiou-se ao movimento montanista, em parte como resultado da praxe complacente da igreja com respeito à penitência. A seita montanista originara-se na Ásia Menor, em meados do segundo século, e, de lá, propagou-se a Roma e ao Norte da África. Distinguia-se por sua forte ênfase na profecia e nos dons livres do Espírito, por sua crença na iminência do fim do mundo, e por seu rígido ascetismo e sua rigorosa praxe de penitência.

Em virtude de sua associação com os montanistas, Tertuliano é lembrado como tendo sido um cismático, mas ao mesmo tempo foi também um dos principais adversários das heresias, bem como um dos mais destacados artífices da teologia ortodoxa ocidental. 46

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OS PAIS ANTIGNÓSTICOS

HIPÓLITO

Hipólito, que foi bispo em Roma e adversário do papa Calixto (cuja atitude com respeito à penitência desaprovava veementemente), foi banido para Sardenha durante uma perseguição (ca. 235), e morreu no exílio. Escreveu vários livros (em grego), dos quais alguns chegaram até nós, em que continuou a defesa da doutrina cristã contra a filosofia grega e as heresias eclesiásticas. Sua obra mais conhecida intitula-se Philosophoumena (ou A Refutação de todas as Heresias), que realmente é um apanhado enciclopédico das ideias filosóficas que derivaram dos filósofos naturalistas gregos, de vários conceitos mágicos e religiosos dominantes em sua época, bem como das heresias eclesiásticas que, segundo Hipólito, tinham suas raízes na filosofia grega. Esta obra é testemunho eloquente de sua vasta erudição e proporciona conhecimento valioso sobre as várias escolas de pensamento que Hipólito ai descreve. O material polémico, por sua vez, dirige-se especialmente contra os gnósticos e os modalistas, e não apresenta a mesma originalidade e vigor das polémicas de Irineu e Tertuliano.

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CAPÍTULO 5

TEOLOGIA ALEXANDRINA

A teologia cristã desenvolveu-se em oposição à filosofia grega e às tendências heréticas. Os apologistas refutaram as objeções do mundo pagão e apresentaram o cristianismo como a verdadeira filosofia; os pais an-tignósticos desenvolveram, com base na Escritura e na tradição, uma teologia destinada a proteger a ortodoxia das especulações do gnosticismo e da filosofia grega. Mas o que os alexandrinos ofereceram como substituto foi uma cosmovisão sistemática baseada em princípios filosóficos, em que o cristianismo foi inserido e conservado como a mais elevada sabedoria.

Esta foi a primeira tentativa de se obter uma síntese real entre o cristianismo e a filosofia grega. Ao contrário dos apologistas, os alexandrinos não se contentaram em apresentar a tradição cristã simplesmente como complemento superior à filosofia. E em contraste com os gnósticos, não procuraram substituir o cristianismo por uma doutrina sincretistica de salvação que repudiou alguns dos elementos fundamentais da fé cristã.

Os teólogos alexandrinos queriam preservar a tradição cristã de maneira fiel, e phra consegui-lo apoiavam-se firmemente na Escritura. Ao mesmo tempo também possuíam um ponto de vista filosófico coerente, em cujo contexto procuravam inserir o conteúdo da revelação de modo a criar novo sistema teológico. Faziam uso da filosofia contemporânea desta maneira com o objetiw de apresentar a realidade da fé como cosmovisão uniforme e abrangente. O propósito disto não era o de misturar cristianismo e filosofia, mas apenas o de apresentar o cristianismo como a mais elevada verdade. Orígenes foi um dos mais destacados teólogos bíblicos de todos os tempos, e desejava tão-somente interpretar o significado da Escritura. Mas como resultado de seus pressupostos filosóficos tinha a tendência de introduzir implicações filosóficas e especulativas nas passagens da Escritura como seu sentido mais profundo. Fazia-o com auxilio do método alegórico. Em vista disso, o sistema de Orígenes traz impressa a marca da filosofia 9''®ga desenvolvida em sua época (e anteriormente) em Alexandria, o principal centro de educação grega naquele período. Foi, portanto, o elemento básico desta filosofia que significativamente condicionou a teologia alexandrina como foi desenvolvida por Clemente e Orígenes.

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

O PLATONISMO DE ALEXANDRIA

É comum ouvir-se dizer que os princípios filosóficos reconheciveis na teologia de Orígenes são os do neoplatonismo. Isto não corresponde plenamente aos fatos. O fundador real da escola neoplatônica foi PIotino, contemporâneo mais jovem de Orígenes. Esta escola foi fundada em 244, quando a teologia alexandrina já existia. Mais corretamente, pois, será dizer que o neoplatonismo foi o paralelo filosófico do sistema teológico alexandrino. Mas tanto PIotino como Orígenes tiveram o mesmo mestre Amónio Sacas. Através dele Orígenes chegou a sentir a influência do neoplatonismo embrionário. Pesquisa mais recente (E. de Faye; Hal Koch, Pronoia und Paideusis) demonstrou, no entanto, que esta influência não foi tão grande como se supunha. Na realidade, Orfgenes era eclético. Mas no que tange a escolas filosóficas, mais do que de qualquer outra aproximava-se do platonismo tal como era popular em Alexandria durante os primeiros séculos da era cristã e que, em geral, denomina-se platonismo médio. Era continuação da antiga Academia, mas tinha transformado o platonismo clássico num sistema cosmológico abrangente em que a religião, ao invés de conhecimento teórico, era o componente principal. O mundo das ideias como aí era apresentado não era simplesmente o mundo conceptual, mas sobretudo o mundo espiritual que emanou da divindade. Os aspectos fundamentais deste sistema afloram novamente tanto no neoplatonismo como nos teólogos alexandrinos.

«A estrutura cosmológica alexandrina» (cf. Anders Nygren, Ágape and Eros, trad. Philip S. Watson, Londres: SPCK, 1953, l, 186-89; o termo é tomado do PIotinus de Heinemann, 1921) baseava-se no antigo platonismo, visto que procede da antítese entre mente e matéria, entre o mundo das ideias e o mundo empírico. Esta antítese era fundamental.

Dentro dessa «estrutura cosmológica» Deus era conceituado como o Único, transcendente acima de tudo o mais. O mundo inteligível emanava de Deus num processo eterno. O pensamento (nous) era a primeira etapa; a subsequente era a da alma do mundo, que é a mais baixa no mundo espiritual. Como resultado de uma queda ocorrida no mundo espiritual, a alma humana foi desligada e unida à matéria. A história do mundo está procurando cumprir com este objetivo, a saber, que os seres racionais que caíram em grau maior ou menor de seu estado original possam, mediante treinamento e purificação, elevar-se à presença da divindade, libertando-se deste modo das cadeias do mundo material. O alvo, em outras palavras, era produzir uma reunião extática com Deus (homoioosis Theóo) através desse processo contínuo de treinamento e purificação.

Essa estrutura cíclica, que já aparecera em outra forma entre os gnós-ticos, foi plenamente desenvolvida no platonismo alexandrino, e formou a origem da teologia de Orígenes e Clemente. Empregaram esse mesmo esquema com certas modificações e acréscimos. Dentro dessa moldura foi apresentada a doutrina da salvação.

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TEOLOGIA ALEXANDRINA

CLEMENTE

Muito pouco sabemos sobre a primeira congregação de Alexandria, mas sabemos que nela surgiu uma escola catequética em meados do segundo século, a primeira instituição cristã de educação superior. Por volta do final do segundo século esta escola experimentou crescimento inusitado e se tornou o berço da teologia alexandrina. O primeiro teólogo de renome associado à escola catequética de Alexandrina foi Panteno, que cedo foi ultrapassado por seu discípulo Clemente (ca. 150-215), que, por sua vez, foi mestre de Orígenes. As principais características do sistema teológico em si, foram desenvolvidas por Clemente, mas foi Orígenes quem, fazendo uso deste sistema, o tornou famoso.

O aspecto fundamental da teologia de Clemente é a ideia da pedagogia de Deus. A fim de tomar o espírito caído do homem capaz de ascender e de reunir-se com o divino, há necessidade de educação. Isto acontece através de disciplina e castigo, por meio de admoestações e instrução. Esse treinamento é a própria finalidade da existência do mundo material. Clemente o torna claro em seus livros principais, tais como Admoestação aos Gregos, o Instrutor, e As Miscelâneas.

A educação do homem se realiza através do Logos, que se revelou de maneira final e definitiva no cristianismo. Mas também houve etapa preparatória, anterior à vinda do cristianismo, e o mesmo Logos, que se manifestou em Cristo, também exerceu influência pedagógica nesse período. Entre os judeus proclamou a lei, e entre os gregos foi a filosofia que de maneira semelhante preparou o caminho para a vinda de Cristo. A filosofia grega, em outras palavras, foi uma fase na pedagogia de Deus, semelhante à lei dos judeus. Ambas auxiliaram a preparar os homens para a encarnação e procederam da mesma fonte, o Logos, que apareceu aos homens mesmo antes do nascimento de Cristo. Considerada deste ponto de vista, a filosofia, assim como a lei, é posição ultrapassada, uma vez que Cristo veio com o conhecimento salvador pelo qual os homens são trazidos à fé.

O que se disse até agora é explicação parcial do conceito de cristianismo e filosofia de Clemente. Cristianismo e filosofia, segundo Clemente/não são opostos entre si. A filosofia, ao contrário, expressa a mesma revelação que foi completada posteriormente no cristianismo. Portanto, a filosofia, segundo Clemente, é capaz de servir como «uma espécie de escola preparatória para os que obtêm a fé através de provas».

Mas a influência da filosofia sobre Clemente expressou-se particularmente nisto, que o conduziu a concluir que «conhecimento» fica num nível mais elevado que a fé. Portanto, distinguia entre pístis (fé) e gnõosis (conhecimento). Aquela, conforme Clemente, é a simples fé autoritária cristã, ds natureza bem literal, e preocupada com o temor de punição e esperan-

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HISTORIA DA TEOLOGIA

ca de recompensa. Este, por outro, é considerado conhecimento de espécie superior, que não crê simplesmente com base na autoridade, mas antes, avalia e

aceita o conteúdo da fé à luz de suas próprias convicções internas. O «conhecimento» conduz ao amor, e o amor impele a ações que não seriam

produzidas pelo temor. Clemente enfatiza energicamente a ideia que o conhecimento é o nível superior no qual a fé é conduzida à perfeição. Apenas o «gnóstico» (conhecedor) poderia ser cristão perfeito. Apesar disso, a diferença

entre fé e conhecimento não é considerada idêntica à divisão gnóstica da humanidade entre hilicos e pneumáticos. Clemente não considerou os homens

predestinados a uma ou outra categoria. Também não concebeu o conhecimento que se obtém no nível mais elevado como sendo de espécie diferente daquele que

se encontra na fé. A fé, dizia, contém tudo até certo grau. Mas uma fé externa é incapaz de compreender o verdadeiro significado da fé, uma vez que aceita os dogmas simplesmente com base na autoridade. «O gnóstico», por sua vez, é

capaz de apreender o significado da fé, tendo-o assimilado internamente. O desafio que Clemente lançava ao cristão, portanto, era de dirigir-se da fé ao conhecimento.

O conhecimento conduz à visão de Deus e a uma vida de amor ao próximo. Clemente desejava substituir a falsa gnose do gnosticismo pela verdadeira gnose escriturística do cristianismo. O conhecimento superior que ensinava não entrava em conflito com a fé externa baseada na autoridade. Mas o desenvolvimento da gnose cristã por parte de Clemente foi influenciado pela filosofia platónica, que constituía seu ponto de partida e que servia, como ele a encarava, como escola preparatória ao cristianismo para os que procediam da «fé nua» à compreensão

mais profunda da fé. As ideias principais da gnose cristã, como desenvolvidas por Clemente,

reaparecem no sistema teológico de Origenes, e por essa razão, não serão discutidas mais pormenorizadamente a esta altura.

ORIGENES

As circunstâncias da vida de Origenes são razoavelmente bem conhecidas, particularmente como resultado da obra de Eusébio (História Eclesiástica, VI). Nascido em Alexandria em 185, de pais cristãos, revelou entusiasmo pelo cristianismo desde a infância. De fato, ainda bem jovem quase sofreu morte de mártir, como seu pai. No ano 203 sucedeu a Clemente como diretor da escola catequética de Alexandria, e nessa função serviu por muitos anos. Seu sucesso como professor foi extraordinário mas a oposição do bispo de Alexandria o forçou a exilar-se. Foi à Palestina, onde fundou uma escola em Cesaréia, semelhante à de Alexandria, e ai continuou sua atividade. Morreu em Cesaréia em 251 — ou, segundo outra fonte, em Tiro em 254.

Como escritor no campo da teologia, a produtividade de Origenes foi espantosa. Apenas parte de seus escritos foi preservada. Sua obra exe-

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TEOLOGIA ALEXANDRINA

qética compõe-se de comentários, homilias e edições de textos. Origenes tinha acesso a grande número de manuscritos que depois se perderam. Em sua obra mais importante, a Hexapla («a Sêxtupla»), colocou seis diferentes traduções do Antigo Testamento em colunas paralelas numa tentativa de determinar o texto correto. Mas apenas pequena parte da Hexapla chegou até nós, e o mesmo se dá com suas numerosas homilias e comentários. O ponto de vista teológico de Origenes se encontra expresso com maior clareza em seu grande conflito literário com Celso (Contra Celsum), bem como na obra em que procurou fazer uma exposição ampla da fé cristã. Esta foi preservada em tradução latina de Rufino (De principiis). É difícil imaginar o volume original da produção de Origenes. Jerónimo calculou que produzira cerca de 2.000 escritos.

No início de sua carreira Origenes sofreu oposição dos que o acusavam de ensinar doutrina falsa. Havia vários aspectos originais integrados em sua teologia que, de modo geral, era fortemente influenciada pela filosofia grega. Por esse motivo, a teologia de Origenes tornou-se cada vez mais controvertida até ser condenada como herética pelo Quinto Concilio Ecuménico (553). Apesar disso, Origenes demonstrou ser teólogo de influência extraordinária. Pode-se dizer, incidentalmente, que foi o fundador da tradição teológica oriental, assim como Tertuliano foi o fundador da tradição ocidental.

Origenes foi teólogo bíblico, mas como resultado de sua utilização do método alegórico (tomado de empréstimo da tradição platónica) sua interpretação da Bíblia também permitia a aceitação da cosmovisão que se desenvolvera na escola filosófica de Alexandria.

Deve-se ressaltar, contudo, que Origenes não só alegorizou. Como exegeta notável que era, também demonstrou compreensão pelo sentido histórico dos textos com que trabalhava. Suas interpretações tipológicas também devem ser distinguidas da tendência alegorizante. Aquelas incluíam a exposição do material veterotestamentário dentro da estrutura da história da salvação, que Origenes interpretava escatologicamente, cristologica-mente e sacramentalmente. A interpretação mística, que se refere à experiência interna do cristão, também pertence a esta categoria. Estas maneiras de interpretar a Escritura foram empregadas, até certo ponto, por toda a tradição cristã. O que distingue Origenes foi que também usou o método alegórico. Esse método fora empregado anteriormente pelo filósofo religioso judeu, Filo de Alexandria, que interpretava o Antigo Testamento de acordo com a filosofia platónica. Em princípio, esse método relaciona-se com 0 ponto de vista platónico. Contrasta letra e espírito da mesma maneira como o platonismo em geral contrasta substância e ideia.

Em Origenes, a alegoria se fundamenta na ideia que há um sentido espiritual no fundo de cada passagem da Escritura. Assim como o homem compõe-se de corpo, alma e espírito, assim também a Escritura possui sentido literal (ou «somático»), moralista (ou «psíquico») e espiritual (ou «pneu-

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

mático»). Este está sempre presente, e quando a interpretação literal parece pouco razoável, deve-se adotar apenas a espiritual.

Além disso, o método alegórico pressupõe que todos os pormenores citados na Escritura são símbolos de grandes realidades espirituais universais, por exemplo, os poderes da alma e eventos cosmológicos. O alego-rizador, portanto, abandona o terreno sólido da história e concebe os pronunciamentos escriturísticos como fenómenos puramente espirituais ou idealistas. Isto constitui a diferença entre alegoria e tipologia. É evidente que esse método se presta muito bem para encontrar na Escritura as ideias cosmológicas que aparecem no sistema teológico de Orígenes. O método alegórico o capacitava a formar Jma síntese de seu sistema cristão com ideias helenísticas.

A regra da fé, segundo Orígenes, identifica-se com o conteúdo da Escritura. Orígenes forneceu um sumário na primeira parte de seu De principiis, em que apresenta seu sistema teológico com maior clareza. Ai inseriu ideias da tradição cristã na estrutura cosmológica alexandrina. Três temas principais aí se encontram:

1) A respeito de Deus e do mundo transcendental; 2) A respeito da queda no pecado e o mundo empírico; 3) A respeito da salvação e a restauração dos espíritos finitos.

Tema característico da teologia de Orígenes é o da educação, pela providência divina, das criaturas racionais caídas em pecado. Eram pressupostas as três ideias básicas seguintes: (a) o curso do mundo é guiado pela providência divina; teve sua origem em Deus, e todas as coisas, desde os movimentos dos corpos celestiais até as relações terrenas dos homens, são governadas por um poder divino; (b) o alvo do cuidado providencial dispensado por Deus ao mundo (do qual o homem é o centro) é o de restaurar à sua origem divina as criaturas racionais, que estão aí aprisionadas em seus corpos; (c) essa restauração terá lugar como resultado de educação (paideusis) — o que quer dizer que não é fenómeno natural, nem ainda se emprega qualquer coerção, mas deve ser realizada pela influência sobre o livre arbítrio do homem. Çue o homem tem livre arbítrio era, para Orígenes, fato pacífico sancionado pela própria regra da fé. Sobre isto Orígenes edificou seu sistema teológico, e como resultado seu conceito de salvação foi apresentado em termos de educação. Assim como acontece com Clemente, a ideia da pedagogia providencial de Deus é básica no sistema de Orígenes.

1. Orígenes descreveu Deus como o ser espiritual mais elevado, tão distanciado do material e físico como possível. Em vista disso, os antro-pomorfismos da Bíblia devem ser reinterpretados. Não possuem qualquer significado literal. A corporeidade é incompatível com o conceito de Deus. Nessa questão Orígenes ppõe-se frontalmente a Tertuliano. 54

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TEOLOGIA ALEXANDRINA

Deus, de sua bondade e amor, criou um mundo inteligível de tipo puramente espiritual. Esse mundo espiritual procede de Deus por toda a eternidade. O Logos, Cristo, faz parte desse mundo. Origenes rejeitou a ideia que o Logos apareceu pela primeira vez quando da criação (cf. os apologistas e Tertuliano). Em lugar disso, afirmou que o Logos preexistiu eternamente de modo independente («Nunca houve um tempo em que ele não existia»). O Logos não foi criado no tempo; nasceu de Deus na eternidade. Assim como Orígenes o concebia, esse nascimento do Filho na eternidade foi uma emanação análoga à emanação do mundo espiritual da divindade (cf. Irineu, que apresenta a mesma ideia sem este fundo filosófico). Isto suscitou a questão: Como se relaciona o Filho com o Pai? Com base em sua doutrina do nascimento do Filho na eternidade, Orígenes dizia (a) que o Logos é da mesma essência do Pai e está subordinado a ele. O Filho é o «segundo Deus». Apenas o Pai «não nasceu» (é agénnetos). Tanto o conceito de homoousios como o subordinacionismo, portanto, encontram-se na teologia de Orígenes.

2. Os seres espirituais sofreram uma queda, pela qual alguns deles se afastaram mais de sua origem do que outros. «Esfriaram» (psuxos, frio), por assim dizer, e se tornaram criaturas racionais, psuxai (plural de psuxée, alma). Foi assim que anjos, homens e demónios chegaram a existir. O mundo visível foi criado como consequência da queda, a fim de punir e purificar o homem. O mundo supre o lugar e as condições nas quais e pelas quais a instrução divina pode ter lugar. Origenes, portanto, não considerou a criação como algo mau (como o faziam os gnósticos). Na realidade, afirmou que Deus criara o mundo visível, mas apenas com a finalidade de dar ao homem a possibilidade de ser educado dentro dele. A criação não possui significado independente. A existência no mundo material é, em parte, punição para os espíritos racionais, mas isso não é tudo. Pois como Orígenes o imaginava, as coisas terrenas são símbolos das realidades celestiais, e ao contemplá-las, espera-se que o homem se eleve ao nível celeste. Assim acontece que o mundo material também se inclui na instrução providencial do espírito humano.

3. Origenes concebia a salvação da seguinte maneira: O homem é um espírito que caiu do mundo inteligível e foi enxertado num corpo que é animado por uma alma. Para ser salvo, o homem precisa novamente elevar-se ao mundo espiritual, para lá reunir-se com Deus. Esta salvação é realizada por intermédio de Cristo, o Logos que se tornou homem. A alma de Cristo não caiu de seu estado puro. Sua alma ingressou em seu corpo, e assim a natureza divina e a humana se uniram. Mas, dizia Orígenes, o lado físico de Cristo foi progressivamente absorvido pelo divino de modo oue deixou de ser homem (cf. Inácio, que mantinha que Cristo permaneceu carne mesmo depois da ressurreição).

Orígenes ensinou uma doutrina de expiação, mas uma vez que esta •"edenção tinha valor especialmente para aqueles que se encontram no ni-

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HISTORIA DA TEOLOGIA

vel inferior da fé, como ele o conceituava, a ênfase maior recaia sobre a instrução que Cristo dá no tocante aos mistérios da fé. A salvação não se completa a não ser após a morte. Q processo de purificação continua após a morte e, como resultado disto, os homens são conduzidos é perfeição e reunidos com Deus — em primeiro lugar os homens bons, mas por último também os maus. Tudo se reunirá com sua origem (apokatástasis pántoon). Mas qualquer ressurreição do corpo está fora de questão. A matéria não-existirá mais, nem tampouco existirão homens; todos serão reconduzidos a um estado de pura espiritualidade («Vós sereis deuses; vós sois todos filhos do Altíssimo»). Outra queda, e a criação de novos mundos, são uma possibilidade com que se deve contar. Aqui notamos a influência do conceito grego da natureza cíclica da história.

No sistema de Orígenes, ideias tipicamente platónicas eram combinadas com a tradição cristã. Alguns aspectos deste sistema eram de natureza completamente helenistica, e assim não têm qualquer relação com a proclamação bíblica. Isto se dá, por exemplo, com a ideia que o mundo inteligível emanou da divindade, que todas as coisas serão restauradas e que cessará a existência de tudo que é material e físico. Em outros casos, a tradição bíblica é preservada fielmente. Orígenes, no entanto, fez isso muitas vezes, associando estes dois pontos de vista tão intimamente que é impossível distinguir o elemento cristão do helenístico. O método de Orígenes desdobrou-se num padrão uniforme e sistemático de pensamento que era tanto cristão como helenístico. O conceito de pedagogia, por exemplo, é ideia grega, mas Origenes o usou ao mesmo tempo para exprimir suas convicções cristãs. Deliberadamente decidiu apresentar uma descrição uniforme do conteúdo da regra da fé e, ao mesmo tempo, fornecer uma resposta às questões filosóficas sobre a vida, que eram atuais em sua época. 56

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CAPÍTULO 6 MONARQU1ANISMO: O PROBLEMA TRINITÁRIO

Durante os últimos anos do segundo século, surgiram duas correntes teológicas incomuns, recebendo ambas a mesma designação: monarquia-nismo. Ambas causaram sérios conflitos dentro da igreja, e ambas foram afinal rejeitadas como sendo heréticas. Essa luta, que continuou durante a maior parte do terceiro século, teve influência significativa no desenvolvimento da história do dogma. Ainda se fazia notar quando a igreja deu forma à doutrina da Trindade. Os conceitos rejeitados naquela época serviram de protótipos para muitas aberrações e heresias semelhantes através dos séculos, por exemplo, o ponto de vista unitário, que aflora sempre de novo na história da teologia como interpretação racionalista do cristianismo.

O conceito «monarquiano», do qual estas duas escolas tomam seu nome, apareceu nos escritos de Tertuliano, que o usou com referência à unidade de Deus. O monarquianismo negava o conceito trinitário, pois sustentava que ele se opunha à fé no Deus único. Seus adeptos repudiavam a ideia da «economia», segundo a qual Deus, que certamente é um, revelou-se de tal maneira que apareceu como Filho e como Espírito Santo.

A rejeição monarquiana das três pessoas na Divindade sofreu influência do conceito grego de Deus, que elevava Deus acima de todas as considerações materiais, inclusive mudança e diversidade. Por esse motivo, o ponto de vista grego era incapaz de aceitar a reivindicação que Deus apareceu e agiu neste mundo. Sempre que os homens repudiaram o conceito da divina «economia», isto é, a distinção entre as pessoas da Divindade condicionada pelo plano de salvação, o pressuposto tem sido o conceito deísta de Deus, em que a doutrina bíblica de Deus é substituída por uma ideia abstrata de Deus.

O monarquianismo, portanto, possuía um pressuposto comum e uma ideia básica comum: a dificuldade de combinar a fé no Deus único com a fé cristã no Pai, Filho e Espirito Santo. Visto não se satisfazerem com a solução proposta pela doutrina do Logos, nem com o ensinamento sobre as três Pessoas (hipóstases), nem com o conceito de «economia», procuraram novos caminhos para resolver o problema — em cuja tentativa eliminaram elementos essenciais da fé cristã e chegaram a uma posição racionalista ou docética.

Em certo sentido, o termo «monarquianismo» é designação artificial. Não sugere um ponto de vista uniforme; indica, em vez disso, uma carac-

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

teristica mantida em comum por duas correntes de pensamento que surgiram mais ou menos ao mesmo tempo. Na maioria de seus aspectos, estas duas correntes de pensamento eram diametralmente opostas.

Uma forma de monarquianismo era denominada dinâmica (ou adopcio-nista), a outra era chamada modalista.

MONARQUIANISMO DINAMISTA

O primeiro representante desta corrente foi o curtidor Teodoto, que chegou a Roma de Bizâncio no ano 190 como resultado de uma perseguição. Opunha-se à cristologia do Logos e, em geral, negava a divindade de Cristo. Em vez disso, acreditava ser Cristo mero homem (a posição ebio-nita). Nasceu de virgem, dizia Teodoto, mas apesar disso era simples ho-mem. Era superior aos demais homens apenas com respeito a sua justiça (Tertuliano, Adversus omnes haereses, 8). Mais especificamente, Teodoto concebeu a relação entre Cristo e o homem Jesus do seguinte modo: Jesus vivera como os demais homens; por ocasião de seu batismo, contudo, Cristo veio sobre ele como um poder e estava ativo dentro dele a partir de então. A crença que o elemento divino em Cristo era um poder outorgado a Jesus, em seu batismo, dava ao monarquianismo «dinamista» seu nome. Considerava-se Jesus um profeta que não se tornou Deus, embora estivesse equipado com poderes divinos por algum tempo. Só se uniu a Deus depois de sua ressurreição. Teodoto foi excomungado pelo bispo Vítor de Roma.

O mais destacado defensor do monarquianismo dinamista foi Paulo de Samósata, bispo de Antioquia por volta de 260. Seguiu nas pegadas da tradição dos ebionitas e de Teodoto, e ensinou que Cristo era apenas um homem dotado de poderes divinos. Não rejeitou a ideia do Logos, mas em sua concepção, o Logos era identificado com razão ou sabedoria, no sentido que estas qualidades podem ser atribuídas a um homem. Segundo ele, o Logos não era uma hipóstase independente. A sabedoria de Deus habitou no homem Jesus, mas apenas como poder divino; não formou pessoa independente com ele. O elemento pessoal existente era apenas o do homem Jesus. Com essa teoria, Paulo repudiou a doutrina de Tertuliano sobre o Logos como persona e a doutrina de Orígenes sobre o Logos como hipóstase independente.

Paulo de Samósata foi declarado herético por um sínodo em Antioquia no ano 268. Seu ponto de vista era unitário: «O Filho» foi simples homem, dizia, e o Espirito Santo era a graça derramada nos apóstolos. Essa interpretação racionalista da fé cristã em Deus foi o primeiro exemplo claramente formulado de um ponto de vista que apareceria de muitas formas diferentes. Em tempos mais recentes apareceu no socinianismo, bem como na neologia e em certos ramos da teologia liberal.

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MONAROUISMO: O PROBLEMA TRINITARIO

MODALISMO

A segunda forma de monarquianismo apareceu, em primeiro lugar, na Ásia Menor, mas Noeto e seus discípulos a levaram a Roma. Foi aí que Praxeas viveu, o representante modalista contra quem Tertuliano escreveu. O principal expoente desta escola foi Sabélio, que ensinou em Roma, começando por volta do ano 215.

Noeto não aceitava o conceito «económico» com respeito à doutrina da Trindade; nem aprovava a cristologia do Logos e as tendências subor-dinacionistas implícitas nela. Para Noeto, apenas o Pai é Deus, e embora esteja oculto à vista do homem, manifestou-se e se fez conhecer segundo o seu beneplácito. Deus não está sujeito a sofrimento e morte, mas pode sofrer e morrer se ele assim o quiser. Ao dizer isto, Noeto procurou ressaltar a unidade de Deus. O Pai e o Filho não são apenas da mesma essência; são também o mesmo Deus sob nome e forma diferentes. Noeto negou-se a diferenciar entre as três pessoas da Divindade. Como ele entendia o problema, podia-se dizer tão bem que o Pai sofreu como dizer que Cristo sofreu. Praxeas atenuou um pouco esta opinião; dizia que o Pai sofreu com o Filho — mas sua posição também foi rejeitada. Tertuliano a cognominou «patripassianismo».

Mais do que qualquer outro homem, foi Sabélio quem deu forma à concepção modalista. Afirmava que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um; são de uma substância, isto é, podem ser diferenciados um do outro apenas pelo nome. Tentou descrever sua posição de várias maneiras. Assim como o homem compõe-se de corpo, alma e espírito (por exemplo), assim também há três facetas na essência divina; ou então, as três pessoas relacionam-se assim como o sol, sua luz e seu calor estão relacionados entre si. O Pai é o sol, enquanto o Filho é o feixe de raios luminosos e o Espírito é o poder aquecedor que procede do sol. O Filho e o Espírito são apenas as formas que a Divindade assumiu quando apareceu no mundo (no período de sua «expansão»). Atribui-se a Sabélio a frase: «Deus, com respeito à hipóstase é um, mas foi personificado na Escritura de várias maneiras segundo a necessidade do momento» (Basílio, Epístola 214). Presumia-se, pois, que Deus apareceu em formas diferentes em épocas diversas, primeiro de' modo geral na natureza, então como Filho, e finalmente como Espírito Santo. É desta concepção que o modalismo recebeu seu nome: as três pessoas são três diferentes modos (modi) em que o mesmo Deus se revelou. É característico de Sabélio que não apenas cria ser a substância divina uma só; também acreditava que as três pessoas da Divinda-^ são uma e a mesma.

O que Sabélio dizia sobre diferentes formas de revelação mostra semelhanças com o conceito «económico» da Trindade, mas diversamente dele ensinava (Sabélio) que o Filho e o Espírito apareceram um depois do ou-^ro em épocas diferentes. Deus não é Pai, Filho e Espírito ao mesmo tempo. Sabélio também se negava a distinguir entre as pessoas; não há Trindade

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

real. No conceito «económico» julgava-se que as três formas de revelação são hipóstases independentes. Em oposição ao monarquianismo dinamista, o modalismo ressaltava enfaticamente o fato que o Pai e o Filho são um com respeito a sua substância. Como resultado, no entanto, o modalismo era incapaz de fazer justiça à humanidade de Cristo. Encontramos aqui como no monarquianismo dinamista, a tendência racionalizante na qual a revelação é substituída pela especulação metafísica. O modalismo — ou sabelianismo, como é frequentemente denominado — foi rejeitado como herético quando as doutrinas de Sabélio foram condenadas em 261.

A ATITUDE DA IGREJA

A doutrina da igreja opôs-se ao monarquianismo de modo especial nos pontos seguintes: a doutrina da consubstancialidade do Filho com o Pai (contra o dinamismo), a doutrina das três pessoas da Divindade (contra o modalismo), e a doutrina do nascimento do Filho na eternidade (contra ambos).

O dinamismo ou negava a divindade de Cristo ou a interpretava como mero poder que foi outorgado ao homem Jesus. Os teólogos alexandrinos (e Tertuliano também) descreviam a divindade de Cristo em termos de sua consubstancialidade com o Pai. Segundo Clemente e Origenes, o Logos emanou da Deidade e é, portanto, da mesma substância (homooúsios) do Pai. Conforme Tertuliano, o Pai, o Filho e o Espirito Santo são da mesma substância.

O modalismo rejeitou a distinção entre as pessoas e identificava o Filho com o Pai, e o Espirito com o Filho e o Pai. Tertuliano, com a ajuda da doutrina do Logos, desenvolveu o conceito das três pessoas, que não são apenas formas de revelação mas três hipóstases independentes.

Ambas as espécies de monarquianismo deram à doutrina de Cristo sentido racionalista: num caso, Cristo é simples homem; no outro, é apenas uma forma em que Deus se revelou a si mesmo. A preexistência do Filho é negada por ambos. O Filho não surgiu como entidade independente até o aparecimento de Cristo. E enquanto a teologia subordinacionista simplesmente ensinava que o Logos preexistia dentro da essência divina una, como a «razão» de Deus, Origenes desenvolveu sua doutrina do nascimento do Filho na eternidade: o Filho procedeu do Pai na eternidade e existiu como Filho, como hipóstase independente, antes de todos os tempos.

Entre os que se opuseram ao monarquianismo e contribuíram para o desenvolvimento teológico dentro da igreja no final do terceiro século en-contram-se Novaciano e Metódio.

Novaciano, presbítero em Roma por volta de 250, defendeu a posição teológica de Tertuliano. Ressaltou, de um lado, a divindade de Cristo e o

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MONAROUISMO: O PROBLEMA TRINITÂRIO

fato que é consubstanciai com o Pai (contra o dinamismo), de outro a ver dadeira humanidade de Cristo e a distinção entre as pessoas na divindade (contra o modalismo).

Metódio de Olimpo (m. 311) continuou na tradição teológica de Origenes, mas rejeitou suas teorias sobre a criação eterna, a preexistência da alma, e a restauração de todas as coisas.

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CAPITULO 7

O ARIANISMO: O CONCILIO DE NICÉIA

O desafio do monarquianismo retornou de forma mais aguda nas violentas controvérsias eclesiásticas do quarto século. Foi então que a ameaça do arianismo foi combatida e que a fórmula trinitária da igreja foi estabelecida nos concílios ecuménicos de Nicéia (325) e Constantinopla (381).

Há também uma conexão puramente histórica entre Ario, o herético que provocou os maiores conflitos do século quarto, e o monarquianismo dinamista. Ario, presbítero em Alexandria por volta de 310, foi discípulo de Luciano de Antioquia, que por sua vez, era seguidor de Paulo de Sa-mósata.

Assim como os monarquianos, Ario partia de um conceito filosófico de Deus. Não era possível a Deus conferir sua essência a qualquer outro, em virtude do fato de ser uno e indivisível. Não se pode conceber que o Logos ou o Filho pudesse ter chegado a existir a não ser por um ato de criação. Desse modo, na opinião de Ario, Cristo não podia ser Deus no sentido pleno do termo; devia, em vez disso, fazer parte da criação. Como resultado, Ario considerava Cristo como «ser intermediário», menos do que Deus e mais do que homem. Também dizia ser Cristo criatura, tendo sido criado ou no tempo ou antes do tempo. Ario, portanto, negava a preexistência do Filho em toda a eternidade, e lhe conferia atributos divinos apenas em sentido honorífico, baseado na graça especial que Cristo recebera e a justiça que manifestou. «O Filho não existiu sempre, pois quando todas as coisas emergiram do nada e todas as essências criadas chegaram a existir, foi então que também o Logos de Deus procedeu do nada. Houve um tempo em que ele não era (een pote hóte ouk een), e não existiu até ser produzido, pois mesmo ele teve um princípio, quando foi criado. Pois Deus estava só, e naquele tempo não havia nem Logos nem Sabedoria. Çuando Deus decidiu criar-nos, produziu, em primeiro lugar, alguém que denominou Logos e Sabedoria e Filho, e nós fomos criados por meio dele. (Atanásio, Orationes contra Arianos, l, 5).

O próprio bispo de Ario, Alexandre, voltou-se contra ele e o excomungou por motivo de heresia por volta de 320. O conflito em breve alastrou-se por todo o Oriente, e Ario recebeu o apoio de Eusébio de Nicomé-

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

dia, entre outros. Em virtude do fato que este conflito punha em risco a unidade da igreja toda e, ao mesmo tempo, a própria coesão do Império Romano, o imperador Constantino resolveu ocupar-se com ele numa tentativa para decidir a questão. Em primeiro lugar, enviou seu bispo da corte, Hósio, a Alexandria para agir com mediador e, quando esse estratagema fracassou, convocou um concílio geral para reunir-se em Nicéia no ano 325. Bispos de todas as partes do Império foram convidados a participar.

Três diferentes pontos de vista foram apresentados no Concilio de Nicéia. Havia, em primeiro lugar, um pequeno grupo de arianos puros (chefiado por Eusébio de Nicomédia). Em segundo lugar, havia os que se opunham ao arianismo, entre os quais os mais destacados eram o bispo Alexandre de Alexandria e seu diácono Atanásio. O acima mencionado Hósio de Córdova também pertencia a este partido. Havia ainda um grupo intermediário, representado por Eusébio de Cesaréia, entre outros. A fórmula que o concilio finalmente aceitou foi apresentada por ele. Mas, depois de aprovada, esta fórmula foi alterada de modo a tornar-se mais especificamente anti-ariana. Foi assim, por exemplo, que a expressão homooúsios (da mesma substância) foi inserida na fórmula mediante intervenção de Hósio. Fez-se isto a fim de ressaltar a oposição a Ario. A fórmula nicena foi estruturada, tendo como base principal um símbolo então em voga. É possível que este símbolo tenha sido a fórmula batismal então usada em Cesaréia, à qual foram adicionadas novas facetas, condicionadas pela situação polémica. A adição final foi um anátema contra todos os ensinamentos de Ario. O assim chamado Credo Niceno não é idêntico à fórmula aceita no Concilio de Nicéia, mas recebeu sua forma final antes do fim do quarto século. Foi aprovada pelo Concilio de Constantinopla (381) e pelo Concilio de Cal-cedônia (451). O Credo Niceno também se baseou em fórmula batismal mais antiga, e inclui várias das expressões anti-arianas encontradas na decisão de Nicéia.

A oposição a Ario tinha como motivos sua doutrina de Deus e sua doutrina de Cristo. Duas criticas especiais foram dirigidas contra Ario: (1) introduziu ideias politeístas e a adoração à criatura; (2) destruiu a base da salvação por negar a divindade de Cristo.

Ario colocou o Logos na categoria dos seres criados. Por também julgar que o Logos devia ser adorado como ser divino, era possível criticar Ario por introduzir idolatria. A criação foi colocada lado a lado com o Criador e adorada como divina. Se Cristo é diferente de Deus, mas apesar disso é Deus, isto implica no culto a dois deuses. Ario também falou de outros seres semidivinos.

Cristo, de acordo com Ario, era um ser criado cuja existência começara no tempo, ou antes do tempo. Rejeitou com isso a doutrina da divindade de Cristo e seu nascimento na eternidade. O Cristo proclamado por Ario não podia ter criado o mundo; nem podia ele ser o Senhor da criação. A cristologia de Ario, deste modo. repudiava a obra da redenção de Cristo, 64

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O ARIANISMO: O CONCILIO DE NICÉIA

e isto tornou-se o principal ponto em debate entre Ario e seus adversários. Se Cristo não é da mesma substância de Deus Pai, não possui nem pode transmitir o pleno conhecimento de Deus. E a salvação consiste nisto, entre outras coisas, que Cristo nos transmitiu este verdadeiro conhecimento de Deus. Se ele não é um com Deus, não podia fazê-lo.

Se Cristo não é o Senhor da criação, também não podia realizar a obra da redenção. Se ele não é Deus, não pode tornar o homem divino. O verdadeiro sentido da salvação é que traz vida e imortalidade ao homem. O Filho de Deus em forma humana podia ter derrotado a morte, ter feito expiação pela culpa dos homens, e restaurado o homem à vida e à imortalidade apenas sendo ele da própria essência de Deus.

Esta cristologia, que foi laboriosamente definida durante a luta contra o arianismo, foi resumida na fórmula de Nicéia, acima de tudo nas frases sobre Cristo: «o unigénito... gerado por seu Pai... Deus de Deus, Luz de Luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado, não criado/ de uma só substância com o Pai.» O anátena final contra Ario continha as palavras apropriadas: «Aqueles que dizem que houve um tempo quando ele não existia, e antes de ser gerado ele não existia, e que foi criado daquilo que não existia, ou dizem que ele é de outra natureza ou essência, ou dizem que o Filho de Deus é criado ou mutável, todos estes são condenados pela igreja universal».

Defensor extremamente zeloso do ponto de vista niceno foi Marcelo de Ancira (m. 374). Ensinava que o Logos, que tinha a mesma substância de Deus, só podia ser chamado «filho» a partir de sua encarnação. Também acreditava que a filiação de Cristo cessaria em dado momento, e que o Logos seria então reincorporado ao Pai. As palavras «cujo reino não terá fim» foram inseridas no Credo Niceno a fim de contrabalançar a doutrina de Marcelo sobre este ponto. Defendia um conceito «económico» da Trindade com sua ideia da «expansão» da divindade ao Filho e ao Espírito. Os arianos, que se opuseram a ele, criticaram-no por ser sabelia-no, mas em contraste com os modalistas, traçava linha demarcatória nítida entre o Logos e aquele do qual o Logos procedia.

Um dos discípulos de Marcelo, Fotino de Sírmio (m. 376), tirou conclusões da telogia de Marcelo que faziam parecer que (Fotino) apoiava a cristologia adopcionista ou dinamista. Assim aconteceu que a literatura polémica mais antiga frequentemente se referia ao «fotinianismo» como designação para este ponto de vista. Fotino considerava o Logos idêntico ao Pai, enquanto Cristo era considerado filho de Maria — e nada além disso.

Longas controvérsias seguiram o Concílio de Nicéia (325). No início, a decisão de Nicéia encontrou forte oposição. O grupo ariano original, que subsequentemente adotou posição intermediária, chefiado por Eusébio de Nicomédia, cresceu muito em Influência. Mesmo o imperador foi conquis-

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

tado para este ponto de vista; Atanásio foi forçado a abandonar sua sé episcopal. Em meados do século IV (no Sínodo de Ancira, 358), novo partido mediador, que deriva seu nome do termo grego homoioúsios (de substância semelhante), apareceu. Mas vários teólogos, ativos na parte final do século, entre os quais se destacam os assim chamados «capadocianos» (sobre os quais ainda se falará mais tarde), defenderam energicamente a decisão de Nicéia e mesmo a desenvolveram mais ainda (a ortodoxia pro-to-nicena). Alguns dos proponentes da fórmula «substância semelhante» adotaram esta posição, da qual não estavam muito afastados mesmo antes de tomarem tal passo. E assim aconteceu que o terreno foi preparado para a vitória final no Concílio de Constinopla em 381 (posteriormente considerado o Segundo Concílio Ecuménico), onde a decisão de Nicéia foi confirmada novamente. 66

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CAPÍTULO 8 ATANÁSIO: A FORMAÇÃO DA DOUTRINA TRINITÁRIA

O mais zeloso defensor da fé, no conflito da igreja contra o arianismo e o poder imperial que apoiava os heréticos, por longo tempo, foi Atanásio, cujo nome foi mencionado em conexão com o Concílio de Nicéia. Depois da morte de Alexandre em 328, Atanásio tornou-se patriarca de Alexandria. Mas como resultado de seu firme apoio à decisão de Nicéia, foi alvo de uma perseguição após outra. Teve de fugir de sua sé episcopal nada menos de cinco vezes, e passou ao todo quase 20 anos no exílio. Çuando morreu em 373, a controvérsia ariana ainda estava em andamento, mas como resultado de suas contribuições, o caminho estava aberto para a vitória final da teologia nicena no Concílio de Constantinopla de 381.

Entre os escritos de Atanásio, nossa atenção se volta especialmente para os seguintes: Oratio Contra Gentes e Oratio de incarnatione Verbi (escrito por volta de 318), e sua obra magna Orationes contra Arianos (escrita por volta de 335 — ou, de acordo com outra teoria, em 356 e mais tarde). As Epistolas de Atanásio também documentos teológicos sig-nificativos, especialmente sua carta a Serápion.

Em contraste com os teólogos alexandrinos anteriores (Clemente, Orí-genes), Atanásio não inseriu a fé cristã num sistema filosófico fechado. Pelo contrário, rejeitou os recursos da filosofia no desenvolvimento da doutrina cristã; a Bíblia era sua única fonte. Para ele, como para Clemente, a regra da fé e o conteúdo da Escritura eram idênticos. A tradição, segundo Atanásio, só tem autoridade quando está de acordo com a Escritura. Como ele faz ver claramente em sua carta pascoal de 367, o cânone neotestamentário é definitivo.

Do que se disse acima, depreende-se claramente que Atanásio operou com um princípio bíblico coerente. Ao mesmo tempo, insistiu que a Bíblia não devia ser interpretada legalisticamente; antes deve ser entendida à luz de seu próprio centro, que é Cristo e a salvação operada por ele. O conceito bíblico de Atanásio nos lembra as palavras de Lutero: «O que proclama a Cristo é palavra de Deus.»

Na luta contra o arianismo, Atanásio desenvolveu a doutrina eclesiástica da Trindade e do Logos. Alguns de seus principais argumentos são os seguintes: (1) Se Ario está certo quando diz que Cristo é apenas um

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

ser criado, e não da mesma substância do Pai, a salvação não seria possível. Pois apenas Deus pode salvar, ele desceu até nosso nível a fim de nos elevar até ele. (2) A doutrina de Ario implica no culto à criação e na fé em mais de um deus.

Como o primeiro argumento demonstra claramente, Atanásio procurava combinar a doutrina da Trindade com a salvação operada por Cristo, que, na sua opinião, é o centro de toda a teologia. Em vista disso, continuava a ressaltar que a heresia ariana não apenas atingia pontos isolados de doutrina; mas subvertia toda a fé cristã. O estilo atomista ou doutrinário que muitas vezes caracterizava a teologia polémica da época de Atanásio não se encontrava em seus escritos.

Contudo, não podemos concluir — em analogia com o pensamento moderno — que a doutrina do Logos só tinha significado para Atanásio no tocante ao conceito de salvação. Em sua opinião, esta doutrina era simplesmente um dos fundamentos da fé cristã e, portanto, era a própria insistência elementar da própria verdade que levava Atanásio a defender a doutrina nicena da Trindade contra o arianismo. O segundo argumento mencionado acima o evidencia.

Tal como Irineu, Atanásio descreveu um plano específico de salvação, começando com a criação, indo até ao cumprimento. Esta ordo salutis forneceu o contexto para sua polémica contra Ario, do mesmo modo como Irineu desenvolveu sua polémica contra os gnósticos, em linha de pensamento correspondente.

A salvação e a criação pertencem juntas, segundo a opinião de Atanásio. Foi o próprio Criador ompotente que realizou a obra da salvação, para que a criação caída pudesse ser restaurada a seu destino original. Isto significa que o objetivo de Deus com a criação está se realizando e que uma nova criação está principiando a existir. Isto se refere, de modo especial, ao homem. O homem foi criado «à imagem de Deus», mas como resultado da invasão do pecado, afastou-se de Deus e foi entregue à morte e à corrupção. A salvação foi conseguida quando o Filho de Deus, o Logos, pessoalmente envolveu-se na humanidade e com isso reconduziu o homem à sua semelhança com Deus. «Isto não poderia ter acontecido, no entanto, se a morte e a corrupção não tivessem sido destruídas. Portanto, naturalmente, ele assumiu um corpo mortal, para que a morte pudesse ser destruída nele, afim de que o homem criado à imagem de Deus pudesse ser renovado. Apenas aquele que veio na imagem do Pai estava à altura desta tarefa.» (Oratio de incarnatione Verbi, 13, 8-9).

O sentido principal da obra salvadora de Cristo encontra-se nisto, que a maldição do pecado e da morte foi retirada. Isto aconteceu quando o Logos, que é o próprio Filho de Deus, tomou sobre si mesmo aè condições da existência humana, levou sobre si os pecados dos homens e sujeitou-se à morte. Foi assim que estes poderes foram vencidos, pois, em virtude do fato que Cristo é da essência de Deus, não foram capazes de 68

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ATANÁSIO: A FORMAÇÃO DA DOUTRINA TRINITARIA

derrotá-lo. Ele se libertou das cadeias do pecado e da morte, e assim fazendo, também libertou toda a natureza humana destes poderes. Foi com esta finalidade que o Filho de Deus tornou-se homem. Se o Logos não se tivesse realmente tornado homem, não poderia ter libertado os homens, não poderia ter vencido o poder do pecado e da morte que mantinha cativa a natureza humana.

Em segundo lugar, a obra salvadora de Cristo implica nisto, que o homem, que foi libertado do pecado e da morte mediante a expiação, pode ser renovado e deificado. O mesmo Cristo que derrotou a morte, enviou seu Espírito, pôr intermédio de quem recria o homem e o capacita a participar na vida divina que foi perdida com a queda. O homem, desta maneira, chega a possuir imortalidade e a viver novamente como o fizera no início — à imagem de Deus. Esta deificação do homem é o alvo da salvação. A forte ênfase neste aspecto da salvação, ao invés de no perdão dos pecados, era típica dos Pais da Igreja Antiga. Pode-se dizer, todavia, que Atanásio, mais do que outros, também enfatizou a necessidade de perdão; reconheceu que o pecado trouxe a culpa e que a obra expiatória de Cristo foi sacrifício pelo pecado. Mas, acima de tudo, a salvação é associada à imortalidade. Pecado e morte, afinal, andam juntos. Se o pecado não tivesse trazido a morte, diz Atanásio, poderia ter sido facilmente removido pela penitência. Mas a vista do fato que o pecado resultou em mortalidade, a salvação só poderia ser obtida se a morte fosse vencida. E assim, visto o poder do pecado ter sido derrotado, a obra do Espírito Santo é a de dar vida ao homem e tornar o homem semelhante a Deus. Isto só é possível se Cristo realmente é da mesma essência de Deus. Por ser ele mesmo Deus, deificou primeiro sua própria natureza humana, e como resultado disto, pode fazer o mesmo pêlos que crêem nele e que participam, pela fé, de sua morte e ressurreição.

Em vista disso, a mensagem da salvação como ensinada por Ario, que dizia ser o Logos criatura e não o próprio Deus, tinha de ser repudiada. «A verdade revela que o Logos não é uma das coisas criadas; ao invés disso, é seu Criador. Pois ele tomou sobre si o corpo criado de homem, para que ele, tal como um Criador, pudesse renovar este corpo e deificá-lo em si mesmo, de modo que o homem, em virtude da força de sua Identificação com Cristo, pudesse entrar no reino do céu. Mas o homem, que é parte da criação. Jamais poderia tornar-se como Deus se o Filho não fosse verdadeiramente Deus... Igualmente, o homem não poderia ter sido libertado do pecado e da condenação se o Logos não tivesse tomado sobre si nossa carne natural, humana. Nem poderia o homem ter-se tornado como Deus se o Verbo, que se tornou carne, não tivesse vindo do Pai — se não fosse seu próprio Verbo verdadeiro.» (Orationes contra Arianos, II, 70).

Atanásio também salientou outra faceta da obra da redenção: Cristo, dizia ele, veio revelar que é o Filho de Deus, que reina sobre toda a criação; assim fazendo, restaurou o verdadeiro culto a Deus, que o homem em

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

sua ignorância e cegueira tinha esquecido. Em uma passagem Atanásio resume a obra de Cristo da seguinte maneira: «O Salvador encarnado revelou a nós sua bondade de duas maneiras: pelo fato que removeu o agui-Ihão da morte e nos renovou, e pelo fato que ele, que em si mesmo está oculto e é invisível, revelou-se através de sua obra para que o possamos conhecer como o Logos do Pai, o Governante e Rei de todo o universo.» (Oratio de incarnatione Verbi, 16).

A obra de Cristo foi manifestação de seu poder, demonstração do fato que ele é o Senhor de todas as coisas, enquanto Ídolos e demónios são o mesmo que nada. A ideia que Cristo restaurou o verdadeiro culto a Deus, revelando-se a si mesmo como o verdadeiro Deus, foi (como já se viu) também um dos principais argumentos empregados no conflito contra o arianismo. Ario introduzira um culto de tipo pagão, com fé em vários deuses e o culto à criação em lugar de ao Criador. Isto decorria de sua negação da divindade de Cristo e da afirmação que o Logos é criatura.

Em sua doutrina da Trindade, ,que se dirigia especialmente contra o arianismo, Atanásio salientava de modo enfático que o Filho é da mesma substância do Pai. Esta convicção não era apenas expressa pela palavra chave da decisão de Nicéia, homooúsios; Atanásio aceitava outros termos também, inclusive o vocábulo às vezes suspeito, homoios. A doutrina de que o Filho é consubstanciai com o Pai fundamentava-se, antes, nos próprios fatos. O Logos não é parte da criação; em vez disso, compartilhava a própria divindade do Pai. Atanásio também ultrapassou a concepção su-bordinacionista anterior. O Logos não é outro Deus, e não se situa abaixo do Pai, como ser espiritual emanado ao Pai. O Pai e o Filho são uma Deidade." O Pai é o que define a si mesmo e gera; o Filho é aquele que assim é gerado. O Pai é, em si mesmo, a essência divina; o Filho é Deus em atividade externa, aparece nas obras de Deus. «O Filho não é outro Deus... Pois se ele também é um outro, ao ponto de ter sido gerado, apesar disso é o mesmo que Deus; ele e o Pai são um mediante a natureza divina única que compartilham em comum, e através da identidade da única Divindade.» (Orationes contra Arianos, III, 4).

Atanásio não falou de «pessoas» na Divindade; em lugar disso articulava a relação entre o Pai e o Filho de modo diferente. Mantinha o conceito Pai-Filho, ou falava da diferença entre ambos como condicionada pela atividade de Deus. O Pai é a fonte, o Filho é Deus em sua atividade externa. Há então ainda o Espírito Santo, que conduz a obra de Deus ao indivíduo. Atanásio ensinava que o Espírito Santo é, também, «da mesma substância». É parte da mesma essência divina e não um espirito criado. O homem torna-se como Deus através da operação do Espirito. A renovação não seria ato genuíno de salvação se o Espirito Santo não fosse da própria essência de Deus. A atividade externa do Deus Trino não está dividida; o que quer dizer que o Pai, o Filho e o Espirito Santo todos trabalham juntos. Foi em sua carta a Serápion que Atanásio, pela primeira 70

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ATANÁSIO: A FORMAÇÃO DA DOUTRINA TRINITARIA

vez, desenvolveu o pensamento que o Espírito Santo é da mesma essência do Pai e do Filho. Esta foi uma de suas maiores e mais originais contribuições à teologia.

OS TRÊS CAPADOCIANOS

Embora a apresentação de Atanásio da ortodoxia nicena fosse fundamental a seu desenvolvimento subsequente, suas formulações não foram seguidas estritamente na doutrina da Trindade sancionada pela igreja. Para esta, ideias também foram tomadas de (entre outros) Origenes e Tertu-liano — por exemplo, a doutrina das três pessoas na divindade. Mas as convicções de Atanásio nesta questão não foram esquecidas. Os que levaram avante sua obra, e fizeram mais que outros quaisquer para dar à doutrina da Trindade sua forma final, foram os assim chamados «três capadocianos».

Basílio, o Grande (m. 379, arcebispo de Cesaréia) foi o principal ar-tifice da assim chamada teologia proto-nicena, que finalmente derrotou o arianismo. Seu irmão mais moço, Gregório de Nissa (m. por volta de 384), desenvolveu o mesmo ponto de vista ortodoxo de modo mais especulativo, e Gregório de Nazianzo (m. por volta de 390) interpretou-o de maneira retórica em suas Orationes.

Foi em grande parte devido à influência dos três capadocianos que a teologia nicena finalmente triunfou como verdadeira posição média entre o arianismo e o modalismo. Além disso, a base dos desenvolvimentos posteriores, na teologia oriental, foi preparada nesta época. Os três capadocianos foram mais especificamente «orientais» em sua teologia do que Atanásio. Isso se evidencia, por exemplo, no fato que interpretavam Atanásio no espírito de Origenes, bem como no fato que associaram a ortodoxia nicena à ideias da antiga escola de pensamento alexandrina.

Enquanto Atanásio salientava vigorosamente a ideia de «uma substância» e partia deste ponto para sua descrição da Trindade, os capadocianos partiam da ideia de «três pessoas distintas» e desenvolviam uma terminologia que descreve tanto a unidade como a Trindade. Assim fazendo, aceitaram a teologia grega anterior que concebia três pessoas em níveis distintos no Ser Divino (Origenes).

Foi nesta época que se fez uma distinção clara entre os dois conceitos expressos pelas palavras gregas ousia e hupóstasis. A primeira destas foi usada para indicar a natureza indivisível da essência divina, enquanto a outra foi colocada em justaposição à palavra prósoopon (pessoa). Basílio ilustrou esta distinção da seguinte maneira: o conceito «homem» refere-se ao que é comum a todos os homens. Mas homens individuais, tais como Paulo ou João, possuem características distintivas que os destacam de outros indivíduos. Tanto Paulo como João existem independentemente,

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mas também têm algo em comum: são homens; pertencem à categoria geral de «homem». Assim, enquanto compartilham a essência (ousia) comum, são também pessoas individuais com existência independente (hupóstasis). A hipóstase. portanto, é a forma especial de existência, as características sui-generis, pelas quais aquilo que é tido em comum recebe expressão concreta. É aquilo que existe no indivíduo e em mais ninguém.

Çuando o conceito de hipóstase é empregado na doutrina da Trindade, indica-se por ele que as três pessoas possuem suas próprias qualidades e atributos peculiares, pêlos quais se distinguem uma da outra e aparecem cada uma em sua forma especial de existência. Ao mesmo tempo, todas participam da mesma essência divina. Esta apresentação da doutrina da Trindade é geralmente resumida nas palavras: «uma essência, três pessoas».

Çuando perguntados sobre o que distingue as três hipóstases, os capadocianos respondiam referindo-se à relação que existe entre elas. O Pai é agénneetos (não gerado); o Filho é gerado pelo Pai; e o Espírito Santo procede do Pai através do Filho (Gregório de Nazianzo, Orationes, 25, 16). Aquilo que caracteriza as pessoas, uma em relação à outra, também foi descrito com referência à atividade divina: o Pai é a fonte (aítios), o Filho é o que realiza a obra (deemiourgós), e o Espírito é aquele que a completa (teleiopoiós). (Gregório de Nazianzo, Orationes, 28, 1).

O ponto em que os capadocianos foram além de Atanásio dizia respeito, em particular, à distinção entre ousia e hipóstase. Ao fazer esta distinção, os capadocianos procuraram (com o auxilio de terminologia filosófica) descrever o que caracteriza a natureza divina e as três pessoas em si, independentemente da atividade externa da Trindade. O único resultado disso foi certo número de distinções formais que, à luz da fé cristã, parecem ser consequências necessárias. O que estes homens aí tentaram fazer foi elucidar o que vai além dos limites do conhecimento humano, e que, portanto, não pode ser exposto mais claramente.

AGOSTINHO E A DOUTRINA DA TRINDADE

OCREDOATANASIANO

No que tange à teologia oriental, os capadocianos chegaram a formular a doutrina da Trindade de modo mais ou menos definitivo. Desenvolvimento correspondente também ocorreu no Ocidente, em parte como resultado da influência da teologia oriental. Agostinho, mais que qualquer outro, deu forma definitiva à posição ocidental neste ponto, especialmente em seu livro De Trinitate. A teologia de Agostinho forneceu a base para a posição trinitária encontrada no Credo Atanasiano, o último dos três Credos Ecuménicos. 72

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ATANÁSIO: A FORMAÇÃO DA DOUTRINA TRINITÁRIA

Os três capadocianos salientaram as três hipóstases em particular, e seu principal problema era, pois, referente à unidade da essência divina. Isto caracteriza o ponto de vista oriental, com seu conceito mais estático, abstraio de Deus. O problema, naturalmente era este: Como pode toda a essência divina encontrar-se em três existências distintas? Este problema fizera surgir a antiga teologia subordinacionista, e a contribuição dos capadocianos foi exatamente esta, que chegaram à posição de «uma substância» (como fizeram Atanásio e o Credo Niceno) e, ao mesmo tempo, enfaticamente proclamaram a distinção entre as três pessoas.

Agostinho, que representa o ponto de vista ocidental, desenvolveu sua posição trinitária com base na única essência divina. O que tentou esclarecer foi que a unidade divina é constituída de tal modo que inclui as três pessoas, e que o caráter «trino» de Deus está implícito nesta unidade. Descreveu a triunidade como relação internamente necessária entre as três facetas da única essência divina. Isto, para Agostinho, era mistério inefável, que o homem nesta vida jamais pode compreender inteiramente, muito menos descrever em termos conceptuais.

Mas Agostinho empregou analogias tomadas de realidades humanas num esforço para demonstrar a relação correspondente de três com um, na mesma entidade. Certos fenómenos humanos, em especial a estrutura da alma humana, foram usados para simbolizar (embora muito imperfeitamente) a realidade intertrinitária. Assim, Agostinho dizia, por exemplo, que o amor implica na relação daquele que ama com o objeto do amor. Isto sugere uma relação entre os três seguintes: aquele que ama (amans), o que é amado (quod amatur), e o próprio amor (amor). Relação correspondente encontra-se na divindade entre Pai, Filho e Espírito. O que é peculiar a esta relação é que tanto sujeito como objeto estão dentro da mesma essência indivisível. O Pai gera o Filho, o Pai ama o Filho, etc. De acordo com Agostinho, há algo análogo a isto na vida espiritual do homem. A própria ação de observar envolve três elementos que estão necessariamente relacionados entre si: há o objeto observado (rés), a própria visão (visio) e a intenção da vontade (intentio voluntatis). A mesma relação se diz existir entre pensamento, intelecto e vontade no ato de conhecer. O conteúdo do pensamento está presente, de alguma maneira, na alma; este, por seu turno, é considerado e recebe forma pela habilidade intelectual da pessoa, que se volta para o objeto pelo poder da vontade (memória — interna visio — voluntas). A vida da alma também compreende uma «tríade»: memória, inteligência e vontade. E aqui podemos ver a mesma unidade entre sujeito e objeto que Agostinho encontrou dentro das relações inter-trinitárías. A alma está ciente de si, possui conhecimento de si, e ama a si; em outras palavras, o objeto de sua atividade se encontra, em parte, dentro de si. É, simultaneamente, sujeito e objeto em ações autoconscientes e de amor a si mesma.

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HISTÓRIA DA TEOLOGIA

Agostinho não diz que estas analogias são perfeitas — que esclarecem todos os mistérios relacionados com o conceito trinitário. Em grande parte, sua apresentação foi desenvolvida na forma de especulações sobre a realidade intertrinitária. Foi assim que surgiu nova etapa de desenvolvimento que ultrapassou a concepção «económica» da Trindade que fora a forma original da doutrina dos «três em um». Agostinho salienta, energicamente, a unidade do Ser Divino e tentou mostrar como a Trindade está implícita na unidade e vice-versa. Esta convicção fundamental também se encontra no Credo Atanasiano que, na realidade, se baseia na teologia de Agostinho, embora, gradualmente, fosse revestido com a autoridade de Ata-násio. Este credo é uma afirmação em forma de hino e, provavelmente, foi composto durante o quinto ou sexto século, de certo por algum discípulo de Agostinho. É bom sumário da doutrina da Trindade como foi formulada pela igreja antiga. O desenvolvimento do dogma cristão, como esboçado até esta altura, constitui a origem deste credo, que, em sentenças breves e concisas, resume a posição da igreja alcançada durante as controvérsias trinitárias e cristológicas.

Este Symboium quicunque (como é denominado, devido a suas palavras iniciais) apresenta, em sua primeira parte, uma interpretação da doutrina da Trindade: «E a fé católica é esta, que adoremos um único Deus na Trindade e a Trindade na Unidade; sem confundir as pessoas, nem dividir a substância.» A distinção entre as pessoas é ressaltada: «Pois uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho e outra a do Espírito Santo.» Igualmente o é a unidade da essência divina: «Mas a divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é uma só: a glória é igual, a majestade coeterna.» Todas as três pessoas participam da essência divina e suas qualidades: «incriado» — «incomensurável» — «eterno». E ainda assim não são três seres incriados, incomensuráveis e eternos; não há três Deuses; mas há um único Deus. Cada pessoa deve ser reconhecida como Deus e Senhor, mas isto não significa que há três Deuses ou três Senhores.

A fórmula seguinte descreve as relações existentes entre as pessoas: «O Pai por ninguém foi feito, nem criado e nem gerado; o Filho provém apenas do Pai e não foi feito, nem criado mas gerado; o Espírito Santo... procede do Pai e do Filho.»

A segunda parte do credo trata da cristologia.

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