A TEOLOGIA DA LIBERTA

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Digitalizado por Biblioteca "P. Florentino Idoate, S.J." Universidad Centroamericana "José Simeón Cañas" A TEOLOGIA DA LIBERTA<;ÁO NO CONTEXTO ECONÓMICO-SOCIAL DA AMÉRICA LATINA: ECONOMIA E TEOLOGIA OU A IRRACIONALIDADE DO RACIONALIZADO (11) Por Franz J. Hinkelammert, San José de Costa Rica A Teologia do Império tenta recuperar a TdL A partir de tudo isso ocorreu urna da teologia do império. Da da TdL esta teologia passou a Em meados dos anos 80, essa está em plena embora seja notável na AL desde o golpe militar chileno 1J . Quando em 1985 David Stockman, que vinha precisamente de um passado fundamentalista, renuncia ao cargo de chefe do do Govemo Reagan, publica um livro com o título O triunfo da polftica. Censura Reagan por ter traído o modelo puro do neo liberalismo em favor do populismo. Todavia, desenvolve em seu livro toda urna teologia da neoliberal, que logo faz escola. Esse livro nao denuncia as utopias, mas apresenta agora o neoliberalismo como a única maneira eficiente e realista para realizá-Ias. Ataca as "utopias" do socialismo para recuperá-Ias em favor do pretenso realismo neoliberal. Segundo Stock- man, nao é a utopia que mas a falsa utopia, a qual Stockman contrap6e a sua utopia "realista" do neoliberalismo l4 13. A de Princípios" do governo militar chileno do ano de 1974 esta linha. 14. STOCKMAN se apresenta como esquerdista convertido que antigamente era pallidário de urna falsa utopia, mas diz ter descoberto agora a verdadeira; "Em um sentido mais profundo, todavia. a nova doutrina (ele fala até do 'Evange1l1o da oferta') da ofelta nao era senao uma reedi¡;iio do meu antigo idealismo social sob nova forma e, como eu acrcditava, amadurecida. O mundo podia de novo do seu princípio. As crises economicas e sociais. que estao aumentando. podcriam ser superadas. Os males herdados, mais antigos, como o racismo e a poderiam ser superados por refonnas profundas que partiriam das causas políticas. Mas sobretudo a doutrina da oferta ofereceu uma alternativa idealista para o sentido do tempo cínico e pessimista". Segundo a publica<;iio de trechos do livro. em: Del' Sl'iel!.el, 1986, n. 16s.

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A TEOLOGIA DA LIBERTA<;ÁO NO CONTEXTO ECONÓMICO-SOCIAL DA AMÉRICA LATINA:

ECONOMIA E TEOLOGIA OU A IRRACIONALIDADE DO RACIONALIZADO (11)

Por Franz J. Hinkelammert, San José de Costa Rica

A Teologia do Império tenta recuperar a TdL

A partir de tudo isso ocorreu urna transforma~ao da teologia do império. Da nega~ao da TdL esta teologia passou a recupera~ao. Em meados dos anos 80, essa recupera~ao já está em plena realiza~ao, embora já seja notável na AL desde o golpe militar chileno 1J

. Quando em 1985 David Stockman, que vinha precisamente de um passado fundamentalista, renuncia ao cargo de chefe do or~amento do Govemo Reagan, publica um livro com o título O triunfo da polftica. Censura Reagan por ter traído o modelo puro do neo liberalismo em favor do populismo. Todavia, desenvolve em seu livro toda urna teologia da posi~ao neoliberal, que logo faz escola. Esse livro já nao denuncia as utopias, mas apresenta agora o neoliberalismo como a única maneira eficiente e realista para realizá-Ias. Ataca as "utopias" do socialismo para recuperá-Ias em favor do pretenso realismo neoliberal. Segundo Stock­man, nao é a utopia que amea~a, mas a falsa utopia, a qual Stockman contrap6e a sua utopia "realista" do neoliberalismo l4

13. A ·'Declara~5.o de Princípios" do governo militar chileno do ano de 1974 já esbo~a esta linha.

14. STOCKMAN se apresenta como esquerdista convertido que antigamente era pallidário de urna falsa utopia, mas diz ter descoberto agora a verdadeira;

"Em um sentido mais profundo, todavia. a nova doutrina (ele fala até do 'Evange1l1o da oferta') da ofelta nao era senao uma reedi¡;iio do meu antigo idealismo social sob nova forma e, como eu acrcditava, amadurecida. O mundo podia come~ar de novo do seu princípio. As crises economicas e sociais. que estao aumentando. podcriam ser superadas. Os males herdados, mais antigos, como o racismo e a pauperiza~5.o, poderiam ser superados por refonnas profundas que partiriam das causas políticas. Mas sobretudo a doutrina da oferta ofereceu uma alternativa idealista para o sentido do tempo cínico e pessimista". Segundo a publica<;iio de trechos do livro. em: Del' Sl'iel!.el, 1986, n. 16s.

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Nas palavras do próprio M. Camdessus, Secretário-geral do FMI, ouvem-se ecos dessa teologia do império transformada. E a constitui diretamente a partir de algumas teses-chave da TdL. Em urna conferencia proferida em Lille, a 27/03/92, dirigiu-se ao Congresso Nacional de Empresários Cristaos da Fran~aI5. O centro da conferencia resume as suas teses teológicas fundamentais. Vou citá-Ias extensamente:

"Certamen te o Reino é um lugar: es ses novos céus e a nova terra onde somos chamados a entrar um dia. Promessa sublime! Mas o Reino é de alguma maneira geografia, o Reinado é História, urna história da qual somos atores, que está em marcha e que está próxima de nós, desde que Jesus entrou na história humana. O Reinado é aquilo que acontece quando Deus é Rei e nós o reconhecemos, e nós fazemos que o Reinado se estenda como mancha de azeite que impregna, renova e unifica as realidades humanas. "Venha o Teu Reino! ... "

Faz a seguir um confronto entre o poder deste mundo e o Reino de Deus:

"Um se baseia no poder, o outro no servic¡:o. Um, com o apoio da forc¡:a, busca a pos se e a monopolizac¡:ao; o outro, compartilhar. Um exalta o príncipe e seus barBes; o outro, o excluído e o fraco. Um trac¡:a fronteiras; o outro estabelece vínculos. Um se apóia sobre o espetacular e o midiático; o outro prefere a discreta germinac¡:ao do grao de mostarda. Sao antónimos! E no corac¡:ao dessas diferenc¡:as está aquel a que as condensa: o Rei se identifica com o POBRE ... neste Reino quem julga, quem é Rei? No EvangeIho, a resposta se nos dá de mane ira formidavelmente solene com o anúncio e a perspectiva do Juízo Final: - hoje - meu juiz, meu rei é meu Irmao que passa fome, que tem sede, que é estrangeiro, que está nu, enfermo ou prisioneiro ... "

Camdessus contrap6e de um lado poder, pos se, monopoliza~ao, o príncipe e os bar6es, as fronteiras, o espetaculare o midiático; e, do outro, o servi~o, a partilha, o exc1uído e o fraco, os vínculos e a discreta

As "reformas profundas que partiam das causas políticas" sao as de um ajuste estrutural extremo: "1550

significava também o corte repentino da ajuda social aos necessitados capazes de trabalhar ... só um chanceler de ferro o poderia impor: um 'matador de drag6es"'.

Segundo Stockman, Reagan fracassou porque nao te ve capacidade para se tornar um 'chanceler de ferro'.

15. As cita<;6es seguintes sao extraídas do texto publicado: Michel CAMDESSUS, Marché-Royaume. La double appartellance. Documents EPISCOPAT, Bllllelin de Secrétarial de la CO/lfifrence des E\'eqlles de Fraflce, n. 12, julho-agosto de 1992 (Trad. castelhana: Daniela Gallardo Arriagada).

Camdessus apresentou conferencia semelhante dianle dos empresários cristaos do México. UNIAPAC (Unión Internacional Cristiana de Dirigentes de Empresas) anuncia seu XIX Encontro em Monterrey, 27 a 29/09/93 com a assistencia de Camdessus, para falar sobre o tema: "O mercado e o Reino em rela<;ao a mundializa<;ao da economia" (Michel Camdessus - FMI). A reuniao tinha dois oradores. O outro orador era o cardeal Echegaray. Cf. SELAT, Servicios Latinoamericanos, n. 17, 17/09/93.

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gennina~ao do grao de mostarda. Contrap6e orgulho e humildade. Todavia, descobre que o FMI, o ajuste estrutural e todo o conceito neoliberal da sociedade encamam justamente essa humildade em face do orgulho daqueles que exercem resistencia. Para concluir assim:

"Nosso mandato? Ressoou na sinagoga de Nazaré, e do Espírito nos é concedido receber aquilo que os compatriotas de Jesus se negaram a aceitar, precisamente a realizayao da promessa feita a Isaías (Is 61,1-3), a partir da nossa história presente! É um texto de Isaías lido por Jesus e que diz:

o Espírito do Senhor está sobre mimo Ele me ungiu para anunciar a boa-nova aos pobres, proclamar aos prisioneiros a libertarao e a recuperarao da vista aos cegos, por os oprimidos em liberdade e proclamar o ano da grara concedido pelo Senhor (Le 4,16-23).

E Jesus fez apenas este comentário:

Hoje esta profecia se cwnpre para vocés que a estao ouvindo.

Este hoje é nosso hoje e nós que estamos encarregados da economia, somos os administradores - de urna parte em todo o caso - desta grava de Deus: o alívio dos sofrimentos de nossos irmaos e os promotores da expansao da liberdade deles.

Nós recebemos esta Palavra. Ela pode mudar tudo. Sabemos que Deus está conosco na tarefa de promover a fratemidade".

Esse texto do Secretário-geral do FMI poderia ter sido escrito também por um teólogo da liberta~ao. Formula aquilo que os teólogos da liberta~ao consideram o centro da sua interpreta~ao da mensagem evangélica, especialmente a promessa do Reino de Deus e a op~ao pelos pobres.

No entanto, o texto citado é só urna parte da conferencia. Urna parte anterior e urna parte posterior querem com certeza dar ao texto teológico um sentido estritamente contrário ao de um texto análogo em urna análise da TdL. Dirige-se portanto contra os "populismos". Essa palavra na linguagem do Fundo resume todas as atitudes e políticas possíveis, enquanto nao assumem as posi~6es estritas do ajuste estrutural imposto pelo FMI. Dirige-se virulentamente contra:

"todas essas formas da demagogia populista que estao em andamento e que sabemos aonde levam: a hiperinflayao e através dela - porque o mercado nao

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ouviu suas promessas - a derrocada economica, ao aumento da miséria e ao retorno de regimes 'fortes', ou seja, ao fim das liberdades"J6.

Dessa mane ira a op~ao pelos pobres se transforma na op~ao pelo FMI. Quem quer mais ou algo diferente daquilo que se lhe permite ou imp5e na política de ajuste estrutural do FMI, produz "a derrocada económica, o aumento da miséria e o retomo de regimes 'fortes', ou seja, o fim das liberdades". Isso prejudicaria o pobre. Portanto, quem está com o pobre, tem necessariamente que estar com o FMI. Nao há alternativas.

Como ele fala a um público predominantemente católico, vai também contra a tradicional doutrina social católica:

"Claro, o mercado é o modo de organiza~ao economica mais eficaz para aumentar a riqueza individual e coletiva. Nao de vemos ter quanto a ele essa atitude de conivencia envergonhada de algumas gera~6es de nos sos irmaos católicos sociais: este 'sim, mas'. O assunto está resolvido e o Santo Padre deixou bem claro esse ponto na Centesimus annus. Pela eficácia que garante, o mercado pode permitir urna solidariedade maior. Desse ponto de vista, mercado e solidariedade nao se op6em mas podem unir-se. Além disso, a economia empresarial, como os senhores bem o sabem, é urna economia de responsabilidade onde o ser humano tem ocasiao para desenvolver todas as suas dimens6es".

Fora do mercado nao resta nenhuma atividade possível, poi s até mesmo a solidariedade se exerce através do mercado e nos limites da sua lógica. Portanto Camdessus apresentará o FMI como o grande organismo mundial cuja responsabilidade é o exercício da solidariedade. No entan­to, apagou cem anos de Doutrina Social da Igreja católica, sem provocar nem sequer um protesto.

Mas Camdessus se apresenta como homem realista. Ele fala da rela~ao entre mercado e Reino de Deus, mas procura distingui-Ios. Nao se pode esquecer que "o mercado ... nao é o Reino". Camdessus vé muito bem que o mercado contém urna lógica destrutiva e autodestrutiva:

"Entao, caso se deixe o mercado totalmente entregue aos seus mecanismos, há o grande perigo - nao é necessário ir até o século XIX para ve-lo - que os

16. Em conferencia pronunciada por Camdessus perante a Semana Social da Fran~a (1991), ele confronta igualmente a op~50 pelos pobres corn o que chama de populismo. Ver: M. CAMDESSUS, Libéralisme et solidarité a I'échelle mondialc. XXX. Concurrence et solidarité. L'économie de marché presqu'ou' Acles des Semailles Socia/es de Frailee lellues ti Pllris el/ /99/, Paris, ESF Editeur, 1992.

"Tenhamos cuidado com nossos juízos, para nao confundir jamais a op~50 preferencial pelos pobres corn o populismo" (p. 100).

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mais fracos sejam esmagados. Na sua lógica pura, a detenninaC;ao dos prec;os pode significar urna sentenc;a de morte: 'trinta dinheiros; trato fechado!' . Este nao é um episódio singular da história de um profeta da Judéia, mas o elemento cotidiano pennanente da história da humanidade. A partir dessa indiferenc;a do mercado diante da pessoa humana, voces podem logo encon­trar a origem profunda de muitos males das sociedades mais desenvolvidas: poluiC;ao, acidentes de trabalho, destruiC;ao das famílias, exclusao e desem­prego, corruPc;ao, desnÍveis sociais etc.

Eis por que sabemos, há muito tempo, que o mercado deve ser vigiado, posto dentro de certos limites para continuar livre, mas também para ser justo. Eis por que nao se pode aceitar a substituiC;ao do fundamentalismo marxista por um fundamentalismo do mercado. Nao se pode abandonar o mercado a sua própria lógica, porque a economia nao se reduz a técnica mas deve ter como referencia o ser humano".

Face a destrutividade do mercado, quer agora ativar a esperan~a do Reino de Deus:

"Mercado-Reino, sabemos muito bem que devemos realizar as núpcias entre eles. Em todo o caso, em nossas vidas ... "

Sob o título: "A esperan~a do Reino", diz: "Sim, esta realidade do mercado tao prenhe de forc;as de vida e de morte. Esta realidade sobre a qual cada um de nós, desta ou daquela maneira, tem urna func;ao, urna responsabilidade".

Todavia, esta responsabilidade, a que se refere, nao é senao a responsabilidade pelo funcionamento do mercado. A lógica do mercado pode chegar a destruir o próprio mercado. Camdessus tem di ante dos olhos este problema. O capitalismo dos anos oitenta foi um capitalismo autodestrutivo. Destrói nao só o ser humano e a natureza, destrói igual­mente a sua própria possibilidade de funcionamento. A corrup~ao do mercado deixou de ser um problema do Estado, e vai penetrando agora todas as rela~6es mercantis com a tendencia a bloqueá-Ias. Hoje o lugar principal da corrup~ao nao é mais o Estado, mas a empresa capitalista, até em suas rela~6es com as outras empresas capitalistas. Camdessus necessita de urna ética do mercado, porque essa ética é subvertida pela própria lógica do mercado. Essa ética, ele vai buscá-Ia agora na referen­cia ao Reino de Deus e nas núpcias entre o mercado e o Reino:

"Há na vida do mercado práticas as quais nao somente a nossa pertenc;a ao Reino mas também a nossa correta cidadania neste mundo nos obrigam a dizer nao. E todos sabemos que nao é fácil. É preciso ter coragem, muita coragem! Voces conhecem melhor do que eu esta face escura da vida

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económica ... 'Quem é que, ao nosso redor, concretamente, rebaixa, desgasta, destrói: impiedades, injustifas, exclusoes, manipulafoes de clientes e do pessoal ... idólatra do dinheiro, existencia insana etc.' Nao me detenho mais aqui. A vida económica nao é só isso e existe um amplo domínio onde as duas superfícies, sim, de urna certa maneira se encontram. Permitam que me demore um pouco mais aqui. É todo o ámbito onde o portador dos valores do Reino, nao só nao impoe freios ao dinamismo do mercado, mas lhe dá algo 'mais' que lhe falta ainda para servir melhor ao ser humano integral. É, em outros termos, todo aquele terreno onde a racionalidade económica e a construc;ao do Reino convergem. E é vasto".

E O que é que acontece no caso de nao convergirem? Aí, segundo Camdessus, nao há nada a fazer. O realismo aparente culmina no mesmo fundamentalismo que pretensamente criticara. Embora o mercado nao seja o Reino, para Camdessus continua sendo a única presen~a possível do Reino aqui na terra. O mercado com sua lógica se transforma no limite escatológico de toda a história humana. Vigiar o mercado para Camdes­sus nao significa senao tomá-Io viável. Quer intervir no mercado para que ele continue funcionando. Mas o único critério para a interven~ao é garantir o funcionamento do mercado segundo a sua própria lógica. Mas a lógica do mercado, segundo ele, continua sendo a passagem de Deus pela história. O mercado nao é perfeito, mas qualquer perfei~ao que nao seja produto do mercado já nao pertence a práxis humana. O Reino é o óleo lubrificante para a máquina do mercado.

Para Camdessus, há um Reino definitivo, além do mercado. Mas é um Reino que fica além, depois da história, e nao se intromete nos assuntos do mercado. O Reino escatológico. Portanto, chega a esta conc1usao:

"O cidadao do Reino - vamos chamá-Io assim - está na vanguarda do esforc;o para que retrocedam todas as formas do medo, as desconfianc;as, os egoísmos, 'esta idolatria', como diz Paulo (cf. Ef 5,5), e para que se amplie finalmente o campo da partilha, onde o Reino já impregna as realidades humanas, e onde o ser humano encontra um pouco mais de espac;o, gratuidade e alegria. Isto, sabendo muito bem que 'sempre haverá pobres entre nós'. O que significa, entre outras coisas - e deve ter sido difícil para Jesus dize-Io - que o Reino nao se realizará nesta terra, nao pelo menos enquanto nao chegar odia em que 'Ele fará novas todas as coisas'.

Essa tarefa de impregnac;ao das realidades humanas, nao poderemos efetuá-Ia a nao ser que nos sos corac;oes e nossas inteligencias se dilatem e se renovem, 'cheios da Grac;a que vem do Alto'. Para quem exerce um trabalho como o nosso , nesta urgencia de servic;o a humanidade, nao há outra soluc;ao - estou

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certo e ao mesmo tempo longe - senao a santidade ou, se quiserem, 'revestir o Homem Novo: este homem feito do barro da terra', mas que - cito novamente Sao Paulo - 'visto que Cristo veio do Céu, como Ele pertence ao Céu '. Formado do barro da terra, mas pertencendo ao Céu: está aqui a chave, e na Ora<;ao para receber este dom".

É a declarac;:ao do império total, sem qualquer escapatória nem na terra nem nos céus. A política do FMI se transformou na vontade de Deus aqui na terra. Nao urna vontade expressa por um Sinai, mas pela própria realidade. A realidade é tal, que, saindo a ac;:ao humana dos marcos da política de ajuste estrutural, necessariamente os resultados serao piores que a situac;:ao que se pretende mudar. Nao existe alternativa, pois quando se tenta encontrá-Ia, fatalmente se piora a situac;:ao. Por isso, optar pelo pobre é optar pelo realismo. No entanto, o realismo imp6e nao se preocupar com o pobre. É o que faz o mercado: nao admite questiona­mentos. O capitalismo se transformou em "capitalismo total", como o denomina Friedman. Opc;:ao preferencial pelo pobre e opc;:ao preferencial pelo FMI agora se identificam 17. Trata-se de urna posic;:ao que agora é bastante freqüente, e sur~e em um sem-número de publicac;:6es que se fazem passar como TdL1

Claro que para as Igrejas isso parece urna grande tentac;:ao. Na visao aberta por Camdessus, pode-se optar pelo pobre sem precisar entrar em choque com o poder. Parece ter chegado a grande harmonia. Veio trazida pela mao invisível do mercado. E a TdL parece agora parte da própria "ortodoxia". Chegou o Homem Novo, mas é agora um funcionário do FMII9

.

O império toma agora as feic;:6es de um império total e fechado. Nao deixa nada de fora. Declara nao haver alternativas e tem o poder de castigar qualquer tentativa de procurar alternativas com tamanha dureza

17. Neste sentido H. Assmann cita Roberto Campos: "A rigor, ninguém pode optar diretamente pelos pobres. A op~ao que se tem de fazer é pelo investidor, que cria emprego para os pobres". Em: H. ASSMANN, Economía y religión, DEI, San José 1994, p. 101.

18. Veja os exemplos abaixo:

Peter 1. MOLL, Liberating Liberation Theology: Towards independence from Dependence Theory. JOll/"llal of"Tlleologyfor SOlltllem Africa. March 1992; Roger HAIGH, S.1., An Altel"llative Visio/!: An blle¡pretation of Liberatiof! Tlleolog)', N. York, Paulist Press; Amy L. SHERMAN, Preferential Optio/!. A Cllristian alld Neoliberal Strateg)'for Latin Ame¡"ica 's POOl'. Grand Rapids, Michigan 1992.

Cf. sobre essa sacraliza~ao do mercado no contexto da modernidade: Julio de SANTA ANA, Teologia e modernidade, em: Antonio SILV A (Ed.), América Latina: 500 {l/lOS de el'angeliw,üo: reflexi5es teológico-pasta­rais. Sao Paulo 1990.

19. Cf. Hugo ASSMANN-Franz J. HINKELAMMERT, A ido/atria do mercado. Ellsaio sobre eCO/lOl/lia e teologia. Vozes, Sao Paulo 1989.

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que efetivarnente parece rnelhor nao procurá-Ias. Quando o castigo é maior do que aquilo que se pode conseguir tentando achar urna alterna­tiva, de fato é melhor nao buscá-Ia. Nessa situac;ao, o poder dita o que a realidade vai dizer. Entre poder e realidade se estabelece um circuito no qual a realidade confirma, tautologicamente, as teses do poder20

Essa condic;ao do império total e fechado é aquilo que agora diversos teólogos da liberta<;ao percebem na tradi<;ao judeu-crista como a situa<;ao apocalíptica. Nesse tipo de situa<;ao nao há saída a vista e nao pode haver projetos concretos de mudan<;a. Novamente se le o livro do Apocalipse de Joao, e se comec;a a discuti-Io. No sentido tradicional, apocalipse quer dizer "revela<;ao". O Apocalipse revela que diante do império total e fechado existe alternativa, embora nao se saiba qual. O poder total do império revela a sua fraqueza, mas a sua queda nao é vista como um produto de urna a<;ao política intencional. O nome do império é Babiló­ma.

Esta leitura do Apocalipse nao se limita a análise dos textos apoca­lípticos conhecidos, mas inc1ui também a análise do seu contexto eco­nómico, social e político. Redescobre-se o fato de que esses textos apocalípticos apareceram em situac;6es históricas semelhantes a nossa. O fiel se defronta com um império que nao lhe deixa saída, mas teimosamente acredita que haja urna saída.

Apocalipse aqui nao significa catástrofe (muito menos "fim do mundo", Nota do Trad. ). O título do filme "Apocalypsis now", de

20. Hanna ARENDT descreve magistralmente es se circuito: "Dizer que o metro de Moscou é o único no mundo é urna mentira só enquanto os bolchevistas nao tiverem o poder para destruir todos os outros. Noutras palavras, o método de predic~ao infalível, mais que qualquer outro método propagandístico totalitário, denota o seu objetivo último de conquista mundial, dado que apenas em um mundo totalmente sob o seu controle pode o dominador totalitário fazer possivelmente realidade todas as suas mentiras e conseguir que se cumpram todas as suas profecias": Hanna ARENDT, Los orígelles de/totalitarismo, Taurus 1974, p. 435.

"Entao, toda discussao em torno do acerto ou do eITO na predic~ao de um ditador totalitário vem a ser tao fantástica como discutir com um assassino profissional sobre se a sua futura vítima está morta ou viva, posto que matando a pessoa em questao o assassino pode proporcionar imediatamente a prova da veracidade da sua asser~ao": H. ARENDT, op. cit., p. 435.

Em urna entrevista, M. Camdessus descreve esse mecanismo contemplado na ótica do FMI. Pergunta ele: "Qual será o custo social das medidas para colocar em ordem as finan~as públicas?" E responde: "A questao é: qual seria para o POyO da Costa Rica o custo de nao ajustar as suas estruturas. O custo poderia ser o corte do financiamento interno, redUl;:iio dos investimentos., paralisa~ao de um acordo de renegocia~ao da dívida externa, inteITup~ao das importac;:6es. O custo seria a recessao ... Nossa posic;:ao nao é exatamente a de recomendar nem impor medidas ... Nossa posic;:ao é a do diálogo ... Mas o fato de as metas nao terem sido respeitadas e termos suspendido o fornecimento dos créditos nao significa um castigo, mas uma realidade com a qual se defronta o país adaptando as suas políticas. Depois desembolsaremos ..... Entrevista com Michel CAMDESSUS, Diretor-Ge­rente do FM1, La Nacióll, San José, 05/03/90.

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Coppola, nao apresenta de modo algum o sentido daquilo de que se trata. Como revelas;ao, o Apocalipse comprova que o monstro é um gigante de pés de barro, e quando cair deixará o futuro aberto para alternativas a realizar21 . Nem tampouco essa leitura do Apocalipse, como agora aparece na TdL, é diretamente comparável com a leitura feita pelo fundamentalismo cristao de tipo americano. Nesta, o Apocalipse é outra vez somente a catástrofe que vem pela vontade divina como se fosse urna inexorável lei da história. O mundo está condenado a perecer, e a sua salvaS;ao é obra de um deus-juiz que vai consumar a própria história. Mas a lei da história é a catástrofe da história humana. Trata-se de um fundamentalismo que pretende escrever hoje a história de amanha. Até os presidentes Reagan e Bush se inscreveram publicamente nessa meta­física da história22. Mas, de fato, também a recuperaS;ao da TdL, tentada por Camdessus, é perfeitamente compatível com essa visao do mundo.

A releitura do Apocalipse na visao de alguns teólogos da libertaS;ao, hoje, nao vai em nenhum des ses sentidos. O império total e fechado de hoje, como o era o império romano, o helenico ou o babilónico, é urna BabilOnia. Mas como tal é um gigante de pés de barro. Cai, mas a razao de sua queda nao pode vir de um ato procedente da vontade humana. Para tanto, é demasiadamente forte. Cai pelos feitos nao intencionais resultantes de sua própria onipotencia. Mas nao há lei metafísica da história que o derrube. Cai porque "logo se desprendeu urna pedra, sem intervenS;ao de mao alguma, bateu contra a estátua de pés de barro, e os pulverizou"23.

21. TaIvez o texto que melhor descreva a situa~ao apocalíptica seja o seguinte, do Profeta Daniel (11 século aC): "Majestade, tu liveste uma visao. Subitamente avistaste urna estátua; esta estátua se erguia di ante de ti, era colossal, muito brilhante e tinha aspecto terrível. A cabe~a da estátua era de ouro maci~o, seu peito e bra~os eram de prata, seu ventre e coxas de bronze; as pemas eram de ferro; os pés, em parte de ferro e em parte de barro. Tu esta vas a olhar, quando de repente uma pedra se desprende u sem intervenc;ao humana e atingiu a estátua nos seus pés de ferro e barro, reduzindo-os a pó. Entao num só golpe se esmigalharam o ferro, o barro, o bronze e o ouro ... Mas a pedra que tinha atingido a estátua transformou-se em enorme montan ha e encheu toda aterra" (Dn 2,31-35).

22. O livro já citado de Pentecost se chama: El"elltos del porvellir (Acontecimentos do futuro). Tal como antigamente a Academia de Ciencias de Moscou conhecia as leis inexoráveis do futuro, esses fundamentalistas as conhecem também. Mas, enquanto a Academia de Cencias ainda acreditava num futuro melhor, este funda­mentalismo atual julga decidida de antemao a ruína da humanidade.

No dia em que come~ou a Guerra do Golfo, o Presidente Bush apareceu na TV com um dos pregadores fundamentalistas dos EUA, Billy Graham, para juntos orarem a Deus pedindo a ben~1io para a guerra.

23. Cf. Pablo RICHARD, El pueblo de Dios contra el imperio ... Daniel 7 en su contexto literario e histórico. RIBLA N. 7. DEI, San José 1990. Cf. ainda: P. RICHARD, Apocalipse. RecollSlrurüo da esperallra. Vozes, Petrópolis, 1996. Cf. igualmente: Carlos MESTERS, El Apocalipsis: La esperaJ/w de 1II1pueblo que lucha. Rehue, Santiago de Chile 1986; Ricardo FOULKES, El Apocalipsis de SaJ/ Juan. Ulla lec/llra desde América Lafilla. Buenos Aires 1989; Christopher ROWLAND, Radical Christilllúf)": A Readilll? ofRecOl·el)'. Orbis, New York 1988: Juan SNOEK-Rommie NAUTA, Dalliel )" el Apocalipsis. DEI, San José 1993.

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N o entanto, a situa~ao apocalíptica nao provoca somente o genero literário que chamamos de apocalíptico. Surge outra que é gemea da primeira. Trata-se da literatura sapiencial, que sempre foi o outro lado da literatura apocalíptica. Vm dos grandes testemunhos dessa literatura, que hoje vem sendo retomado pela TdL, é o livro da Bíblia intitulado "Eclesiastes", escrito por volta do século III aC. Tem um sentido bastante trágico da vida diante de um império inexpugnável e catastrófico. Prevalece a lamenta~ao sobre a perda do sentido da vida, combinada com certa nostalgia de urna esperan~a destro~ada. Trata-se de urna percep~ao da vida que tem muito a ver com certas correntes da pós-modemidade atual. Assim como alguns teólogos empreenderam a releitura do Apoca­lipse, surge também essa problemática, hoje, na Tde4

A TdL diante do desafio da irracionalidad e do racionalizado

Como vimos precisamente na teologia do FMI, da nega~ao da TdL se passou a constru~ao de urna antiteologia da liberta~ao. Esta antiteo­logia é claramente urna inversao da TdL, de cuja nega~ao se havia partido.

De novo se destaca o fato de essas duas teologias contrárias nao se poderem distinguir no plano de urna discussao nitidamente teológica. Nesse plano, a TdL nao se distingue visivelmente da antiteologia apre­sentada atualmente pelo FMI. Aparentemente se chega a urna situa~ao em que o conflito deixa de ser teológico. Parece o conflito em torno da aplica~ao de urna teologia compartilhada por ambas as partes. A teologia do império - a teologia do FMI é a teologia do império - assumiu os pontos nucleares da TdL: a op~ao preferencial pelos pobres e a esperan~a do Reino de Deus, encarnada na ortopráxis. Ao menos, aparenta ser isso.

Em nível diferente volta agora o problema que tínhamos visto no início do artigo. Aí analisamos o fato de que nos anos 60-70 a TdL surge de urna maneira tal que o conflito com a teologia institucionalizada nao se manifestava como um conflito religioso, porque nao se punha em xeque nenhum dogma religioso. O conflito assumia as fei<;6es de um conflito sobre a concretiza~ao de urna fé compartilhada. A op~ao prefe­rencial pelos pobres e a encarna~ao do Reino de Deus no mundo

24. Cf. T AMEZ, EIsa, La razón utópica de Qohélet. Pasos. DEI, n. 52, rnar~o-abril de 1994.

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económico-político eram os instrumentos para essa concretizac;ao. Como essa teologia concretizada, a TdL era vista conflitivamente.

Hoje, no entanto, a própria teologia do império assumiu essas posi­c;6es. Já nao servem para concretizar urna fé. A teologia do império está de acordo com a opc;ao preferencial pelos pobres e com a encarnac;ao sócio-económica do Reino de Deus. Apresenta-se a si mesma como o único caminho realista para levar a bom termo essas exigencias.

Certamente a teologia do império tergiversa a opc;ao pelos pobres da TdL. Do ponto de vista da TdL, essa opc;ao é conseqüencia de um reconhecimento mútuo entre sujeitos humanos. O pobre é o sinal de urna perda desse reconhecimento, que comprova que toda relac;ao social humana está distorcida. A teologia do império, todavia, nao pode foca­lizar o pobre a nao ser como objeto dos outros que nao sao pobres.

No entanto, a opc;ao pelos pobres já nao pode identificar nenhuma concrec;ao da TdL. A pergunta agora é pelo realismo de sua concrec;ao. Nenhuma fé preconcebida pode dar a resposta. Nao se pode decidir sobre a verdade de urna das posic;6es sem recorrer as ciencias empíricas, especial­mente as ciencias económicas. Sao e1as que decidem. Como resultado, transformam-se em portadoras do critério de verdade sobre as teologias. Efetivamente, com a economia política neoliberal na mao, a opc;ao pelos pobres se toma a opc;ao pelo FMI. Do ponto de vista de urna economia política crítica, porém, toma-se a exigencia de urna sociedade alternativa, onde todos tenham lugar. A teologia enquanto teologia nao pode decidir. Os resultados das ciencias decidem sobre o conteúdo concreto da teologia.

Por esta razao, as tentativas de recuperac;ao da TdL obrigam-na a desenvolver novas problemáticas. Para poder continuar sustentando a opc;ao pelos pobres, em termos que respeitem o pobre como sujeito -coisa que é específica para a TdL - esta opc;ao tem que ser vinculada de maneira muito mais específica com o reconhecimento mútuo entre sujeitos corporais e seres de necessidades.

Isto leva a necessidade de desenvolver a TdL especialmente em duas linhas. A primeira se refere a crítica da economia política neoliberal e sua respectiva utopizac;ao das leis do mercado. A segunda se refere a tradic;ao crista de urna teologia crítica da lei. Ambas constituem o espac;o de urna discussao que hoje se resume muitas vezes como "economia e teologia". Constata a relevancia da análise economica pelo discerni­mento do conteúdo da fé e supera um ponto de vista que considerou o económico como um espac;o da aplicac;ao da fé.

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Na primeira linha da crítica da economia política neoliberal o argu­mento poderia resumir-se nesta frase: a racionaliza~ao pela competitivi­dade e pela eficiencia (rentabilidade) mostra a profunda irracionalidade do racionalizado. A eficiencia torna-se ineficiente. Reduzindo a racio­nalidade a rentabilidade, o sistema económico atual se torna irracional. Desencadeia processos de destrui~ao que nao consegue controlar a partir dos parametros de racionalidade que escolheu. A exclusao de um número sempre maior de pessoas do sistema económico, a destrui~ao dos ele­mentos básicos da vida natural, a distor~ao de todas as rela~6es sociais e, por conseguinte, até mesmo das rela~6es mercantis, sao o resultado nao intencional dessa redu~a.o da racionalidade a rentabilidade. As leis do mercado do capitalismo total destroem a própria sociedade e seu ambiente natural. Absolutizando essas leis através do mito do automa­tismo do mercado, essas tendencias destruidoras sao incontroláveis e se tornam urna amea~a para a própria sobrevivencia da espécie humana.

Essa crítica vai desembocar em urna análise da racionalidade que inclua precisamente a irracionalidade do racionalizado. Trata-se do desenvolvimento de um conceito de um circuito natural e social da vida humana que tem de englobar e condicionar a racionalidade meio-fim subjacente ao cálculo da rentabilidade. Isso eXclui a totaliza~ao neo libe­ral da lei do mercado, para integrar as rela~6es mercantis na vida social. A política neoliberal, em contrapartida, trata o mercado como o elemento constituinte de todas as rela~6es sociais, culminando assim em sua política do capitalismo totae5

Com análises desse tipo, a TdL se depara de novo com a necessidade de encontrar-se com o pensamento de Marx26

• Isto lhe acontece, embora nao o fa~a de propósito. O pensamento de Marx é o grande corpus teórico existente, que surge justamente pela crítica da irracionalidade do racio­nalizado. Deparando-se hoje teoricamente com esse problema, qualquer conceitualiza~ao irá desenvolver pensamentos semelhantes aqueles que Marx por primeiro formulou. Por isso, mesmo nao tomando Marx como ponto de partida, sem querer chega as suas conceitualiza~6es ou bem

25. Helio GALLARDO, Radicalidad de la teoría y sujeto popular en América Latina. Pasos, Número Especial 3/1992. DEI, San José, Costa Rica. Cf. também F.J. HINKELAMMERT, La lógica de la expulsión del mercado capitalista mundial y el proyecto de liberación. Pasos. Número Especial 311992.

26. Cf. os trabalhos respectivos de Enrique Dussel: E. DUSSEL, ú¡ produccúill teórica de Marx. Vil cOlI/elltario a los 'Grulldrisse'. Siglo XXI, México 1985; E. DUSSEL, Hacia 1/11 Marx descollocido. Vil COII/elllario de los MWlI/scritos del 61-63. Siglo XXI, México 1988.

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perto delas. Todavia, nessa relac;ao com O pensamento de Marx aparece urna crítica mais profunda, básica para as reflex6es da TdL. Trata-se da esperanc;a marxista de poder solucionar os problemas do capitalismo total mediante a superac;ao total do capitalismo. O marxismo foi desaguar em urna totalizac;ao análoga aquela que hoje vivemos com a totalizac;ao neoliberal do capitalismo. A TdL tem que ir superando as totalizac;6es, se quiser efetivamente contribuir para a construc;ao de urna nova fé. No entanto, tendo criticado essas totalizac;6es, as conceitualizac;6es da crítica da irracionalidade do racionalizado sao irrenunciáveis para poder cons­tituir um conceito adequado da racionalidade da ac;ao humana. A teoria da ac;ao racional, como a desenvolvida por Max Weber, nao vai além desse reducionismo da ac;ao racional a suas express6es de racionalidade meio-fim, i. é, o que se pode medir em termos da rentabilidade.

Isso nos leva a segunda linha do desenvolvimento necessário da TdL no mundo contemporaneo. A crítica da irracionalidade do racionalizado tem que ser expressa nos próprios termos teológicos. Isso acontece hoje precisamente pela recuperac;ao de urna longa tradic;ao teológica da crítica da lei, que comec;a já nas próprias Escrituras e tem a sua primeira elaborac;ao teológica em Paulo de Tarso, sobretudo na Carta aos Roma­nos (Rm). De fato, Rm é a primeira elaborac;ao da crítica a irracionalidade do racionalizado que existe no pensamento human027

Os teólogos da libertac;ao, que vao retomar essa teologia de Paulo, destacam dois elementos-chave da sua teologia da crítica da lei. Por um lado, Paulo mostra que a lei, enquanto lei obrigatória, leva a morte aqueles que a cumprem ou sao obrigados a cumprir a lei acima de qualquer outra considerac;ao. A lei, que deve servir a vida, leva neste caso a morte. Paulo fala da "lei de cumprimento", que leva a morte. Lei é neste caso qualquer lei, tanto a lei judaica do tipo que Paulo conhece da tradic;ao farisaica, como a lei romana. Portanto, o Estado de direito que, com o império romano, pela primeira vez apareceu na história, nao é a expressao máxima da humanidade mas urna ameac;a. A lei nao salva por meio do seu cumprimento. Por outro lado, Paulo considera o pecado nao no sentido de urna infrac;ao da lei. O pecado de que se trata, na visao

27. o livro mais notável neste sentido é o estudo de: EIsa TAMEZ, COlltra toda colldel1a. LajllStificacilÍll por la fe desde los excluidos. DEI, San José 1991. Cf. também: Richard SHAULL, La reforma)" la Teología de la LiberacilÍll. DEI, San José 1993. cr. também F.J. HINKELAMMERT, La.' armas ideolágicas de la muerre. DEI, San José 1981. Segunda edición revisada y ampliada con introducción de Pablo Richard y Raúl Vidales.

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de Paulo, cornete-se cumprindo a lei e para que seja cumprida. Infra~6es da lei sao secundárias. Portanto, o pecado é levar a morte cumprindo a lei. Portanto, cornete-se o pecado com a boa consciencia de estar cum­prindo a lei. Ainda se encontram alguns vestígios desse modo de pensar na senten~a da Idade Média européia: Summa lex, maxima iniustitia. Ou outra senten~a, de cunho ironico: Fiat iustitia, pereat mundus (Fa~a-se justi~a, mesmo que o mundo se acabe).

Isso levou a análise da sacrificialidade corno resultado da lei. A lei, quando tratada corno totalidade, exige sacrifícios humanos. Disso se teve viva consciencia nos primórdios do cristianismo. Todos os evangelhos, por exemplo, insistem em que Jesus é levado a morte cumprindo a lei, em cumprimento da lei. Portanto nao há culpados pessoais por essa morte. É a rela~ao com a lei que lhe dá origem. Bem se compreende que a teologia conservadora posterionnente preferisse jogar a culpa sobre os judeus. Tinha que faze-Io para escapar as conseqüencias da teologia da crítica da lei, que era completamente incompatível com as aspira~6es do cristianismo ao poder imperial28

.

Este fato explica por que precisamente a teologia da crítica da lei de Paulo e sua afirma~ao, nega~ao, inversao e falsifica~ao tenha sido o fio condutor da história do cristianismo e, portanto, do Ocidente. Seu texto-chave é a Carta aos Romanos (Rm). Rm nao é de modo algum um livro "teológico" no sentido da divisao em faculdades da universidade moderna. Analisa aquilo que é a chave do império romano do tempo do Apóstolo, embora o fa~a a partir de um ponto de vista teológico. Rrn é tao decisiva para a filosofia e o pensamento prático corno o é para o pensamento teológico. Para os filósofos, no entanto, é um tabu. Nas histórias de filosofia nem aparece, embora seja o pensamento em redor do qual giram mais de 1. 500 anos do pensamento ocidental, inc1uindo o filosófico. A Carta aos Romanos foi também decisiva na Refonna, sobretudo para Lutero. Por isso se encontra na raiz da ética protestante e sua transfonna~ao no espírito do capitalismo. Tornou a ser decisiva no surgimento da teologia moderna com o comentário de Karl Barth a Rm. Hoje volta a ser decisiva para a TdL. É um dos livros mais subversivos de toda a história. U m dos poucos que se deram conta disso foi Nietzsche.

28. cr. F.J. HINKELAMMERT, Lafe de Abraham y el Edipo Occidental. DEI. San José. Segunda edición ampliada, 1991; F.J. HINKELAMMERT, Sacrificios hU/1ul/loS y sociedad occiden/al: Lúcifer)" la Bestia. DEI. San José 1991. cr. Jorge PIXLEY, La violencia legal, violencia institucionalizada, la que se comete creyendo servir a Dios. RIBLA 18. San José 1994.

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Mas Nietzsche o faz somente para escolher Paulo como seu inimigo predileto.

A crítica paulina da lei é precisamente urna crítica das leis "justas" que Paulo ve especialmente presentes na lei de Deus promulgada no Sinai. Mas di ante de sua crítica da lei, tampouco esses mandamentos sao leis justas por si sós. Qualquer lei, segundo Paulo, mata se for tratada como lei de cumprimento (óbrigatório). Segundo Paulo, isso vale inclu­sive para a "lei de Deus". A injusti<;a está na forma geral da lei. Portanto, a justi<;a de Paulo nao está na lei, mas na relac;ao (do homem) com ela. O sujeito é soberano diante da lei, para relativizá-Ia em todo o caso em que o seu cumprimento leve a morte.

Há urna diferenc;a incisiva entre essa crítica da lei de Paulo e a tradic;ao liberal. A tradic;ao liberal busca leis justas. Cre te-las encontra­do, sustentando que a lei é justa quando aqueles que tem o de ver de obedecer a elas sao ao mesmo tempo aqueles que como cidadaos sao os legisladores. Esta lei é para eles o correspondente da lei de Deus: vox populi, vox dei (A voz do povo é a voz de Deus). Portanto, o resultado liberal é que a lei democrática é urna lei justa. Portanto, um estado de direito baseado nessa lei é um Estado justo.

Portanto, para Paulo nao há Estado de direito no sentido de nossa ideologia vigente, em que o Estado de direito tem leis justas com o conseqüente dever do cidadao de cumpri -las sem possibilidade de efetuar um discernimento ou oferecer resistencia. Max Weber denomina esse procedimento de "legitimidade pela legalidade". Mas esta é urna posic;ao incompatível com a de Paulo, que exige discernimento. Do ponto de vista de Paulo, o Estado de direito liberal é um Estado injusto. E o é por ser um Estado total. A posic;ao de Paulo implica o direito a resistencia, a posic;ao de Weber nega esse direito.

Hoje, fora de dúvida, estao preparando um holocausto do Terceiro Mundo. Se ele chegar a se consumar, consumar-se-á ~elo Estado de direito e dentro dos estritos limites do Estado de direito 9. lsso é o que mostra o fato de que o Estado de direito nao garante de modo algum justic;a nenhuma. A resistencia humaniza o Estado de direito e, onde a resistencia é reprimida com sucesso ou nao tem lugar, o Estado de direito

29. Cf. Jean-Christophe RUFIN, L 'empire et seus lIouveaux barbares, Paris 1991 (Das Reiclz und die Ileuell Barbarell. Berlin 1992). Cf. igualmente: Hans Magnus ENZENSBERGER, Aussiclztell aut del! Biirgerkrieg (Perspectivas da guerra civil). Suhrkamp, FrankfurtlMain 1993.

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se transfonna em um Moloc. Por isso, Estado de direito e totalitarismo, como também democracia e totalitarismo, sao compatíveis30

. Também a cobran<;a da dívida externa do Terceiro Mundo é um crime que se comete "cumprindo a lei". Crime cometido pelo próprio Estado de direito. Quando fala do pecado, Paulo se refere aos crimes que se cometem "no cumprimento da lei". As transgress6es da lei pouco lhe interessam31

• Sao crimes que se cometem com a melhor das inten<;6es, de consciencia tranqüila, julgando servir a Deus, a humanidade e aos pobres.

Neste sentido, já a teologia da crítica da lei desenvolve o problema da irracionalidade do racionalizado. Por isso, os teólogos da liberta<;ao podem retomar essa teologia em rela<;ao a lei do mercado. Por um lado, em sendo abordada como lei que salva pelo seu cumprimento, a lei do mercado leva a morte inclusive da humanidade. Por outro lado, há um pecado que se comete cumprindo a lei do mercado e que se comete com a consciencia tranqüila de se estar cumprindo a suprema lei da humani­dade. Vem a baila de novo, portanto, a liberdade crista no sentido que Paulo declarou, como urna liberdade soberana diante da lei. Os sujeitos livres sao livres no grau em que sao capazes de relativizar a lei em fun<;ao das necessidades de su as vidas. A liberdade nao está na lei, mas na rela<;ao dos sujeitos com a lei. Tendo em vista a lei do mercado, a liberdade consiste precisamente em poder submete-la e até em poder transgredi-Ia, se assim o exigirem as necessidades dos sujeitos. O reco­nhecimento mútuo entre sujeitos corporais e seres de necessidades implica insubstituivelmente o reconhecimento da relativiza<;ao de qual­quer lei em fun<;ao desse reconhecimento. Ao se reconhecerem mutua­mente como sujeitos, eles se reconhecem como soberanos diante da leí. A lei vale somente no grau em que nao impede es se reconhecimento mútuo.

Pode-se a esta altura retomar a op9ao pelos pobres em um sentido no qual a teologia do império jamais a aceitará. O reconhecimento mútuo entre sujeitos corporais e seres de necessidades implica a op<;ao pelos pobres e isso implica ao mesmo tempo a soberania do sujeito humano em face da lei. Sem essa soberania nao pode haver nem reconhecimento

30. Na literatura sobre o totalitarismo, somente Hannah Arendt percebe es se fato. Cf. Hannah ARENDT, Los orígenes delto/alitarismo, OJl. cit.

31. Cf. F.J. H1NKELAMMERT, La deuda externa de América Latilla: el automatismo de la deuda. DEI, San José 1988; IDEM, Democracia y Totalitarismo. DEI, San José 1987.

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mútuo entre sujeitos nem op~ao pelos pobres. A partir dessa reconcei­tua~ao aparece igualmente urna nova conceitua~ao do Reino de Deus32

.

Por isso, a TdL ousa negar nao apenas a absolutiza~ao da lei do mercado no "capitalismo total", mas também de qualquer lei metafísica da história. Absolutiza~ao da lei - isto é, sua transforma~ao em lei metafísica da história - é urna totaliza~ao que, em última instancia, desemboca em totalitarismo. Seu lema é sempre aquele do "fim da história" e da nega~ao de todas as alternativas33

Com esse resultado, a TdL vai desembocar em urna crítica da modernidade e nao só do capitalismo. Vai chegar a constata~ao de urna crise da própria sociedade ocidental. Todavia, a TdL nao é pós-modema. Os pós-modernos cuidadosamente se exime m de fazer urna análise da lei do mercado como lei metafísica da história. Atacam por todos os lados leis metafísicas da história, especialmente no socialismo histórico, onde efetivamente as houve. Mas a lei do mercado como o único caso, atualmente, em que se imp6e urna lei metafísica da história, nem sequer a mencionam. Encobrem a lei metafísica da história vigente em nos sos dias, em nome da crítica de muitas outras leis da história no passado. (fim)

Enderefo do Autor: Apartado Postal 389 - Sabanilla 2070 San José/COSTA RICA

32. Cf. Jung Mo SUNG, Economía. Tema ausellte en/a teología de la liberación. DEI. San José 1994.

33. Hugo ASSMANN, Teología de la liberación: mirando para el frente. Pasos. N. 55, San José, set.-out. 1994. Cf. ainda F.J. HINKELAMMERT, Capitalismo sin alternativas? Sobre la sociedad que sostiene que no hay alternativa para ella. Pasos. N. 37, set.-out. 1991. DEI. San José.