História Cirurgia Pediátrica

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einstein. 2004; 2(1):58 58 Opinião do Especialista Esta subseção visa trazer ao leitor a arte e a ciência da medicina intimamente ligadas, porquanto acreditamos que uma não exista sem a outra. Arte, baseada na vivência de um médico reconhecidamente competente por seus pares, e ciência, calcada na melhor evidência contemporânea. Sabemos que as respeitadas verdades de ontem muitas vezes tornam-se divertidas doutrinas sem valor amanhã, mas isso não pode nos afastar do intento de procurar levar ao nosso leitor a melhor verdade de hoje. Constantino José Fernandes Junior Editor Associado da einstein Cirurgia Pediátrica: perspectivas futuras – Declaração da Cirurgia Pediátrica José Pinus * * Vice-Presidente da World Federation of Associations of Pediatric Surgeons, Presidente da Academia Nacional de Cirurgia Pediátrica, Presidente do Conselho Consultivo da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein - São Paulo (SP). Quero ressaltar, desde logo, que esta contribuição não contém nenhuma originalidade intrínseca, ou qualquer outra em especial, que já não seja de pleno conheci- mento de todos. Contudo, na qualidade de vice-presidente da World Federation of Associations of Pediatric Surgeons (WOFAPS), acredito ser importante enfatizar alguns dados e conceitos, para nós óbvios, mas que merecem ser salientados, mesmo como simples advertência para o futuro da cirurgia pediátrica como especialidade. Breve história da evolução da cirurgia pediátrica No início do século XIX, com um novo conceito de que as crianças deveriam ter um atendimento diferen- ciado, separado dos adultos, foi fundado em Paris, em 1802, “L’Hopital des Enfants Malades”, considerado o 1º Hospital Infantil, seguido depois por outros países, como Inglaterra em 1851 e, nos EUA e Canadá, em 1855. Criou-se assim o esboço da pediatria como especia- lidade. As crianças ali internadas tiveram suas afecções cirúrgicas (predominantemente ortopédicas) tratadas por um ou mais cirurgiões, que passaram a acumular experiência em ortopedia e cirurgia infantil, e seus resultados foram superiores aos obtidos por outros colegas, porém publicados bem mais tarde, entre 1901 e 1928. Em 1909, Fredet e Ramsstedt realizaram uma piloromiotomia para correção da estenose hipertrófica do piloro e, em 1911, Pouliquen utiliza o enema para tratar uma invaginação ileocólica. Podemos considerar que a “Moderna Cirurgia Pediátrica” iniciou-se a partir de 1920, com W. Ladd em Boston, D. Brown, em Londres e L’Ombredane, em Paris (1) . Surgem numerosas publicações e fatos marcantes: em 1928, Lancelot, Barrington e Ward enunciaram a frase que se tornou célebre e tantas vezes repetida, “The adult may be safely treated as a child but the converse can lead to a disaster”. Em 1941, Ladd e Gross publicaram o livro “Abdominal Surgery of Infancy and Childhood”, a partir do qual expressões até então usadas para justificar as mortes dos recém-nascidos, como “era muito pequeno para viver” ou “foi um ato divino”, não tinham mais razão de ser (1) . Em 1953, R. Gross (2) publicou o livro “The Surgery of Infancy and Childhood”, que se constituiu em um clássico da cirurgia pediátrica. Seguem-se numerosas outras publicações, em revistas médicas e tratados de Cirurgia Pediátrica, contendo os resultados das experiências acumuladas das afecções cirúrgicas pediátricas. O aprimoramento das técnicas e táticas empregadas e a integração de novos conceitos desenvolvidos em pesquisas originais por cirurgiões pediatras, e negligenciadas até então pelo cirurgião de adultos, foram por eles utilizadas mais tarde, principalmente na década de 70-80 (1) . No Brasil, em 1964, foi fundada a Sociedade Brasileira de Cirurgia Pediátrica (CIPE) A Cirurgia Pediátrica teve um enorme impulso de desenvolvimento, consagrando-se como especialidade, naturalmente com a contribuição dos neonatologistas, anestesistas pediátricos, patologistas, radiologistas pediátricos, e também graças à terapia intensiva pediá- trica, com especial destaque à assistência ventilatória e à nutrição parenteral prolongada, bem como o fato de as crianças serem atendidas em centros especializados. E assim chegamos à fundação da WOFAPS. O momento era propício e graças ao entusiasmo de todos os envolvidos surgiu a WOFAPS, o que ocorreu em São Paulo, no dia 15 de outubro de 1974, durante a realização do que foi o maior congresso da especia- lidade até então, com 1.285 participantes, represen-

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Opinião do Especialista

Esta subseção visa trazer ao leitor a arte e a ciência damedicina intimamente ligadas, porquanto acreditamos queuma não exista sem a outra.Arte, baseada na vivência de um médico reconhecidamentecompetente por seus pares, e ciência, calcada na melhorevidência contemporânea. Sabemos que as respeitadasverdades de ontem muitas vezes tornam-se divertidas doutrinassem valor amanhã, mas isso não pode nos afastar do intento deprocurar levar ao nosso leitor a melhor verdade de hoje.

Constantino José Fernandes JuniorEditor Associado da einstein

Cirurgia Pediátrica: perspectivasfuturas – Declaração da CirurgiaPediátricaJosé Pinus*

* Vice-Presidente da World Federation of Associations of Pediatric Surgeons, Presidente daAcademia Nacional de Cirurgia Pediátrica, Presidente do Conselho Consultivo da SociedadeBeneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein - São Paulo (SP).

Quero ressaltar, desde logo, que esta contribuição nãocontém nenhuma originalidade intrínseca, ou qualqueroutra em especial, que já não seja de pleno conheci-mento de todos.

Contudo, na qualidade de vice-presidente da WorldFederation of Associations of Pediatric Surgeons(WOFAPS), acredito ser importante enfatizar algunsdados e conceitos, para nós óbvios, mas que merecemser salientados, mesmo como simples advertência parao futuro da cirurgia pediátrica como especialidade.

Breve história da evolução da cirurgia pediátrica

No início do século XIX, com um novo conceito deque as crianças deveriam ter um atendimento diferen-ciado, separado dos adultos, foi fundado em Paris, em1802, “L’Hopital des Enfants Malades”, consideradoo 1º Hospital Infantil, seguido depois por outros países,como Inglaterra em 1851 e, nos EUA e Canadá, em 1855.

Criou-se assim o esboço da pediatria como especia-lidade. As crianças ali internadas tiveram suas afecçõescirúrgicas (predominantemente ortopédicas) tratadaspor um ou mais cirurgiões, que passaram a acumularexperiência em ortopedia e cirurgia infantil, e seusresultados foram superiores aos obtidos por outros

colegas, porém publicados bem mais tarde, entre 1901e 1928. Em 1909, Fredet e Ramsstedt realizaram umapiloromiotomia para correção da estenose hipertróficado piloro e, em 1911, Pouliquen utiliza o enema paratratar uma invaginação ileocólica.

Podemos considerar que a “Moderna CirurgiaPediátrica” iniciou-se a partir de 1920, com W. Laddem Boston, D. Brown, em Londres e L’Ombredane,em Paris(1).

Surgem numerosas publicações e fatos marcantes:em 1928, Lancelot, Barrington e Ward enunciaram afrase que se tornou célebre e tantas vezes repetida,“The adult may be safely treated as a child but theconverse can lead to a disaster”. Em 1941, Ladd e Grosspublicaram o livro “Abdominal Surgery of Infancy andChildhood”, a partir do qual expressões até entãousadas para justificar as mortes dos recém-nascidos,como “era muito pequeno para viver” ou “foi um atodivino”, não tinham mais razão de ser(1). Em 1953, R.Gross(2) publicou o livro “The Surgery of Infancy andChildhood”, que se constituiu em um clássico dacirurgia pediátrica.

Seguem-se numerosas outras publicações, emrevistas médicas e tratados de Cirurgia Pediátrica,contendo os resultados das experiências acumuladasdas afecções cirúrgicas pediátricas. O aprimoramentodas técnicas e táticas empregadas e a integração denovos conceitos desenvolvidos em pesquisas originaispor cirurgiões pediatras, e negligenciadas até entãopelo cirurgião de adultos, foram por eles utilizadasmais tarde, principalmente na década de 70-80(1).

No Brasil, em 1964, foi fundada a SociedadeBrasileira de Cirurgia Pediátrica (CIPE)

A Cirurgia Pediátrica teve um enorme impulso dedesenvolvimento, consagrando-se como especialidade,naturalmente com a contribuição dos neonatologistas,anestesistas pediátricos, patologistas, radiologistaspediátricos, e também graças à terapia intensiva pediá-trica, com especial destaque à assistência ventilatóriae à nutrição parenteral prolongada, bem como o fato deas crianças serem atendidas em centros especializados.

E assim chegamos à fundação da WOFAPS. Omomento era propício e graças ao entusiasmo de todosos envolvidos surgiu a WOFAPS, o que ocorreu emSão Paulo, no dia 15 de outubro de 1974, durante arealização do que foi o maior congresso da especia-lidade até então, com 1.285 participantes, represen-

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Torna-se de fundamental importância, portanto, amanutenção de Programas de Educação Continuada,ressaltando o valor humanístico e o relacionamentoespecial com pacientes e familiares; a promoção dointercâmbio de residentes e pós-graduandos no país eno exterior; a ampliação e integração com os pediatras;e, finalmente, a manutenção do intercâmbio científicocom as sociedades afins, em todas as suas atividades.Não há dúvida, portanto, em se afirmar que, apesardas dificuldades apontadas, o futuro da cirurgiapediátrica é brilhante e seu campo de atuação semprefascinante.

Assim, há que se propiciar o aprimoramento daexcelência dos procedimentos e técnicas e, ao mesmotempo, do atendimento humanístico e o aprimora-mento de técnicas minimamente invasivas; promover aintegração com outras áreas, como bioinformática,genética, biologia celular e molecular, engenharia detecidos e robótica, além de aprimorar o conhecimentode novas drogas antiangiogênese.

Mas temos que nos esforçar para estimular odesenvolvimento de nossos valores humanísticos, poistem sido dito que a tecnologia desenvolve-se maisrapidamente do que o conhecimento, que por sua vezé mais rápido do que o bom senso e a compaixão.

A WOFAPS, pelo seu Comitê Executivo, decidiupelo estabelecimento de uma campanha peloreconhecimento da importância e do valor da cirurgiapediátrica como especialidade, enfatizando o fato deoferecermos o melhor atendimento e resultados,conforme consta da Declaração da Cirurgia Pediátrica,elaborada em Kyoto, Japão, em abril de 2001.

Declaração da Cirurgia Pediátrica

• A criança não é apenas um adulto em miniatura eapresenta problemas e necessidades médicas ecirúrgicas, muitas vezes bastante diversas daquelasencontradas pelo médico de adultos.

• Lactentes e crianças merecem o melhor atendimentomédico disponível. Todo lactente ou criança queapresenta uma doença tem o direito de ser tratadoem um ambiente adequado. Por um especialista empediatria ou cirurgia.

• O cirurgião pediatra é um profissional especial-mente treinado, com ampla experiência e conhe-cimentos no tratamento do lactente e crianças detodas as idades (do nascimento à adolescência),portadores de afecções cirúrgicas. Em virtude de

tando 43 países, sob a presidência do saudoso Prof.Virgilio A. Carvalho Pinto.

Objetivos da WOFAPS

Constituem seus objetivos: desenvolver e manter aqualidade da cirurgia pediátrica pelo mundo, bemcomo suas promoção e integração na comunidademédica e científica, a fim de garantir a todas as criançaso acesso e o direito da oportunidade a um procedi-mento cirúrgico efetivos de alto padrão e da melhorqualidade, bem como promovendo educação, treina-mento e pesquisa.

A WOFAPS foi crescendo e hoje congrega 70associações de cirurgia pediátrica do mundo, aAssociação Internacional de Cirurgia e de Pediatria,incluindo o UNICEF, a UNESCO, a OMS e todas asorganizações internacionais para a saúde das crianças.Representa um importante elo entre as associações decirurgia pediátrica, a fim ainda de favorecer os menospreparados e mais necessitados, mas uma das preocu-pações da WOFAPS é exatamente a de consolidar aindamais nossa especialidade com desenvolvimento eaperfeiçoamento.

Existem, todavia, inúmeros obstáculos a ultrapassar,inerentes à própria especialidade e ao potencial riscoque ela vem atravessando.

Procurando obter uma análise concreta da situação dacirurgia pediátrica no mundo, a WOFAPS elaborou umamplo questionário abrangendo a maioria dos itens queinteressam e compõem nossa especialidade e submetido às70 associações. Como conclusões do inquérito constatou-se, entre outros fatos, que houve perda potencial daliderança no tratamento da cirurgia do recém-nascido eda criança, bem como no desenvolvimento da cirurgiapediátrica para conquistar suportes financeiros, espaçosadequados e novas pesquisas.

Foram, então, elaboradas algumas propostas, comoampliação das áreas de atuação e aprimoramento dosprogramas de treinamento.

Do ponto de vista prático, o futuro da especialidadepoderia se apresentar como muito preocupante: pelonúmero exagerado de profissionais, muitas vezes nãobem preparados; fragmentação em subespecialidadese diminuição do número de casos de malformações aserem operados, em função do diagnóstico pré-natal eabortamentos; até mesmo uma mudança de atitude comrelação à problemática como um todo; e, finalmente,pela necessidade do estabelecimento de novos padrõespara as publicações científicas(3).

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sua formação específica, os especialistas em cirurgiapediátrica oferecem extensa gama de opções tera-pêuticas e cuidados do mais alto padrão à criança.

• O cirurgião pediatra diagnostica, trata e acompanhaas necessidades cirúrgicas da criança, o que inclui otratamento cirúrgico dos defeitos congênitos,traumatismos graves, tumores sólidos da infância,quadros clínicos que requerem endoscopia eprocedimentos minimamente invasivos, bem comotodos os procedimentos cirúrgicos da infância.

• Visando proporcionar o melhor tratamento cirúr-gico possível a lactentes e crianças, os procedimentoscirúrgicos pediátricos complexos devem serrealizados em centros especializados, com unidadesde terapia intensiva adequadamente equipadas, deplantão 24 horas, nos sete dias da semana. Alémdos cirurgiões pediatras, estas unidades devemcontar com outros especialistas em pediatria, comradiologistas, anestesiologistas e patologistas. Essescentros devem oferecer cursos de pós-graduação epossibilidades de pesquisa na especialidade.

Prof. Jay L. Grosfeld, Presidente da WOFAPS.Pof. Dr. José Pinus, Vice-Presidente da WOFAPS.

Conclusão

O futuro, na verdade, está no presente, no sentido deprocurar alcançar o preciosismo técnico e humanísticono atendimento ao nosso paciente, com o objetivo deultrapassar os melhores índices de sobrevida, vencendoas pequenas taxas de mortalidade e, mais do que isso,diminuindo a morbidade a fim de conseguir a melhorqualidade de vida possível.

Referências

1. Fonkalsrud EW. Pediatric surgery advances into university hospital. J PediatrSurg. 2001;36(6):409-15.

2. Gross RE. The surgery of infancy and childhood. Philadelphia: WB Saunders;1953.

3. Rangel SJ, Kelsey J, Henry MC, Moss RL. Critical analysis of clinical researchreporting in pediatric surgery: justifying the need for a new standard. JPediatr Surg 2003;38(12):1739-43.