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HICLÉA LUZIA COSTA TON PAULETTI LITERATURA E EDUCAÇÃO: A REPRESENTAÇÃO DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA EM ESTEIROS, DE SOEIRO PEREIRA GOMES E CAPITÃES DA AREIA, DE JORGE AMADO MARÍLIA SP 2012

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HICLA LUZIA COSTA TON PAULETTI

LITERATURA E EDUCAO: A REPRESENTAO DA INFNCIA E DA

ADOLESCNCIA EM ESTEIROS, DE SOEIRO PEREIRA GOMES E CAPITES DA

AREIA, DE JORGE AMADO

MARLIA SP

2012

HICLA LUZIA COSTA TON PAULETTI

LITERATURA E EDUCAO: A REPRESENTAO DA INFNCIA E DA

ADOLESCNCIA EM ESTEIROS, DE SOEIRO PEREIRA GOMES E CAPITES DA

AREIA, DE JORGE AMADO

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

Graduao em Letras da Universidade de Marlia-

SP UNIMAR, como requisito parcial para a

obteno do ttulo de Mestre em Letras.

Linha de pesquisa: Estudos comparados de

Literaturas de Lngua Portuguesa

Orientador: Prof. Dr. Altamir Botoso

MARLIA SP

2012

Pauletti, Hicla Luzia Costa Ton Literatura e Educao: A Representao da Infncia e da Adolescncia

em Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes e Capites da Areia, de Jorge Amado.

Hicla Luzia Costa Ton Pauletti -- Marlia, UNIMAR, 2012.

137 f.

Dissertao (Mestrado em Letras) -- Mestrado em Letras da Universidade

de Marlia, Marlia, 2012.

1. Capites da Areia 2. Esteiros 3. Jorge Amado 4. Soeiro Pereira Gomes

I. Pauletti, Hicla Luzia Costa Ton

CDD -- B869.93

UNIVERSIDADE DE MARLIA-SP UNIMAR

FACULDADE DE COMUNICAO, EDUCAO E TURISMO

REITOR: DR. MRCIO MESQUITA SERVA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO: MESTRADO EM LETRAS

COORDENADORA: PROF. DR. SUELY FADUL VILLIBOR FLORY

REA DE CONCENTRAO: LITERATURAS DE LNGUA PORTUGUESA

LINHAS DE PESQUISA: ESTUDOS COMPARADOS DE LITERATURAS DE LNGUA

PORTUGUESA

ORIENTADOR: PROF. DR. ALTAMIR BOTOSO

AGRADECIMENTOS

Desejo demonstrar meu carinho e gratido queles que estiveram presentes em minha

vida durante a trajetria deste curso. Usarei as palavras do padre Fbio de Melo expressas em

um programa de TV que dizia: Deus coloca anjos em nossa vida todos os dias em forma de

pessoas. Achei essa expresso muito interessante e ela me fez refletir que vivo rodeada por

anjos a quem fao meus agradecimentos.

Primeiramente agradeo a Deus, nosso Pai Celeste, pelo dom da vida e pelas bnos

dirias de sade, fora, paz e coragem.

Aos meus amados pais, Luclia e Vitrio, meus primeiros mestres, por todo amor e

incentivo.

Aos meus queridos e maravilhosos filhos, Pedro Henrique e Joo Victor, pela

pacincia e compreenso que tiveram nos momentos de ausncia nas viagens e estudos. Vocs

so o meu porto seguro.

Ao meu esposo Rgis, por ser um pai atencioso e presente principalmente nos

momentos de minha ausncia. Seu apoio foi imprescindvel.

Agradeo minha sogra Conceio, dedicada av, pelo incentivo e companheirismo

nas viagens no percurso entre Agudos e Marlia.

tia Elza, exemplo de educadora que sempre me auxiliou com o emprstimo de

importantes obras pedaggicas e preciosas opinies para a concluso do meu trabalho.

Obrigada tia pela ateno, amizade e carinho.

Meu sincero agradecimento ao tio Srgio, pela leitura criteriosa e crticas construtivas

que foram feitas visando o aperfeioamento do que foi exposto.

tia Carmem, pela acolhida e carinho nas minhas idas a Marlia.

Tuca, amiga querida, que tive o prazer de conhecer e que muito me incentivou.

Obrigada pela sua amizade.

s minhas encantadoras alunas, as gmeas Larissa e Letcia, anjos presentes, que me

auxiliaram na organizao e digitao deste trabalho e participaram ativamente em sala de

aula de cada etapa. Adoro vocs.

Aos amigos, parentes e alunos que acreditaram no meu trabalho e que de certa forma

contriburam com apoio e incentivo. Obrigada.

excelente profissional Andra, pelo carinho e ateno com que sempre me recebeu.

professora Elusis, que me apoiou e incentivou na escolha do tema de minha

dissertao e com quem aprendi muito durante o curso.

Aos professores Antnio Manoel e Suely Flory, pelas lies e conhecimentos que

foram assimilados e somados a este trabalho.

professora Rosngela, por ter participado da banca de qualificao e ter contribudo

com valiosas sugestes, comentrios e elogios.

Heloisa, professora e amiga que me apresentou muito do que li em suas aulas e fez

uma leitura atenciosa e precisa deste trabalho durante a qualificao, contribuindo para seu

aperfeioamento.

Ao professor Weslei Roberto Cndido, pela leitura atenta do trabalho, pelas sugestes

e correes apontadas durante a defesa da dissertao.

Ao meu orientador, Dr. Altamir Botoso, professor dedicado e sempre presente com

quem aprendi muito durante as aulas e no percurso deste trabalho, pela orientao segura e

competente, pelo incentivo e grande confiana em mim depositada.

MENINO TRISTE Dora Incontri

Que queres, menino triste?

que me pras no farol?

Que sonho escuro que viste,

Pois teus olhos no tm sol?

Tua madrasta a rua,

com seu cimento gelado.

E de noite, nem a lua

te d um olhar de trocado

Quem te largou neste mundo,

para catares esmola?

Se roubas, s vagabundo

Mas quem te roubou a escola?

E quem te arrancou da mo

um brinquedo e uma esperana?

Quem te tirou, sem perdo,

o direito a ser criana?

Tua escola a calada,

que freqentas todo em trapos.

Se o dia no rende nada,

logo apanhas uns sopapos.

Menino, no olhar me imploras

muito mais do que um favor.

Querias que tuas horas

fossem preenchidas de amor!

Mas o que vs so os carros!

Passam depressa, sem d.

Os sorrisos te so raros.

O Brasil te deixa s.

Minha poesia j chora:

os meninos so milhes.

Ser que o povo de agora

perdeu os seus coraes?

V correndo, minha Musa

pedir ao homem to duro,

que das riquezas abusa,

que reparta seu futuro!

Poder haver perdo,

dizei-me vs, Senhor Deus,

para a megera nao

que assim trata os filhos seus?

E a Musa conclama alto,

com resqucios de esperana:

Brasil, no jogues no asfalto

A alma de uma criana!

RESUMO

Esta dissertao insere-se na rea de Literatura Comparada e tem por objetivo fazer

um estudo comparativo das obras Capites da Areia, de Jorge Amado e Esteiros de Soeiro

Pereira Gomes. Ambas relatam problemas e situaes de crianas e jovens abandonados e

marginalizados, assim como a explorao do trabalho infantil. Partindo do estudo dessas

obras, fizemos uma anlise comparativa entre elas e desenvolvemos um trabalho sobre a

prtica pedaggica em sala de aula, com alunos do ensino fundamental e mdio, mostrando

que possvel trabalhar obras literrias despertando o interesse dos alunos pela leitura. Para

realizar esta pesquisa, pautamo-nos pelas produes acadmicas de Vnia Maria Resende,

Edvaldo Brgamo, Marcos Garcia Neira, lvaro Pina, Paula Pogr, dentre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Capites da Areia. Esteiros. Jorge Amado. Soeiro Pereira Gomes.

Infncia. Adolescncia. Literatura Comparada. Educao.

ABSTRACT

This paper belongs to the field of Comparative Literature and its main objective is to

put side by side the novels Capites da Areia , by Jorge Amado and Esteiros, by Soeiro

Pereira Gomes. Both describe problems and situations experienced by abandoned and

marginalized children and youth, as well as exploitation of child labor. From the study of

these works, we have done a comparative analysis between them and developed a study about

classroom education with elementary and middle school students, demonstrating that it is

possible to make use of literary works arousing the students interest to the reading. To do this

research, we were guided by the academic studies by Vnia Maria Resende, Edvaldo

Brgamo, Marcos Garcia Neira, lvaro Pina, Paula Pogr, among others.

KEYWORDS: Capites da Areia. Esteiros. Jorge Amado. Soeiro Pereira Gomes. Childhood.

Adolescence. Comparative Literature. Education.

LISTA DE ILUSTRAES

Figura 1 Soeiro Pereira Gomes .............................................................................................. 16

Figura 2 Jorge Amado ........................................................................................................... 28

Figura 3 As funes da ilustrao ......................................................................................... 76

Figura 4 Esteiros, Outono ...................................................................................................... 77

Figura 5 Esteiros, trabalho infantil nas olarias ...................................................................... 78

Figura 6 Esteiros, jovens lamentam mau tempo.................................................................... 80

Figura 7 Esteiros, Inverno ..................................................................................................... 81

Figura 8 Capa de Capites da Areia ...................................................................................... 83

Figura 9 Capa II de Capites da Areia .................................................................................. 83

Figura 10 Capa III de Capites da Areia ............................................................................... 83

Figura 11 Capa IV de Capites da Areia .............................................................................. 83

Figura 12 Caricatura dos Capites da Areia ......................................................................... 84

Figura 13 Capites da Areia, ilust. 57 edio do romance .................................................. 85

Figura 14 Capites da Areia, ilust. II, 57 edio do romance .............................................. 86

Figura 15 Capites da Areia, ilust. III, 57 edio do romance ............................................ 88

Figura 16 Capites da Areia, ilust. IV, 57 edio do romance ............................................ 89

Figura 17 Capites da Areia, ilust. V, 57 edio do romance.............................................. 90

Figura 18 Capites da Areia, ilust. VI, 57 edio do romance ............................................ 91

SUMRIO

INTRODUO ........................................................................................................................ 11

CAPTULO 1: OS AUTORES E SUAS PRODUES ARTSTICAS ................................. 17

1.1. Joaquim Soeiro Pereira Gomes: o realista militante e socialista ........................................ 17

1.2. Explorao do trabalho infantil em Esteiros ................................................................... 21

1.3. Jorge Amado: escritor de carter crtico e investigativo ................................................... 29

1.4. Os Adolescentes em Capites da Areia .......................................................................... 34

CAPTULO 2: INFNCIA, ADOLESCNCIA E MARGINALIZAO ............................ 39

2.1. Meninos transformados em homens em Esteiros .............................................................. 42

2.2. A adolescncia e a marginalidade em Capites da areia .................................................. 62

2.3. O papel da ilustrao nos romances ............................................................................... 75

2.4. Uma leitura comparativa entre os romances Esteiros e Capites da Areia ......................... 94

CAPTULO 3: O ENFOQUE PEDAGGICO A PARTIR DOS DESEMPENHOS DA

COMPREENSO NO CONTEXTO DOS ROMANCES ESTEIROS

E CAPITES DA AREIA ...................................................................................................... 102

3.1. A funo social da escola ............................................................................................ 102

3.2. O papel do professor como mediador no processo ensino-aprendizagem ............................ 106

3.3. O ensino para a compreenso em sala de aula ................................................................... 108

3.4. O trabalho pedaggico a partir dos desempenhos da compreenso

conversando sobre a prtica ................................................................................................. 111

CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 117

REFERNCIAS ..................................................................................................................... 120

ANEXOS ................................................................................................................................ 124

11

INTRODUO

H um menino

H um moleque

Morando sempre no meu corao

Toda vez que o adulto balana

Ele vem pra me dar a mo

H um passado no meu presente

Um sol bem quente l no meu quintal

Toda vez que a bruxa me assombra

O menino me d a mo.

Milton Nascimento Fernando Brant.

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A representao da infncia e da adolescncia o foco deste trabalho e, por meio dele,

procuramos evidenciar o papel das crianas e dos adolescentes em terreno ficcional. Embora

estejamos cientes de que os dois romances, que constituem o corpus desta dissertao,

Esteiros e Capites da areia, sejam obras destinadas a um pblico adulto, tecemos algumas

consideraes sobre a literatura infantil, as quais buscam enfatizar a criana e o adolescente

como protagonistas e, portanto, como representaes da infncia e da adolescncia no

universo ficcional.

Na busca por uma literatura adequada para a infncia e juventude, os escritores

adaptaram obras consideradas como clssicas e, do folclore, apropriaram-se dos contos de

fadas, transformando-os em histrias para crianas. Em cada pas, alm dessa literatura

tornada universal, vo aos poucos surgindo propostas diferentes de obras literrias infantis.

Entre os autores mais importantes, podemos citar: Andersen, Carlos Collodi, Amicis, Lewis

Carroll, J. M. Barrie, Mark Twain, Charles Dickens, Ferenc Molnar (CUNHA, 1990, p.23).

No Brasil, a literatura infantil teve incio com obras pedaggicas e sobretudo adap-

tadas de produes portuguesas, demonstrando a dependncia tpica das colnias,

representada em especial por Carlos Jansen (Contos seletos das mil e uma noites, Robinson

Cruso, As viagens de Gulliver a terras desconhecidas), Figueiredo Pimentel (Contos da

carochinha), Coelho Neto e Olavo Bilac (Contos ptrios) e Tales de Andrade (Saudade)

(CUNHA, 1990, p.24).

A literatura infantil brasileira mais contempornea reata pontas com a tradio

lobatiana. Por exemplo, pela inverso a que submete os contedos mais tpicos da literatura

infantil. Essa tendncia contestadora manifesta-se com clareza na fico moderna, abordando

uma temtica urbana, focalizando o Brasil atual, seus impasses e crises e problemas da

sociedade contempornea (ZILBERMAN, 1991, p.125).

As autoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman em Literatura Infantil Brasileira (1991,

p.126) tecem algumas consideraes sobre a literatura infantil brasileira contempornea nos

seguintes termos:

A crtica mais radical da sociedade brasileira contempornea, tematizada

principalmente atravs da misria e do sofrimento infantil, vai desde ento se

encorpando progressivamente. E se exprime numa representao realista do

contexto social, a partir de 1977, com Pivete, de Henry Correia de Arajo,

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muito embora antes e depois dessa obra vrios livros aludam sobre a

marginalizao e pobreza: A transa amaznica (1973), de Odette de Barros

Mott, Lando das ruas (1975), de Carlos de Marigny; A casa da madrinha

(1978), de Lygia Bojunga Nunes; Coisas de menino (1979), de Eliane

Ganem; Os meninos da rua da Praia (1979), de Srgio Caparelli.

Todas essas observaes sobre a linha social da narrativa infantil brasileira tiveram

importantes desdobramentos nos quais o leitor percebe a perda da identidade infantil, ora por

problemas familiares, ora por crises do mundo social que as rodeavam.

A presena da criana na literatura brasileira tem se revelado um tema bastante

fecundo e aparece em diversos contos, romances e poesias, nos quais se explora o universo

infantil com suas emoes, sofrimentos e fantasias. Embora Anderson Lus Nunes da Mata

(2006, p. 23), afirme que os estudos acerca da representao da infncia na literatura so

escassos, ainda que sua presena seja de grande relevncia para a compreenso da estrutura

das narrativas em que ela figura, h uma srie de artigos, dissertaes e teses que se

propuseram a estudar a presena de crianas e adolescentes no territrio da fico. 1

No Brasil, considera-se que a primeira obra a se dedicar temtica da infncia e a

colocar uma criana como protagonista foi O Ateneu (1888), de Raul Pompia (1863-1895)

1 A seguir, enumeramos alguns textos que se debruaram sobre o tema do qual nos ocupamos nesta dissertao,

apenas como uma amostra de que tal assunto vem despertando a ateno de inmeros estudiosos. GOUVA,

Maria Cristina. A construo infantil na literatura brasileira. Revista Teias, v. 1, n. 2, p. 1-13, 2000. XAVIER,

Nubia. Menino de engenho e Infncia, representao histrica da criana. I Encontro do Grupo de Estudos

Interdisciplinares de Literatura e Teoria Literria. MEBIUS. www.ufvjm.edu.br Acesso em 17/09/2012.

GARCIA, rica de Lima Melo. Graciliano Ramos e a experincia da infncia. www.ufsj.edu.br Acesso em

17/09/2012. RAMOS, Flvia Brochetto. A representao da infncia na narrativa infantil brasileira. Signos, ano

22, p. 85-95, 2001. BARRETO, Cntia Ceclia. A representao da infncia em Lya Luft. Dissertao (Mestrado

em Letras Vernculas), Faculdade de Letras, UFRJ, Rio de Janeiro, 2006. SIQUEIRA, Luciane Ramos. A

infncia e suas representaes em Quarto de menina, carto postal e a Palavra que veio do sul, de Livia

Garca-Roza. Dissertao (Mestrado em Letras Vernculas), Faculdade de Letras, UFRJ, Rio de Janeiro, 2007.

RESENDE, Viviane de Melo. A representao da infncia em situao de rua na literatura de cordel brasileira.

Discurso & Sociedad, vol. 1(2), p. 295-316, 2007. COUTINHO, Fernanda. Representaes da infncia na

literatura, 2011. www.edicoesmakunaima.com Acesso em 17/09/2012. COUTINHO, Fernanda. Representao

da infncia na obra machadiana: O menino pai do homem? Machado de Assis em linha, ano 4, n. 8, p. 67-81,

dez. 2011. KATAOKA, Ayla Maria Digenes. O mundo de Flora: a infncia atravs do olhar arguto de uma

menina. Dissertao (Mestrado em Literatura), Universidade Federal do Cear, Fortaleza, 2009. AMBIRES,

Juarez Donizete. Imagens da infncia e da adolescncia em Otto Lara Resende. Tese (Doutorado em Letras

Clssicas e Vernculas), Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo,

FFLCH-USP, 2007. RESENDE, Vnia Maria. O menino na literatura brasileira. So Paulo: Perspectiva, 1998.

http://www.ufvjm.edu.br/http://www.ufsj.edu.br/http://www.edicoesmakunaima.com/

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(MATA, 2006, p. 10). Em seguida, h alguns romances em que a criana ocupa uma parte do

enredo como em A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882),

Memrias de um sargento de milcias (1852), de Manuel Antonio de Almeida (1831-1861),

Memrias pstumas de Brs Cubas (1881), de Machado de Assis (1839-1908).

Verifica-se, portanto, que a criana sempre esteve presente nas obras de nossos

escritores e, conforme assegura Anderson Lus Nunes da Mata (2006, p. 13),

[...] A literatura brasileira dispensa significativa ateno para a temtica da

infncia, sem jamais tratar o infante como um homem ou uma mulher em si.

Ele corpo ou alma puros, que so violados pelo mundo para, quase sempre,

resultarem num adulto. A infncia construda a partir dos entalhes feitos

sobre a pedra bruta. Como artfices da escultura, os escritores acabam tendo

como modelo, ao retratar a criana, o adulto que ele ser ou o adulto que ele

no , com quem ele contracena. [...]

[...] [h] um desencontro entre as expectativas das crianas e aquelas que os

adultos depositam nelas. Essa infncia como tempo de prazeres, e tambm

de inocncia, cercada de adultos vigilantes e repressores, tambm a que

narra Graciliano Ramos no seu Infncia e Jos Lins do rego, no Menino de

engenho. Por outro lado, j na dcada de 1960, as crianas de J. J. Veiga, em

Cavalinhos de Platiplanto e Sombras de reis barbudos, so vtimas da

opresso de um poder autoritrio, mas principalmente no caso da primeira

narrativa possvel escapar por meio da fantasia.

possvel constatar, segundo as consideraes de Anderson Lus Nunes da Mata, que

a temtica da infncia perpassa a historiografia literria brasileira, desde o Romantismo at a

contemporaneidade, com livros como Meu p de laranja lima (1968), de Jos Mauro de

Vasconcellos (1920-1984), Pixote: infncia dos mortos (1977), de Jos Louzeiro (1932 -),

Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins (1958 -), Chove sobre minha infncia (2000), de

Miguel Sanches Neto (1965 -), Lembrancinha do adeus: histria [s] de um bandido (2004), de

Jlio Ludemir (1970 -), O caderno rosa de Lori Lamby (1990), de Hilda Hilst (1930-2004), O

azul do filho morto (2000), de Marcelo Mirisola (1966 -), Dois irmos (2000), de Milton

Hatoum (1952 -), Manual prtico do dio (2003), de Ferrz, pseudnimo de Reginaldo

Ferreira da Silva (1975 -).

Em tais obras, nota-se que a preocupao central dos escritores foi retratar os

problemas e os dilemas das crianas e dos adolescentes vivenciados nas grandes cidades.

Desse modo, levando em conta o papel das crianas e adolescentes na literatura, dedicamo-

nos a desenvolver uma pesquisa que aborda a representao do mundo infanto-juvenil em

duas narrativas contemporneas.

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Assim, o objetivo deste trabalho fazer um estudo comparativo entre duas obras que

englobam a realidade e a fico em relao infncia e adolescncia marginalizada,

fenmeno que est sempre na mdia e no cotidiano da sociedade. Tem tambm a inteno de

criar oportunidades para que alunos do ensino fundamental (9 ano) e alunos do ensino mdio

(2 e 3 anos) discutam sobre um assunto que est muito presente na mdia e no cotidiano da

sociedade, que a marginalidade que atinge jovens e crianas.

Para que os alunos pudessem desenvolver as atividades propostas, baseamo-nos na

prtica de ensino no marco terico do Ensino para a Compreenso, processo defendido por

pesquisadores estrangeiros aplicados realidade brasileira como Martha Stone Wiske,

professora e pesquisadora da Harvard Graduate School of Education, e Paula Pogr,

professora e pesquisadora da Argentina.

Com relao s obras estudadas, a primeira se refere a Capites da Areia, de Jorge

Amado, escritor brasileiro que, na dcada de 30, precisamente em 1937, retratou o abandono e

a marginalidade em que viviam crianas e adolescentes na cidade de Salvador, estado da

Bahia, Brasil.

A segunda obra trata da narrativa de Soeiro Pereira Gomes, escritor portugus,

intitulada Esteiros, escrita em 1941, que expe a vida sofrida e miservel de crianas e

adolescentes da vila de Alhandra em Portugal, que desde cedo abandonavam a escola para

trabalharem em uma fbrica de tijolos.

Esta dissertao divide-se em trs captulos. No primeiro captulo, procuramos traar

um panorama dos autores e suas produes ficcionais. Apontamos fatos relevantes sobre a

vida e obras de Soeiro Pereira Gomes, o realista militante e socialista, que lutou muito pela

democracia portuguesa e contra o regime fascista da poca. Em suas obras, ele recriou a vida

sofrida do povo portugus, em especial do povoado de Alhandra e, em Esteiros, narrou a

infncia sofrida das crianas e a explorao do trabalho infantil. Posteriormente, enfocamos a

vida e a obra de Jorge Amado, que relatou o problema da infncia abandonada e a

marginalidade dos meninos, assim como o descaso da sociedade e autoridades em relao a

eles na obra Capites da Areia.

Ainda nesse primeiro captulo, enunciamos a histria das obras estudadas. Em

Esteiros, o foco a explorao do trabalho infantil, a pobreza que levou marginalidade e,

em Capites da Areia, buscamos dar uma viso global dos problemas da infncia e

adolescncia abandonada e marginalizada.

16

J no segundo captulo, Infncia, adolescncia e marginalizao, tratamos da

adolescncia e da marginalidade em Capites da Areia e, em Esteiros, dos meninos

transformados em homens. Fizemos uma leitura comparada entre os romances e apresentamos

uma anlise das ilustraes das duas obras.

No terceiro captulo, intitulado O enfoque pedaggico a partir dos desempenhos da

compreenso no contexto dos romances Esteiros e Capites da Areia, enfocamos nosso

trabalho em sala de aula. Neste captulo, procuramos contextualizar o papel social da escola

na formao dos alunos; o papel do professor como mediador no processo ensino

aprendizagem; o ensino para a compreenso em sala de aula e o trabalho pedaggico a partir

dos desempenhos da compreenso - conversando sobre a prtica e as experincias vivenciadas

no dia-a-dia dos alunos e tambm em sala de aula. Retratamos, neste captulo, o

desenvolvimento do Projeto Grito de Alerta que tem como base as obras Capites de Areia

e Esteiros.

Ao final desta pesquisa, foi possvel constatar que, quando o professor trabalha de

forma diferenciada, os alunos se envolvem e se interessam pelas atividades propostas.

Tambm quando se pretende trabalhar a literatura em sala de aula, o professor deve escolher

temas atuais e pertinentes faixa etria dos alunos. Desta forma, o seu interesse despertado,

e a motivao que os leva aprendizagem.

Na parte final do trabalho, anexamos algumas fotos dos alunos desenvolvendo

atividades sobre o tema desta dissertao, durante a realizao do Projeto Grito de Alerta.

A seguir, iniciamos nossa dissertao com a contextualizao dos autores das obras

escolhidas, caracterizando brevemente os perodos literrios nos quais as suas obras se

inscrevem: Neorrealismo, no caso de Soeiro Pereira Gomes e Modernismo, em relao a

Jorge Amado.

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CAPTULO 1: OS AUTORES E SUAS PRODUES ARTSTICAS

1.1. JOAQUIM SOEIRO PEREIRA GOMES: O REALISTA MILITANTE E SOCIALISTA

Figura 1 Soeiro Pereira Gomes

Fonte:http://www.livroseleituras.com/web/index.php?op

tion=com_content&view=article&id=288:100-anos-de-

soeiro-pereira-gomes-em-vila-franca-de-

xira&catid=1:noticias-recentes&Itemid=37

A ecloso do movimento neorrealista esteve associada resistncia antifacista ao final

da dcada de 1930. Formou-se uma nova tendncia literria contra o descompromisso do

movimento anterior, o Presencismo, e defendia uma literatura engajada, voltada para os

problemas concretos do pas. A literatura deveria contribuir para a conscientizao do

pblico-leitor e para caracterizar os problemas da estrutura poltica, econmica e social da

sociedade portuguesa. O Neorrealismo iniciou-se entre estudantes, artistas e jornalistas que

colaboravam em pequenas revistas e jornais: O Diabo (1934-1940), Sol Nascente (1937-

1940) e, a partir de 1945, a revista Vrtice. A coletnea Novo Cancioneiro divulgou alguns

dos escritores mais representativos do movimento (ABDALA JUNIOR e PASCHOALIN,

18

1990, 157-158). Todos eles tinham o comprometimento com a transformao humana do

mundo e a permanente articulao entre o individual e o coletivo.

O Neorrealismo colocou-se como um movimento aberto para o futuro, incorporando

tcnicas inovadoras que abordavam a realidade e denunciavam a alienao e investigando

suas causas. O escritor Antnio Alves Redol (1911-1969) foi o principal escritor militante

dessa corrente literria. Escreveu o primeiro romance neorrealista portugus (Gaibus, 1939),

teve participao ativa em movimentos operrios, e assim como Soeiro Pereira Gomes,

denunciou as mazelas de uma realidade histrica perversa.2

O escritor Joaquim Soeiro Pereira Gomes foi defensor e dirigente das lutas operrias,

foi militante comunista, desenvolvendo grandes trabalhos sociais em defesa do operariado

contra e represso do regime salazarista.

Soeiro Pereira Gomes, como era conhecido, nasceu em 14 de abril de 1909 em

Gesta, Portugal. Filho de agricultores viveu em Espinho dos seis aos dez anos de idade. Na

adolescncia, fez curso de regente agrcola e, aps finalizar seus estudos, trabalhou em

Angola por um ano.

Ao regressar a Portugal, foi para Alhandra, onde vivia seu sogro. Trabalhou como

empregado administrativo na Fbrica de Cimento Tejo, na qual comeou a desenvolver um

trabalho de dinamizao cultural entre os operrios. Lutou muito pela democracia portuguesa.

No entanto, foi seu trabalho como escritor que o tornou conhecido, sendo um grande

nome do realismo socialista em Portugal. Com apenas 20 anos, em 1939, comeou a publicar

seus textos no jornal O Diabo, denunciando as desigualdades e injustias, sempre fazendo

crticas ao regime opressor. Nunca separou literatura da militncia e de seus ideais, tinha

grande firmeza ideolgica e um estilo apurado e lrico.

Entre seus trabalhos, publica em 1941, Esteiros, considerada sua obra-prima, e a

dedica aos filhos dos homens que nunca foram meninos. Sua primeira edio foi ilustrada

por lvaro Cunhal, seu amigo e tambm militante comunista. um romance de profunda

denncia da injustia e da misria social, que conta a histria de um grupo de crianas que,

desde cedo, abandonava a escola para trabalhar numa fbrica de tijolos.

2 As informaes citadas nos primeiro e segundo pargrafos sobre o Neorrealismo foram retiradas da obra

Histria Social da Literatura Portuguesa ( ABDALA JUNIOR e PASCHOALIN, 1990, p. 157-160).

19

Esteiros uma histria de sobrevivncia, vivida por personagens, todos garotos

miserveis, forados pela fome e pelo sustento familiar, a se dedicarem ao trabalho numa

fbrica de tijolos.

Soeiro demonstra, no romance, um profundo sentimento de amor e ternura pelas

crianas e adolescentes, transmitindo sua indignao pela explorao e misria das quais so

vtimas. So seres humanos desprotegidos e sem ideais, dominados por um regime fascista,

que se utiliza do poder para oprimir os menos favorecidos. Em vrios momentos, h uma

contraposio entre ricos e pobres, entre a expresso do sofrimento e a permanente vontade de

sonhar. Tambm h a contraposio e o antagonismo da natureza sociedade, do campo

cidade e a conscincia da necessidade de superao.

Soeiro soube compreender seus personagens e soube am-los e [...] escreveu

amorosamente Esteiros, conforme o comentrio de um primo do escritor, Rodrigo Tavares

Urbano, publicado no Jornal O Militante n 244, p. 2, de Janeiro de 2000.3

Devido condio de militante comunista, Soeiro passa clandestinidade em 1945,

lutando e denunciando a represso do regime de Antnio de Oliveira Salazar (1889-1970),

continuando a desenvolver seu trabalho at adoecer com tuberculose, agravada pelas

dificuldades do seu isolamento, que o impedia de receber o tratamento mdico de que

necessitava. Faleceu em 5 de dezembro de 1949 e foi sepultado em Espinho, onde viveu

durante sua infncia. Em sua sepultura consta o seguinte epitfio: A tua luta foi ddiva total.

Em sua homenagem, a rua e a sede nacional do Partido Comunista Portugus, em

Lisboa, onde se situa, tem o seu nome.

Soeiro escreveu as seguintes obras: Contos e Crnicas; O Capataz (1935); As

Crianas da minha rua (1939); O meu vizinho do lado (1939); Companheiros de um dia

(1940); O Pstiure (1940); Pesadelo (1940); Esteiros (1941); Algum (1942); Um Conto

(1942); Breve histria de um sbio (1943); O Pio dos Mochos (1945); Praa de Jorna,

Documentos polticos (1946); Contos Vermelhos: Refgio perdido (1948); Mais um heri

(1949); Um caso sem importncia (1950); Engrenagem (1951); Estrada do meu destino;

ltima carta.

3 Os dados acima citados foram retirados do site Jornal da Avante: lembrar Soeiro Pereira Gomes 50 anos depois (http:www.pcp.pt avante1359 5903h1.html).

20

Todas as obras do autor tm caractersticas neorrealistas, que partem da nova viso do

indivduo com a temtica ligada s classes oprimidas, particularmente, o operariado. O autor

defendeu, junto com os escritores dos anos 30 a meados dos anos 50, uma arte comprometida

e voltada para os problemas concretos do seu pas, investindo predominantemente no gnero

narrativo, procurando a conscientizao do leitor para a realidade, e a misria social, atravs

de uma literatura engajada, ativa e antifascista, buscando ainda denunciar as injustias sociais,

na luta pela transformao social, privilegiando o contedo e a funo social da arte.

Soeiro relata em Esteiros a realidade do povo partindo de suas experincias, da terra

onde vive, das causas da sua misria e abandono. Ele consegue escrever com grande lirismo e

carinho, aproximando o leitor dos personagens, fazendo com que ele possa encantar-se com a

histria de cada um.

Os fatos so narrados partindo do ponto de vista dos garotos dos telhais e dos adultos

desprotegidos, da experincia coletiva, mostrando as circunstncias em que vivem, trabalham,

passam fome, sonham e morrem. A fora da natureza e sua influncia sobre os personagens

tambm so apresentadas liricamente, atravs das estaes do ano que marcam a necessidade

de superao, ou seja, os pequenos operrios dependiam do bom tempo para realizarem os

trabalhos na fbrica. Durante o outono e inverno, com a escurido e o frio no h trabalho, e

sim tristeza e dificuldades. J o azul da primavera e o vero remetem alegria, possibilidade

de trabalho e conquistas,4 como se poder comprovar nas anlises efetuadas mais adiante.

Nota-se, nas produes de Soeiro Pereira Gomes, o seu engajamento e o tratamento

potico de questes que fazem parte da realidade social portuguesa, fato que muito marcante

no romance Esteiros, conforme ser tratado na anlise da referida obra, no captulo dois.

4 As informaes mencionadas nesta parte do trabalho baseiam-se no livro de lvaro Pina, Soeiro Pereira Gomes e o futuro do Realismo em Portugal (1977), p. 51 - 65.

21

1.2. EXPLORAO DO TRABALHO INFANTIL EM ESTEIROS

Para os filhos dos homens que nunca

foram meninos escrevi este livro.

Soeiro Pereira Gomes

Esteiros definido pelo autor como minsculos canais, como dedos de mo

espalmada, abertos na margem do Tejo. o local de trabalho dos meninos, que so

protagonistas do romance.

Gaitinhas, Malesso, Gineto, Sagui, Coca, Maquineta, Guedelhas e outros garotos

maltrapilhos trabalhavam como operrios da indstria Telhal Grande, fazendo blocos de

cimento e tijolos, cujo dono era o Sr. Castro, homem rico que explorava os meninos, fazendo-

os trabalharem em fornos como adultos e com um msero salrio.

Estes garotos tinham entre dez a quinze anos, moravam no fim da vila de Alhandra

beira dos esteiros. Tinham uma vida dura e miservel, passavam fome, frio, privados de

muitas necessidades bsicas. Abandonavam a escola desde cedo para ajudarem no sustento da

famlia.

O trabalho nos esteiros era rduo e pesado pela idade e fora fsica dos meninos.

Quando o outono e o inverno chegavam e com eles a chuva, o frio, o nevoeiro e a fome, os

meninos se desesperavam, pois faltava trabalho nos telhais: Fecharam os telhais. Com os

prenncios de outono, as primeiras chuvas encheram de frmitos o lodaal negro dos esteiros,

e o vento agreste abriu buracos nos trapos dos garotos, num arrepio de guas e de corpos

(GOMES, 1987, p. 13). Esta e a prxima citao ilustram o quo rduo era enfrentar as

intempries climticas, assim como era prazeroso receber o salrio.

Quando recebiam o pagamento comemoravam: [...] receberam a fria com gritos de

contentamento. Ali se guardava o suor de um Vero de fadigas. Vento e sol; fadigas e suor -

era o que os telhais queriam (GOMES, 1987, p.14).

Assim, temiam a falta de trabalho diante do mau tempo. Uns corriam para levar o

dinheiro famlia como era o caso de Gineto: O moo saiu cabisbaixo a contar a fria que os

irmos e o pai, desempregados h dois meses, esperavam. Os companheiros sabiam disso, e

no gracejavam (GOMES, 1987, p.15). Gineto compreendia, embora ainda menino, que no

22

podia gastar seu pagamento na feira junto com os amigos, pois o sustento de sua famlia

tambm dependia dele.

Na feira, compravam comida e tambm alguns objetos, cometiam pequenos furtos e

divertiam-se. Muitas vezes assaltavam barracas de bolos e comidas. A malta como era

conhecida, era famosa nos assaltos a pomares e terreiros de galinhas. Esses produtos furtados

ora eram levados para casa, ora eram vendidos.

Joo, o Gaitinhas, tinha esse apelido porque gostava de imitar os sons dos

instrumentos da banda musical; queria tornar-se msico ou doutor, porque era o que seu pai

planejava para seu futuro. Contudo, um dia, o pai fora procurar servio e nunca mais voltou.

Ele teve que abandonar os estudos e trabalhar para sustentar a casa, j que a me, Madalena,

ficou doente, perdeu o emprego de costureira em uma fbrica e gastava muito com remdios.

Maquineta tinha esse apelido desde a escola, pois talhava a canivete diversos

brinquedos e dizia que um dia trabalharia com mquinas. Seu divertimento era observar o

movimento das mquinas na fbrica grande e tecer comentrios de que um dia ele comandaria

vrios maquinrios e construiria muitos objetos e brinquedos.

Esses garotos adoravam a vila, conheciam as ruas da cidade, sentiam falta da escola e

traziam em si castelos de sonhos, como o caso de Gaitinhas: [...] depois que deixara a

escola, tudo mudou. O prncipe da histria, que ele personificava, fora a enterrar naquele dia

de comeo das aulas, amortalhado na nvoa que viera de longe, at vila (GOMES, 1987, p.

25). A vida do povo da vila de Alhandra resumia-se no trabalho dirio e no passeio Feira aos

domingos.

A feira, que era no fim da vila, rente estrada era composta por trs ruas ladeadas por

barradas de serapilheira e pano cru, num topo o circo, noutro a praa de toiros. Ruas

apinhadas de gente, barracas atochadas de bugigangas. E o povo a passear desejos... E os

feirantes a aguardar esperanas (GOMES, 1987, p. 26). Era a nica alegria dos moradores,

que aguardavam a ocasio com ansiedade.

Os garotos assediavam as moas, brincavam no parque, bebiam, arrumavam

confuses, roubavam comidas: Gineto ficou na Feira com o Sagui, a fazer horas para os

roubos, quando os feirantes cabeceassem de sono e fadiga (GOMES, 1987, p. 32).

Tambm tinham hbito de sair no Dia de Todos os Santos, quando os pobres pediam

esmolas: o po-por-Deus. Gineto, o mais ousado do grupo, chegou at a apanhar na rua

23

quando pedia, porque saa batendo de porta em porta, s vezes xingava alguns moradores que

lhe negavam esmolas e at discutia com outros garotos que arrecadavam mais alimentos.

Os meninos chegavam a ficar mais de um ms sem trabalho, desesperavam-se,

choravam, mas tinham esperanas: A voz do Gaitinhas era de lgrimas cristalizadas

(GOMES, 1987, p. 38), Sagui sorria s estrelas, suas amigas (GOMES, 1987, p. 38). Eles

viviam numa pobreza muito grande. A maioria das casas era feita de lata e madeira. O tempo

e as estaes do ano influenciavam na vida difcil que levavam: Madrugada de fim de

outono, frio e nevoento, a anunciar inverno farto de guas e de fome. [...] Noite escura

como vida de pobre. [...] O fogareiro de barro amornava o ambiente do cubculo e

derramava frouxos de luz no pavimento de terra batida (GOMES, 1987, p. 40).

Cada garoto tinha sua histria. Eram todos amigos e compartilhavam suas aventuras,

desventuras e sonhos. Quando passeavam na feira, aos finais de semana, tentavam a sorte nos

jogos de argola como Malesso que, aps ganhar garrafas de vinho, dividia-as com os amigos

assim como as bitucas de cigarro. Gineto ficava na barraca de tiro ao alvo para cortejar uma

moa chamada Rosete, que s queria tirar-lhe dinheiro. Ele era gil e, nos assaltos s barracas,

at uma gaita furtou para o amigo Gaitinhas.

O garoto Sagui era pequeno e comilo, roubava bolos na feira, repartia com os amigos

e levava o restante para casa. J Maquineta, passeava de um lugar para outro, admirando os

motores dos brinquedos do parque. Andavam em bando, divertiam-se no velho carrossel e s

partiam no final da feira ou quando a chuva caa junto com a fria madrugada. Muitos nem

dormiam, perambulavam pelas ruas, planejando furtos e assaltos a pomares, uma vez que no

teriam trabalho nos esteiros por algum tempo.

Gineto aguardava a madrugada para ajudar o pai nas embarcaes: Mas a noite estava

escura como a vida de pobre. Chuviscava (GOMES, 1987, p. 40). [...] a carcaa meio

submersa, abarrotada de trigo e fadigas (GOMES, 1987, p. 43). Mesmo contra sua vontade,

Gineto obedecia seu pai e o acompanhava, trabalhando duro, como um homem, no transporte

de trigo.

Entre dificuldades, alegrias e tristezas, os sonhos dos meninos eram muitos: No portal

espera do caldo, s o sonho matava a fome (GOMES, 1987, p. 55). O sonho de Maquineta

criara razes fundas, que a inverneira no abalava (GOMES, 1987, p. 57). Os meninos

lutavam juntos com suas famlias para sobreviverem, saam a procura de alimentos, ora

24

furtavam, ora pediam nas ruas, quando faltava-lhes o trabalho rduo dos esteiros, mas traziam

em seus coraes e mentes os sonhos de toda infncia.

Madalena, a me de Gaitinhas, adoeceu e sem dinheiro para comprar os remdios, seu

estado de sade se agravou. O menino tenta vender sua gaita, pede esmolas, passa fome e

acaba perdendo a me. Junto com ela, perde os sonhos de se tornar um doutor para ajudar as

pessoas da vila. Continuou sem rumo, dormindo ao relento, acompanhando o grupo. S a

esperana de reencontrar seu pai o tornava cada dia mais forte.

Foi um inverno muito doloroso: Mos esquecidas nos bolsos e ps roxos de frio, os

garotos cosiam-se com os portais espera do caldo ou do sol que pouco aquecia (GOMES,

1987, p. 53). Durante este perodo, os problemas aumentavam, pois as chuvas e o vento forte

dificultavam os trabalhos no campo, nas embarcaes e na fbrica. E, faltando trabalho, a

fome aumentava.

Toda a populao da Vila de Alhandra vivia desesperada, pois faltava trabalho,

comida e abrigo: Senhores das ruas abandonaram-nas no mpeto das guas e do vento,

vencidos em luta desigual (GOMES, 1987, p. 53). H trs anos lutavam contra as cheias e

temporais. Muitos pais de famlias partiram em busca de trabalho. Estavam apavorados com

as chuvas, perderam suas lavouras, a fbrica fechara suas portas: A fbrica estava coberta

pela enchente, mas [...] os fornos permaneciam de p, como fortaleza em meio do deserto. O

vento levara telhais e coberturas, a chuva destrura tijolos, as guas alagaram barreiros e

almajares (GOMES, 1987, p. 69). Os meninos viam a gua invadir os buracos de suas casas

por onde descia a enxurrada ladeira abaixo.

A chuva caa h semanas e os homens aguardavam uma estiagem para voltar ao

trabalho nas embarcaes: No cais, braos cados, os homens esperavam. O rio mar de

vagas e de anseios (GOMES, 1987, p. 62). No sabiam o que fazer, pois o frio e a fome os

perseguiam: As cheias cobriram de gua os olhos dos camponeses. Perdidas as margens, o

rio fez se mar mar de aflies (GOMES, 1987, p. 66).

O pai de Gineto, Manuel do Bote, levou o filho para ajudar nas embarcaes e com

eles partiram muitas famlias que iam para os campos procura de abrigo e trabalho. Logo

que partiram, foram surpreendidos por um temporal: [...] De sbito o barco desfez-se de

encontro com a terra, num baque surdo e entre destroos um brao tateava salvao

(GOMES, 1987, p. 79). Era seu Manuel do Bote que se afogava, e em meio a gritos

angustiantes, Gineto mergulhou e agarrou o corpo do pai. [...] E foi a salvao. Sobre o

25

valado, exaustos pai e filho formavam um corpo s. Quando viu que o pai recobrara os

sentidos ele dizia: Pai, meu paizinho! Ps-se a chorar. O corpo tremia de frio e desespero

(GOMES, 1987, p. 80).

Outras pessoas suplicavam que as salvassem, eram vozes de crianas e mulheres, eram

gritos e soluos: As guas subiam, subiam e o vento redobrava de violncia (GOMES, 1987,

p. 82). Gineto e Malesso desesperavam-se porque: A gua comeou por lhes lamber os ps,

lenta, friamente; depois, ferrou-lhes nas pernas (GOMES, 1987, p. 83). No meio do temporal,

ouviram um estrondo medonho e o barco partiu ao meio arrastando as pessoas, objetos e as

esperanas. Alguns conseguiram nadar at um velho barraco. Gineto e Malesso arriscaram-se

na tentativa de ajudar as pessoas.

Na Vila, os companheiros Sagui, Maquineta, Guedelhas e Gaitinhas apavorados,

choravam pelos amigos, quando ficaram sabendo que eles corriam risco de morte. Gineto e o

pai foram achados semimortos: E foi como se, entre ciprestes, dois corpos ressuscitassem

(GOMES, 1987, p. 91). Aps sair do hospital, Gineto fica sabendo que Malesso morreu

naquela noite horrvel. Depois da tragdia, ficaram apenas os fantasmas e a dor da perda do

amigo. A tragdia das chuvas trouxe para a Vila mais fome e desespero. Aos poucos os

moradores buscavam foras para sobreviverem.

Os garotos, liderados por Gineto, armavam furtos nos pomares e nos laranjais do Sr.

Castro, homem rico e mesquinho que era dono de muitas propriedades da cidade. Toda

madrugada agiam cautelosamente: A gente h de roubar ao Castro as laranjas todas

(GOMES, 1987, p. 96). Eles sabiam que s no vero teriam trabalho, ento, roubavam para

vender e para levarem para casa. Coca e alguns outros tambm pechinchavam nas portas,

inventando histrias para comoverem os moradores.

Com a chegada da primavera, uma nova esperana brotava: Os galhos das rvores

que o temporal quebrou, querem reviver. E os homens tambm (GOMES, 1987, p. 103).

Embora os meninos trouxessem em suas mentes os fantasmas das cheias, em seus coraes a

dor da perda dos entes queridos e em seus olhos a angstia das noites de inverno, tinham o

vigor da infncia e da adolescncia que no os deixava desistir de lutar e de sonhar.

Juntos Gineto, Gaitinhas, Sagui, Guedelhas e Coca viveram muitas aventuras,

fumavam, bebiam cachaa e vinho roubado, envolveram-se com uma mulher, que chamavam

de Doida, porque corria atrs dos garotos da rua, com ataques, pedradas e gritos; mas ela

passou a se entregar a eles nas runas de uma capela: [...] todos os componentes da quadrilha

26

gastavam os lucros do negcio em prendas para a Doida. Passaram a encontrar-se com ela,

proteg-la e desej-la como mulher: A Doida estancava a seiva que lhes borbulhava no

sangue [...] (GOMES, 1987, p. 11). At que ela desaparece sem deixar rastro.

Tiveram dias venturosos: Os rapazes aspiravam o ar, mais puro e clido, como se

nova vida surgisse com a Primavera. Havia laranjas para vender e promessas de outros frutos

nas rvores do vale (GOMES, 1987, p. 114). Contudo, com o passar dos dias, a quadrilha

voltou vida incerta das ruas tristes, sem luz.

Maquineta conseguira um trabalho na fbrica grande: Arranjei trabalho! Vou pras

mquinas! O rosto fuinha inundou-se de um riso aberto de prazer e orgulho (GOMES, 1987,

p. 115). Mas com o passar do tempo, no encontrava mais os amigos, pois trabalhava oito

horas dirias, [...] humilhado e vencido, sentindo-se sozinho no meio daquela gente [...]

deixou que as lgrimas fizessem sulco longo nas faces mascarradas (GOMES, 1987, p. 120).

Gaitinhas perde sua me, Madalena, que no resistiu a uma tuberculose, pede esmolas

para conseguir enterr-la. Fica aos cuidadosos de uma senhora, mas logo vai morar com Sagui

nas runas da capela.

Chega o vero, os moradores lutam para reconstruir a Vila, suas casas e retomar aos

seus trabalhos. Os garotos voltaram ao trabalho na fbrica do Sr. Castro, e desde o dia em que

foram contratados, comearam a ser maltratados pelo mestre do telhal. L trabalhavam

levando safanes, insultos, ouvindo palavres. O servio era pesado: [...] fincou as portas do

feixe nas costas do Gaitinhas, rasgando-lhe a camisa. Os ps em sangue quebrantavam-lhe o

nimo [...]. Com os olhos turvados em lgrimas [...] que juntavam-se ao suor que escorria

pelas faces plidas de alguns (GOMES, 1987, p. 145). Eles trabalhavam arduamente nos

esteiros carregando tijolos, cravando enxadas na lama e manuseando o carro de mo com

pesadas cargas.

O mestre no tinha piedade, surrava os meninos, exigia-lhes fora, dava-lhes pontaps.

Nem gua podiam tomar durante o trabalho: Posso ir beber gua, mestre? e a resposta

era Beba mijo! Daqui ningum sai, antes da hora (GOMES, 1987, p. 146). Algumas

noites, depois do rduo trabalho, iam para a Taberna Desportiva que ficava num beco em que

ningum passava e l fingiam que eram homens, pois bebiam, fumavam, jogavam, discutiam

futebol, soltavam palavres e ouviam histrias de pescadores.

Muitas noites ou de madrugada, eram chamados em suas moradias pelo chefe dos

Telhais para protegerem os tijolos da chuva. Um certo dia, receberam surpresos a notcia de

27

que o senhor Castro vendera os Telhais para a Fbrica Grande. Os garotos comemoraram com

a esperana de trabalharem l. A alegria foi maior tardinha, quando o trabalho terminou:

Vamos s uvas, rapaziada fixe! bradou um. [...] Como bando de pardais, a malta assaltou o

vale [...] (GOMES, 1987, p. 166). Aps o cansativo trabalho nos esteiros, tiveram a notcia

da venda dos telhais e ficaram esperanosos com a possibilidade de serem contratados na

Fbrica Grande e no ficarem mais sem servio durante o inverno. E assim foram comemorar

na plantao de uvas do senhor Castro, mesmo sabendo que esta era vigiada por capangas.

Assim viviam como se fossem os donos do mundo, entre o rduo trabalho, diverses

noturnas, assaltos aos pomares, fugas e perseguies dos caseiros.

No entanto, aps a venda do telhal, sucedeu-lhes o desnimo. Os meninos

trabalhavam de sol a sol com ps descalos e queimados no meio dos fornos, sem chapus

para cobrirem as orelhas j avermelhadas pelas queimaduras dos tijolos, os lbios secos,

feridas pelo corpo todo e pernas bambas. Entre suores e lgrimas de dores nos rostos infantis,

via-se muita tristeza, revolta, sede, fome e desespero escondidos nos coraes frgeis e

desprotegidos. s vezes atravessavam os esteiros com lodo pelos joelhos, na madrugada, para

roubarem carvo e venderem na Feira.

Um certo dia, ms de setembro, o sol ainda brilhava nos ltimos dias de vero e o

vento era forte, os meninos ouviram a notcia de que o telhal pegara fogo e ningum soube

como fora aquilo. [...] Vieram os bombeiros e a malta em alvoroo, mas de nada serviu tirar

gua da charca. Ento o chefe Z Vicente chorou como criana. E os moos do telhal,

crianas tambm, enterneceram-se (GOMES, 1987, p. 173). Durante semanas, eles rondaram

os portes da fbrica, mas ningum os chamou: [...] apesar das tremuras de voz com que

suplicaram (GOMES, 1987, p. 174). Os garotos desejavam imensamente trabalhar na fbrica

grande, mas aps o incndio as portas permaneciam fechadas, ningum tinha notcia do que

ocorreu. E assim como o chefe, os garotos estavam desesperados pela destruio dos telhais.

Gineto preso num dos assaltos Fabrica Grande: [...] Ele tem planos maravilhosos

para a quadrilha[...] mas os amigos no vm, e a me, com as suas lgrimas, no consegue

anular o depoimento dos guardas, dos caseiros e do Cabo do Mar, que tem uma cicatriz

indelegvel no brao, feita pelo canivete de Gineto... (GOMES, 1987, p. 175).

E assim rolam dias iguais a todos os dias, chega o Outono e Gineto mantm a mesma

f de quando entrou na priso: [...] anima-se crente de que os companheiros viro busc-lo,

encosta a face s grades, espera o regresso vida livre. Mas Gaitinhas-cantor vai com Sagui

28

correr os caminhos do mundo, procura do pai. E quando o encontrar vir ento dar liberdade

ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos telhais-moos que parecem homens e

nunca foram meninos (GOMES, 1987, p. 175).

A histria dos meninos miserveis dos esteiros termina sem um final feliz, pois suas

vidas no tiveram mudanas nem transformaes, apenas os sonhos infantis permaneceram,

sonhos estes de serem livres, de encontrar um pai que partiu, de frequentarem uma escola, de

terem roupas, sapatos, comida e uma vida digna para suas famlias e para todos os moradores

da Vila de Alhandra.

Os sonhos dos meninos dos esteiros e do autor Soeiro, que sempre lutou pelas classes

menos favorecidas, ainda so os mesmos de muitos outros meninos que vivem em situaes

semelhantes nos dias de hoje, os quais, mesmo vivendo em sociedades e sistemas scio-

polticos diferentes, tm conflitos e necessidades semelhantes, conforme demonstraremos em

nossas anlises.

29

1.3. JORGE AMADO: ESCRITOR DE CARTER CRTICO E INVESTIGATIVO

Figura 2 Jorge Amado

Fonte: http://www.portalescolar.net/2011/08/literatura-

jorge-amado-biografia-obras.html

O Modernismo foi um movimento literrio que resultou de impulsos internos e do

exemplo europeu, como no caso das vanguardas francesas e italianas, a comear pelo

Futurismo, que ofereceram modelos adequados para exprimir a civilizao mecnica e o ritmo

das grandes cidades, alm de valorizar as componentes primitivas, que no Brasil faziam parte

da realidade. O livro inicial do movimento foi Paulicia Desvairada (1922), de Mrio de

Andrade, cujo principal personagem a cidade de So Paulo, em processo de

desenvolvimento vertiginoso e em vias de transformar-se na mais importante do pas pela

populao e a potncia econmica, baseada na agricultura e comercializao do caf, na

indstria e na hegemonia poltica. Outro centro dominante foi o Rio de Janeiro, onde a maior

tradio urbana havia gerado manifestaes culturais mais resistentes, resultando formas

menos agressivas de modernizao. A histrica Semana de Arte Moderna (1922) foi outro

acontecimento marcante em So Paulo.

O Modernismo Brasileiro foi complexo e contraditrio, com linhas centrais

secundrias, mas iniciou uma era de transformaes essenciais. Depois de ter sido

considerado excentricidade e afronta ao bom-gosto, acabou tornando-se um grande fator de

renovao e o ponto de referncia da atividade artstica e literria. A sua contribuio

30

fundamental foi a defesa da liberdade de criao e experimentao, valorizaram na poesia os

temas quotidianos, adotaram expresses coloquiais mais singelas, mesmo vulgares, para

desqualificar a solenidade ou a elegncia afetada. 5

A obra de Jorge amado, conforme assinala Alfredo Bosi (2000, p. 388), enquadra-se

na fico regionalista, resultante de transformaes bastante acentuadas da realidade

brasileira:

[...] O Modernismo e, num plano histrico mais geral, os abalos que sofreu a

vida brasileira em torno de 1930 (a crise cafeeira, a Revoluo, o acelerado

declnio do Nordeste, as fendas nas estruturas locais) condicionaram novos

estilos ficcionais marcados pela

rudeza, pela captao direta dos fatos, enfim por uma retomada do

naturalismo, bastante funcional no plano da narrao-documento que ento

prevaleceria.

[...] ao realismo cientfico e impessoal do sculo XIX preferiram os

nossos romancistas de 30 uma viso crtica das relaes sociais. [...] (BOSI,

2000, p. 389, grifo do autor).

Assim, o escritor baiano considerado como um fecundo contador de histrias

regionais (BOSI, 2000, p. 405), que se voltou para seres marginalizados como o caso dos

pescadores, marinheiros e habitantes da Bahia e seus arredores.

Ele nasceu na Fazenda Auricdia, em Ferradas, Itabuna, Bahia em 10 de Agosto de

1912, tendo como pai o coronel Joo Amado de Faria, fazendeiro de cacau e de D. Eullia

Leal Amado. Viveu toda a sua infncia em Ilhus, onde iniciou seus estudos. J na

adolescncia morou e estudou em Salvador, cidade que costumava chamar de Bahia, na qual

viveu livre e misturado com o povo, conhecendo a vida popular que mais tarde marcou seus

romances. Desde os 14 anos, comeou a trabalhar em jornais e a participar da vida literria.

Fez os estudos universitrios no Rio de Janeiro, tornando-se bacharel em Cincias Jurdicas e

Sociais, na Faculdade de Direito, mas nunca exerceu a advocacia.

Na capital baiana, levou a vida de jornalista bomio nos fins da dcada de 20. Viveu

exclusivamente dos direitos autorais de seus livros. Casou-se com a escritora Zlia Gattai,

autora de importantes obras, e com quem teve dois filhos. Em 1945, foi eleito deputado

federal, sendo responsvel por vrias leis que beneficiaram a cultura. Viajou muito pelo pas e

pelo exterior. Recebeu vrios prmios literrios, inclusive internacionais. Suas obras foram

5 As informaes do primeiro e segundo pargrafos foram extradas da obra de Antonio Candido, Iniciao

Literatura Brasileira (1999, p. 68-70).

31

traduzidas para diversos idiomas e tambm foram adaptadas para o teatro, televiso, rdio e

cinema. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.

Jorge Amado comeou a escrever seus romances na dcada de 30, quando o mundo e

o Brasil viviam um perodo histrico marcado por vrios acontecimentos importantes que

acabaram influenciando os escritores modernistas nos temas de suas obras. Tais

acontecimentos foram importantes porque trouxeram uma viso diferente de mundo para a

populao e escritores que passaram a analisar os problemas do pas, nos planos poltico,

econmico e social.6

A partir da, Jorge Amado ir analisar e detalhar em seus romances uma crtica de todo

contexto social e poltico da poca, mostrando a real situao do pas, informando os leitores

atravs de uma literatura regional, que se caracterizava pela denncia social. De acordo com

informaes do livro Presena da Literatura Brasileira, em 1930, ocorre uma intensa

radicalizao poltica, tanto para a esquerda quanto para direita; e a comoo das velhas

estruturas sociais favorece o desejo de descrever e esquadrinhar a realidade social e espiritual

do pas (CANDIDO, 2006, p.10) por parte dos escritores brasileiros. Portanto, Jorge Amado

e a gerao de poetas modernos da dcada de 30 destacaram-se pela anlise crtica e pelo

carter informativo e investigativo de suas obras.

Segundo o site www.jorgeamado.com.br/professores2/02.pdf, a sua convivncia com o

chamado Movimento de 30 marcou profundamente sua personalidade e a preocupao com os

problemas brasileiros. Antes dele se relacionar com os escritores dessa poca, j possua uma

viso crtica de denncia sobre as desigualdades sociais. Envolveu-se com a poltica

ideolgica e comunista, foi preso, viveu exilado na Argentina e Uruguai entre 1941 a 1942.

Tornou-se deputado em 1945. Todas as suas obras nesse perodo deixavam transparecer a

violncia cotidiana, desigualdades sociais entre a classe pobre e a classe privilegiada, a

elite, as inquietaes humanas, o sofrimento da classe popular e a misria em que viviam.

Em suas obras percebemos o grande interesse em tratar das injustias sociais, sempre a

favor das classes mais pobres e populares. Todas narrativas tm seu prprio enredo, sua

prpria histria, porm os personagens de cada romance tm conflitos internos semelhantes.

6 Todos os dados do terceiro pargrafo em diante foram extrados da obra de Afrnio Coutinho, A literatura no Brasil (1986), p. 364.

http://www.jorgeamado.com.br/

32

Alm de tratar o social como crtico, ele trabalha o psicolgico dando-lhe maior profundidade

em suas obras.

Amado teve sucesso em todos os seus romances e como tema desta dissertao,

destacaremos a obra Capites da Areia na qual o autor narra a vida de um grupo de meninos

sem carinho, todos menores, que viviam nas ruas de Salvador. Eram crianas entre 8 a 16

anos, pobres, que dormiam num trapiche abandonado, furtando e aterrorizando a cidade.

Passavam por discriminaes e dificuldades, mas tinham sonhos e desejos. So descritos

como seres dotados de energia, inteligncia e vontade, ainda que cercados pelas condies

sociais hostis.

No livro Histria da Literatura Brasileira, Luciana Stegagno Picchio (1997, p. 533)

fez um arguto comentrio que ilustra a profundidade dos romances do autor: Jorge Amado

ama seus personagens, conhece-lhes o sorriso e as fraquezas.

Com a histria crua e comovente sobre a infncia abandonada em Capites da Areia, o

autor assombrou e encantou vrias geraes de leitores, causando impacto desde o lanamento

em 1937, quando a polcia do Estado Novo apreendeu e queimou em praa pblica vrios

exemplares do livro.7

Este prolfico autor crtico e revolucionrio faleceu em 06 de Agosto de 2001 em

Salvador, Bahia, deixando grandes obras que abarcam romances, novelas, poesia, teatro,

relatos biogrficos etc.

Os romances escritos pelo autor baiano so os seguintes8: O Pas do Carnaval (1931),

Cacau (1933), Suor (1934), Jubiab (1935), Mar Morto (1936), Capites da Areia (1937),

Terras do Sem Fim (1943), So Jorge dos Ilhus (1944), Seara Vermelha (1946), Os

Subterrneos da Liberdade (3 volumes) (1954), (v.1: Os speros Tempos; v. 2: Agonia da

Noite; v. 3: A Luz no Tnel), Gabriela, Cravo e Canela: crnica de uma cidade do interior

(1958), Os Pastores da Noite (1964), A espantosa batalha entre o esprito e a matria (1966);

Dona Flor e Seus Dois Maridos (1967), Tenda dos Milagres (1969), Teresa Batista Cansada

da Guerra (1972), Tieta do Agreste: pastora de cabras ou A volta da filha prdiga,

melodramtico folhetim em cinco sensacionais episdios e comovente eplogo: emoo e

7

As informaes contidas nesses pargrafos encontram-se no livro de Jorge Amado, Capites da Areia, na sua

capa e contracapa.

8 As informaes sobre as obras de Jorge Amado foram extradas do seguinte: Releituras resumo biogrfico e

bibliogrfico Jorge Amado. http://www.releituras.com/jorgeamado_bio.asp. Acesso em 31.08.2011.

http://www.releituras.com/jorgeamado_bio.asp

33

suspense! (1977), Farda Fardo Camisola de Dormir: fbula para acender uma esperana

(1979), Tocaia Grande: a face obscura (1984), O Sumio da Santa: uma histria de feitiaria

(1988), A Descoberta da Amrica pelos Turcos ou De como o rabe Jamil Bichara,

desbravador de florestas, de visita cidade de Itabuna, para dar abasto ao corpo, ali lhe

ofereceram fortuna e casamento ou ainda Os esponsais de Adma (1994), O Compadre de

Ogum (1995).

As duas novelas escritas por Jorge Amado so: A Morte e a Morte de Quincas Berro

Dgua (1959), Os Velhos Marinheiros ou A completa verdade sobre as discutidas aventuras

do comandante Vasco Moscoso de Arago, capito de longo curso (1976).

Em relao literatura infantil, o autor escreveu: O Gato Malhado e a Andorinha

Sinh: uma histria de amor (1976), A Bola e o Goleiro (1984), O Capeta Caryb (1986).

Sua nica obra de poesia o texto intitulado A Estrada do Mar (1938) e tambm a sua

nica pea teatral conhecida Amor do Soldado (1947) (ainda com o ttulo O Amor de Castro

Alves) (1958).

Dentre seus contos, podemos destacar Sentimentalismo (1931), O homem da

mulher e a mulher do homem (1931), Histria do carnaval (1945), As mortes e o triunfo

de Rosalinda (1965), Do recente milagre dos pssaros acontecido em terras de Alagoas, nas

ribanceiras do rio So Francisco (1979), O episdio de Siroca (1982), De como o mulato

Porcincula descarregou o seu defunto (1989).

Consideram-se como relatos biogrficos os seguintes textos: ABC de Castro Alves

(1941), O cavaleiro da esperana (1945), O menino grapina (1981), Navegao de

cabotagem: apontamentos para um livro de memrias que jamais escreverei (1992).

So classificados como guias/viagens os textos que seguem: Bahia de Todos os

Santos: guia de ruas e de mistrios (1945), O mundo da paz (viagens) (1951), Bahia Boa

Terra Bahia (1967), Bahia (1970), Terra Mgica da Bahia (1984).

O escritor ainda tem em sua vasta produo, obras classificadas como documento

poltico/oratria: Homens e coisas do Partido Comunista (1946), Discursos (1993) e escreveu

em parceria os livros Lenita (novela), com Edison Carneiro e Dias da Costa (1929),

Descoberta do mundo (literatura infantil), com Matilde Garcia Rosa (1933), Brando entre o

mar e o amor, com Jos Lins do Rego, Graciliano Ramos, Anbal Machado e Rachel de

Queiroz (1942), O mistrio de MMM, com Viriato Corra, Dinah Silveira de Queiroz, Lcio

34

Cardoso, Herberto Sales, Rachel de Queiroz, Jos Cond, Guimares Rosa, Antnio Callado e

Orgenes Lessa (1962).9

Em relao extensa obra literria de Jorge Amado possvel ressaltar que a sua

temtica aproxima-se de assuntos tratados por Soeiro Pereira Gomes, uma vez que ambos os

escritores voltam-se para a denncia das mazelas sociais. Em Capites da Areia, observamos

a vida de um grupo de adolescentes que vivem na marginalidade e, em Esteiros, crianas que

vivem desamparadas e so obrigadas a enfrentar a vida como adultos. Portanto, ao longo deste

estudo, iremos comparar os personagens das duas obras mencionadas, destacando o

tratamento dado aos adolescentes e s crianas no universo dos romances em apreo.

1.4. OS ADOLESCENTES EM CAPITES DA AREIA

Em Capites da Areia, Jorge Amado narra a comovente histria dos meninos pobres

que viviam nas ruas de Salvador com uma linguagem simples, mas muito potica e

envolvente. A obra divide-se em trs partes, porm no incio h uma sequncia de

reportagens, depoimentos e cartas redao do Jornal da Tarde de Salvador, explicando que

os Capites da Areia so um grupo de menores abandonados e marginalizados que

aterrorizam a cidade. So descritos pela sociedade como bando que vive da rapina,

criminosos jovens e ousados, ladres, delinquentes, assaltantes, crianas

desprezadas pelos pais.

O autor j os descreve como crianas abandonadas de idades entre 8 a 16 anos, que

viviam do furto. Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavres

e fumando pontas de cigarros, eram em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam

totalmente, e que totalmente a amavam, os seus poetas (AMADO, 1983, p. 29).

Durante o dia, viviam nas ruas praticando furtos no comrcio, casas, bondes,

exercendo pequenas tarefas (ou, como popularmente se diz, bicos), muitas vezes

encomendadas por adultos que os tomavam para realizarem alguns servios ilegais. Os

9 Alguns dados sobre os livros de Jorge Amado foram retirados de duas obras: A Literatura no Brasil, de Afrnio Coutinho (1986) e Histria concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi (2000).

35

Capites da Areia s se relacionavam com o Padre Jos Pedro, homem simples e preocupado

com as crianas, a me de Santo DonAninha, que morava perto da praia e muitas vezes os

socorria e o capoeirista Querido de Deus, que lhes ensinava capoeira e arrumava-lhes alguns

servios.

A primeira parte, Sob a lua, num velho trapiche abandonado, descreve o trapiche,

[...] imenso casaro, abandonado em meio ao areal, mancha negra na brancura do cais que

Durante anos foi povoado exclusivamente por ratos [...] at que os Capites da Areia

lanaram as suas vistas para o casaro abandonado (AMADO, 1983, p. 28). Tambm so

narradas algumas histrias dos personagens principais, visto que o grupo chegava a cem

meninos. Entre eles, destaca-se Pedro Bala, o lder, de longos cabelos loiros e uma cicatriz no

rosto devido a uma briga pela liderana dos Capites. Embora tivesse apenas 16 anos, Pedro

Bala era uma espcie de pai para os outros, que o consultavam e o respeitavam. Ele exigia

fidelidade e o respeito entre o grupo.

Sem-Pernas um garoto deficiente de uma perna, que serve de espio para o grupo,

traz em si uma grande mgoa por ter ficado rfo e sido abandonado, de ter apanhado muito

de um padrinho que o criava e tambm foi muito torturado no reformatrio. Pedia nas portas,

usava seu problema fsico e se comportava como um menino rfo e desamparado para ser

acolhido pelas famlias e, assim, conquistava a confiana delas e com ajuda dos demais

roubavam os objetos de valor das casas.

Joo Jos, o Professor, recebe este apelido por gostar de ler e desenhar. Desde o dia

em que furtara um livro, tornara-se profissional nesses furtos. Nunca vendia os livros. Lia-os

todos numa nsia que era quase febre (AMADO, 1983, p. 25). Gostava de ler e contar

histrias aos amigos, por isso era respeitado no grupo.

Joo Grande, protetor do grupo, forte, negro bom, segundo o prprio Pedro Bala:

Engajou com 9 anos nos Capites da Areia, quando o Caboclo ainda era o chefe e o grupo

era pouco conhecido. Cedo Joo Grande se fez um dos chefes (AMADO, 1983, p. 23). Gato,

outro integrante do grupo, era o mais gal de todos, vaidoso, gostava de andar arrumado, era

conquistador e malandro, vivia atrs da prostituta Dalva.

J o Pirulito, era magro e muito alto, uma cara seca, meio amarelada, os olhos

encovados e fundos, a boca rasgada e pouco risonha (AMADO, 1983, p. 28). Era o nico que

tinha vocao religiosa, era devoto de santos, vivia rezando e sonhando em estudar num

seminrio. Um outro componente de destaque no bando Boa-Vida, que s queria viver

36

sossegado, andava aos trapos, s roubava para no ser excludo do grupo. Volta Seca odiava

as autoridades, tinha como dolo Lampio e seu desejo era se tornar cangaceiro.

O clmax da primeira parte As luzes do Carrossel, que narra a chegada de um

carrossel velho na cidade, o qual encanta os meninos, tornando-os crianas inofensivas,

alegres e sonhadoras diante da diverso e da msica do brinquedo: Nesse momento de

msica eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irmos

porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da

msica (AMADO, 1983, p. 68). Diante do carrossel, os meninos emocionaram-se, pois

dentro de cada um havia uma alma infantil, e ali naquele momento de alegria esqueceram as

mgoas, as tristezas e a vida dura que levavam, e mais do que nunca os laos de amizade se

reforavam.

Juntos envolviam-se em muitas aventuras e confuses, bebiam cachaa, jogavam

baralho, batiam carteiras, realizavam pequenos furtos, saam com mulheres, e muitos

trocavam carcias entre si (homossexualismo), mesmo sendo proibido por Pedro Bala. s

vezes arrumavam um trabalho honesto, desembarcando pescaria, exercendo tarefas

laborativas temporariamente em algum estabelecimento, realizando alguns favores para

DonAninha e Querido-de-Deus.

Outro acontecimento marcante na primeira parte do romance foi a epidemia de varola,

que ataca a cidade. Os pobres no tinham vacina, muitos morreram. Um dos meninos, o

negrinho Barando, morre. J Boa-Vida consegue curar-se.

Um personagem relevante dentro do enredo Padre Jos Pedro, o qual sofre muitas

perseguies da sociedade e do arcebispo que o intitula comunista e inimigo da igreja por

proteger os Capites da Areia.

Na segunda parte, intitulada Noite de Grande Paz, Da Grande Paz dos teus olhos,

surge uma histria de amor entre Dora e Pedro Bala. Ela, uma garota de treze para catorze

anos, loira, olhos grandes, simples, dcil, bonita e muito sria, parecia uma mulherzinha,

perdeu os pais na epidemia da varola. Ficando rfos ela e o irmo, que foram abandonados

pelas ruas, com fome, medo e sem terem onde dormir, foram ao trapiche, convidados pelo

Professor e Joo Grande. No incio, ela causa desejo e excitao nos garotos, mas logo passou

a ser vista como amiga, irm, protetora e me, pois tratava-os com carinho, respeito e ateno,

passando a ser respeitada e admirada e a desempenhar um grande papel na vida dos meninos,

tornado-se a primeira Capit da Areia. Professor e Pedro Bala se apaixonam por ela, mas

37

Dora apaixona-se por Pedro: Para ele era tudo: esposa, irm e me (AMADO, 1983, p.

186). E Dora o admirava: [...] era o seu heri, uma figura que ela nunca tinha imaginado [...].

Amava-o como a um filho sem carinho, um irmo corajoso, um amado to belo como no

havia outro (AMADO, 1983, p. 186).

Pedro e ela so capturados, pois ela passa a roubar com o grupo, so castigados no

Reformatrio e no Orfanato. Quando escapam, muito enfraquecidos, amam-se pela primeira

vez na praia e ela morre, marcando as vidas dos meninos que acreditavam que ela tornara-se

uma estrela que lhes transmitia paz.

A terceira parte, Cano da Bahia, Cano da Liberdade, inicia-se com o subttulo

Vocaes, na qual os meninos ainda tm em si fortes recordaes de Dora, procuravam-na

nos cantos do trapiche e nas estrelas do cu, pois cada um tinha uma lembrana dela.

A desintegrao dos membros mais proeminentes do grupo comea a acontecer.

Professor parte para o Rio de Janeiro, para se tornar pintor, depois de ser indicado por um

morador da cidade e, mesmo triste em deixar os amigos, promete: Um dia vou mostrar como

a vida da gente... Fao o retrato de todo mundo (AMADO, 1983, p. 230).

Pirulito passou a vender jornais, carregava bagagens e fazia servio de engraxate,

continuou no trapiche, mas seus sonhos de se tornar padre s aumentavam. Por incentivo do

Padre Jos Pedro vai para o seminrio.

Boa-Vida tornou-se um malandro nas ruas da Bahia. Tem um violo, faz sambas,

est enorme [...]. Inimigo da riqueza e do trabalho, amigo das festas... jogador de capoeira,

ladro quando se fizer preciso [...] (AMADO, 1983, p. 235).

Volta Seca tornou-se um cangaceiro do grupo de Lampio e matou mais de 60

soldados antes de ser capturado e condenado.

Sem-Pernas continuou revoltado e, durante um assalto perseguido pela polcia.

Enquanto foge, cheio de dio pensava: Nunca tivera uma alegria de criana. Se fizera

homem antes dos dez anos para lutar pela mais miservel das vidas: a vida de criana

abandonada. Amava unicamente sem dio, sentimento que o fazia forte e corajoso apesar

do defeito fsico (AMADO, 1983, p. 250). Assim, antes de ser capturado pela polcia, se

mata: Sem-Pernas se arrebenta na montanha como um trapezista de circo que no tivesse

alcanado o outro trapzio (AMADO, 1983, p. 251).

38

Padre Jos Pedro seguiu na luta em favor dos menores abandonados, embora sozinho e

sem apoio das autoridades.

Joo Grande tornou-se marinheiro como sonhava; Querido-de-Deus continuou sua

vida de capoeirista e malandro; Gato virou um malandro de verdade; Pirulito realiza seu

sonho de tornar-se frade; Professor aprendeu tcnicas acadmicas de desenho e pintura e

passou a pintar a realidade dos Capites da Areia.

Pedro Bala, cada vez mais fascinado com as histrias que descobrira sobre seu pai, um

sindicalista, que morreu lutando pelos trabalhadores, envolveu-se com os doqueiros e

participou com o grupo de uma greve. Abandonou a liderana do grupo, mas antes o

transformou numa espcie de grupo de choque. Assim Pedro Bala deixou de ser o lder dos

Capites da Areia e se transformou num lder revolucionrio comunista, acabou sendo preso,

mas conseguiu fugir.

O regime opressor continuou o mesmo. Os Capites da Areia de Jorge Amado at

foram tachados de heris, por lutarem sozinhos diante de uma sociedade excludente e

preconceituosa. Outros meninos continuaram esta histria naquela poca, e hoje, nossos

protagonistas so outros, mas a histria das crianas que vivem nas ruas continua.

As histrias dos Capites da Areia e dos Esteiros mostram-se bastante semelhantes e

nelas, notamos que seus autores privilegiam e retratam a vida de crianas e adolescentes que

vivem e atuam na marginalidade, mas seus dilemas sofrimentos e problemas so os mesmos

seja em solo europeu ou em terras brasileiras, como iremos discutir no prximo captulo.

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CAPTULO 2: INFNCIA, ADOLESCNCIA E MARGINALIZAO

a vida uma ferida

a pungir nalma das crianas?

(O mundo no as entende).

Carlos Drummond de Andrade

O problema das crianas e adolescentes em situao de abandono e voltadas

marginalidade tem sido objeto de estudo em inmeras pesquisas no Brasil e no mundo.

Atualmente, cada vez mais se aprimoram os direitos das crianas, os seres mais frgeis e

desprotegidos. O primeiro passo foi dado em 1959, quando a Assemblia Geral das Naes

Unidas aprovou uma declarao de dez direitos bsicos de toda criana, mas at hoje muitos

no so cumpridos, como o direito ao amor e compreenso por parte dos pais e da

sociedade e o direito proteo especial para seu desenvolvimento fsico, mental e social

(DIMENSTEIN, 1995, p. 21-22), resultando em milhares de crianas abandonadas que so

recriadas pela fico em todas as partes do mundo.

A infncia uma fase muito importante no desenvolvimento da criana,

principalmente em relao famlia, quando se constroem vnculos afetivos e direcionamento

moral, que influenciam na formao do carter, preparando-as para a adolescncia, que o

perodo de profundas modificaes fsicas, psicolgicas e sociais. Essa etapa, entretanto,

exige acompanhamento familiar, educacional, social e religioso. Mas, infelizmente, a

problemtica da infncia e da adolescncia continua presente a cada dia e se tornou um

problema constante no mundo contemporneo e um assunto bastante tratado por escritores,

socilogos, psiclogos etc.

Gilberto Dimenstein, jornalista, autor e cidado preocupado com os problemas da

infncia e da adolescncia, faz a seguinte afirmao em seu livro O Cidado de Papel:

A criana o elo mais fraco e exposto da cadeia social. Se um pas uma

rvore, a criana um fruto. E est para o progresso social e econmico,

como a semente para a plantao. Nenhuma nao conseguiu progredir sem

investir na educao, o que significa investir na infncia. Por um motivo

bem simples: ningum planta nada se no tiver uma semente

(DIMENSTEIN, 1995, p.8).

40

Percebemos que o objetivo do autor, ao escrever esse livro, foi mostrar a verdadeira

situao da infncia, que um fiel espelho de nosso estgio de desenvolvimento econmico,

poltico e social. Ele nos faz refletir e compreender que rvores doentes no do bons frutos.

Decorre desse fato a importncia de planejamento bem sucedido, assim como aplicaes

prticas de elementos bsicos e fundamentais, que melhoraram a realidade de inmeras

crianas e adolescentes marginalizados. Sendo assim, no decorrer de sua obra, Dimenstein

exemplifica medidas e projetos governamentais adotados em outros pases, que combateram a

marginalidade, tirando crianas e adolescentes das ruas.

Podemos tambm citar o autor Jlio Emlio Braz, escritor mineiro, que vive desde a

infncia no Rio de Janeiro. No seu livro Crianas na Escurido, ele conta a histria de oito

meninas que vivem nas ruas e so descritas por ele como: Oito anjos jogados para fora do

cu materno, para viverem o inferno da indiferena na grande cidade (BRAZ, 2003, p. 80).

Em sua obra, ele trata da dor e do cotidiano, da verdade e das injustias que

testemunhou e dos sofrimentos que lhe foram contados sobre crianas e adolescentes. Seus

personagens, como ele diz, podem ser encontrados em qualquer grande cidade do Brasil e do

mundo. O cenrio usado a Praa da S, que apenas um universo limitado para mostrar a

vida das meninas de rua.

O objetivo da sua obra retratar a infncia e adolescncia nos dias de hoje. Jlio

Emlio Braz afirma no acreditar no futuro de nosso pas, se no cuidarmos das crianas no

presente:

Nenhum pas pode ser feliz se suas crianas choram ou sofrem. Criana

tudo. Acredito que denunciando, mostrando o que acontece, posso contribuir

para amenizar a incerteza do amanh de meus personagens principais [...]. O

assunto muito srio e, como no tenho outra arma a no ser as palavras,

que arrumo direitinho nos territrios imaculados e indomveis das folhas

brancas, quis passar para meus livros esses problemas, coisas que vejo e com

as quais muitas vezes convivo (BRAZ, 2003, p. 79).

Esta obra tem muitas semelhanas com Esteiros e Capites da Areia, apesar de as

personagens se diferenciarem por serem femininas. Doca, Rolinha, Pidona, Santina, Pereba,

Maria Preta, Maria Branca e Batata so heronas como os meninos, pois lutam para

sobreviverem. Elas vivem nas ruas catando papis e garrafas, mas tambm roubam e

envolvem-se em muitas aventuras e perigos. No grupo tambm h leis e tal grupo liderado

41

por Doca, de dez anos. As meninas, assim como os personagens dos dois romances

apontados, tm suas caractersticas prprias, tm suas histrias de vida, ora marcadas pela dor,

fome, abandono, medo, ora pela cumplicidade, amizade, desafios e sonhos.

Partindo do exemplo do livro Crianas na escurido, podemos afirmar que dentro da

Literatura temos muitas obras que abordam o tema da infncia e da adolescncia. Elas

apresentam meninos e meninas como protagonistas e, dentro do universo infanto-juvenil, so

abordados diferentes temas de reflexo social. Todas as narrativas transportam-nos, enquanto

leitores, a um universo que permite ver a vida com olhos de sonho e de infncia, pois

participando da fico, refletimos a realidade e nos identificamos com alguns personagens,

passamos a fazer parte do mundo em que esto inseridas e assim como os prprios autores,

recordamos experincias pessoais, ou fatos que marcaram a nossa histria de vida.

Neste contexto em que estamos analisando o problema das crianas sem infncia e a

marginalidade na adolescncia, citaremos as palavras de Vnia Maria Resende, em seu livro,

O menino na literatura, no qual a autora afirma: [...] Pisando em terreno bastante comovente

e encantador, esse do discurso literrio, em que criana preenche o espao da arte com o

universo complexo da infncia, senti estar vivenciando a leitura como ato ldico e sensvel

[...] (RESENDE, 1988, p. 14). Esse o ponto de partida para adentrar as duas narrativas que

sero analisadas nesta dissertao.

Assim, neste universo literrio em que a infncia e adolescncia assumem um papel de

destaque, partiremos para a anlise dos romances estudados enfatizando que estes

supervalorizam a humanidade das crianas, ironizam e denunciam a ganncia e o egosmo das

classes dominantes.

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2.1. MENINOS TRANSFORMADOS EM HOMENS EM ESTEIROS

Guerreiros so pessoas

So fortes, so frgeis

Guerreiros so meninos

no fundo do peito

Precisam de um remanso

Precisam de um sonho

Que os tornem refeitos.

Gonzaguinha

Neste captulo voltado infncia, adolescncia e marginalizao, analisaremos a

explorao do trabalho infantil no livro Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes. Trata-se de uma

obra de profunda denncia da injustia e da misria social, que conta a histria de um grupo

de meninos que, desde cedo, abandona a escola para trabalhar em uma fbrica de tijolos.

Esses meninos foram transformados em homens pelo trabalho rduo que exerciam e pelas

dificuldades que enfrentavam para superar a fome, o medo e outras barreiras, as quais

impediam-nos de serem meninos, levando-os muitas vezes ao mundo da marginalidade.

O problema do trabalho infantil comum em muitos pases. Embora os contextos em

que se desenrola sejam diferentes, ele tem causas profundas e complexas, pois quando se

enuncia trabalho infantil, faz-se referncia explorao das crianas no mundo do trabalho.

Sabemos que os problemas relacionados infncia e adolescncia esto ligados a

fatores polticos, nacionais e internacionais que emergem de um conjunto de razes de ordem

social, econmica e cultural, mas que continuam menosprezados e ignorados.

A reflexo e o desafio que o autor Soeiro Pereira Gomes (1941) faz em Esteiros,

continua atual e bem presente no nosso cotidiano. A explorao da mo de obra infantil

impede o desenvolvimento das crianas nas vrias dimenses da vida pessoal, social e

cultural.

O autor nos faz refletir que a pobreza gera violncia e isso fica claro em alguns

meninos que so bons e agem com maldade, que sentem uma coisa e fazem outra. Tambm

conhecemos na obra a opresso, a misria e o abandono de forma direta, pois a narrativa

relata a vida sofrida do povoado portugus da zona de Santarm, regio muito afetada pelas

cheias. Desde cedo, as crianas eram obrigadas a trabalhar para ajudar no sustento familiar,

nunca brincavam, nunca tiveram brinquedos, conviviam com as cheias, fome e misria. A

escola era um lugar bem distante, que s nos sonhos dos meninos existi