Heróis Do Mar - Introdução_o Que São e Como Funcionam Os Símbolos Nacionais - Nuno Severiano...

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    INTRODUO:O QUE SO E COMO FUNCIONAM

    OS SMBOLOS NACIONAIS

    No dia 5 de Outubro de 1910, em Lisboa, pelas nove horas da manh,os militares revolucionrios desceram da Rotunda, em direco Praa do Municpio para assistir, vitoriosos, proclamao da Repbli-ca, que tinham acabado de implantar. Avenida da Liberdade abaixo, acla-mados pelos populares, a marcha triunfal feita ao som dA Portuguesa.E, passagem pelo Rossio, no alto do Castelo de So Jorge ondulava, j,uma bandeira verde e vermelha.

    H uma histria antes e uma histria depois. Mas este , polticae simbolicamente, o momento fundador. Da bandeira e do hino, quemais de um sculo depois, ainda hoje, continuam a ser os smbolos dePortugal.

    Este um livro sobre os smbolos nacionais. Sobre a bandeira e sobreo hino. sobre o hino, mas no um livro de musicologia. E sobrea bandeira, mas no um livro de vexilogia e muito menos de herldi-ca. um livro de histria poltica. Um livro que conta a histria dossmbolos nacionais e procura nessa histria a desconstruo dos mitoscom que a narrativa nacional os construiu: o mito das suas origense o dos seus significados. Um livro que procura compreender o lugar eo papel dos smbolos nacionais na construo da nao e do naciona-lismo e da sua relao com o Estado e os regimes polticos no Portugalcontemporneo.

    A primeira pergunta parece bvia: Como que um pedao de pano setransforma numa bandeira nacional? Como que um simples canto se

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    transforma num hino nacional? E como que o desfraldar de uma ban-deira ou um canto em unssono de um hino podem provocar tamanhaemoo? Incendiar tanta paixo e mobilizar tanta fora? A questo ,numa palavra: o que so e como funcionam os smbolos nacionais?

    Os smbolos nacionais so indissociveis da nao, do nacionalismo eda identidade nacional que simbolizam. Mas, ao contrrio do que acon-teceu com os conceitos de nao, nacionalismo e identidade nacional, queocuparam um lugar central no debate terico que dominou a Histria, a

    Sociologia ou a Antropologia, nas duas ltimas dcadas, a questo dasimbologia poltica, em geral, e dos smbolos nacionais, em particular, nopassou nunca de um lugar marginal na literatura cientfica sobre o tema.

    O que uma nao? O que faz de uma nao, uma nao? O que asso-cia e o que distingue um Estado de uma nao? Estes, sim, foram temascentrais do debate terico e objecto de uma interminvel literatura quese polarizou em torno de duas posies.

    Para osperenalistas, a nao um fenmeno ancestral, intrinsecamen-te ligado evoluo da natureza humana e das formas sociais da sua

    organizao. Para os modernistas,pelo contrrio, a nao uma inven-o recente, produto histrico da modernidade. Para os primeiros, o nacio-nalismo , apenas, uma factor mais no processo, preexistente, de criaodas naes. Para os segundos, o factor fundamental, a ideologia que,associada aco poltica do Estado, constri, verdadeiramente, a nao1.

    Mas nem para o primordialismo dosperenalistas, nem para o social--construtivismo dos modernistas, os smbolos nacionais constituramuma questo central no debate sobre a nao e o nacionalismo. E tantopara uns como para outros, o simbolismo poltico ficou mais ou menos

    ignorado.O que so smbolos nacionais? Com que mecanismos funcionam? Quepapel desempenham na construo das naes e das identidades nacio-nais? Estas so questes que ficaram secundarizadas nesse debate tericoe que s emergem no quadro de uma terceira posio: o etno-simbolis-mo. Os etno-simbolistasafirmam o carcter moderno da construonacional mas, simultaneamente, a preexistncia de uma base tnica sobrea qual a nao construda. Isto , a nao uma construo polticamoderna, mas assente sobre um fundo ancestral de tradies e memrias

    partilhadas, mitos e smbolos comuns. Ora, ser o etno-simbolismo que

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    vai atribuir relevncia maior e teorizar o papel dos smbolos na forma-o das naes e das identidades nacionais. Na justa medida em que so,precisamente, os smbolos que do corpo, sentido concreto e visibilida-de a essas abstraces que so a nao ou o nacionalismo2. Mas, maisdo que isso, os etno-simbolistasaceitam e atribuem um papel central aoEstado em todo esse processo.

    O etno-simbolismoabriu, assim, um quadro terico que possibilitou,na ltima dcada, o desenvolvimento de uma corrente de estudos sobreos smbolos nacionais. Por um lado, procurando teorizar a funo social

    e poltica dos smbolos no s na formao das identidades nacionais eda construo das naes, mas tambm da sua relao com o Estado--nao3. E por outro, desenvolvendo um conjunto de estudos de caso oucomparativos sobre trs temas fundamentais: a bandeira, o hino e a come-morao dos dias nacionais4.

    No este o momento nem o lugar para esses desenvolvimentos te-ricos. Mas importa introduzir alguns conceitos operatrios que permitame facilitem a compreenso do quadro terico de referncia deste ensaio.Sobre a natureza e a funo dos smbolos nacionais.

    Os smbolos so contentores de sentido. E os smbolos nacionais, con-tentores do sentido da nao. So o instrumento poltico que torna tan-gvel, pelo som ou pela imagem, o sentido da nacionalidade, isto , dapertena a essa comunidade imaginada que a nao. So o instrumentoque torna visvel e concreta, a noo complexa e abstracta da nao e doEstado-nao.

    Pela linha e pela cor da bandeira, pela melodia e pelo ritmo do hino,so os smbolos que tornam a nao visvel. So eles que lhe expressamo sentido: evocam o territrio; condensam o mito da memria comum; e

    traduzem uma relao entre o passado e o presente em que, por norma,o passado cultural da nao legitima a poltica presente do Estado. Isto, expressam simbolicamente a soberania e a independncia.

    O simbolismo nacional opera, assim, atravs de um triplo processo:primeiro, de auto-referncia, isto , de identificao com o mesmo, coma nao, comunidade imaginada como nica e definida pela mesmidade;segundo, de diferenciao, por oposio alteridade, face ao outro queno pertence nao; e, finalmente, de reconhecimento, na luta pela uni-dade interna e pela afirmao externa num mundo organizado em naes

    e Estados-nao.

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    H entre o simbolismo poltico e o simbolismo religioso semelhanase diferenas. Dizia Durkheim que h formas eternas de religiosidade quecontinuam a caracterizar cerimnias seculares e persistem atravs dossmbolos. Os smbolos polticos so os modernos objectos de culto, exten-ses seculares da divindade. Em certo sentido, o simbolismo poltico uma persistncia secular do simbolismo religioso. Com uma diferena:enquanto o simbolismo religioso remete o sentido para a divindade, osimbolismo poltico auto-referencial. Isto , os smbolos nacionais reme-tem o sentido para a prpria nao. So, no fundo, formas laicas de sacra-

    lizao da nao. Uma espcie de totem moderno, onde se funde asacralidade mtica da nao com a experincia real do som ou da cor.Onde se confunde o mito e a realidade, o subjectivo e o objectivo, atravsda representao simblica da nao. As liturgias laicas que so as festascvicas e as celebraes da nao, como a comemorao dos dias nacio-nais, constituem os momentos altos desse processo.

    Como todas as formas do sagrado, ainda que aqui, um sagrado laico,os smbolos nacionais so protegidos contra a sua profanao. E por issoos Estados inscrevem na sua ordem jurdica o crime de ultraje aos sm-

    bolos nacionais.A profanao dos smbolos pode vir de fora da comunidade, em con-flitos externos e guerras com outras naes, ou vir de dentro, em confli-tos internos e mudanas polticas no interior da prpria comunidade. Ora,como so os smbolos a forma visvel da nao, so os smbolos que seultrajam quando se quer ultrajar a nao ou uma certa concepo polti-ca da nao. o que acontece, quando se apeia, se pisa ou se queima abandeira. Seja nas guerras ou revolues, nos processos de libertao oude independncia.

    E a razo simples: que como os smbolos nacionais expressam osentido da nacionalidade e como h diferentes sentidos polticos para anao, o controlo do sentido dos smbolos um instrumento poderoso.Nesse sentido, os smbolos nacionais so expresses condensadas, grfi-cas ou musicais, de programas polticos. E por isso que so objecto dedisputa poltica. por isso que so institudos, contestados, mobilizados,negociados, alterados, abolidos e reinstitudos. E por isso que a mudan-a poltica sempre acompanhada da descontinuidade simblica.

    Os smbolos nacionais constituem, assim, momentos-chave, marcos na

    construo da nao e espelham a complexidade histrica desse processo.

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    Um processo em que os smbolos so, ao mesmo tempo, elemento na for-mao das identidades nacionais e lugar de cruzamento entre o Estado anao. Factor de construo das naes e de identificao do Estado e danao.

    Ora, de acordo com o contexto histrico da sua instituio, os smbo-los nacionais definem-se por diferentes regimes simblicos. Isto , as ban-deiras ou os hinos assumem diferentes cdigos simblicos, ou seja,diferentes padres de expresso simblica, cada um deles investido e legi-timado por uma narrativa diferente.

    Gabriella Elgenius5

    prope uma tipologia dos regimes simblicos paraas bandeiras europeias e define trs tipos de regimes: pr-moderno; moder-no; e ps-imperial. O regime pr-moderno remonta s origens medievaise a narrativa de matriz, essencialmente, religiosa e monrquica. O regi-me moderno remonta Revoluo Francesa, glorifica os valores revolu-cionrios e a narrativa, pelo contrrio, de matriz laica e republicana.O regime ps-imperial remonta ao ps-Primeira Guerra Mundial e dis-soluo dos imprios europeus, e a sua narrativa glorifica a independn-cia das nacionalidades. Ora, a cada um dos regimes simblicos corresponde

    um tipo herldico das bandeiras e em certa medida, prope-se nesteensaio, um tipo de letra dos hinos., pois, neste quadro terico que se situa este ensaio. Neste quadro

    terico, e no contexto histrico da afirmao do Estado-nao, em Por-tugal, e dos projectos nacionalistas que atravessaram os sucessivos regi-mes polticos, entre o final do sculo , o sculo e o princpio dosculo .

    Na historiografia contempornea e nas cincias sociais em Portugal ,hoje, j vasta a literatura sobre a nao, o nacionalismo e a identidade

    nacional portuguesa6

    . Contudo, com rarssimas e honrosas excepes7

    , omesmo no poder dizer-se no que toca aos smbolos nacionais.Ora, este, precisamente, o propsito do presente ensaio: compreen-

    der os smbolos nacionais no contexto histrico do Portugal contempo-rneo; as suas origens e o seu significado, as suas funes social e poltica;enfim, a evoluo da relao dos smbolos nacionais a bandeira e o hino com o Estado e a nao, Portugal e os Portugueses.

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    A BANDEIRA NACIONAL:

    DO AZUL E BRANCO

    AO VERDE E RUBRO

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    Abandeira nacional bipartida verticalmente em duas cores fun-damentais, verde-escuro e escarlate, ficando o verde do ladoda tralha. Ao centro e sobreposto unio das duas cores tem o escudodas armas nacionais orlado de branco e assentando sobre a esfera armi-lar manuelina em amarelo e avivada a negro.8

    Foi este o decreto com que a Assembleia Nacional Constituinte insti-tuiu a bandeira nacional, em Junho de 1911. E um sculo passado, esta, ainda hoje, a bandeira portuguesa. Mas por qu verde e vermelha? Porqu a esfera armilar e o escudo das quinas? E que relao estabelece coma Nao e a Repblica?

    Como a histria de todos os smbolos, tambm a histria da bandeiranacional se abre sobre um duplo enigma: primeiro, o das suas origens,depois, o do seu significado. Qual a origem do cromatismo verde e ver-melho e das armas nacionais? Qual o significado da sua simblica? E quenarrativas se invocaram para a sua legitimao? Por fim, como que abandeira verde e rubra se torna smbolo de Portugal e que caminho per-corre da legitimidade poltica legitimidade nacional?

    Ora, esse o enigma que aqui se desvenda, essa narrativa que se des-constri e essa histria que aqui se conta. Como nasce a bandeira portu-guesa? Que lugar ocupa na construo da Nao? Que relao desenvolvecom o Estado?

    Dito de outro modo, que sentido expressa na sua relao com a nacio-nalidade e os regimes polticos no Portugal contemporneo?

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    A bandeira azul e brancaA bandeira portuguesa foi, durante a toda Monarquia Constitucional,

    a bandeira azul e branca. Era bipartida e encimada pelas armas reais,assentes metade sobre cada uma das cores9.

    Azul e branco tinham sido decretadas cores nacionais depois darevoluo liberal de 1820, por decreto das Cortes Gerais Extraordinriase Constituintes da Nao Portuguesa, em 22 de Agosto de 1821. A razoera simples. Francisco Trigoso de Arago Morato, o deputado proponen-te, explicou ao Parlamento que eram as do escudo de El-Rei D. Afonso

    Henriques. O Parlamento aprovou e o artigo 1. do diploma decretou:Haver um lao nacional, composto na frmula do modelo junto pelascores Branca e Azul, por serem aquelas que formaram a divisa da NaoPortuguesa desde o princpio da Monarquia em mui gloriosas pocas dasua Histria.10

    Com a revoluo liberal, azul e branco chegavam, assim, ao lao outope nacional. Ao lao, mas no, ainda, bandeira.

    Entre o vintismo e a contra-revoluo e durante a guerra civil, o sim-bolismo da bandeira acompanhou as vicissitudes polticas da conjuntura

    e o registo simblico das cores inscreveu-se, decididamente, em cada umdos campos em conflito o branco no Absolutismo, e o azul e branco noLiberalismo.

    Durante a regncia de D. Pedro, e em nome da rainha D. Maria II, aJunta Governativa da Ilha Terceira substitui, uma vez mais, a bandeiranacional. At ento, integralmente, branca, a partir de agora, azul e bran-ca. O decreto, de 18 de Outubro de 1830, estabeleceu a nova bandeira:Tendo o Governo que usurpou o Trono de Sua Majestade Fidelssima,usurpado tambm as cores que tinham guiado para a vitria as tropas

    portuguesas Manda a Regncia em nome da Rainha, que de ora emdiante a Bandeira Portuguesa seja bipartida verticalmente em branco eazul, ficando o azul junto da haste e as armas reais colocadas no centroda Bandeira.11Azul e branco chegavam, finalmente, bandeira dePortugal.

    A luta poltica era, assim, acompanhada de uma luta simblica e ascores da bandeira eram a sua traduo. Durante o reinado, intermitente econturbado, de D. Miguel, a bandeira nacional foi uma bandeira, integral-mente, branca com as armas reais ao centro. Quando as tropas liberais

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    desembarcaram no continente, em 8 de Julho de 1832, foi uma bandeiraazul e banca que cravaram nas areias da praia do Mindelo. E triunfante oliberalismo, foi a mesma bandeira azul e branca arvorada na janela daCmara Municipal de Lisboa, no dia 24 de Julho de 1834. Restaurada, foifeita bandeira nacional.

    Por qu? A razo era simples, poltica e evidente. Ganhara fora, duran-te o combate poltico e militar da guerra civil, e sentido, na luta ideol-gica contra o Absolutismo. Ser o smbolo da matriz poltica e ideolgicado Liberalismo na nova Monarquia Constitucional.

    Mas qual o seu significado? As narrativas de legitimao foram pobrese o debate inexistente. Para uns, simplesmente, a razo era histrica: azule branco eram as cores das armas reais desde a Fundao da nacionali-dade. Para outros, razo histrica juntava-se uma razo poltica: azul ebranco eram as cores histricas da independncia, mas tambm as corespolticas da liberdade. Para outros, finalmente, a razo era religiosa: aobranco, a cor constante, ao longo do tempo, em todas as bandeiras por-tuguesas, juntava-se o azul, cor do manto da Imaculada Conceio,padroeira de Portugal, desde 1646. Ao branco, smbolo da monarquia,

    juntava-se, assim, o azul, smbolo do catolicismo do povo portugus.Fosse como fosse, o certo que, entre 1834 e 1910, a bandeira azul ebranca manteve-se inalterada, e foi a bandeira nacional durante todo oconstitucionalismo monrquico, at Revoluo de 5 de Outubro12.

    Bandeira da Monarquia Constitucional

    (Catlogo da Exposio Bandeiras de Portugal)

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    As origens do verde e rubroComo se chega, ento, bandeira verde e rubra da Repblica, que ,

    hoje, a bandeira nacional? Qual a sua origem? E qual o seu significado?Nunca, at Repblica, verde e vermelho tinham constitudo a base

    da bandeira portuguesa. Em toda a sua histria, at ao 5 de Outubro,apenas uma vez, e de forma marginal, verde e vermelho apareciam emconjunto: na bandeira de D. Joo I. Feito rei, o Mestre de Avis quis ins-crever, na simbologia da bandeira, a sua interveno na independncia dePortugal e fez acrescentar, ao escudo do reino, a cruz da Ordem de Avis,

    sobre a qual colocou as quinas. E assim, as quatro pontas da cruz, de flo-res-de-lis verdes, vieram assentar sobre a bordadura vermelha13.

    Mas, mais do que a efmera bandeira da dinastia de Avis, uma genea-logia breve do cromatismo verde e rubro na histria das bandeiras por-tuguesas mostra que, ao longo dos sculos, a combinao cromtica verdee encarnada figurou em vrias insgnias. Insgnias essas, todas elas ligadasa momentos polticos importantes ou pocas ureas da Histria por-tuguesa, de que, em certo sentido, se tornaram smbolo. o caso da Guer-ra da Independncia de 1383-1385, dos Descobrimentos Martimos, ouda Revoluo de 1640.

    Bandeira da Dinastia de Avis(Catlogo da Exposio Bandeiras de Portugal)

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    Era verde e vermelho (com a imagem de Nossa Senhora da Conceioao centro), dizem alguns historiadores, o pendo da Ala dos Namoradosque D. Nuno lvares Pereira teria arvorado na Batalha de Aljubarrota14.Era verde e vermelha (fundo verde sobre o qual assentava, vermelha, acruz de Cristo) uma das bandeiras do comrcio martimo, que se tornousmbolo dos Descobrimentos15. E, igualmente, verde e vermelha (idnticaa esta ltima) era a bandeira empunhada em vrias revoltas populares con-tra o domnio filipino, que se transformaria, ela prpria, na bandeira darevoluo do 1. de Dezembro, que restaurou a independncia, em 164016.

    Significa isto que, sem nunca ter constitudo a bandeira de Portugal,o cromatismo verde e rubro esteve, no entanto, simbolicamente, asso-ciado a alguns dos momentos mais significativos da Histria portugue-sa. Em particular, luta pela independncia nacional e epopeia dosDescobrimentos.

    Por toda a Europa, os nacionalismos modernos, vidos de legitimida-de retrospectiva, construram narrativas de identidade nacional, utilizan-do memrias, smbolos e mitos: particularmente, os mitos das origens eda afirmao da nacionalidade, como os mitos da idade de ouro ou do

    destino providencial da Nao17

    . Na maioria dos pases europeus esses

    Bandeira de Restaurao(Catlogo da Exposio Bandeiras de Portugal)

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    nacionalismos e essas narrativas de identidade nacional tinham comoobjectivo afirmar, se no mesmo construir a nao. Em Portugal, comfronteiras definidas desde o sculo , sem minorias tnico-culturais des-de o sculo , com unidade lingustica e sem foras centrfugas cen-tralizao poltica, o objectivo foi outro: no o de construir a nao massim o de a regenerar. Os nacionalismos em Portugal foram, essencialmen-te, projectos de regenerao nacional18. Foi assim tambm com o nacio-nalismo republicano. O republicanismo no s vai encontrar mas, maisdo que isso, vai aproveitar, politicamente, o discurso nacionalista: a Fun-

    dao da nacionalidade, as guerras da independncia e a epopeia dos Des-cobrimentos Martimos constituiro, precisamente, os temas centrais e amatria-prima essencial na construo dessa narrativa nacional.

    Mas uma coisa a narrativa, outra a realidade. E enganam-se aque-les que quiserem procurar as origens da simblica verde e rubra da ban-deira republicana em to longnquos ascendentes. O antecedente, prximoe directo, ter que se procurar, bem mais tarde, no ltimo quartel dosculo , no quadro do primeiro iderio republicano, onde se confun-diam, sincreticamente, republicanismo, municipalismo e federalismo.

    Homem Cristo (Pai), ao tempo membro do directrio republicano,desvendar, mais tarde, as origens do verde e rubro nesses primeiros diasdo republicanismo portugus, quando comeava a cindir-se em vrias fac-es: democrticos, moderados e federais. O cromatismo verde-escarlate,como ele prprio o chamava, representava, ento, o republicanismo fede-ral. O mais radical e iberista. Categrico, diria, j em plena Repblica:As cores da bandeira republicana so as cores da federao ibrica.19

    Verdade ou no, o certo que a bandeira do Centro Democrtico Fede-ral 15 de Novembro era uma bandeira verde e encarnada. E certo , tam-

    bm, que, falta de uma bandeira oficial do Partido Republicano, foi essamesma bandeira do Centro Democrtico Federal 15 de Novembro quedrapejou, efmera, nos cus do Porto, na madrugada revolucionria de31 de Janeiro de 1891. Um reprter dos acontecimentos dizia que assis-tiu ao hastear-se da bandeira vermelha e verde20.

    Era, de facto, integralmente vermelha com um crculo verde ao centro,a que se juntavam as legendas referentes ao centro republicano a que per-tencia21. O 15 de Novembro invocava a data da revoluo brasileira, queinstaurara a Repblica, em 1889, e que havia de inspirar a revolta repu-

    blicana do Porto, dois anos mais tarde.

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    Nessa madrugada de 31 de Janeiro, os revoltosos subiram varandada Cmara Municipal do Porto, donde fizeram, cidade adormecida, aproclamao republicana. Depois, entre vivas Repblica, iaram a impro-

    visada bandeira no mastro principal dos Paos do Concelho22

    .Esta bandeira era conhecida e designada pelos revoltosos, simplesmen-te, como a bandeira vermelha. Joo Chagas, preso, por motivos polti-cos, no crcere portuense, esperava que os revoltosos o viessem libertar.Durante a espera que nunca acabou, a meio da revolta, Urbino de Freitas,tambm ele encarcerado, entrou na cela de Chagas e, estendendo-lhe umbinculo, disse: Veja, est iada uma bandeira vermelha na Cmara.Assentando o binculo, vi com efeito, flutuando sobre opignon, da facha-da do edifcio da Cmara, uma bandeira vermelha.23

    Em boa verdade, essa bandeira era mais vermelha que verde. Porque,na sua essncia simblica, era a bandeira vermelha, cor da tradio revo-lucionria e popular. Foi, primeiro, em Inglaterra, o smbolo do Cartismo.E foi, depois, em Frana, o smbolo da revoluo democrtica de 1848 eda Comuna de Paris, em 187024.

    Foi assim por toda a Europa, que nasceu a grande maioria das ban-deiras dos centros republicanos. Ao fundo vermelho da tradio demo-crtica e sindical que era comum, juntavam-se, depois, os emblemas,insgnias e legendas vrias, prprias de cada um dos sindicatos ou clubes

    polticos a que pertenciam. E foi assim, tambm, em Portugal, com as

    Bandeira do Centro Democrtico Federal 15 de Novembro(Catlogo da Exposio Bandeiras de Portugal)

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    bandeiras dos centros republicanos, tal como a do Centro DemocrticoFederal 15 de Novembro.Goste-se ou no, o facto que a primeira bandeira da Repblica des-

    fraldada em Portugal foi uma bandeira verde e encarnada. Vencida arevolta e adiada a Repblica, o 31 de Janeiro ficar, na memria do repu-blicanismo portugus, como um marco histrico, assim como o croma-tismo verde e rubro como a sua marca simblica.

    Na Histria contempornea de Portugal, o 31 de Janeiro foi no s oprimeiro ensaio republicano mas, mais do que isso, foi, tambm, o momen-

    to em que Repblica, que ainda no o era, ganhou um smbolo. Doravante,verde e vermelho inscrevem-se, definitivamente, na simbologia republi-cana e tornar-se-o, mesmo, o smbolo da Repblica.

    Para a vitria da Repblica faltavam, ainda, vinte anos. E ao longo des-se perodo, entre 1891 e 1910, conhecido na histria do republicanismoportugus como o perodo da propaganda, o Partido Republicano desen-volve uma acesa luta poltica segundo duas estratgias de propaganda.

    Por um lado, uma estratgia antimonrquica, agitando as grandes ban-deiras ideolgicas e polticas do republicanismo. Em primeiro lugar, a deca-

    dncia a que os Braganas e a sua dinastia tinham conduzido o pas.Contra esse estado de coisas o Partido Republicano contrapunha e afirmavaum nacionalismo patritico e colonialista, fundado na idade de ouro dosDescobrimentos, e proclamando a restaurao das glrias do Imprio. Emsegundo lugar, a promscua ligao entre o Trono e o Altar, contra a qualpropunha a separao da Igreja e do Estado e a constituio de um Estadolaico, onde mal disfarava o anticlericalismo. Em terceiro lugar, a corrupogeneralizada que, segundo os republicanos, grassava pelo Pas e cuja respon-sabilidade atribuam, inteira, ao regime monrquico. Contra essa praga, con-

    trapunham a exigncia cvica de probidade no exerccio da poltica que, nasentrelinhas, faziam crer, era apangio republicano. E, finalmente, o carctertirnico da Monarquia que, nos ltimos anos do Constitucionalismo, a dita-dura de Joo Franco veio legitimar. Contra a tirania, o discurso republicanoopunha, obviamente, a Democracia que, segundo a sua propaganda, a Rep-blica pressupunha25. No foi assim, mas essa outra histria.

    Por outro lado, ao mesmo tempo, mas segundo uma outra lgica, oPartido Republicano desenvolve outra estratgia de propaganda a que hojechamaramos marketingpoltico. Isto , uma estratgia de construo da

    imagtica e da simblica poltica republicana.

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    Na Monarquia, o rei tem um corpo fsico, uma imagem, que os sb-ditos conhecem e reconhecem. Mas, ao reconhecerem-se nessa imagem, orei ganha tambm um corpo simblico. Ele o smbolo poltico do Esta-do e, mais tarde, do prprio Estado-nao26.

    A Repblica, pelo contrrio, uma ideia abstracta, intangvel. No temum corpo fsico que os cidados reconheam e no qual se possam reco-nhecer. Para que isso acontecesse era preciso torn-la tangvel, dar-lhe umaimagem. Ora, essa , precisamente, a funo dos smbolos: tornar concretae tangvel uma ideia abstracta. Traduzir numa imagem simples, uma noo

    complexa27

    . E foi isso que, ao longo desses vinte anos, a propaganda repu-blicana foi fazendo. Primeiro, a Repblica ganha uma imagem feminina28.Depois, essa repblica mulher traja sempre de verde e vermelho. Desdeas artes mais nobres aos mais simples objectos de uso quotidiano, na pro-lfera iconografia que simboliza a Repblica, , sempre, o verde e verme-lho que a representam. , assim, no clebre leo de Veloso Salgado, alusivo vitria republicana nas eleies municipais de Lisboa em 1908, como assim, no quadro de Jos de Brito, alusivo vitria de 5 de Outubro de

    leo de Veloso Salgado, alusivo vitria republicana nas eleies autrquicas de 1908

    (Museu da Cidade de Lisboa)

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    1910, ou na aguarela de Roque Gameiro Pela Repblica, de 1910. Mas ,assim, em tantos outros objectos, pratos, copos, cinzeiros, maos de cigar-ros ou latas de cacau que invadiam o quotidiano dos Portugueses, tornan-do banal a imagem da Repblica, sempre associada ao cromatismo verdee rubro. Na simbologia poltica do Portugal dos primeiros anos do sculo ,a Repblica era verde e vermelha.

    E tanto assim era que, chegada a jornada revolucionria de 3 a 5 deOutubro de 1910, a bandeira levantada pelos militares revoltosos foi, umavez mais, uma bandeira verde e rubra. Durante a revoluo, os regimentosna cidade e os navios no Tejo hastearam a mesma bandeira: era bipartida,o vermelho junto tralha e a parte maior em verde; ao centro, metade sobrecada um dos campos cromticos, uma esfera armilar de ouro, assente emfundo azul e encimada por uma estrela de prata com resplendor em ouro,smbolos iniciticos da Maonaria. Era, na sua origem, o pendo da Car-bonria que se tornava, agora, o smbolo da revoluo republicana. Foiessa a bandeira de Machado Santos na Rotunda29. E foi essa a bandeiraque, vitoriosa a revoluo, na manh de 5 de Outubro, foi hasteada emtodos os quartis e edifcios pblicos. Foi essa a bandeira que, entre vivas Repblica, foi iada na Cmara Municipal de Lisboa e que, finalmente,substituiu a bandeira azul e branca no alto do Castelo de So Jorge30.

    Alegoria Repblica. Litografia de Roque Gameiro(Arquivo Histrico Militar)

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    Bandeira iada na Cmara Municipal de Lisboa a 5 de Outubro de 1910(Catlogo da Exposio Bandeiras de Portugal)

    Bandeira da Repblica iada na Rotunda na Revoluo do 5 de Outubro

    (Coleco de Antnio Pedro Vicente, imagem cedida pela Fundao Mrio Soares)

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    Objectos alusivos Implantao da Repblica Portuguesa

    (Coleco de Antnio Pedro Vicente, imagem cedida pela Fundao Mrio Soares)