HERMENÊUTICA EXISTENCIAL EM AGOSTINHO DE HIPONA … · 2018-09-14 · obra cidade de deus, livros...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA
UFPB UFPE - UFRN
HERMENUTICA EXISTENCIAL EM AGOSTINHO DE HIPONA E MARTIN
HEIDEGGER
SRGIO EDUARDO LIMA DA SILVA
NATAL, RN
2013
SRGIO EDUARDO LIMA DA SILVA
HERMENUTICA EXISTENCIAL EM AGOSTINHO DE HIPONA E MARTIN
HEIDEGGER
Tese apresentada ao Programa Integrado de Doutorado em
Filosofia UFPB UFPE UFRN como requisito
parcial para obteno do grau de Doutor em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Glenn W. Erickson.
NATAL, RN
2013
Catalogao da Publicao na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Silva, Srgio Eduardo Lima da.
Hermenutica existencial em Agostinho de Hipona e Martin Heidegger / Srgio Eduardo Lima da Silva. 2013.
291 f.
Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes. Programa Integrado de
Doutorado em Filosofia, UFPB-UFPE-UFRN, 2013.
Orientador: Prof. Dr. Glenn W. Erickson.
1. Agostinho, Santo, Bispo de Hipona. 2. Bblia. A.T. Gnesis. 3.
Heidegger, Martin, 1889-1976. 4. Hermenutica. 5. Paulo, Apstolo,
Santo. I. Erickson, Glenn W. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Ttulo.
RN/BSE-CCHLA CDU 22.06
SRGIO EDUARDO LIMA DA SILVA
HERMENUTICA EXISTENCIAL EM AGOSTINHO DE HIPONA E MARTIN HEIDEGGER
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo
de Doutor pelo Programa Integrado de Doutorado em Filosofia
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
EXAMINADORES DO PROGRAMA
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Glenn W. Erickson - UFRN (Orientador)
_________________________________________________________________________________
Profa. Dra. Gisele Amaral dos Santos UFRN
_________________________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Roberto Nunes Costa UFPE
EXAMINADORES EXTERNOS AO PROGRAMA
_________________________________________________________________________________
Prof. Dr. Noeli Dutra Rossatto - UFSM
_________________________________________________________________________________
Prof. Dr. Celso Martins Azar Filho UFF
SUPLENTES
________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________
Dedico este estudo ao meu Deus, aos meus pais e a
minha famlia, fundamentos de minha existncia.
AGRADECIMENTOS
A Deus, porque dele e por ele, e para ele, so todas as coisas.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Glenn W. Erickson, meus sinceros agradecimentos. Suas
orientaes acadmicas e observaes crticas permitiram o bom andamento e o trmino deste
trabalho.
minha grande amiga, Profa. Dra. Cinara Nahra, minha gratido por toda a ajuda dada. No
sei como retribuir os imensos favores feitos.
Ao Prof. Dr. Oscar Federico Bauchwitz pelas indicaes bibliogrficas sugeridas no incio
desta caminhada.
Profa. Dra. Gisele Amaral dos Santos por sua preciosa colaborao para a composio da
banca examinadora.
secretria do Programa de Ps-Graduao Thiare Tharine, por seu profissionalismo e por
sua serenidade diante de meu desespero de fim de jornada.
Aos meus pais, Joo e Lsia, que me ensinaram As Sagradas Letras e que sempre
acreditaram em mim, mesmo no sabendo com exatido o que filosofia e como isto me
ajuda a ganhar o po de cada dia.
minha famlia, Esther, Stella e Sophia. Grato pela compreenso e meus sinceros pedidos de
perdo pelo abandono nos ltimos dias desta jornada.
Aos meus alunos de forma geral, fonte de inspirao diria e lembrana constante de como
bom ser professor.
Criaste-nos para Vs e o nosso corao vive
inquieto, enquanto no repousa em Vs. Agostinho
de Hipona.
A esperana que os cristos possuem no
simplesmente uma f na imortalidade, mas um
suportar crente fundado na vida ftica crist. Martin
Heidegger.
RESUMO
A tese apresenta as interpretaes de Agostinho de Hipona acerca dos trs primeiros captulos
do Gnesis, o primeiro livro da Bblia. Estas interpretaes se encontram nas obras
Comentrio Literal ao Gnesis, Sobre o Gnesis Contra os Maniqueus, Comentrio Literal
ao Gnesis- Inacabado e As Confisses - livros XI-XIII alm da breve exposio contida na
obra Cidade de Deus, livros XI-XIV. A exposio destes comentrios agostinianos visa
demonstrar as variadas interpretaes realizadas pelo autor a um mesmo conjunto de textos,
revelando uma hermenutica centrada no hermeneuta e no em regras interpretativas
estabelecidas. Em seguida descreve-se, de forma sucinta, a evoluo da hermenutica textual
durante o perodo moderno at as reflexes realizadas por Martin Heidegger na primeira
metade dos anos vinte do sculo passado. A partir dos comentrios existenciais feitos por
Heidegger s epstolas de Paulo de Tarso (Glatas e I e II Tessalonicenses) e ao livro X das
Confisses, manifesta-se um retorno a uma hermenutica baseada no intrprete, tal qual
praticada por Agostinho. As preocupaes manifestadas por Heidegger acerca dos
fundamentos prvios existentes no Dasein e que poderiam influenciar sua autocompreenso,
se constituem em possibilidades de explicao tanto para as variaes interpretativas
agostinianas como para a abordagem existencial praticada por Heidegger s epstolas paulinas
e ao texto agostiniano.
Palavras-Chave: Gnesis. Paulo de Tarso. Dasein. Exegese. Confisses.
ABSTRACT
The thesis presents interpretations of Augustine of Hippo with regard to the first three
chapters of genesis, the first book of the Bible. These interpretation are found in the works
Literal Commentary on Genesis, concerning Genesis Against the Manicheans, Literal
Commentary on Genesis, Unfinished, Books Xi-XIII of the Confessions, as well a brief
exposition in Books XI-XIV of the City of God. Exposition of these Augustinian
Commentaries seeks to demonstrate various interpretations made by author in one group of
texts revealing a hermeneutics centered in the interpreter and not in established interpretive
rules. In sequence there is described succinctly the evolution of textual hermeneutics during
the modern period up to the reflections conducted by Martin Heidegger in the first half of the
twenties. Based in Heideggers existential commentaries on the Pauline Epistles (Galatians
and I-II Thessalonians) and on the tenth Book of the Confessions, there is shown a return to a
interpreter-based hermeneutics, such as practiced by Augustine. The concern manifested by
Heidegger with regard to given bases foundations, existent in Dasein, foundations which can
influence self-comprehension, constitute themselves in possibilities of explication as much for
Augustinian interpretive variations, as for the existential approach applied by Heidegger to the
Pauline epistles and Augustines text.
Keywords: Genesis. Paul of Tarsus. Dasein. Exegesis. Confessions.
RSUM
Cette thse examine les interprtations dAugustin dHippone propos des trois premiers
chapitres de la Gense, premier livre de la Bible. Ces interprtations se trouvent dans les
ouvrages La Gense au sens littral, Sur la Gense Contre les Manichens, Sur la Gense au
sens littral livre inachev et Les Confessions, livres XI-XIII, et encore le bref discours situ
dans les livres XI-XIV de la Cit de Dieu. Ltude de ces commentaires augustiniens ont pour
but de dmontrer les diverses interprtations ralises par lauteur sur un seul et mme
ensemble de textes par le moyen dune hermneutique centre sur lhermneute et non pas sur
des rgles interprtatives tablies. Ensuite, le travail dcrit, de faon succincte, lvolution de
lhermneutique textuel durant la priode moderne jusquaux rflexions effectues par Martin
Heidegger dans la premire moiti des annes 1920. Les commentaires existentialistes faits
par Heidegger lptre aux Galates et la Premire et Deuxime ptres aux Thessaloniciens,
de Paul de Tarse, ainsi quau livre X des Confessions ont manifest un retour une
hermneutique base sur linterprte, tel quAugustin lavait pratique. Les proccupations
exprimes par Heidegger lgard des fondements pralables constitutifs du Dasein et qui
pourraient influencer son auto-comprhension ouvrent un champ de possibilits dexplication
aussi bien pour les variations interprtatives dAugustin que pour lapproche existentiel
accomplie par Heidegger concernant les ptres pauliniennes et le texte dAugustin.
Mots-cls : Gense. Paul de Tarse. Dasein. Exgse. Confessions.
SUMRIO
1 INTRODUO ...................................................................................................................... 10
2 ALEGORIA OU LITERALIDADE: AS PRIMEIRAS ABORDAGENS
HERMENUTICAS DE AGOSTINHO AO GNESIS BBLICO ......................................... 24
2.1 TEXTO LITERAL OU ALEGORIZAO TEXTUAL? UMA SNTESE DA ABORDAGEM AO TEXTO BBLICO ................................................................................ 24
2.2 O GNESIS COMPREENDIDO PELO CONVERTIDO AGOSTINHO: ANLISE DA OBRA SOBRE O GNESIS, CONTRA OS MANIQUEUS ..................................................... 30
2.3 UMA NOVA INTERPRETAO DO GNESIS: ANLISE DA OBRA COMENTRIO LITERAL AO GNESIS, INACABADO ................................................................................. 58
3 A EXEGESE AO GNESIS DAS CONFISSES E A ABORDAGEM
INTERPRETATIVA POSTERIOR ......................................................................................... 79
3.1 AS CONFISSES (LIVROS XI XIII): UMA PEQUENA EXEGESE AO
GNESIS ....................................................................................................................... 79 3.2 O COMENTRIO LITERAL AO GNESIS: A ABORDAGEM ORTODOXA ...................... 123
3.3 A CIDADE DE DEUS: O COMENTRIO DOS LIVROS XI-XIV ........................................ 132
3.4 A DOUTRINA CRIST: BREVE EXPOSIO DO MANUAL HERMENUTICO AGOSTINIANO ......................................................................................................................... 141
4 HEIDEGGER E A HERMENUTICA BASEADA NA EXISTNCIA ............................. 157
4.1 DE AGOSTINHO DESCOBERTA DA FATICIDADE: UM RELATO SINTTICO DO
DESENVOLVIMENTO DA HERMENUTICA MODERNA ................................................... 157
4.2 HEIDEGGER E A HERMENUTICA DA FATICIDADE: A DESCOBERTA E APLICAO DOS PRINCPIOS DE UMA HERMENUTICA EXISTENCIAL ...................... 169
4.3 A ABORDAGEM FENOMENOLGICA DA EPSTOLA AOS GLATAS ....................... 201
4.4 A ABORDAGEM FENOMENOLGICA DA PRIMEIRA EPSTOLA AOS TESSALONICENSES ................................................................................................................ 211
4.5 A ABORDAGEM FENOMENOLGICA DA SEGUNDA EPSTOLA AOS
TESSALONICENSES ................................................................................................................ 225
5 HEIDEGGER E AGOSTINHO: EXEGESE E ATUALIZAO ..................................... 245
6 CONCLUSO ....................................................................................................................... 279
7 BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................... 283
7.1 OBRAS CITADAS ............................................................................................................... 283
7.2 OBRAS CONSULTADAS .................................................................................................... 287
10
1 INTRODUO
O estudo da hermenutica revelou-se, nas ltimas dcadas do sculo XX, um campo
extremamente frutfero em termos de publicao. possvel defini-la como a teoria ou
filosofia da interpretao do sentido (BLEICHER, [s.d.], p. 13). Sua origem na filosofia, no
entanto, remete a Aristteles. dele um tratado intitulado Peri Hermeneias que significa Da
Interpretao. A etimologia do verbo utilizado por Aristteles esclarece o significado
clssico da hermenutica: o verbo hermeneo compreende, de certa forma, a exposio do
pensamento mediante a palavra. Esta definio marca os rumos que seguiro os hermeneutas
clssicos, ou seja, a busca do entendimento do pensamento mediante a sua exteriorizao nas
palavras.
Mtodo filosfico por excelncia, sua influncia abrange as reas mais distintas, da
prpria filosofia ao campo literrio, teolgico, mdico, jurdico e artstico. A hermenutica,
vista por muitos como uma arte universal de interpretar o sentido dos textos, sejam eles
expostos na forma de leis, escritos profanos e/ou religiosos ou qualquer outro tipo de
manifestao do esprito humano (e esta uma contribuio do sculo XIX), possui a sua
aplicao mais valorizada no universo das cincias humanas diante da necessidade de
verificao de todos os mecanismos de interpretao vigentes, percebidos durante o processo
de busca do real sentido do discurso humano, seja ele literal ou simblico. Esta valorizao da
hermenutica no campo das cincias humanas atualmente decorre da discusso proveniente da
existncia ou no de um mtodo nas cincias humanas e sociais capaz de rivalizar, em termos
de eficcia, com o mtodo cientfico, cuja eficincia foi em tese demonstrada pelo sucesso
obtido pelas cincias naturais.
A palavra hermenutica, no entanto, traz consigo uma impreciso. Vista como
descrita acima, ela possui o sentido de explanar, tornar claro, explicar, traduzir etc., ou seja,
uma teoria da explicao. Neste sentido, hermenutica como um conhecimento aponta para
aquelas produes do saber que possuem a sua forma de expresso preferencialmente na
forma escrita. Na verdade, esta postura deve ser considerada clssica (anterior, como j foi
dito, ao sculo XIX). Classicamente falando ento, ela era cincia da interpretao dos textos
antigos. Tal postura revelou-se extremamente importante durante a Reforma Protestante,
quando se procurou descobrir o real sentido dos textos sacros antigos, no intuito de descobrir
os verdadeiros fundamentos da f crist (ao menos para os protestantes). Este objetivo
tambm deve ser percebido no ambiente jurdico, quando se procura descobrir a real inteno
de uma norma jurdica formulada em um passado recente ou distante, bem como nas aulas de
11
leitura e interpretao de textos clssicos, quando se almeja descobrir a inteno dos autores
tratados, realizando uma verdadeira reconstruo artstica das obras em questo,
intencionando descobrir (ou redescobrir) os objetivos pretendidos por seus autores.
Este entendimento da hermenutica, embora claro, como foi dito acima, impreciso.
A sua impreciso nasce justamente de sua viso limitada. Na verdade, o alcance da
hermenutica maior. Esta uma contribuio oriunda do sculo XIX. A dimenso filosfica
da hermenutica aponta para um sentido universal de compreenso da linguagem humana,
seja por meio dos conceitos, dos sentidos ou dos significados diversos. Desta forma possvel
afirmar, conforme Grondin (1999, p.12), que o alcance da hermenutica vai alm das cincias
meramente interpretativas, tais como a exegese clssica, a filologia ou at mesmo o direito, e
abrange todas as cincias e perspectivas de orientao da vida.
Heidegger estabelece as origens etimolgicas do termo com preciso.
A expresso hermenutica pretende indicar o modo unitrio de abordar,
concentrar, acessar a ela, isto , de questionar e explicar a faticidade. A
palavra (, ), deriva de , , [interpretar, interpretao, intrprete]. A etimologa da palabra
obscura. Est relacionada com [Hermes], o nome do deus
mensageiro dos deuses. Mediante algumas referncias pode-se localizar o
significado originrio do termo e tornar por sua vez inteligvel o modo como seu significado vai se transformando. Platn:
(os poetas so somente os mensageiros dos
deuses). Portanto, dos rapsodos, cujo trabalho consiste em recitar os poetas, se diz: ; isto : No sereis vs os
mensageiros dos mensageiros? [intrprete] aquele que
comunica, aquele que informa algum a respeito do que o outro pensa, isto , aquele que transmite, aquele que reproduz a comunicao, a noticia; cf
Sofista 248 a 5, 246 e 3: , informa: noticia o que os outros
pensam. (2012b, p. 15-16)
Nestas breves descries etimolgicas possvel perceber as diversas fontes da hermenutica
e apontar a diversidade dos caminhos percorridos pela mesma. Ao derivar o seu nome do deus
Hermes, a hermenutica salienta a ligao original com o viver religioso e com a necessidade
de decifrar, mediante a interpretao de algo originariamente transmitido via oral e
posteriormente por via escrita, a vontade dos deuses, ou mesmo de Deus, se for observado o
papel importante reservado para este saber nas religies monotestas baseadas na revelao
escrita. Visto na relao entre rapsodos e poetas, ou melhor, como intrprete dos intrpretes,
12
mergulha-se a hermenutica em sua dimenso artstica, em que a arte potica torna-se
decifradora ou nomeadora do sagrado, expressa mediante formato distinto do saber cientfico
ou filosfico. Por ltimo, descreve-se o hermeneuta como aquele que transmite ou notifica a
algum, por meio de um ato de mediao, o pensamento de outro, isto , aquele que consegue
efetuar no ato da interpretao o retorno do pensamento do outro de forma absolutamente
confivel, e esta a dimenso filosfica da hermenutica. Teologia, filologia, poesia e
filosofia: estas so as fontes, ao menos para Heidegger, que permitem compreender a
dimenso abrangente deste saber.
Embora a ideia da necessidade de uma cincia da interpretao seja antiga, ou seja,
remeta a um passado mais distante da realidade atual, a hermenutica como instrumental
tipicamente filosfico bem recente. O desenvolvimento histrico da hermenutica na sua
forma clssica realizou-se sem grandes sobressaltos at o sculo XVIII. Sua feio visvel era
nitidamente uma ars interpretandi, convergindo naturalmente para uma exegese (direito e
teologia) ou uma filologia (estudo de textos clssicos). possvel falar at em uma pr-
histria da hermenutica propriamente dita. Como um exemplo desta fase encontra-se o
esforo estoico em alegorizar os mitos gregos, indispensvel para o seu projeto de
manuteno de uma cosmoviso de mundo antigo que demonstrava sua fragilidade diante das
crticas dos telogos patrsticos apologetas.
Os motivos da interpretao alegrica dos mitos, ou seja, da alegorese, so
triplos. O primeiro de natureza moral: ela devia ajudar a eliminar o aspecto
escandaloso da literatura mtica [...] O segundo motivo, semelhante ao
primeiro, era de ordem racional. A Stoa queria demonstrar que a interpretao racional do mundo se coadunava com o mito, de certa maneira
como testemunho para a sua convico de que o logos universal o mesmo
em toda a parte. Finalmente, associava-se a estas uma motivao talvez utilitarista. Nenhum autor da poca queria dispensar a autoridade dos antigos
poetas. (GRONDIN, 1999, p. 59-60)
Neste sentido, compreende-se o esforo hermeneuta estoico de manter a tradio clssica da
mitologia antiga, embora sacrificando o sentido literal dos mitos em prol de uma interpretao
palatvel filosoficamente. O pragmatismo hermenutico com o objetivo de preservar um
patrimnio cultural , neste caso, inegvel.
13
Outra ocorrncia que pode ser citada como exemplo o esforo de Flon de
Alexandria em harmonizar o texto mosaico com a filosofia mediante o mtodo alegrico.
Filn chama de Moiss , o hermeneuta de Deus (o intrprete da vontade de
Deus) (HEIDEGGER, 2012b, p. 18). Mais um exemplo a tipologia bblica de Orgenes de
Alexandria, no qual se percebe a noo de que o texto bblico possuidor de uma tripartio
(sentido corporal, psquico e espiritual) e que tal diviso corresponde aos tipos de
interpretaes possveis. Com Orgenes observa-se nitidamente a influncia que o movimento
cristo exercia sobre os intrpretes, pois a leitura feita pelo mesmo do Antigo Testamento
tinha como perspectiva enxergar nos eventos narrados o cumprimento da profecia messinica
crist.
, porm, com Agostinho de Hipona que se encontra uma discusso sistemtica sobre
a palavra escrita seja como a encarnao da mesma ( revelao do divino) ou como
objetivao do esprito (leia-se interior) do autor. Em Agostinho descobre-se a relao entre o
contedo a ser interpretado e a disposio espiritual do intrprete, isto , percebe-se neste
autor (e isto foi visto por Heidegger) a relao entre o ato hermenutico e as inquietaes que
cercam o leitor-intrprete, disposies puramente subjetivas. O elemento ftico torna-se
presente nas discusses hermenuticas pela primeira vez. Heidegger chama a ateno para a
relao que existe entre a hermenutica e a vida ftica do homem: A expresso hermenutica
pretende indicar o modo unitrio de abordar, concentrar, acessar a ela, isto , de questionar e
explicar a faticidade (2012b, p. 15). Ao descrever a presena da hermenutica no
pensamento de Aristteles, ele salienta:
Aristteles: [] O ente enquanto vivente necessita da lngua para saborear
tanto para conversar a respeito da lida com as coisas; por isso, o saborear
um modo necessrio da lida com as coisas (sendo que, por isso, tambm se encontra em geral), o falar a algum e o falar de algo, porm, com os demais
(conversar a respeito de algo), existe para garantir o verdadeiro ser do
vivente (em seu mundo e com seu mundo). Aqui simplesmente substitui a palabra [conversa], isto , o falar a respeito de algo s
o modo ftico de realizar-se o , e o (a fala a respeito de algo)
ocupa-se do [...] (isto , a fala faz com
que o ente se manifeste, se torne acessvel, em sua serventia ou utilidade e em sua no serventia ou inutilidade, a fim de t-lo em e vista.
(HEIDEGGER, 2012b, p. 16)
14
A palavra hermenutica aponta, neste sentindo, no apenas para o simples processo de uso da
linguagem para o trato cotidiano entre os seres humanos, mas para um processo de
interpretao em que o logos assume um formato ftico, delimitado pela existncia humana,
possibilitando o acesso ao ente.
Esta faticidade do intrprete ntida em Agostinho. possvel consider-lo como o
autor da maior obra hermenutica textual da antiguidade, hermenutica esta que antecipava
posturas existenciais necessrias ao intrprete. Afirma Heidegger (citado por Grondin), em
suas lies do semestre de vero de 1923:
Augustinus fornece a primeira hermenutica de grande estilo: com que
disposio deve a pessoa aproximar-se da interpretao de passagens no transparentes da Sagrada Escritura no temor de Deus, no cuidado de procurar
nas Escrituras a vontade de Deus; impregnado de piedade, para que no
tenha prazer em contendas de palavras; revestido de conhecimento de
linguagem, para que no fique preso em palavras e maneiras de falar desconhecidas; guarnecido com o conhecimento de determinados objetos e
ocorrncias naturais, que foram aduzidas como ilustrao, para que no
minimize sua fora compulsria, subsidiado pelo contedo da verdade.
(Heidegger apud GRONDIN, 1999, p. 72)
Ou seja: pela primeira vez um conjunto de regras interpretativas desloca-se da exterioridade
do texto e passa a levar em considerao a postura existencial do intrprete. No so apenas as
regras frias e objetivas que devem ser consideradas no ato hermenutico, mas a disposio
interna com que se faz a abordagem textual.
Em Agostinho encontra-se a recuperao do sentido de encontro do ser na linguagem,
numa clara oposio ao aspecto tcnico-nominalista derivado da ontologia grega. Embora
exista definitivamente no autor a presena de regras de interpretao textual ntidas, a tenso
existencial sempre se faz presente. Este aspecto torna a hermenutica agostiniana muito mais
abrangente, ultrapassando inclusive perspectivas hermenuticas posteriores, conforme o
prprio Heidegger apontou numa comparao entre Agostinho, com sua tenso existencial
que acompanha o ato hermenutico e Schleiermacher, considerado por muitos o fundador da
hermenutica moderna.
15
Schleiermacher, posteriormente, restringiu a ideia de hermenutica, pois, em
vista do carter de geral e ativo (cf. Agostinho), da arte (doutrina da arte) da
compreenso da fala de outros, ele coloca-a em relao, enquanto disciplina, com a gramtica e a retrica, com a dialtica; essa metodologa
formal, e enquanto hermenutica geral (teora ou doutrina da arte de
compreender a fala dos outros de modo geral) abrange as hermenuticas
especiais, a hermenutica teolgica e a hermenutica filolgica.
(HEIDEGGER, 2012b, p. 20)
Schleiermacher reduz de certa forma o alcance do ato hermenutico. Ao transform-lo em
uma disciplina formal cuja funo consiste em entender o que foi afirmado por outro, afasta-
se da pretenso agostiniana, que via a hermenutica como um processo que tinha a sua origem
numa correta disposio espiritual do intrprete, e que culminava ou no completo
entendimento do texto ou na confisso paradoxal da impossibilidade de sua compreenso
plena.
O intrprete passa a ser alvo de um interesse especial. No so apenas os mtodos de
interpretao que constituem a arte interpretativa, mas principalmente o intrprete como
elemento ftico, vivencial, temporal. o papel do intrprete que preciso investigar, algo que
s comeou a ser alvo de certa suspeita por parte da hermenutica a partir do sculo XIX,
at ento obcecada com a ideia da existncia de um mtodo objetivo e frio, capaz de
conduzir, isento de falhas, ao ato interpretativo correto. com Heidegger e seu retorno
exegese crist apostlica e patrstica (principalmente com Agostinho), que se percebe a
reviravolta deste processo hermenutico de forma mais incisiva no mundo contemporneo,
culminando na discusso sobre estruturas prvias do entendimento em Ser e Tempo.
Em Heidegger percebe-se uma tentativa de interpretar aquilo que est por trs do que
deve ser interpretado, ou seja, as elocues apenas nos indicam exteriormente a presena do
ser-a que deve ser compreendido primeiramente. O que deve ser alvo de um processo
hermenutico , primordialmente, a relao do homem com o mundo, do homem em situao,
como uma espcie de perspectiva prvia para a investigao da linguagem exteriormente
dada.
Afastando-se da noo de que caberia hermenutica a formulao de uma doutrina
da interpretao, encontra-se, a partir de Heidegger, a perspectiva de que caberia ao prprio
ato interpretativo uma interpretao, ou seja, o prprio processo hermenutico deveria ser
alvo de uma investigao capaz no apenas de um ato de compreenso verdadeira, mas
16
indicar os fundamentos deste compreender. No processo hermenutico no apenas algo
compreendido, mas o prprio intrprete, o ser-a, tambm, e principalmente, o alvo da
compreenso.
Para anlise desta questo contempornea torna-se necessrio um retorno quele que
teria sido o primeiro a perceber a presena e a importncia do papel existencial do intrprete
durante o processo hermenutico: Agostinho de Hipona. Por qual motivo? A anlise da tenso
existente entre a possibilidade de guiar-se rigidamente por regras estabelecidas, e desta
maneira antecipando a discusso sobre a ditadura de um mtodo, ou optar por uma via que
oscilava entre a razo e a mstica, reveladora das tenses internas, torna Agostinho um
personagem emblemtico na histria, essencial para o resgate da discusso do intrprete como
sujeito histrico determinado, lanado no mundo, vivenciando-o a partir dos seus
preconceitos, aqui entendidos no aspecto positivo gadameriano.1 A longa introduo geral
escrita por Lope Cilleruelo (1969, p. 35-36) obra Sobre la doctrina cristiana fornece uma
ideia da complexidade hermenutica agostiniana.
El lenguaje de San Agustin ofrece no pequeas dificuldades. Muchas
expresiones, por ejemplo, no se pueden tomar a la letra: atribuyen a Dios lo
que es obra tan slo mediata de Dios; asi, se atribuyen a Dios, no slo
diversos sentidos literales y no literales, sino tambin las opiniones verdaderas de los exegetas y hasta las del lector. Esta es la razn de su
libertad de interpretacin. Adems, por sus tendencias parenticas se aparta
no pocas veces del sentido hermenutico puro y da lugar a digresiones, que atribuye del mismo modo a la Biblia. Finalmente, aunque a vezes nos da
definiciones, que quieren ser precisas, ni esas definiciones corresponden a
las nuestras, ni tampoco es constante l mismo em mantenerlas. Nos define,
por ejemplo, qu son alegoria, smbolo, tipo, etc., pero el lector no puede forjarse ilusiones sobre su definicin ni sobre su emplo. Acostumbrado,
como estaba, a utilizar su propia memoria a modo de concordancias bblicas,
sus leyes de asociacin no corresponden tampoco al uso generalmente
preciso y cientfico que nosotros solemos hacer de los textos.
Este retrato deveras severo. Agostinho acusado de ser possuidor de uma interpretao
extremamente liberal, de inconstncia nas definies, de fazer associaes interpretativas que
no resistem a uma anlise mais precisa. Esta percepo acima traioeira e enganosa. Este
1 O termo gadameriano aqui utilizado relaciona-se com a discusso sobre o papel das pr-concepes interpretativas na obra de Hans-Georg Gadamer (1900-2002), um dos maiores expoentes da hermenutica filosfica do sculo XX.
17
retrato no pode ser a descrio exata daquele hermeneuta elogiado por Heidegger em
Ontologia (hermenutica da faticidade). Mas como entender as variaes interpretativas
realizadas por Agostinho, que iam de encontro a regras hermenuticas previamente
estabelecidas, inclusive pelo prprio? Quando se investiga as alternativas propostas para, por
exemplo, compreender os trechos iniciais do livro de Gnesis, a oscilao entre a literalidade
textual e a alegorizao espiritual tornam-se visveis. Como entender tal processo, a no ser
empreendendo o resgate do intrprete como homem do mundo, ser marcado por um projeto de
existncia, com o entendimento fundamentado por concepes prvias, algo delineado
posteriormente por Heidegger? Mas torna-se necessrio um passo alm. preciso tambm
verificar no apenas a historicidade do intrprete, que ao interpretar compreende-se como ser
situado no mundo, mas tambm o lugar destinado para as preconcepes que acompanham
este sujeito e que fazem parte tambm do seu situar-se histrico e concreto, e esta uma
variao do pensamento de Heidegger a ser abordado neste trabalho, como parte das reflexes
finais do mesmo.
A aplicao das teses de Heidegger para o problema hermenutico agostiniano tornar
possvel construir um processo de conciliao entre leituras interpretativas aparentemente
dspares de um mesmo autor. Aquilo que numa viso ortodoxa seria cunhado como inexatido
assume, a partir de uma filosofia existencial, o aspecto de coerncia interna, de nveis
interpretativos mais interiores, de atualizao constante de textos antigos, escapando desta
forma do formato frio de uma normatizao hermenutica objetiva, bem como da
responsabilidade de confrontar tais teses com o objeto de anlise.
Um esclarecimento ainda faz-se necessrio. Retomando pergunta formulada? Por
qual motivo a escolha recaiu sobre Agostinho de Hipona? Agostinho aqui tomado como um
exemplo de caso, tratamento incomum em trabalhos de filosofia. Sua escolha deve ser
justificada no apenas pela importncia que lhe atribuda na histria do pensamento
teolgico e filosfico, mas, principalmente, por sua contribuio histria da hermenutica,
ou seja, tanto devido a sua importncia para a histria do pensamento filosfico e teolgico
como pelas implicaes contidas na sua arte interpretativa. A exposio das interpretaes
textuais que se afastam daquilo que afirma explicitamente o texto lido poderia ter como
exemplo a ser estudado outros autores, sejam eles ligados tradio filosfica ou no. Nomes
caros tradio como Paulo de Tarso, Justino de Roma, Orgenes e Clemente de Alexandria,
18
Ambrsio etc., poderiam ter sido elencados como escritores que realizaram leituras
interpretativas "desautorizadas" pela literalidade do texto por eles abordado.
Agostinho escolhido neste trabalho tanto por se encaixar na perspectiva de ter
realizado leituras questionveis do ponto de vista de uma hermenutica mais fechada (no
sentido de priorizar a anlise literal do texto bblico) como de ter sido resgatado por
Heidegger como aquele que permitiu, a partir da leitura de seu texto, a discusso sobre a
faticidade do intrprete. Como ser feito tal processo? A partir de um conjunto de leituras
feitas por Agostinho a um mesmo grupo de textos em perodos distintos. A ideia verificar se
diante de um mesmo conjunto de escritos existem interpretaes distintas, em perodos no
distantes temporalmente. Por que os comentrios exegticos ao Gnesis e no outras
abordagens ao texto bblico? Porque tais comentrios so importantes na compreenso da
polmica antimaniqueia, bem como nas clssicas discusses agostinianas sobre o tempo,
relevantes em demasia para a filosofia. Embora tais discusses sejam importantes, no caso a
polmica contra os maniqueus e a questo do tempo, elas no sero aqui abordadas
diretamente, em virtude do interesse principal deste trabalho.
O comentrio do autor ao texto bblico tambm outro aspecto a ser levado em
considerao nas escolhas dos materiais a serem analisados. No possvel esquecer que a
Escritura assumia uma importncia fundamental para o mesmo. Agostinho no apenas
acreditava estar diante de um texto clssico. Cria estar diante da revelao do absoluto, ou
numa expresso mais conhecida, diante do infinito revelado na forma finita da escrita. O
texto, desta forma, continha ou revelava o infinito, o absoluto, o divino. Mais ainda: o texto
era a revelao do prprio absoluto, do infinito, do divino. Neste sentido, entender o texto
significa o processo de o finito (homem) ter conhecimento do infinito (o divino) em um
determinado momento histrico. nesta perspectiva que deve ser lembrado o cuidado
rigoroso do autor com o ato interpretativo. As regras hermenuticas eram preocupaes
metodolgicas para que no se perdesse o contedo pleno da revelao. Agostinho delineia as
primeiras regras hermenuticas crendo no aspecto absoluto da verdade revelada. Era preciso
interpretar de forma correta o texto revelado. As interpretaes no poderiam variar dentro de
uma perspectiva eclesistica. No entanto, como ser mostrado neste trabalho, percebe-se certa
oscilao hermenutica do mesmo nas interpretaes distintas para um mesmo texto em um
perodo relativamente curto. Como conciliar este aspecto hermenutico agostiniano luz de
suas prprias regras de interpretao, que apontam para a necessidade de uma interpretao
19
unificada? Na verdade, justamente este aspecto aparentemente contraditrio aquele que
revela o aspecto existencial do intrprete, e que o prprio Agostinho assume sem o perceber.
A proposta deste trabalho consiste em investigar as variaes interpretativas
encontradas em Agostinho de Hipona nas suas reflexes sobre o livro do Gnesis (Sobre o
Gnesis, contra os maniqueus, Comentrio literal ao Gnesis- inacabado, Confisses - livros
XI-XIII e Comentrio literal ao Gnesis, alm de breves aluses contidas na obra A Cidade
de Deus, livros XI-XIV), salientando as diversas tentativas exegticas por parte do autor
nestas obras. A descrio destas exegeses distintas acerca de um nico texto ser confrontada
com princpios hermenuticos formulados pelo prprio autor e contidas em um trabalho
intitulado A Doutrina Crist. A inteno principal tornar visvel o papel do intrprete que
diante de um mesmo texto, em um curto perodo de tempo, alterna de forma mais ou menos
expressiva sua interpretao textual, mesmo existindo orientaes normativas que
regulamentam estas interpretaes.
Ao analisar este conjunto de textos previamente escolhidos, ou seja, os diversos
comentrios feitos por Agostinho aos trs primeiros captulos do Gnesis tornar-se-o
perceptveis as variaes hermenuticas do autor que, partindo de aplicaes alegricas
praticamente aleatrias e passando por um platonismo mosaico, culminar numa ortodoxia
estoica, bem como no afastamento do autor das regras que deveriam regulamentar estes
tipos de aportes. Desta forma espera-se salientar o fato do texto a ser interpretado no ser
visto apenas como algo esttico, alvo de uma metodologia hermenutica pr-definida, mas o
espao de interao entre o mesmo e o autor, resultando deste processo exegeses nitidamente
distintas em maior ou menor grau. Com este objetivo, aps uma breve descrio histrica da
evoluo da exegese bblica, examina-se o esforo hermenutico agostiniano nas obras acima
citadas salientando as distines entre as mesmas. Este exemplo de caso constituir a primeira
parte do trabalho.
A segunda parte do trabalho ser norteada nitidamente pela teoria hermenutica
existencial formulada por Heidegger ao analisar as epstolas paulinas e os escritos de
Agostinho na obra Fenomenologia da Vida Religiosa (1920/21),2 bem como no
2Fenomenologia da vida religiosa (Phnomenologie des religisen Lebens) est dividida em: 1) Introduo fenomenologia da religio (Einleitung in die Phnomenologie der Religion), no semestre de inverno 1920/21; 2) Agostinho e o neoplatonismo (Augustinus und der Neuplatonismus), no semestre de Vero 1921, e 3) Os fundamentos filosficos da mstica medieval (Die Philosophischen Grundlagen Der Mittelalterlichen Mystik), constituindo de elaboraes e esboos para uma preleo no proferida (inverno de 1918/19).
20
esclarecimento de alguns conceitos oriundos desta abordagem hermenutica a partir de um
enfoque existencial na obra Ontologia (hermenutica da faticidade)3, redigida no semestre de
vero de 1923.4 Esta sequncia de abordagem de obras datadas do incio dos anos vinte
permitir acompanhar a discusso heideggeriana acerca de a cristandade primitiva ser o
outro do grego, e isto se manifestava nas posturas que poderiam ser extradas dos prprios
escritos cristos, por intermdio dos indcios formais existenciais, coincidindo tal postura
crist com a busca por parte de Heidegger da formulao de outra ontologia, distinta daquela
formulada pelos gregos, bem como perceber o redirecionar do olhar filosfico, do mundo
objetivo, e neste trabalho especificamente, do texto objetivado para o leitor/intrprete como
ser-lanado-no-mundo, vivendo ou no uma vida autntica.
De que forma esta anlise da abordagem heideggeriana ser realizada? Em primeiro
lugar ser observada, ainda que de forma sucinta aps uma breve exposio do
desenvolvimento da hermenutica na modernidade, a mudana paradigmtica de Heidegger
no que concerne hermenutica como arte da compreenso. A hermenutica assumir, para o
autor, um papel principal na abordagem fenomenolgica do Dasein, e desta forma, a
hermenutica textual ser metamorfoseada em hermenutica existencial, retornando, segundo
Heidegger, ao seu sentido original, que revelar o ente que possui carter ontolgico. Ao
discutir o carter existencirio do a, ser salientado que a interpretao, entendida como o
entender-explicitante, fundamentada por uma estrutura prvia que guia o intrprete em sua
anlise e mesmo que esta abordagem esteja relacionada interpretao do Dasein, a mesma
pode ser remetida ao carter textual da hermenutica, como Rudolf Bultmann, telogo que
aplicou estes direcionamentos heideggerianos para a anlise de textos considerados sacros, ir
demonstrar claramente.
Em segundo lugar ser verificado a forma como Heidegger examina o texto bblico
paulino e a reflexo agostiniana sobre o livro X das Confisses. A tese subjacente a esta
investigao que a forma como Heidegger examina os textos ora citados, o paulino e o
3 Doravante, neste trabalho, esta obra ser nomeada com o termo Ontologia, embora o prprio Heidegger tenha afirmado que o ttulo que melhor correspondia temtica e o tratamento empregado era Hermenutica da faticidade (HEIDEGGER, 2012b, p. 9). Esta opo deriva apenas do cuidado em no confundir a palavra hermenutica, usada muitas vezes neste trabalho, com o subttulo da obra heideggeriana. 4 Embora o texto Interpretaes Fenomenolgicas sobre Aristteles: Introduo investigao fenomenolgica
(semestre de inverno 1921/22) seja importante como esclarecedor da noo de faticidade, ela ser preterida nesta investigao em virtude do extenso espao que esta tese alcanou. A escolha da obra Ontologia deve-se tambm ao fato de que Heidegger, nos anos cinquenta, mencion-la diretamente como um texto em que ele refletia a questo hermenutica em um sentido existencial, marcando explicitamente a sua mudana de postura em relao hermenutica clssica.
21
agostiniano, permite verificar que o autor direciona seu olhar para os mesmos a partir de uma
preconcepo, que neste caso seria a reviravolta hermenutica, de textual para existencial. Se
em Heidegger no possvel perceber uma variao hermenutica em virtude do mesmo ter
comentado os referidos textos apenas uma vez, ser ntido o olhar pautado por um recorte
especfico que direciona sua anlise, vendo no texto aquilo que aparentemente no foi dado,
ao menos explicitamente.
O objetivo mostrar que nas indicaes existenciais heideggerianas existe, embora de
forma embrionria e direcionada ao Dasein, uma perspectiva hermenutica capaz de elucidar
as variaes interpretativas, ou seja, textos que recebem tratamentos diversos em certo
perodo temporal, e neste caso especfico, o tratamento dado por Agostinho aos versos iniciais
do livro do Gnesis. No se trata aqui de saber quais as interpretaes esto corretas ou se a
hermenutica posterior a partir de Heidegger dar soluo a estas variaes interpretativas. O
foco aqui mostrar as citadas alternncias de interpretao e como possvel entender tal
processo a partir de uma elucidao hermenutica posterior. E apenas isto. As mesmas
indicaes heideggerianas tambm serviro para salientar o fato de que ao agir como
hermeneuta textual, ao comentar o material paulino e agostiniano, Heidegger pe no texto
aquilo que ele anteriormente no possua, ou seja, afirmado algo que o texto no autoriza ou
no afirma de forma direta.
No se pretende com esta proposta encontrar um mtodo heideggeriano
hermenutico. No havia este objetivo quando Heidegger realizou a interpretao
fenomenolgica nos textos paulinos e agostinianos. Alis, tais textos foram escolhidos
justamente pela singularidade de tais abordagens. Estas leituras no sero doravante feitas
pelo autor. A ideia de descrever as oscilaes interpretativas de Agostinho, tomadas aqui
apenas como exemplo de caso, e as interpretaes existenciais heideggerianas, vistas aqui
tambm como outro exemplo de caso de hermenutica textual, que mediante tais formas de
abordagem permite-se revelar, no interpretar de um texto, a compreenso tambm de quem
interpreta, de um sujeito lanado-no-mundo, marcado por premissas previamente dadas e que
orientam a sua interpretao.
Esta abordagem, ainda que de forma sucinta de uma perspectiva de elucidao no
campo da hermenutica, oriunda de indicaes heideggerianas para casos de variaes
interpretativas bem como de abordagens feitas a partir de determinados pontos de vista, como
no prprio projeto existencial de Heidegger, permitir compreender tambm a apropriao
22
que os autores do Novo Testamento fizeram das profecias messinicas do Antigo Testamento
visveis no ato da proclamao (gr. kerygma) crist, especialmente nos evangelhos e nas
epstolas paulinas, alm das releituras sempre presentes no campo da filosofia.
Sinteticamente, portanto, este trabalho possui como objetivo verificar a possibilidade
de uma hermenutica baseada em pressupostos existenciais desenvolvidos por Heidegger nos
anos vinte vir a ser utilizada como instrumento capaz de elucidar certas interpretaes textuais
que se distanciam das aproximaes interpretativas que tendem a ver na produo escrita uma
literalidade objetiva, ou que o texto explica-se por ele mesmo. Estas abordagens no
objetivistas recusam-se a encontrar na produo literria as fronteiras limtrofes dadas pelo
prprio texto ou a intencionalidade do autor da obra em um processo de reconstruo da
mesma. Nestas abordagens no objetivantes o intrprete que ultrapassa os limites dados pelo
prprio texto reconhecendo ou vendo estruturas interpretativas que no estavam reveladas
explicitamente. Agostinho de Hipona um exemplo deste agir hermenutico. Suas reflexes
sobre o Gnesis bblico refletem a possibilidade de um autor situar-se diante de um mesmo
texto, em um curto perodo de tempo, realizando interpretaes distintas, mesmo diante de
regras hermenuticas existentes estabelecidas, inclusive pelo prprio autor.
No intuito de compreender este agir por parte do prprio intrprete, descreve-se neste
trabalho a reflexo feita por Martin Heidegger sugerindo uma hermenutica baseada na
existncia e no no universo textual, uma hermenutica da faticidade, do ser ftico, do Dasein
como intrprete de s-mesmo. No processo de interpretar a s, Heidegger aponta a
possibilidade deste processo de autocompreenso equivocar-se ao no levar em considerao
uma estrutura pr-existente da compreenso, existente na constituio existenciria do a,
formadora dos conceitos prvios que fundamentam o ato interpretativo. Deixar de considerar
estes elementos prvios corresponde possibilidade de estabelecer-se, no ato interpretativo,
um crculo hermenutico, crculo este vicioso, pois pe no objeto pesquisado aquilo que j foi
pressuposto interiormente. O alerta feito por Heidegger sobre a anlise do Dasein foi tambm
ampliado para o campo da hermenutica tradicional, isto , da interpretao clssica de textos,
cabendo a Rudolf Bultmann o primeiro a chamar a ateno para este uso de forma explcita.
Em ltimo lugar, aps ter verificado os pressupostos bsicos desta hermenutica
existencial aplicado sua forma tradicional, isto , a de interpretao de textos, esta pesquisa
tambm procurou demonstrar como foi possvel tambm ao prprio Martin Heidegger em
suas anlises das epistolas paulinas bem como em comentrios sobre as Confisses de
23
Agostinho de Hipona ultrapassar os limites impostos pelos prprios textos em um processo
descrito pelo autor como atualizao dos mesmos a partir de um reescrever contemporneo,
e desta forma tanto ele, Heidegger, como Agostinho e sua interpretao do Gnesis, realizam
uma interpretao a partir de uma perspectiva peculiar, ou seja, apropriando-se do texto dado
e impondo sua prpria interpretao do mesmo.
24
2 ALEGORIA OU LITERALIDADE: AS PRIMEIRAS ABORDAGENS
HERMENUTICAS DE AGOSTINHO AO GNESIS BBLICO
2.1 TEXTO LITERAL OU ALEGORIZAO TEXTUAL? UMA SNTESE DA
ABORDAGEM AO TEXTO BBLICO
Um dos pontos centrais do pensamento cristo , sem sombra de dvida, o
entendimento do mundo a partir do relato da criao. Ao contrrio dos gregos e romanos, no
possvel encontrar no pensamento cristo a ideia de uma cosmogonia, entendida no formato
mtico que se caracterizava por uma narrativa da gerao de um cosmos mediante o
entrelaamento de divindades mais ou menos numerosas. A perspectiva crist toma como
ponto de partida de sua viso de homem e de mundo o conjunto de textos judaicos relativos
origem de todas as coisas a partir do ato criativo de Deus. Este conjunto de escritos
conhecido como Gnesis (hebraico Bereshit)5 e descreve, de forma extremamente sucinta nos
seus captulos iniciais, o ato criador divino em etapas, apresentadas como dias, culminando no
stimo dia, o dia do encerramento da criao, o dia do descanso divino.
Esta exposio abrange os trs primeiros captulos do referido livro. Um olhar mais
cuidadoso perceber que estes captulos no formam um todo coeso. Na verdade, ntido que
esta narrativa dos princpios composta de dois documentos distintos: o inicial, abrangendo o
captulo primeiro at o incio do captulo segundo (1:12:4a) e o outro documento abrangendo
o incio do segundo captulo e todo o captulo terceiro (2:4b3:24). O entendimento desta
independncia textual claro para os intrpretes modernos, porm desconhecido para os
autores cristos nos primeiros sculos do cristianismo. Desta forma, o processo de
interpretao destes autores cristos aos textos iniciais do Gnesis no pode ser entendido da
mesma forma em que atualmente tal abordagem efetuada.6
Outro aspecto a ser levado em considerao aquele que diz respeito dependncia
do cristianismo dos textos bsicos religiosos judaicos, conhecidos dentro da cosmoviso crist
como Antigo Testamento. Nas suas origens possvel afirmar que o cristianismo no possua
um mtodo hermenutico prprio, lanando mo de princpios de interpretao originados do
5 Todas as transcries dos versculos bblicos neste trabalho sero baseados na traduo da Bblia para o
portugus na verso Almeida Revista e Corrigida datada de 1969. 6 Tal abordagem contempornea pode ser vista com facilidade tanto em notas introdutrias e de rodap em Bblias de grande aceitao popular, tal como a Bblia de Jerusalm (2002, p. 21-31, 33-39), ou em textos de reconhecida abordagem crtica ao texto bblico, como pode ser exemplificado na obra O Pentateuco em Questo, de Albert DE PURY (1996, p. 89-99).
25
judasmo; a diferena capital seria que tais interpretaes teriam um vis naturalmente
cristolgico (BARRERA, 1995, p. 593-594). Este vis cristocntrico nitidamente percebido
nas palavras de Jesus quando o mesmo considerava o cumprimento das profecias judaicas em
si mesmo, bem como na percepo escatolgica de sua misso. Esta forma de entendimento
do texto judaico ampliado pelos evangelistas que narraram a vida de Jesus, bem como pelos
apstolos, o que pode ser facilmente percebido na leitura das cartas apostlicas doutrinais. Em
resumo, esta leitura cristolgica do Antigo Testamento torna-se uma prtica comum da igreja
crist primitiva.7
A formao de um cnon cristo j a partir do sculo II torna visvel o afastamento do
Antigo Testamento como o nico grupo disponvel de escritos sacros. A partir do momento
em que passa a existir um conjunto de escritos tipicamente cristo, o cristianismo passa a
viver um conflito de ordem interna e outro de origem externa: admitir ou excluir o patrimnio
veterotestamentrio (ordem interna) bem como aceitar ou negar a influncia da cultura greco-
romana (conflito externo), que aparecia como veculo de expresso e realizao da nova f
(BARRERA, 1995, p. 626). Desta forma, o uso dos textos do Antigo Testamento por parte
dos autores cristos na forma literal ou alegrica, passou a depender da perspectiva em que os
mesmos entendiam a economia da salvao, e neste entendimento, a aproximao ou o
afastamento dos escritos judaicos era delineado.
Tal postura no impediu o surgimento de tendncias dentro ou prximo ao
cristianismo que passaram a repudiar todo o corpo de escritos que formavam o Antigo
Testamento, negando-lhes qualquer importncia cannica e mesmo at qualquer tipo de uso
dos mesmos, seja literal ou alegrico. Esta atitude pode ser exemplificada na crtica feita por
Marcio ao texto do Antigo Testamento, como na leitura gnstica do mesmo efetuado por
Valentino. A reao de Irineu de Lyon postura gnstica de Valentino no sculo II ilustra o
posicionamento que a igreja crist passa a assumir frente a este problema. Irineu lana mo da
leitura alegrica dos textos do Antigo Testamento no intuito de unir os escritos judeus com os
novos escritos cristos, garantindo assim uma unidade entre os dois grupos de escritos. Como
bispo, coube a Irineu tambm inserir como fator novo nesta discusso o peso da autoridade da
tradio, aqui representada pela igreja.
7 Esta discusso sobre a hermenutica crist e sua interpretao cristolgica do Antigo Testamento pode ser vista de forma minuciosa em Barrera (1995, p. 593-622).
26
Irineu estabelece j o princpio da exegese na igreja, que encontrar
grande desenvolvimento mais tarde na oposio que se pode denominar
exegese de ctedra. A exegese h de concordar com a compreenso que a tradio da Igreja tem da Escritura (regula fidei). A interpretao no pode
basear-se unicamente em critrios racionais, mas levar em conta a doutrina e
autoridade da tradio, transmitida pela igreja desde os tempos apostlicos.
Este princpio de interpretao encontra sua justificao no fato de que a tradio da igreja de algum modo anterior prpria Escritura, criada pelos
primeiros apstolos e seus discpulos. (BARRERA, 1995, p. 630)
Irineu pe desta forma a autoridade interpretativa da igreja como critrio de interpretao
superior ao entendimento individual. a igreja a real intrprete das Escrituras, pois foi desta
maneira que a mesma agiu deste a sua fundao, com os apstolos e os primeiros discpulos.
No entendimento da igreja primitiva j estavam lanadas as bases para a leitura unitria dos
dois conjuntos de textos, aqueles decorrentes do judasmo e o conjunto de textos formulados
pela gerao de discpulos e apstolos de Jesus.
A interpretao dos textos do Antigo Testamento foi desta forma orientada por duas
tendncias distintas, mas que se complementaram no decorrer dos sculos. De um lado a viso
de mundo cristocntrica, ou seja, uma leitura de mundo determinada a partir da vida-morte-
ressurreio de Cristo, tornando possvel para o cristo-intrprete entender a realidade a partir
de um critrio interno, vivido, existencial, tendo como ponto de partida a sua converso ao
cristianismo. Uma nova vivncia subjetiva formada. Sua cosmoviso orientada a pautar-se
pela mstica crist. Cristo via a si mesmo como cumprimento das profecias do Antigo
Testamento. Os evangelistas, ao reproduzirem os logia de Jesus, reafirmaram tal perspectiva.
As cartas doutrinais do Novo Testamento enfatizam este fato.8 O cristo molda a sua vida a
partir da noo de que Cristo de fato o centro da histria. O seu olhar para os textos judaicos
refletir esta perspectiva. A escatologia torna-se presente e algo vivida, sentida, desejada. O
mundo reinterpretado a partir deste viver cristocntrico. Os textos, sagrados ou no, no
escapam deste processo de reinterpretao da realidade.
A outra tendncia aquela j delineada por Irineu de Lyon, no sculo II: a autoridade
da tradio da igreja. Contrrio postura de um subjetivismo sem controle, a igreja seria o
contraponto firme e incontestvel. a tradio da igreja que, em ltima instncia, determina o
critrio do certo e do errado em matria de interpretao textual. A igreja antecede prpria
8 Sobre o uso, s vezes arbitrrio, da interpretao cristolgica dos textos do Antigo Testamento pelos autores do Novo testamento, ver A Bblia judaica e a Bblia crist (BARRERA, 1995, p. 599-611).
27
existncia do Novo Testamento textual, e foi a igreja que soube, como ningum, definir os
reais critrios de interpretao, ou seja, a correta compreenso dos textos deve concordar, no
com critrios racionais, mas com a doutrina e a autoridade da tradio eclesistica. Esta uma
postura que ganha fora medida que a instituio comea a galgar posies de hegemonia
dentro do imprio romano. a igreja que se institucionaliza e padroniza o discurso exegtico.
O dogma passa a ser levado em considerao no processo de exegese. No basta a vivncia
cristocntrica; preciso a concordncia doutrinal eclesistica. A escolha pela alegoria ou pela
literalidade textual deixa de ser um critrio individual, passando a ser mediatizado pela
instituio.
Somente no sculo III E.C. colocada a questo do problema hermenutico
propriamente dito com as escolas alexandrina e antioquena. O uso da liberdade e da
racionalidade no processo de exegese exige agora uma postura mais definida. De forma
velada est tambm em jogo a tradio exegtica oriunda do judasmo que influenciava a
escola antioquena e a recepo de uma tradio helenstica acolhida pela escola de
Alexandria.
O mtodo alegrico, que ser utilizada posteriormente por Agostinho, tinha as suas
origens no helenismo. Tambm foi utilizada por Flon de Alexandria no intuito de interpretar
os textos bblicos que continham expresses que, se entendidas de forma literal, soariam como
extremamente embaraosas em relao divindade ou mesmo para a compreenso dos
elementos histricos registrados na narrativa bblica. Para os helenistas, especialmente os
estoicos, a leitura alegrica possibilitava um processo de releitura dos mitos homricos,
desfazendo o aspecto deveras desagradvel que porventura pudesse ser encontrado em suas
narrativas. Os cristos serviram-se amplamente deste tipo de procedimento para interpretar o
Antigo Testamento em uma perspectiva crist, bem como uma ferramenta que permitiria uma
leitura esclarecedora de passagens obscuras da Bblia.9 Nomes como Clemente e Orgenes de
Alexandria so os mais famosos expoentes do uso alegrico como ferramenta de interpretao
das Escrituras Sagradas. A alegoria era compreendida como uma ferramenta capaz de permitir
um entendimento mais abrangente das Escrituras, bem como defesa eficaz contra aqueles que
9 O uso alegrico que o Apstolo Paulo faz de passagens do Antigo Testamento, tais como a imagem da rocha de Moiss (I Corntios, 10:4) ou da relao entre Sara e Hagar (Glatas, 4:21-31) como tipos da liberdade crist, ou mesmo do excessivo uso de tipos encontrados na Epstola aos Hebreus, demonstra que a alegoria como mtodo exegtico encontra-se nas razes textuais do Novo Testamento.
28
acusavam o texto bblico de incoerncias.10
Tal uso no significava a iseno completa contra
o erro, a tergiversao ou o mal-entendido, ao menos em uma perspectiva ortodoxa, mas
reduzia de forma significativa os ataques ao texto por parte dos adversrios do cristianismo.
Desta forma, o intrprete situava-se em uma postura livre das amarras da ortodoxia, como
prefigurava a posio de Irineu de Lyon, e ao mesmo tempo defendia de forma pertinente a
sua f.
A escola de Antioquia, influenciada pelo rabinato existente naquela localidade,
inclinava-se para a interpretao literal do texto bblico. Havia uma clara oposio dos
antioquenos exegese alegrica. A revelao da salvao era dada e compreendida
historicamente, e no algo dissolvido ou amalgamado em smbolos e ou alegorias, ao sabor da
livre interpretao do leitor.11
O fato que a cristandade do sculo III defrontava-se com duas
tendncias opostas, a leitura literal ou a leitura alegrica, como ferramentas para a
interpretao do texto bblico.
Tanto para Flon como para os Padres do cristianismo, algumas passagens do
AT devem ser interpretadas somente em sentido alegrico, outras somente
em sentido literal e outras tanto no literal como no alegrico. Os dois tipos de interpretao alternam-se sem regras precisas que regulem o seu uso. O
perigo a ser enfrentado era, em todo o caso, de uma exegese selvagem:
qualquer um podia reivindicar ter recebido uma revelao divina e, sem sujeio regra exegtica alguma, aferrar-se interpretao do texto que
melhor lhe agradasse. Santo Agostinho ainda enfrentou tendncias deste
tipo. (BARRERA, 1995, p. 640-641)
As interpretaes literais, alegricas ou a mistura das duas eram executadas com aparente
falta de critrio. Embora houvesse a regula fidei desde os primeiros anos do cristianismo ps-
10 esta, por exemplo, a aplicao que faz Orgenes de Alexandria em Contra Celso (2004). Celso, um platnico ecltico, publicara uma obra intitulada O Discurso Verdadeiro no final do segundo sculo (E.C.) ridicularizando a narrativa do Antigo Testamento e pondo em dvida o credo do Novo Testamento. A defesa que Orgenes faz da narrativa bblica basicamente alicerada no mtodo alegrico. Este o mtodo em que, segundo Orgenes, qualquer leitor bem avisado deveria utilizar para fugir do erro das ms interpretaes do texto bblico e alcanar aquilo que verdadeiramente era a inteno do autor do texto (ORGENES, 2004, p. 83). 11
Teodoro de Mopsustia (428) e Joo Crisstomo (417) so os principais nomes desta escola. Para Teodoro de Mopsustia o sentido da Escritura era histrico ou messinico, e este sentido era indicado pelo prprio texto, e no algo sobreposto por uma exegese alegrica. Desta forma, qualquer livro bblico que no contivesse estes elementos no deveria ser considerado cannico. Neste sentido, livros tais como o Livro de J, Crnicas, Esdras, Neemias ou o Cntico dos Cnticos no teriam nenhuma inspirao divina. Por causa de tais teses, seus escritos foram condenados ao fogo no Segundo Conclio de Constantinopla, no ano 553 (BARRERA, 1995, p. 639-40).
29
apostlico, como atestam os escritos de Irineu, e ela funcionava como critrio abalizador ou
no das interpretaes propostas, o fato que motivaes subjetivas eram as grandes
impulsionadoras dos diversos critrios exegticos dados, sejam literais ou alegricos.
As interpretaes eram na verdade a vivncia de tenses existentes entre os
intrpretes. Diante do literalismo judaico, a leitura cristolgica do Antigo Testamento tendia a
ser feita mediante o processo alegrico. Diante do alegorismo radical promovido por certos
movimentos gnsticos, a leitura cristolgica do Antigo Testamento era exercido de forma
literal. Ao variar o estilo exegtico dos adversrios do cristianismo, possvel dizer que
tambm o mtodo hermenutico cristo sofria um processo de alterao, estabelecendo-se de
forma inversa. Deve-se salientar, no entanto, que tal procedimento exegtico movia-se sempre
na rbita da regula fidei bem como de certos princpios racionais vigentes, ou seja, os estilos
de exegese, literal ou alegrico, pautavam-se dentro de marcos regulatrios que embora no
fossem to evidentes, eram, no entanto, percebidos quanto aos resultados destes esforos
interpretativos.12
A hermenutica agostiniana deve ser vista dentro desta perspectiva. A anlise de sua
exegese no pode ser encarada apenas a partir dos seus interlocutores (maniqueus, pelagianos,
donatistas etc.), mas principalmente a partir de motivaes existenciais que tornariam possvel
o entendimento de certas posturas hermenuticas, nem sempre claras para o leitor moderno,
mas facilmente compreensvel para a mentalidade patrstica de um homem da igreja em fins
do sculo IV. Esta postura poder ser vista a partir da reflexo feita por Agostinho dos
captulos iniciais do livro do Gnesis, captulos estes j indicados. Acima de tudo, embora no
perceptveis, critrios prvios ou premissas antecipadas, tpicas de todo intrprete orientado
por um enfoque determinado, tornam-se ntidas nas exegeses agostinianas, tornando estas
interpretaes verdadeiras manifestaes de sua subjetividade crist.
12
Na hora de estabelecer o critrio, para saber se uma passagem devia ser interpretada literalmente ou no, recorria-se a regula fidei e a um princpio racional: no vlido interpretar literalmente uma passagem que seja absolutamente contrria razo (BARRERA, 1995, p. 642). equivocada a percepo de arbitrariedade interpretativa. A prpria tradio religiosa do cristianismo e de seus intrpretes, parte deles oriundos do mundo filosfico greco-romano, tornou possvel a construo de regras para a alternncia dos estilos de interpretao, como ser visto posteriormente na anlise da obra de Agostinho A Doutrina Crist.
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2.2 O GNESIS COMPREENDIDO PELO CONVERTIDO AGOSTINHO: ANLISE DA
OBRA SOBRE O GNESIS, CONTRA OS MANIQUEUS.
Os comentrios ao livro do Gnesis feitos por Agostinho costumam ser analisados a
partir das polmicas travadas pelo mesmo com os maniqueus, seita a qual Agostinho teria se
convertido e permanecido durante nove anos.13
De fato, as obras em que o autor comenta os
versculos iniciais do livro do Gnesis devem ser elencados entre aqueles que o mesmo usou
no combate a referida seita.14
No entanto, preciso estabelecer de forma mais ntida o perodo
de composio destes textos, para que seja possvel compreender as motivaes existenciais
que norteiam os escritos hermenuticos agostinianos.
O primeiro texto a ser analisado neste trabalho data de 389 E.C.15
e intitula-se De
Genesi contra Manichaeos (Sobre o Gnesis, contra os maniqueus). Escrito trs anos aps a
converso de Agostinho ao cristianismo (386), o mesmo deve ser lido luz deste evento
crucial na vida do autor, bem como de seu encontro com a filosofia neoplatnica. No
possvel levar para um segundo plano o cristianismo de infncia de Agostinho, cristianismo
este que provoca no autor uma tenso somente resolvida com a sua converso (ou retorno) ao
cristianismo oficial na data acima citada. Mesmo durante o perodo em que Agostinho entrava
em contato com a sabedoria dita pag, na figura de Ccero e de sua obra Hortnsio, um saber
puramente pago era algo completamente estranho ao esprito de um jovem educado no
tradicionalismo cristo. A prpria viso popular de Cristo difundido no sculo IV evocava
muito mais a imagem de um mestre do que o de um messias sofredor.16
O prprio movimento
patrstico havia difundido a ideia do cristianismo como a sabedoria por excelncia, capaz de
suplantar todos os sistemas filosficos erguidos pelos gregos e que estavam marcados pelas
contradies entre eles acerca da verdade, conforme atesta Justino de Roma.
13 Durante este perodo de nove anos, desde os dezenove at aos vinte e oito, cercado de muitas paixes, era seduzido e seduzia, era enganado e enganava (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 55). Agostinho descreve o tempo de juventude que passou como ouvinte no movimento maniquesta. 14Alm dos comentrios feitos ao livro de Gnesis possvel tambm citar outras obras escritas no combate antimaniqueu, tais como Sobre os Costumes da Igreja Catlica e os Costumes dos Maniqueus (388), Sobre as Duas Almas Contra os Maniqueus (391/392), Contra Fortunato Maniqueu (392), Contra Admanto, Discpulo do Maniqueu (393-396), Contra as Epstolas que os Maniqueus Chamam de Fundamento (396/397), Contra Fausto Maniqueu (400), Atas com o Maniqueu Felix (404), Sobre a Natureza do Bem (405) e Contra Secundino Maniqueu (405/406). Foram adotadas as datas e as relaes utilizadas por Costa (1999, p. 176-177). 15 Usa-se aqui a datao estabelecida por Peter Brown em Augustine of Hippo: A Biography (2000, p. 64), em virtude da tabela cronolgica estabelecida pelo autor permitir a comparao entre a datao da obra e eventos histricos significativos para a compreenso da jornada filosfica agostiniana, ao contrrio de Costa (1999) que prefere estabelecer a datao das obras agostinianas a partir de temas abordados. 16 Brown (2000, p.31) lembra que There are no crucifixes in the fourth century.
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Portanto, a nossa religio mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento
humano, pela simples razo de que possumos o Verbo inteiro, que Cristo,
manifestado por ns, tornando-se corpo, razo e alma. Com efeito, tudo o
que os filsofos e legisladores disseram e encontraram de bom, foi elaborado por eles pela investigao e intuio, conforme a parte do Verbo que lhes
coube. Todavia, como eles no conheceram o Verbo inteiro, que Cristo,
eles frequentemente se contradisseram uns aos outros [...] Confesso que todas as minhas oraes e esforos tem por finalidade mostrar-me cristo,
no porque as doutrinas de Plato sejam alheias a Cristo, mas porque no so
totalmente semelhantes, como tambm as dos outros filsofos, os estoicos, por exemplo, poetas e historiadores. De fato, cada um falou bem, vendo o
que tinha afinidade com ele, pela parte que lhe coube do Verbo seminal
divino. Todavia, evidente que aqueles que em pontos muito fundamentais
se contradisseram uns aos outros, no alcanaram uma cincia infalvel, nem um conhecimento irrefutvel. Portanto tudo o que de bom foi dito por eles,
pertence a ns, cristos, porque ns adoramos e amamos, depois de Deus, o
Verbo, que procede do mesmo Deus ingnito e inefvel. (JUSTINO DE
ROMA, 1995, p. 100-101,104)
Conforme a descrio feita por Justino, o cristianismo , na verdade, a filosofia por
excelncia. Recusando-se a negar a validade da filosofia grega anterior a Cristo, Justino apela
para a possibilidade de o cristianismo suplantar todas as correntes filosficas, em virtude do
mesmo ser capaz de unificar todos os saberes fragmentados e frequentemente contraditrios
do pensamento antigo entre si. O cristianismo afigura-se assim, para um autor do segundo
sculo, como A Sabedoria e no apenas uma sabedoria entre outras.
A Bblia torna-se para Agostinho a fonte desta sabedoria. Educado na certeza de que
bons livros so livros bem escritos, ele volta-se para as Escrituras Sagradas com o intuito de
descobrir em suas pginas, ditos de forma clara, a sabedoria por ele almejada. Porm, o
linguajar bblico o decepciona: O que senti, quando tomei nas mos aquele livro, no foi o
que acabo de dizer, seno que me pareceu indigno compar-lo elegncia ciceroniana. A sua
simplicidade repugnava ao meu orgulho e a luz da minha inteligncia no lhe penetrava no
ntimo (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 44-45). O estilo do texto bblico no era aquilo que
Agostinho esperava de uma obra, que segundo afirmavam, era a expresso da sabedoria
divina. Este fato de crucial importncia para a tese aqui desenvolvida. O texto bblico,
especialmente o Antigo Testamento, era desprovido totalmente de elegncia retrica. A forma
antropomrfica em que a divindade era descrita em muitas ocasies do texto favorecia em
muito uma leitura depreciativa do mesmo. Se este escrito devesse ser levado a srio por um
retrico como Agostinho, deveria ser necessrio existir outra maneira de l-lo, pois a leitura
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literal, desejvel, e a obra no permitia possibilidade de acesso distinta, deveria ser substituda
por outra, capaz de revelar a beleza espiritual escondida na mesma. Os maniqueus leram o
Gnesis de forma literal, e esta a essncia das crticas feitas por Agostinho aos mesmos. A
leitura literal era, como j foi apontado alhures, a leitura dos intrpretes judeus e, de certa
forma, a nica possvel, ou no mnimo, desejvel. Seria preciso suplantar esta nica, ou
forosa, possibilidade de leitura. Ao aderir ao maniquesmo e a sua interpretao dos textos
bblicos, que negava o Antigo Testamento e que colocava Cristo no papel de Sabedoria
divina, cria Agostinho poder reconciliar a tenso existente entre um cristianismo de infncia e
uma exigncia pessoal de racionalidade; Augustine was confident, that as a Manichee, he
could uphold the fundamental tenet of his religion by reason alone (BROWN, 2000, p. 37).
O Maniquesmo seria o movimento racional, e ao mesmo tempo religioso, que permitiria uma
leitura seletiva das Escrituras Sagradas tornando possvel a eliminao de passagens cujo teor
repugnava a mente inquieta do jovem retrico.17
A desiluso de Agostinho com o Maniquesmo causada pelo contato com os cticos
(SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 86),18
a inconsistncia das teses maniquestas (p. 74-79, 83-
84) e a descoberta da filosofia neoplatnica capaz de resolver o problema acerca do
significado do mal que tanto atormentava Agostinho e que foi uma das razes que o
impulsionaram a seguir a senda maniqueia (p.115-125), abriram a possibilidade da
reconciliao com a f que lhe foi doutrinada desde a infncia, bem como o surgimento de
alternativas exegticas para o texto bblico.
O encontro em Milo, em 385, com o bispo Ambrsio foi tambm decisivo para
Agostinho. Embora ainda ligado aos maniquestas na busca por uma vaga para ensinar
retrica em Milo,19
Agostinho h muito havia abandonado a crena nas teses maniqueias. No
jogo poltico existente em Milo, Agostinho havia sido o escolhido, como retrico, para ser o
adversrio de Ambrsio. Como algum que deseja conhecer o oponente antes da batalha,
Agostinho escuta os sermes do mesmo, e neste processo, de adversrio torna-se catecmeno
do catolicismo. Mais importante ainda: neste processo de converso, encontra o discurso ideal
para reconciliar a leitura do texto do Antigo Testamento com as exigncias racionais retricas
e filosficas pertinentes a algum mediamente educado nos clssicos latinos.
17 A converso de Agostinho ao Maniquesmo pode ser lido nas Confisses (SANTO AGOSTINHO, 1987, p.45-48). 18 Estes cticos so chamados por Agostinho de acadmicos, designando assim a perspectiva ctica assumida pela Academia Platnica devido influncia recebida do ceticismo em fins do sculo IV. A.C. 19 [...] eu prprio solicitei esse emprego por intermdio destes mesmos amigos, embriagados pelas vaidades dos maniquestas (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 84).
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A descrio do encontro com o bispo de Milo elucidativa. Agostinho levado a
examinar as qualidades de Ambrsio como orador. No entanto, ele surpreendido pela forma
como o mesmo realiza a exegese do Antigo Testamento, exegese esta que torna o texto
bblico defensvel diante das crticas dos maniqueus.20
Qual a alternativa proposta por
Ambrsio? A negao da leitura literal e sua substituio pela leitura alegrica, comum na
escola patrstica de Alexandria, porm incomum entre os latinos.
por intermdio do neoplatonismo latino e pelo uso da alegoria como mtodo
exegtico utilizado por Ambrsio (que tambm utilizava elementos neoplatnicos em suas
leituras alegricas), que Agostinho, alm de descobrir a noo de substncia espiritual
atribudo a Deus, redescobre o valor da Bblia, tanto como literatura por excelncia
desprovida de erros grosseiros, como fundamento ontolgico da verdade.
Alegrava-me tambm de ver que j me no propunham a leitura antiga da Lei e dos Profetas, com a mesma panormica em que, tempos antes, me
pareciam absurdas tais doutrinas, quando arguia os vossos santos, na
suposio de que os interpretavam como eu julgava, quando na verdade no
os interpretavam assim. Cheio de gozo, ouvia muitas vezes a Ambrsio dizer nos sermes ao povo, como que a recomendar, diligentemente, esta verdade:
a letra mata e o esprito vivifica. Removido assim o mstico vu,
desvendou-me espiritualmente passagens que, letra, pareciam ensinar o erro [...] A veracidade bblica parecia-me tanto mais venervel e digna de f
sacrossanta quanto era claro que, possuindo a Escritura a qualidade de ser
facilmente lida por todos os homens, reservava a dignidade dos seus mistrios para uma percepo mais profunda. (SANTO AGOSTINHO, 1987,
p. 92, 94)
20 Chegando a Milo, fui visitar o Bispo Ambrsio [...] Este homem de Deus recebeu-me paternalmente e apreciou a minha vida bastante episcopalmente [...] Ardorosamente o ouvia quando pregava ao povo, no com o esprito que convinha, mas como que a sondar a sua eloquncia, para ver se correspondia fama, ou se realmente se exagerava ou diminua a sua reputao oratria [...] No me esforava por aprender o que o bispo dizia, mas s reparava no modo como ele falava [...] Contudo, junto com as palavras que me deleitavam, iam-se tambm infiltrando no meu espirito os ensinamentos que desprezava. J no os podia discernir uns dos outros. Enquanto abria o corao para receber as palavras eloquentes, entravam tambm de mistura, pouco a pouco, as verdades que ele pregava. Logo comecei a notar que estas se podiam defender. J no julgava temerrias as afirmaes da f catlica, que eu supunha nada poder retorquir contra os ataques dos maniqueus. Isto consegui-o eu por ouvir muitssimas vezes a interpretao de textos enigmticos do Velho Testamento, que, tomados no sentido literal, me davam a morte. Expostos assim, segundo o sentido alegrico, muitssimos dos textos daqueles livros, j repreendia meu desespero, que me levava a crer na impossibilidade de resistir queles que aborreciam e troavam da lei e dos profetas (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 85).
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Est dada, desta forma, a alternativa para a leitura bblica. A alegoria seria a leitura pelo
esprito, em que as verdades msticas das Escrituras seriam plenamente entendidas pelo fiel,
sem o risco da leitura literal, da letra que mata o crente que se aproxima da mesma. A
leitura literal utilizada pelos maniqueus era uma clara induo ao erro. As verdades limpas e
belas das Escrituras estavam vedadas a este olhar. O mistrio revelado na alegoria. O texto
bblico, outrora visto como grosseiro, torna-se agora venervel. Este o enfoque a ser dado
doravante na interpretao do texto sagrado.
Em 389, Agostinho escreve seu primeiro tratado hermenutico. o texto Sobre o
Gnesis, Contra os Maniqueus. A motivao bem como a data de tal empreendimento dada
pelo prprio autor nas suas Retrataes.
Une fois tabli en Afrique, jai crit deux livres Sur la Gense contre les Manichens. Dj, dans les livres prcdents, toutes mes discussions pour
montrer que Dieu, souverainement bon et immutable, est le crateur de
toutes les natures changeantes et quaucune nature ou substance qui soit le mal, en tant quelle est nature ou substance, avaient t, dans mon intention,
diriges contre les manichens. Pourtant, ces deux livres-ici ont t trs
explicitement publis contre eux afin de dfendre lancienne loi quils attaquent avec une vhmence passionne dans leur folle erreur. (SAINT
AUGUSTIN, 1950, p. 327)
O local da redao dos dois livros que compem esta obra foi frica, o que aponta para o
ano de 388 ou 389 (esta ltimo o mais aceito pelos especialistas). A motivao principal foi
defender a lei antiga, leia-se o Antigo Testamento, dos ataques ferrenhos dirigidos pelos
maniqueus ao texto bblico. Neste momento Agostinho silencia sobre o estilo exegtico tanto
dele como de seus adversrios.21
O texto j no pertence ao perodo de retiro filosfico de
Cassicaco,22
mas de sua volta frica, para Cartago e Tagaste, e anterior a sua ordenao
ao sacerdcio. Nota-se, porm, o tom apologtico cristo no mesmo, embora marcado pela
21 Futuramente Agostinho mudar radicalmente de postura, passando de uma linguagem alegrica para uma linguagem literal. Isto ser facilmente perceptvel no comentrio feito por Agostinho denominado Comentrio Literal ao Gnesis (414). 22
O perodo de recolhimento de Agostinho e um grupo de amigos em Cassicaco, a partir de 386, constitui-se a fase em que foram redigidos os primeiros textos de Agostinho como filsofo cristo. Contra os Academicos, De Beata Vita, De Ordine e Soliloquia so exemplos de obras deste perodo. Embora de teor mais filosfico do que teolgico, j se percebe a viso crist de mundo como o paradigma filosfico de Agostinho. O cio filosfico deste retiro espiritual era o Christianae Vitae Otium, o cio da vida crist. No tardar para que Agostinho direcione sua verve filosfica contra os adversrios da igreja catlica, como ser feito com as obras De moribus ecclesiae catholicae et de moribus Manichaeorum (fins de 386 e incio de 387) e De Genesi contra Manichaeos.
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filosofia neoplatnica. Agostinho no mais um intelectual errante, que vaga entre
maniquestas e neoplatnicos e que flerta com os cticos; agora ele um homem que encontra
o seu caminho junto igreja de sua infncia, igreja esta cuja verdade preciso defender. Esta
defesa comea com uma leitura alegrica do texto bblico, de forma mais especfica, com o
livro de Gnesis.
A Bblia era considerada a Palavra de Deus no apenas para Agostinho, mas para o
mundo cristo como um todo. A leitura alegrica do texto subentende que o processo de
comunicao entre Deus e a humanidade no era dada direta, mas de uma maneira velada,
escondida, revelada por trs da letra do texto. possvel dizer que a Palavra de Deus
assume a forma de um complexo emaranhado de sinais que lidos de forma literal mostravam
uma realidade tosca e incompreensvel, mas que apreendidos de forma correta, isto ,
alegoricamente, apontavam para realidades mais profundas desveladas no Novo Testamento.
Dito de outra forma, o aspecto bizarro e irracional em muitas passagens do Antigo
Testamento apontava para verdades no Novo Testamento, mas este apontar s seria possvel
mediante a leitura alegrica ou espiritual destas passagens.
Os que leem a Escritura inconsideradamente enganam-se com as mltiplas obscuridades e ambiguidades tomando um sentido por outro. Nem chegam a
encontrar, em algumas passagens, alguma interpretao. E assim, projetam
sobre os textos obscuros as mais diversas trevas. No duvido de que a
obscuridade dos Livros Santos seja por disposio particular da Providncia Divina, para vencer o orgulho do homem pelo esforo e para premunir seu
esprito do fastio, que no poucas vezes sobrevm aos que trabalham com
demasiada facilidade. (SANTO AGOSTINHO, 1991, p. 97)
O exegeta era levado, de forma trabalhosa, a perceber a vontade divina escondida no texto e
deste modo a Providncia Divina venceria o orgulho do exegeta, que ao contrrio tenderia a
querer interpretar a vontade divina contida no texto sem nenhum esforo, interpretando-a de
forma literal e, portanto, pobre, no percebendo as riquezas que esto sendo reveladas e ao
mesmo tempo escondidas por trs do aspecto literal do texto.
As crticas feitas pelos maniqueus podem ser perfeitamente reproduzidas a partir do
prprio texto agostiniano. O autor faz questo de repeti-las: Defesa contra os opositores que
perguntam: o que fazia Deus antes da criao do mundo, e por que de repente lhe aprouve
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criar o mundo? Costumam os maniqueus criticar desta maneira o primeiro livro do Antigo
Testamento [...] (SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 503). A ideia demonstrar a fragilidade
da pergunta maniquesta que s produz resultados quando direcionado a fiis sem o devido
preparo exegtico, ou seja, uma crtica textual que tem como inteno zombar de nossos
irmos dbeis e infantis e engan-los, no encontrando estes como lhes responder [...].
(SANTO AGOSTINHO, 2005a, p. 501). A pergunta direcionada a um entendimento literal
do texto, e a este tipo de postura que Agostinho obrigado a responder.
A estratgia hermenutica agostiniana para rebater as insinuaes maniquestas ao
texto do Antigo Testamento na obra Sobre o Gnesis, contra os maniqueus simples. Ela
executada a partir de dois movimentos que podem ser identificados como o processo de
desqualificao das proposies dos adversrios e o estabelecimento das suas prprias teses.
De certa forma, neste primeiro texto hermenutico sobre o Gnesis, nota-se uma abordagem
que oscila entre a crtica retrica na anlise da descrio cosmolgica (Gnesis, 1:1-2:3) e
uma reflexo mais alegrica, ao abordar a questo antropolgica que se encontra em torno do
relato da criao do homem e sua queda (Gnesis, 2:4-3:24). Em virtude da especificidade
deste trabalho, sero analisados apenas alguns trechos relacionados com a interpretao
cosmolgica e antropolgica dos primeiros captulos do livro do Gnesis; tais trechos sero
utilizados como exemplos do uso hermenutico agostiniano, mesmo implicando deixar de
fora parte considervel das anlises de Agostinho contidas nestas passagens hermenuticas.
A pergunta maniquesta acerca da afirmao de que em qual princpio Deus havia
criado o cu e a terra (Gnesis, 1:1) e qual teria sido o elemento, se o houve, que motivou a
Deidade a sair de um estado de inrcia absoluta para criar algo, torna-se o primeiro elemento a
ser desqualificado por Agostinho. O princpio de que fala o texto de Gnesis no pode ser
visto como o princpio do tempo, mas em Cristo, o logos divino.
Respondemos-lhes que Deus fez o cu e a terra no princpio, no no
princpio do tempo, mas em Cristo, visto que era Verbo junto ao Pai, pelo
qual e no qual tudo foi feito [...] Ainda que acreditemos que Deus fez o cu e a terra no princpio do tempo, devemos, por outro lado, entender que antes
do princpio do tempo no havia tempo. Por isso no podemos dizer que
havia algum tempo, quando Deus nada ainda havia feito. (SANTO
AGOSTINHO, 2005a, p. 503)
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preciso harmonizar o Novo Testamento com o Antigo Testamento. Agostinho desloca o
significado do prlogo joanino (No princpio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o
Verbo era Deus, Joo 1:1) para o Gnesis, 1:1 (No princpio criou Deus os cus e a terra),
harmonizando textos que a rigor, ainda que se refiram aos mesmos eventos, possuem
significaes distintas. O sentido judaico da criao ex nihilo agora substitudo por um
sentido de criao