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31 Cristo profeta, rei, sacerdote em Agostinho de Hipona: algumas considerações Heres Drian de Oliveira Freitas 1 Resumo: O conceito de tria munera Christi, como sabemos, não existe no pen- samento de Agostinho; esta figura deve ser tirada de suas obras. Este artigo traça tal imagem a partir de um número muito pequeno de obras de Agos- tinho: os Sermões 136, 232 e 234 comparados com Contra Adimantum 9 e com o Sermão 12 (para Cristo, o profeta); para Cristo, o rei e sacerdote: Diuer- sis quaestionibus octoginta tribus 61, De consensu euangelistarum 1 e Sermo Dolbeau 26. Há uma aparente contradição entre Cristo, o profeta e conceito de Agostinho de Cristo, o rei; o conceito de sacerdote será melhor lido à luz do mediador. Através de duas abordagens diferentes, surge simultaneamente uma maneira de ler Agostinho dentro da estrutura de seu pensamento e uma imagem dos tríplices ofícios de Cristo. Palavras-chave: Munera Christi; Cristologia; Agostinho de Hipona; Exegese pa- trística. Abstract: The tria munera Christi concept as we know does not exist in Augus- 1. Doutorando em filosofia (UNIFESP), Mestre em Teologia e Ciências Patrísticas (Augustinianum, Roma), Licenciado em filosofia (USF), Bacharel em teologia (PUL, Roma). Ensina História do cristianismo antigo e medieval na Faculdade Paschoal Dantas (SP) e coordena a Coleção Patrística da Editora Paulus. T Q Quaestio TQ 33 (2018/1) 31-58

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Cristo profeta, rei, sacerdote em Agostinho de Hipona: algumasconsiderações

Heres Drian de Oliveira Freitas1

Resumo: O conceito de tria munera Christi, como sabemos, não existe no pen-samento de Agostinho; esta figura deve ser tirada de suas obras. Este artigo traça tal imagem a partir de um número muito pequeno de obras de Agos-tinho: os Sermões 136, 232 e 234 comparados com Contra Adimantum 9 e com o Sermão 12 (para Cristo, o profeta); para Cristo, o rei e sacerdote: Diuer-sis quaestionibus octoginta tribus 61, De consensu euangelistarum 1 e Sermo Dolbeau 26. Há uma aparente contradição entre Cristo, o profeta e conceito de Agostinho de Cristo, o rei; o conceito de sacerdote será melhor lido à luz do mediador. Através de duas abordagens diferentes, surge simultaneamente uma maneira de ler Agostinho dentro da estrutura de seu pensamento e uma imagem dos tríplices ofícios de Cristo.

Palavras-chave: Munera Christi; Cristologia; Agostinho de Hipona; Exegese pa-trística.

Abstract: The tria munera Christi concept as we know does not exist in Augus-

1. Doutorando em filosofia (UNIFESP), Mestre em Teologia e Ciências Patrísticas (Augustinianum, Roma), Licenciado em filosofia (USF), Bacharel em teologia (PUL, Roma). Ensina História do cristianismo antigo e medieval na Faculdade Paschoal Dantas (SP) e coordena a Coleção Patrística da Editora Paulus.

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tine’s thought, its image must be drawn from his texts. This article traces such an image from a very few and minor works of Augustine: the sermons 136, 232 and 234 contrasted with Contra Adimantum 9 and the sermon 12, for Christ the prophet; and, for Christ the king and priest, Diuersis quaestionibus octoginta tribus 61, De consensu euangelistarum 1 and Sermo Dolbeau 26. There is an apparent contradiction about Christ the prophet and Augustine’s concept of Christ the king and the priest will be better read in the light of the mediator. By two different approaches, emerges both a way of reading Augustine within his thought’s framework and an image of the threefold offices of Christ.

Keywords: Munera Christi; Christology; Augustine of Hippo; Patristic Exegesis.

Introdução

O leitor ou o estudioso contemporâneo tem à disposição uma série de tratados cristológicos e/ou capítulos de cristologia em meio a reflexões trinitárias facilmente acessíveis. Tais obras, mais ou me-nos completas, permitem-nos uma compreensão, digamos, imediata e sistemática de vários aspectos da cristologia. Quem procurasse algo assim nas obras de Agostinho de Hipona – bem como, em princí-pio, em qualquer obra da patrística – ficaria decepcionado: à parte seções de cristologia em suas grandes obras, como, por exemplo, De trinitate, De ciuitate Dei2, o Enchiridion, ou mesmo Confessiones, os In Iohannis euangelium tractatus e as Enarrationes in Psalmos, é preciso percorrer as páginas agostinianas para compor determinadas imagens ou aspectos de Cristo no pensamento agostiniano. E, talvez, as ima-gens compostas, embora coerentes no amplo quadro da cristologia agostiniana, podem não corresponder às imagens mais comuns da cristologia hodierna.

De fato, certos temas ou imagens cristológicas agostinianas que têm ocupado os estudiosos – como, entre outros, Ciência e sabedoria de Deus, Exemplo e sacramento, Unidade de duas pessoas, Pátria e ca-minho3 – podem parecer pouco comuns, e outras – como a imagem

2. O u em ciuitate não é erro, seguimos, nestas páginas, o v repristinado em u, bem como a forma dos textos agostinianos nas citações em rodapé, como propõe Cor-nelius MAYER (ed.), Corpus Augustinianum Gissense, Basel: Schwabe, 1995-.

3. Para considerações mais amplas, e bibliografia, veja-se Goulven MADEC, “Chris-tus”, in Cornelius MAYER, (ed.), Augustinus-Lexikon, 1986-1994, colunas 845-908.

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do Cristo comerciante (mercator)4 – soariam bastante estranhas para nossa mentalidade contemporânea. Mas também acontece o contrá-rio: temas cristológicos que nos são familiares, como a reflexão dos três ofícios de Cristo, são estranhos a Agostinho.

Embora haja inúmeros estudos dedicados à pessoa de Cristo – na cristologia, na teologia, na eclesiologia, na soteriologia agostinianas –, não tivemos conhecimento (até o momento!) de um que tratasse conjuntamente dos seus três múnus no pensamento de Agostinho. Tendo presente a dificuldade de acompanhar as constantes publica-ções sobre cristologia agostiniana, não é impossível que já exista algo a respeito, de modo particular – muito provavelmente – a partir das grandes obras agostinianas a que nos referimos no primeiro parágrafo desta introdução. Por isso, as deixamos de lado.

Nestas páginas, nos dedicamos a alguns distintos sermões agostinianos e poucas – e menos conhecidas, pelo menos do grande público – de suas obras. E o fazemos de modo a oferecer, ao final, juntamente com uma ideia dos três ofícios de Cristo no pensamen-to de Agostinho, modelos básicos de abordagem do pensamento do Hiponense.

Primeiramente, para se pensar o Cristo profeta (1) em Agosti-nho, consideramos textos em que Agostinho parece sugerir que não se possa designar Cristo como profeta (1.1). Então veremos outros aparentemente contraditórios, isto é, textos em que afirma que Cris-to é profeta (1.2). Resolvida a questão (1.3), então nos voltaremos a textos em que o Hiponense fala do Cristo rei e sacerdote (2). Aqui, porém, sem as aparentes contradições da primeira seção, veremos como dados certos, fixos, no pensamento do Hiponense (2.1) ad-quirem ulteriores desenvolvimentos (2.2). Por fim, concluímos (3) com algumas considerações de caráter sintético e uma breve e con-sequente atualização dos três ofícios de Cristo na Igreja, conforme o pensamento do Hiponense.

O leitor, porém, não espere um artigo intrincado e permeado de termos técnicos. Pelo contrário, o que se segue é bastante simples: praticamente “ouviremos” Agostinho5, para ter uma ideia de como

4. Cf. Idem, coluna 875.

5. No corpo do texto, ousamos oferecer nossa tradução de Agostinho, mantendo, en-tre parênteses, expressões latinas consideradas importantes. Nas muitas notas com

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ele entende Cristo como profeta, rei e sacerdote. Naturalmente, sem pretensão alguma de exposição completa – o que seria de todo opos-to ao mínimo de bom senso –, esperamos que, destas páginas, se de-seje ir às de Agostinho.

1. O Cristo profeta...

O termo propheta6, normalmente lido em relação – ainda que não direta ou explicitamente – com o verbo praenuntiare (prenun-ciar), aparece na obra de Santo Agostinho geralmente empregado de dois modos, um amplo e outro restrito. No primeiro caso, aplica-se a todo o povo e ao reino de Israel ou a qualquer figura que prenun-ciasse algum mistério acerca da vida de Cristo e da Igreja7. No segun-do, àqueles personagens escriturísticos específicos que conhecemos como profetas8. Mas aparece também de um terceiro modo, referido diretamente a Cristo. Não por acaso, Agostinho é uma das bases da reflexão sobre o múnus profético de Cristo. Dos milhares de vezes

texto latino, o leitor poderá ter uma mais ampla percepção do contexto e das várias direções a que se estende a reflexão do Hiponense.

6. À parte os cognatos prophetare (profetizar), prophetatio (predição), propheticus (profético), prophetissa (profetisa) e prophetia (profecia), o substantivo propheta é abundante na obra agostiniana. Sendo empregado mais de duas mil vezes, soma-das citações bíblicas e textos do próprio Agostinho, sua presença parece ocorrer inicialmente em contexto antimaniqueu (De moribus ecclesiae catholicae et de mo-ribus Manicheorum, datado de 387-389).

7. Por exemplo, sobre a função profética de quaisquer figuras, Contra Faustum 13,4 [Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum – a partir daqui: CSEL – 25/1,381]: “[...] ut non solum ille aut ille homo [propheta], sed uniuersa ipsa gens totumque regnum propheta fieret Christi christianique regni”; e sobre as profecias a respeito da Igreja, Ad catholicos fratres 22 [CSEL 52,157]: “quae commemoraui-mus ex lege et prophetis et Psalmis de Christi ecclesia quae toto orbe diffunditur”. Esse aspecto de profeta e profecia é desenvolvido por Agostinho em De ciuitate Dei 17 [Corpus Christianorum Series Latina – a partir daqui: CCL – 48,551ss.]. Entre colchetes é dada a edição de que nos servimos, com indicação de volume/tomo, página, ou volume, página.

8. Excetuando-se a citação dos livros proféticos do cânon bíblico em De doctrina christiana 2,13 [SIMONETTI 90], vejam-se, por exemplo, De octo Dulcitii quaes-tionibus 5,3 [CCL 44A,295] (Ezequiel); De gestis Pelagii 14 [CSEL 42,66] (Isaías); De ciuitate Dei 18,30 [CCL 48,621] (Miqueias); Sermo 78,5 [Patrologia Latina – a partir daqui: PL – 38,492] (Elias); etc.

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em que ocorre no corpus augustinianum9, somente em algumas o ter-mo profeta é usado explicitamente como designativo de Cristo. Mas três delas despertam a atenção, pois o Hiponense parece censurar quem O reconheça como profeta.

1.1 ... é mais que profeta

No Sermo – a partir daqui: s. – 136 (de 418-42010), o Bispo de Hipona, comentando a cura do cego de nascença de Jo 9, afirma sermos todos, devido à herança da culpa original, cegos de nascença, mas cegos de coração (ou de cegueira mental)11. Em seguida, diri-gindo-se a seus ouvintes, diz-lhes que viram o fato bíblico da cura do cego, mas o viram com os olhos da fé12, e ouviram que o cego errava ao considerar Cristo profeta (cf. Jo 9,17), desconhecendo que era Filho de Deus, e ao dizer que Deus não ouve os pecadores (cf. Jo 9,31)13. Quanto a este último erro, mediante os argumentos litúrgico (o “ato penitencial”) e bíblico (as orações do publicano e do fariseu de Lc 18,10-14), Agostinho assegura a seus ouvintes: “certamente Deus ouve os pecadores”. Em seguida, diz que, mesmo com a vista curada, a graça não havia ainda agido e o coração daquele homem perma-necia cego, passando a ver somente ao estar em íntimo contato com Cristo, ao lavá-lo na verdadeira Siloé, Cristo, o Filho de Deus enviado ao mundo14.

9. Cf., acima, nota 5.

10. Para a datação dos Sermones agostinianos e para uma ideia a seu respeito, vejam--se Tavola dei Sermones e Éric REBILLARD, “Sermones”, in Allan FITZGERALD (ed.), Agostino: dizionario enciclopedico, edizione italiana a cura di L. Alici e A. Pie-retti, 2007, p. 75-101 e 1300-1305, respectivamente (encontra-se no prelo a edi-ção brasileira desta obra – Agostinho através dos tempos: uma enciclopédia –, a ser publicada em breve pela Paulus Editora).

11. “[...] et caeci nati sumus. quis enim non caecus natus est? sed in corde” (s. 136,1 [Patrologia Latina – a partir daqui: PL – 38,751]). Para o uso de cor (coração) em Agostinho, veja-se Isabelle BOCHET, “Cuore”, in Allan FITZGERALD (ed.), op. cit., p. 524-534.

12. “Vidistis caecum istum oculis fidei, uidistis etiam ex caeco uidentem” (s. 136,2 [PL 38,751]).

13. “Sed audistis errantem. [...] quia Christum prophetam putabat, dei filium nescie-bat. deinde audiuimus unam responsionem ipsius prorsus falsam: ait enim, scimus quia peccatores deus non exaudit [Io 9,31]”.

14. Cf. s. 136,2 [PL 83,751].

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O Bispo de Hipona não volta à questão da consideração de Cristo como profeta, e a exposição continua em um paralelismo que podemos sintetizar em lei e graça: os judeus têm a visão dos olhos, mas não a do coração, possível somente mediante o encontro com Cristo, com a graça. Curado fisicamente, portanto, na melhor das hi-póteses, o que aquele que era cego pode ver é Cristo como profeta, mas, sem a fé, sem a graça, não o Filho de Deus – que criou olhos e coração e a ambos curou15. Assim, o cego que passa a ver, e vê somen-te o Cristo profeta, é figura da lei, sem a graça; com a graça, porém, o cego que passa a ver, e vê o Cristo Filho de Deus, é figura daquele que vê com um coração curado pelo encontro com o Filho de Deus. Porém, mesmo o coração de quem está próximo de Cristo16 também precisa de melhor instrução.

Na Oitava da Páscoa, entre os anos 400 e 423, Agostinho fala, em duas pregações (s. 232 e 234), da razão de se ler, no referido período, relatos da ressurreição17, antes de comentar, em ambas as homilias, sobre a incredulidade dos discípulos de Emaús, segundo o relato de Lc 24. Tal reflexão é “para que compreendamos o grande benefício que o Senhor nos prestou ao dar-nos crer no que não vi-mos” e aumente nossa fé na ressurreição18. Indica, então, feitos de nosso Senhor na presença dos discípulos e a relação Eva–morte, mu-lher–vida19 e passa a dedicar-se aos discípulos de Emaús.

15. Cf. s. 136,2 [PL 83,751].

16. Cf. s. 232,2.5 [Sources Chretiennes – a partir daqui: SC – 116,262.270], pois pode fraquejar em sua fé, em sua esperança; cf. abaixo, notas 26 e 27.

17. “[...] dies isti septem uel octo dant spatium ut secundum omnes euangelistas resurrectio domini recitetur [...]” (s. 232,1 [SC 116,260], datado de 412-423), e explica noutro texto em ocasião semelhante: “[...] necessarium est ut legantur omnes, quia singuli non dixerunt omnia, sed quae alius praetermisit, alius dixit: et quodam modo sibi dederunt locum omnes, ut necessarii essent omnes” (s. 234,1 [PL 38,1115], datado de 400-413). Cf. também s. 246,1 [SC 116,294].

18. s. 232,2 [SC 116,262]. “Aedificamur ad credendum resurrexisse dominum Chris-tum” (s. 234 [PL 38,1115]); embora sugira que os fiéis sejam melhores que os discípulos de Emaús (“[...] quando uidemur [...] [nos] esse meliores?” (s. 234,2 [PL 38,1115]): pois “cremos naquilo que eles não acreditavam. Eles perderam a esperança e nós não duvidamos, enquanto eles duvidavam. Com o Senhor cruci-ficado, perderam a esperança” (s. 234,2 [PL 38,1115]). Há, aqui, uma associação entre fé e esperança. Cf., abaixo, notas 26 e 27.

19. s. 232,2 [SC 116,262-264]. “[...] quia uirgo Christum peperat, femina resurrectio-ne nuntiabat. per feminam mors, per feminam uita” (s. 232,2 [SC 116,262]).

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Os dois caminhavam condoídos, comentando os acontecimen-tos da morte de Cristo, desconhecendo sua ressurreição. Cristo lhes aparece e põe-se a caminhar em amigável conversação com eles, que não o podem reconhecer20, “pois era necessário que seu coração fosse mais bem instruído”. Por isso, Cristo adia o ser reconhecido (cognitio differtur) e lhes pergunta sobre o que acontecera (“de re clara et ma-nifesta”). Os discípulos, admirados de seu desconhecimento dos fatos evidentes, respondem, contando-lhe de “Jesus de Nazaré, que foi um profeta poderoso em feitos e palavras” (Lc 24, 19). Agostinho, então, pergunta: “É isso mesmo, discípulos? Era profeta o Cristo, senhor dos profetas? Chamais vosso juiz de pregoeiro!”21.

Os discípulos de Emaús, diversamente do caso precedente, não precisam que sua visão física seja curada, eles veem e podem narrar fatos evidentes (“de re clara et manifesta”). Embora tenham visto a morte de Jesus de Nazaré, o profeta, ignoravam, todavia, o Cristo, Filho do Deus vivo, Senhor dos profetas. O conhecimento ou reco-nhecimento de Cristo, aqui, é equivalente ao da visão do coração no s. 13622. Mas Agostinho parece não importar-se tanto com o fato de ignorarem o Cristo, quanto com o de serem discípulos a ignorá-lo, pois falam dele a seu interlocutor como se não fossem discípulos, já que o identificam como os estranhos ao discipulado: ele era profeta.

Para demonstrar, então, como o discípulo reconhece Cristo como o Filho de Deus, mais que profeta, portanto, o Hiponense in-terpreta a resposta lucana dos discípulos de Emaús à luz das duas respostas de Mt 16,13-19, acerca de quem é o Filho do Homem: os homens reconhecem-no, além de como Elias ou João Batista, como

20. “[...] oculi eorum tenebantur ne agnoscerent eum” (s. 232,3 e 234,2 [respectiva-mente, SC 116,164 e PL 38,1116]).

21. S. 232,3 [SC 116,264]. O praeco (-nis), aqui traduzido em pregoeiro, era o oficial do tribunal que, entre outras coisas, indicava os acusados e anunciava as sentenças do juiz (cf. Aegidius FORCELLINI, Lexicon Totius Latinitatis, 1940, p. 797). Se já não é evidente, Agostinho, aqui, considera que os discípulos de Emaús rebaixam Cristo de quem sentencia a quem simplesmente anuncia a sentença proferida por outro. Quanto à resposta dos discípulos, essa revela a razão de os cristãos serem melhores que os discípulos de Emaús: “Eles diziam que Cristo era profeta, nós o reconhecemos Senhor dos profetas” (s. 234,2 [PL 38,1115]).

22. Pois Cristo lhes faz perguntas (Lc 24, 17.19) para entrar em seus corações (s. 234,2 [PL 38,1115]: “quia se in ipsis esse cupiebat”).

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um dos profetas; Pedro, como Cristo, o Filho do Deus vivo23. E o Bis-po de Hipona explica a diferença entre as respostas: a dos discípulos de Emaús é a dos estranhos (opiniones alienas, uerba alienorum non discipulorum) e a de Pedro, a dos discípulos (discipuli uerba, unus pro omnibus); mas com um acréscimo importante.

Ao introduzir a pergunta de Jesus a seus discípulos quanto a quem ele era, Agostinho diz que Jesus, tendo ouvido as opiniones alie-nas, queria saber em que acreditavam os discípulos, qual era sua fé24. A fé, acolhida da revelação divina (Mt 16, 17) na resposta do discípu-lo, permite a identificação correta de quem seja o Cristo, que é “não qualquer um dos profetas, mas o Filho do Deus vivo, quem realiza as profecias (adimpletor prophetarum)”25. Os olhos dos discípulos de Emaús não reconhecem o Cristo porque decaíram de sua esperança26 e, assim, de sua fé27. Fé, discipulado e identificação correta do Filho de Deus – como alguém maior que um profeta –, então, estão asso-

23. S. 232,3 [SC 116,264-266].

24. “[...] fidem uestram uolo audire” (s. 232,3 [SC 116,264]).

25. S. 232,3 [SC 116,264]. Agostinho parece demonstrar certa compreensão da cen-sura de Pedro ao anúncio da paixão que Cristo lhe faz em Mt 16, 23, pois não lhe fora prenunciada a ressurreição. Por outro lado, é menos compreensível a perda de esperança por parte dos discípulos de Emaús, porque conheciam por inteiro as profecias, isto é, não só quanto à paixão e morte de Jesus, mas também quanto a sua ressurreição, e desconhecem que ele mesmo as realize: “hoc [de potestate Christi ponendi animam] Petrus nesciebat, quando audita morte domini expauit. sed ecce iam dixerat dominus moriturum se et resurrecturum tertia die. factum est quod praedicabat et non credebant qui audierant. [...] sperabatis, iam deperatis? de spe cecidistis” (s. 232,5 [SC 116,270]). Antes disso, tratara da imortalidade e da mortalidade de Cristo, o Verbo eterno junto de Deus (Jo 1, 1), que voluntariamen-te assume a paixão e a morte para ressuscitar (cf. Jo 10, 18), realizando o que fora profetizado (cf. s. 232,4 [SC 116,268]). Expusera, então, a razão de Cristo, Filho de Deus, ser mais que profeta.

26. Cf. citação de s. 232,5 [SC 116,270] à nota 24 e a de s. 234,2 [PL 38,1115-1116] à nota 17. Espera-se, porém, que o ressuscitado ressuscite a esperança do discípulo: “[...] qui reddidit se uobis, reuocet spem uobis” (s. 234,2 [PL 38,1116]).

27. Em s. 232,6 [SC 116,270-274], Agostinho fala da fé do bom ladrão e do que essa lhe mereceu e que não estava em sua esperança, estabelecendo, assim, um víncu-lo entre fé e esperança. Vínculo anunciado ao dizer que os discípulos de Emaús deveriam ter imitado a fé do bom ladrão (s. 232,5 [SC 116,270]: “non potuerunt imitari et habere fidem latronis pedentis in cruce”), mas, e conclui, perderam a esperança (s. 232,5 [SC 116,274]: “ubi spem latro inuenit, discipulus perdidit”). O vínculo fé-esperança, associadas mediante as mesmas passagens bíblicas, ocorre também em s. 234,2 [PL 38,1115-1116]; cf. acima, nota 17.

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ciados para Agostinho28.

1.2 Como, então, dizê-lo profeta?

“Ouvidas” as exposições agostinianas precedentes, então, pode-mos concluir que, para Agostinho, não seja adequado falar de Cristo como profeta, ou de múnus profético de Cristo, já que isso seria con-siderá-lo inferior ao que é? O Contra Adimantum – a partir daqui: c. Adim. –, obra composta em 39429, oferece a resposta.

Em c. Adim. 9, o Hiponense contesta a afirmação maniqueia da contradição entre o Deus invisível de Jesus Cristo (Jo 1,1830; 5,37-38) e o Deus visível do Antigo Testamento31 (Gn 3,4). Nessa questão, Jo 1,18 e 5,37-38 são textos-chave da argumentação maniqueia, e é da primeira dessas passagens que parte a contra-argumentação agos-tiniana32.

28. Mas ele reconhece que a disposição (anima) do discípulo não é estável e alterna--se entre o que é de Deus e o que é dos homens; mas quanto mais próximo de Deus, mais o discípulo é iluminado; cf. s. 232,4 [SC 116,268]. A homilia continua exortando os ouvintes a manterem-se firmes na fé, no conhecimento de Cristo e no encontro íntimo com ele (s. 232,6-7 [SC 116,270-278]), como verdadeiros discípulos, então. Se o discípulo decai de sua fé, de sua esperança, caminha com ele Cristo, que o levanta (s. 232,5 [SC 116,270]: “leuat uos qui ambulat uobiscum”) e pode ressuscitar sua esperança (“[...] qui reddidit se uobis, reuocet spem uobis” (s. 234,2 [PL 38,1116]). Também nesta última pregação, os fiéis reconhecem Cristo como mais que profeta, como Senhor dos profetas, reconhecimento associado à fé. Mas, aqui, com um acréscimo: Cristo quis ser reconhecido na fração do pão que, bem o sabem seus fiéis, “recebendo a bênção de Cristo, torna-se corpo de Cristo” (s. 234,2 [PL 38,1116]). É então que o reconhecem e, depois, podem afirmar tê-lo visto. O sermão prossegue exortando os fiéis a terem essa fé, que crê no Cristo ressuscitado e os distingue de outros, inclusive dos demônios, que também reconhecem o Filho de Deus, mas não podem agir bem. Nisto a fé do cristão o identifica: sua fé orienta suas ações (cf. s. 234,3 [PL 38,1116-1117]. À parte a referência à eucaristia, repete-se, evidentemente, a associação entre fé, discipulado e reconhecimento do Cristo Ressuscitado, que é mais que profeta.

29. Obra pensada anos antes, talvez 394, o c. Adim. é basicamente um texto de metodologia exegética, dedicado à contrastar a interpretação maniqueia das Escri-turas. A seu respeito, veja-se J. KEVIN COYLE, “Contra Adimantum”, in Allan FITZGERALD (ed.), op. cit., p. 113-114.

30. “Ninguém jamais viu Deus a não ser o único Filho, que está no seio do Pai, do qual ele nos anunciou”.

31. Visível e em diálogo com quem não fosse digno de ser seu interlocutor (Gn 3,4ss).

32. “[...] totam ipsam solui posse quaestionem” (c. Adim. 9 [CSEL 25/1,131-132]).

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O versículo 18 de Jo 1, de fato, não implica, exclusiva e neces-sariamente, a identificação do Filho com o Verbo encarnado a anun-ciar o Pai, como o entendem os maniqueus. Por isso, imediatamente, é ampliado o período de anúncio do Verbo, passando-se, portanto, do Verbo encarnado ao Verbo eterno, “pois o próprio Filho, que é o Ver-bo de Deus, não só nos últimos tempos, quando se dignou aparecer na carne, mas também antes, desde a criação do mundo, anunciou (ad-nuntiauit) a respeito do Pai”33. Feita essa ampliação, Agostinho expõe: a) o nexo Verbo-Verdade, b) a divindade, coeternidade e imutabilida-de do Verbo e do Pai, e c) as manifestações divinas mediante criaturas nas Escrituras (Gn 18,1-2; 32,24-30; Ex 3,2; 19,3; At 3,30ss).

Essa tríplice exposição explica sua afirmação anterior quanto ao tempo de anúncio do Pai por parte do Verbo: o Verbo-Verdade, o Cristo pré-existente e, portanto, invisível, só podia ser visto mediante as criaturas – que ele escolhia quando queria –, de modo que se pode afirmar que, ao se manifestarem tais criaturas quanto à verdade, é Deus quem fala por elas. Então, “como o Verbo de Deus está no pro-feta (uerbum Dei in propheta), e [por isso] justamente se afirma ‘disse o profeta’, igual e justamente se afirma ‘disse Deus’, pois o Verbo de Deus, que é Cristo, diz a verdade no profeta (uerbum Dei in propheta loquitur)”34. Mas o Verbo a diz também mediante outras criaturas35. Agostinho estabelece, assim, duas modalidades de manifestação divi-na anteriores à encarnação: uma no profeta, por quem Deus fala ha-bitando-o (ex persona inhabitantis Dei), e outra mediante as criaturas, pelas quais fala servindo-se delas (ex persona seruientis creaturae)36.

Pelo final do parágrafo, então, Agostinho volta-se a Jo 5,37-38, em consonância com suas afirmações precedentes, não conforme a interpretação maniqueia, que restringe também esse versículo joani-no ao período posterior à encarnação do Verbo, e afirma que

o que é dito aos judeus, ‘nunca ouvistes sua voz’, o é porque não lhe obedeceram aqueles a quem ele falava; e o que segue, ‘nem vistes sua face, o é porque ele não podia ser visto; e ainda é dito que ‘o seu Verbo

33. C. Adim. 9 [CSEL 25/1,132].

34. Ibidem.

35. Ibidem.

36. C. Adim. 9 [CSEL 25/1,132-133].

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não permanece entre vós’ porque, naquele que permanece o Verbo de Deus, nele permanece Cristo, que eles rejeitaram37. Rejeitaram o Ver-bo encarnado, e, todavia, trata-se do mesmo Verbo eterno, não visto, mas que falou no profeta.

Em seguida, a preexistência do Verbo é reafirmada com Jo 12,28 (e/ou 17,5, sobre Cristo afirmar sua glória junto do Pai antes da criação), e o Hiponense conclui: “Por isso, se não é estranho que o Verbo de Deus, isto é, o único Filho de Deus, que anunciava a respei-to do Pai a quem queria, por si mesmo ou mediante alguma criatura, falando ou aparecendo, [...] não estranha como harmonizem entre si esses testemunhos de ambos os Testamentos”38.

Este último elemento, a harmonia do Antigo e do Novo Tes-tamentos – e sua unidade –, é questão fundamental na polêmica an-timaniqueia, que rejeitava que ambos pudessem, devido a suas apa-rentes contradições, dizer respeito a um mesmo e único Deus. Nesse contexto, Agostinho põe-se a indicar como se tratava do mesmo Ver-bo a anunciar a mesma verdade em ambos os Testamentos.

C. Adim. 9 é texto importante porque apresenta claramente a exegese prosopográfica agostiniana, que identifica o real personagem a falar in propheta, ou per prophetam, iniciada não fazia muito tempo e que não será deixada ao longo de toda sua experiência de dispen-sator uerbi.

Com efeito, a referida exegese – aplicada ao tema de que nos ocupamos – fora usada alguns anos antes (394-395), embora sem a mesma precisão técnica, para resolver um problema posto pela inter-pretação maniqueia acerca de textos contraditórios (particularmente Jó 1, 6ss e Mt 5, 8 associado a Jo 10, 7; 14, 6 ): se só os puros de coração podem ver a Deus (Mt 5,8), como o diabo pode vê-lo (Jó 1, 6ss.) – quando há categorias angélicas que não o conhecem (com

37. Ibidem.

38. C. Adim. 9 [CSEL 25/1,133-134]: “quapropter si non est mirandum, quod uer-bum dei, id est unicus filius dei, qui de patre anuntiat, cui uult per se ipsum, cui uult per aliquam creaturam uel sonando uel adparendo, [...] non est mirandum ex utroque testamento ista omnia testimonia consonare”. Ao dizer que o Verbo podia manifestar-se aparecendo, Agostinho afirma que, mediante o Verbo, também o Pai podia ser visto, mas somente por um coração puro (c. Adim. 9 [CSEL 25/1,133]: “cum tamen ipse per se ipsum mundo corde uideatur et per illum pater”, e cita Mt 5,8).

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uma atribuição bíblica que Agostinho estranha39) – e como passou pela porta que é Cristo (Jo 10, 7; 14, 6)?

À parte os outros textos escriturísticos em questão, é na abordagem de Jó 1, 6ss. que se encontra o ponto que nos interessa. Ao apresentar sua solução, o Hiponense primeiramente propõe que o diabo não viu, propriamente, a Deus e, em seguida, passa a tratar de como, então, o diabo possa ter ouvido a Deus40. Assim, a resposta agostiniana volta-se a considerar os modos como Deus fala (loquitur Deus) aos homens41, deslocando o acento das possibilidades do de-mônio às manifestações divinas. E aqui, diz Agostinho, Deus também “fala (loquitur) mediante a alma humana (per animam humanam), como [quando fala] pelo profeta (per prophetam)”42.

O texto continua com comentários acerca de outros pontos da vida de Jesus Cristo em aberta oposição aos maniqueus, sem novas ou ulteriores considerações quanto à manifestação divina per prophetam. Manifestação essa, aliás, que não menciona especificamente Cristo a falar per prophetam. E mesmo assim, é importante para indicar o método exegético agostiniano antes da melhor sistematização de c. Adim. 9. Mas o encontramos em outra homilia, que também trata de

39. S. 12,2 [CCL 41,166]: “[...] ubi Adimantus apud apostolum legerit – nam talium alumniarum iste conscriptos est – uellem ergo diceret ubi legerit testantem aposto-lum et confirmantem, ut dicit, quod neque principes neque potestates neque uir-tutes deum cognouerunt [...]” e prossegue apontando, com textos bíblicos, como pode tratar-se de erro do maniqueu.

40. S. 12,3 [CCL 41,167].

41. S. 12,3 [CCL 41,167-169]: per codicem, per aliquod elementum mundi, per sortem, per aliquam uocalem sonantemque creaturam, intus in animo, in somnis, extasin, in ipsa mente...

42. S. 12,2 [CCL 41,168]. Deus, sem determinação da pessoa da Trindade, loquitur per prophetam também em Epistula 205,18 [CSEL 57,339], aproximadamente do final de 418; pouco mais tarde (419/420), em Contra aduersarium legis et pro-phetarum 1,49 [CCL 49,81]; mais tarde, ainda (401), em De sancta uirginitate 24 [CSEL 41,258]. À parte essas referências indeterminadas e aquelas ao Verbo, conhecemos dois textos em que Agostinho especifica outras pessoas da Trindade a falar pelo profeta; o Pai, em s. Denis 11,1 [MA 1,43] (= s. 308A [PL 46,846]), datado de 397-400: “Deus ergo pater, id est, persona dei patris per prophetam lo-quitur: paraui lucernam Christo meo [Ps 131,17]”; e o Espírito Santo, em s. 357,3 [PL 39,158], de 411: “spiritus sanctus loquitur per Isaiam phophetam [...]”. Mas, para Agostinho, é certo que é o Espírito Santo a dotar o profeta do que diz (cf., por exemplo, Io. eu. tr. 32,6 [CCL 36,303]), de modo que crer em Cristo é crer no Espírito do profeta (cf. en. Ps. 147,16 [CCL 40,2150]).

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uma manifestação divina no Antigo Testamento (Ex 3,2-4,14: Deus que fala na sarça ardente a Moisés e o envia). Embora de datação se situe em amplo arco temporal (397-412), ainda assim posteriormen-te ao texto de c. Adim. 9, o mesmo método exegético deste último texto – novamente sem as mesmas distinções técnicas – é usado no s. 7.

Iniciada uma exposição alegórica que identifica na sarça – plan-ta espinhosa – o povo judeu43, Agostinho propõe a seu auditório a questão importante acerca de se quem falava a Moisés era o mesmo, sendo designado de dois modos: anjo do Senhor e Senhor44. Agos-tinho entende que sim, era o mesmo, pois o título “Anjo do grande conselho” (Is 9, 6, conforme a Septuaginta) refere-se ao Senhor e, servindo-se de uma explicação de caráter etimológico (angelus = nun-tius, isto é, anjo = mensageiro), fala de Cristo como mensageiro de Deus e anunciador do Reino45. Mas também é possível que se trate de um anjo mesmo, e não do Cristo propriamente.

Aqui, transposta à exposição do texto ao povo, reaparece a leitura distintiva apresentada em c. Adim. 9: “Como, nas Escrituras, [quando] fala o profeta e se diz que é o Senhor quem fala, não por-que o Senhor seja profeta, mas porque o Senhor está no profeta (est in propheta), assim também quando o Senhor se digna falar por um anjo [...], porque Deus habita (habitantem Deum) nele”46. É a primei-ra modalidade de c. Adim. 9: Cristo fala habitando aquele por quem fala. Quem fala, então, de fato, é Cristo. Essa convicção agostiniana permanece.

Depois de 412, pregando sobre Jo 20,1-18, novamente na Oi-tava da Páscoa, esta explicação se repete, mas numa exposição mais

43. Cf. s. 7,2 [CCL 41,70-71].

44. “Quod autem idem ipse qui loquebatur Moysi, et angelus domini et dominus di-citur, magna quaestio est, nec temerarium debet habere affirmatorem, sed cautum inquisitorem” (s. 7,3 [CCL 41,71]).

45. S. 7,3 [CCL 41,72]: “[...] Christus erat, de quo aperte dicit propheta, quod sit magni consilii angelus [Is 9,6 LXX). angelus enim officii nomen est, non naturae. nam angelus grace dicitur, qui latine nuntius appellatur. nuntius ergo actionis no-men est: agendo, id est, aliquid nuntiando, nuntius appellatur. quis neget Christum nuntiasse nobis regnum caelorum? deinde angelus, id est, nuntius mittitur ab eo qui per eum aliquid nuntiet. et quis neget Christum missum?” Cf. também 7,5 [CCL 41,73].

46. S. 7,5 [CCL 41,73-74].

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simples. Antes, há referência – como em casos vistos acima – àqueles que ignoram o Cristo ressuscitado, inclusive considerando-o profe-ta47, e, para explicar Jo 20,17, Agostinho recorre ao Sl 21,11: o Cristo ressuscitado pode falar de Deus como seu Deus (no tempo) e seu Pai (na eternidade) (Jo 20,17), porque Cristo, Filho unigênito, fala per prophetam48.

Dito isso, podemos nos perguntar, foi respondida a questão com que se iniciou esta seção? Que Cristo fale no ou pelo profeta parece acertado. Voltemos a Agostinho para uma resposta mais clara.

Na conclusão da exposição do milagre da multiplicação dos pães (Jo 6,1-14), pelos anos 414-420, na grande obra homilética que são os Comentários ao Evangelho de João, Agostinho diz que uma sa-bedoria carnal considera Cristo um profeta (Jo 6, 14)49 e – com ex-pressões que já conhecemos – continua:

Mas ele era Senhor dos profetas, realizador das profecias (impletor pro-phetarum), santificador dos profetas, mas era profeta [...]. O Senhor é profeta, o Senhor é o Verbo de Deus; e nenhum profeta profetiza sem o Verbo de Deus; o Verbo de Deus está com os profetas, e o Verbo de Deus é profeta. Os tempos passados tiveram profetas inspirados e cheios com o Verbo de Deus. Nós temos o próprio Verbo de Deus como profeta (prophetam ipsum Verbum Dei). [...] [S]e Cristo não profetizasse, não seria chamado profeta. Exorta-nos à fé e a apegarmo--nos à vida eterna; anunciou realidades presentes, predisse realidades futuras. Pelas coisas presentes que anunciou é [chamado] anjo, pelas futuras que predisse é [chamado] profeta. Porque é o Verbo de Deus feito carne, é Senhor dos anjos e dos profetas50.

47. S. 246,4 [SC 116,302].

48. “Per prophetam ipse dixit: de uentre matris meae, deus meus est tu [Ps 21,11]. ante uentrem matris meae pater meus, de uentre matris meae deus meus. quae ergo et ibi distinctio, puta, patrem meus et patrem uestrum [Io 20,17]? est dis-tinctio quia aliter pater unigeniti filii, aliter pater noster. illius pater per naturam, noster per gratiam” (s. 246,5 [SC 116,304]).

49. “[...] Christum propetam putaband, quia super foenum discubuerant” (In Iohannis euangelium tractatus – a partir daqui: Io. eu. tr. – 24,7 [CCL 36,247]). Ele identifi-cara na grama (Jo 6,10) essa sabedoria carnal: “[...] super foenum discumbebant, carnaliter ergo sapiebant, et in carnalibus quiescebant. omnis enim caro foenum [cf. Is 40,6]” (Io. eu. tr. 24,6 [CCL 36,246]).

50. Io. eu. tr. 24,7 [CCL 36,247-248].

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1.3 A legitimidade do múnus profético de Cristo

A última citação de Agostinho é suficiente para fechar a ques-tão. No entanto, há algo a ser explicitado. A leitura agostiniana de Cristo a falar no (in) ou pelo (per) profeta – não parece haver dis-tinção a esse respeito, ainda que Agostinho pareça ter privilegiado esta última fórmula depois do c. Adim. 9 – não restringe a ativida-de profética de Cristo a antes de sua encarnação; se o Hiponense a restringisse, talvez cometeria um erro hermenêutico dos maniqueus. Pelo contrário, na unidade dos Testamentos – Antigo e Novo –, Cristo jamais deixa de falar, como tampouco o profeta51, ou quem quer que tenha uma função profética. Mas, se o Novo Testamento é realização das profecias do Antigo, como dizer que Cristo seja profeta?

Nas homilias da primeira parte desta seção, pregações do epis-copado de Agostinho, ele não nos oferece uma definição de profeta, mas a temos em c. Adim. 9, obra do seu presbiterado. O profeta não é, aqui, como costumeiramente se poderia pensar, alguém que simples-mente anuncia o futuro, o profeta é quem anuncia a verdade. Assim, com maior razão, Cristo é profeta, pois é a Verdade a manifestar-se do Pai desde sempre.

Quanto às homilias a que acabamos de nos referir, é preciso considerar – supérfluo dizê-lo – que Agostinho dirige-se a fiéis e, na Oitava da Páscoa, particularmente a recém- batizados, que o Hipo-nense pretende, nutrindo-os com as Escrituras, fortalecer na fé no único e verdadeiro Deus. Em tal contexto, as afirmações agostinianas acerca do Cristo mais que profeta – afirmações de todo corretas – não contradizem as afirmações quanto a Cristo ser, de fato, profeta – afirmações, igualmente, de todo corretas. Ao se tratar de questões específicas em determinados textos agostinianos, é necessário pen-sar Agostinho no quadro mais amplo das obras e do pensamento do próprio Agostinho. Isoladamente, os textos podem ser desviantes, e levar-nos aonde Agostinho não gostaria que fôssemos.

51. Falando a sua assembleia sobre o desconhecimento das exortações escriturísticas a mudar de vida, diz o Hiponense: “[...] seruas tibi dicere: non sciebam, non noue-ram, nemo mihi dixit. Christus non cessat dicere, propheta non cessat dicere [...]” (en. Ps. 103,3,12 [CCL 40,1511]).

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2. O Cristo rei e sacerdote

Nos poucos textos agostinianos tidos em consideração acima – poucos, mas, cremos, suficientes para o objetivo destas páginas –, quanto ao Cristo profeta, não havia referências ao Cristo rei e sa-cerdote. Por isso, é preciso que nos voltemos a tais títulos em ou-tros textos agostinianos. Mas, diversamente de como vimos o múnus profético de Cristo, isto é, sem conexão com os outros dois, agora os múnus de rei e sacerdote são considerados juntos, porque assim os encontramos sem dificuldade na obra de Agostinho. Mas sem cone-xão com o ofício profético de Cristo.

Aqui avançamos cronologicamente com Agostinho, de modo a perceber como sua convicção quanto ao Cristo rei e sacerdote se de-senvolve no quadro de seu pensamento, ainda que o façamos muito modestamente52, voltando-nos a três textos.

2.1 O rei e sacerdote

Antes de assumir o episcopado, Agostinho, em uma das res-postas a 83 questões variadas53 que lhe tinham sido postas por seus coirmãos54, dedica amplo espaço a tratar do Cristo rei e sacerdote55, em um contexto que talvez soe estranho ao leitor contemporâneo. Com efeito, a pergunta feita a Agostinho vertia sobre algo acerca da

52. Com efeito, à parte os cognatos rego (reger), sacercotium (sacerdócio), sacerdotalis (sacerdotal), encontramos os substantivos rex (rei) e sacerdos (sacerdote) juntos na obra de Agostinho de Hipona cerca de cinquenta vezes, contando citações bíblicas e o uso agostiniano.

53. De diuersis quaestionibus octoginta tribus – a partir daqui: diu. qu. A obra é a penúl-tima do livro 1 das Retractationes, dedicado às produções anteriores ao episcopado de Agostinho. Como as questões lhe eram feitas isoladamente e ao longo de grande arco temporal (entre a conversão e o episcopado; cf. Retractationes 1,26 [CCL 57,74]), data-se o diu. qu. entre 388-396. A seu respeito, veja-se Eric PLUMER, “De Diversis quaestionibus octoginta tribus”, in Allan FITZGERALD (ed.), op. cit., p. 581-583. É difícil dizer se as questões estão dispostas em ordem cronológica ou temática (cf. 581-582). Não é impossível, ainda, que os temas tenham sido abordados cronologicamente, conforme Agostinho e sua comunidade passavam a dedicar-se a determinada matéria.

54. Retractationes 1,26[25]:

55. Diu. qu. 61,2 [CCL 44A,121-125], considerando-se que toda a questão é tratada em cerca de dez páginas para oito parágrafos [CCL 44A,120-131].

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multiplicação dos pães de Jo 6,9-13, talvez sobre o significado dos cinco pães e dos dois peixes56.

Concluída a breve explicação sobre os cinco pães57, passa aos dois peixes, que significam os dois ungidos que governavam os ju-deus, o rei e o sacerdote58, que “são figura (praefigurabant) de nosso Senhor, pois só ele assumiu (sustinuit) a ambos, e só ele os realiza (im-pleuit), não de modo figurado (figurate), mas realmente (proprie)”59. E Agostinho diz imediatamente em seguida por que Cristo é rei: ele é condutor (dux) que dá o exemplo da luta e da vitória,

tomando, na carne mortal, nossos pecados; resistindo às tentações – às sedutoras e às intimidatórias – do inimigo [...] e triunfando sobre elas em si mesmo. [...] Com esse mesmo rei esperamos ser introduzidos na Jerusalém celeste, [...] e ser guardados por ele como rei (regnante) e pastor (custodiente). Assim nosso Senhor Jesus Cristo se mostra como nosso rei60.

E então, porque é sacerdote:

Ele é nosso sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec [cf. Sl 109,4]; Ele ofereceu a si mesmo em holocausto pelos nossos pecados e recomendou que se celebrasse a renovação de seu sacrifício em memória de sua paixão, de modo que aquele que Melquisedec ofereceu, ora o vejamos oferecido na igreja de Cristo por toda a terra61.

A exposição agostiniana prossegue dando razões da realeza de Cristo em sua genealogia segundo Mt 1, 1-17 e do seu sacerdócio na genealogia segundo Lc 3, 21-38. Na primeira, Agostinho lê a realeza

56. De fato, a questão 61 do diu. qu. encontra-se próxima a outras (55-59) em que a simbologia dos números parece importante.

57. Isto é, a Lei: os cinco sentidos, que a Lei subjuga, ou o Pentateuco; e, como são de pães de cevada, e não se obtém facilmente o grão da cevada, significa também o nutrimento vital que a Lei cobre (diu. qu. 61,1 [CCL 44A,10-121]).

58. Diu. qu. 61,2 [CCL 44A,121]: “[...] duas illas personas uidentur significare quibus populus ille regebatur, [...] regiam scilicet et sacerdotalem, ad quas etiam sacro-sancta illa unctio pertinebat”.

59. Diu. qu. 61,2 [CCL 44A,121].

60. Diu. qu. 61,2 [CCL 44A,121-122].

61. Diu. qu. 61,2 [CCL 44A,122].

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indicada de modo descendente, de Abraão até a estirpe real de Davi, na assunção da carne por parte de Cristo; e, na segunda, o sacerdócio indicado de modo ascendente, partindo do batismo do Senhor até Deus, pois a purificação – significada no batismo – é própria do sacer-dote62. Agostinho, sem mais considerações a esse respeito, volta-se à multiplicação dos pães e a outras questões. Essa explicação da realeza e do sacerdócio de Cristo reaparece poucos anos mais tarde.

Por volta do ano 400, respondendo a objeções quanto às diver-gências dos Evangelhos, o Hiponense compõe o De consensu euange-listarum – a partir daqui: cons. eu. – e, no início da obra, ao apresentar pontos comuns entre os evangelistas (como sua autoridade e por que quatro63), retoma os títulos de Cristo como apresentados no pará-grafo anterior, em que expusemos a abordagem agostiniana de diu. qu. 61,2: Mateus se ocupa da descendência régia enquanto Lucas da ascendência sacerdotal64.

Embora reconheça que “Cristo aparece como rei e sacerdote em muitos outros testemunhos das divinas Escrituras”, Agostinho quase se limita a praticamente repetir a resposta de diu. qu. 61,2: Cristo é rei para nos governar (regendos) e sacerdote para nos puri-ficar (expiandos); antes da encarnação, exercia ambas as funções em indivíduos distintos, mas agora as exerce juntas em si65. Acrescenta, porém, que a profecia se vê realizada no Novo Testamento66: quanto à realeza, o que fora predito pelo Sl 74, 167 se verifica na inscrição (Mc 16, 26; Lc 23, 3868) mantida (Jo 19, 2269) sobre a cruz; quanto ao sacerdócio, além da repetição da oferta e do recebimento do sacrifício

62. Cf. Diu. qu. 61,2 [CCL 44A,123-125]. A respeito da obra, veja-se Allan FITZ-GERALD, “De consensu evangelistarum”, in FITZGERALD, Allan (ed.), op. cit., 460-461.

63. Cons. eu. 1,1-4 [CSEL 43,1-4].

64. Cons. eu. 1,4 [CSEL 41,4].

65. E, com o advento do Cristo, os judeus ficaram sem unção de rei nem de sacerdote (cf. cons. eu. 1,22 [CSEL 43,21]).

66. Além do que se dirá a seguir, Agostinho voltará à prefiguração veterotestamentária do Cristo rei e sacerdote no culto prestado a Deus pelos profetas (cf. cons. eu. 1,37 [CSEL 43,36]).

67. “Não corrompas a inscrição do título”.

68. “Rei dos judeus”.

69. “O que escrevi, escrevi”.

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de Cristo e do Sl 109, 470, anota que Davi, ponto comum nas gene-alogias de Mt e de Lc, também era figura (figurauit) do sacerdócio, “pois comeu dos pães da proposição, que não era lícito comer senão os sacerdotes [Mt 12, 3-4]”, e acrescenta, de Lc 1, 36, o parentesco entre Isabel e Maria, colocando esta última numa descendência sa-cerdotal71.

À parte estes acréscimos documentais, há outro decisivo para o objetivo destas páginas:

Tendo Mateus chamado a atenção para a figura do rei e Lucas para a do sacerdote, ambos lembram principalmente a humanidade de Cris-to. Certamente é em sua humanidade que Cristo se fez rei e sacerdote, a quem Deus deu o trono de Davi, seu pai [cf. Lc 1, 32-33], para que seu reino não tenha fim e para que interceda por nós o mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo [cf 1Tm 2, 5]72.

Se, então, os títulos de sacerdote e rei concentram-se no Cris-to encarnado, e é em sua humanidade que Cristo se faz mediador, convém considerar a mediação e sua relação com os referidos títulos.

2.2 O Mediador

Nas calendas de janeiro de 40473, Agostinho profere o s. Dolbe-

70. “Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec”.

71. Cons. eu. 1,5 [CSEL 41,5]. A passagem de 1Rs 21, citada em Mateus, e associada a Mt 26,26 (“este é meu corpo”), em que Davi come dos pães reservados aos sacer-dotes, prefigura a eucaristia, em que Cristo toma a si mesmo nas próprias mãos (cf. en. Ps. 33,1,10 [CCL 38,380-381]). Quanto a Maria, parente de Isabel, esposa de Zacarias, é descendência do sacerdote Aarão (cf. Lc 1,5), sendo também de estirpe sacerdotal.

72. Cons. eu. 1,6 [CSEL 41,6]. Cf. também cons. eu. 4,11 [CSEL 41,406-407] e 4,10 [CSEL 41,417]: ao abaixar-se à debilidade humana, Cristo se torna a via pela qual se deve caminhar. Caminhando por ele, ele é rei que ajuda a não pecar, e, se houver pecado, a culpa é perdoada pelo Cristo sacerdote. Mas caminhar pela via implica o duplo mandamento do amor, a Deus e ao próximo, como duas asas na ascensão para Deus.

73. No primeiro dia do ano (s. Dolbeau 26,43 [DOLBEAU 399]: “hodierno die kalen-darum Ianuarum”); para a datação deste sermão, veja-se F. DOLBEAU, “Nouveaux sermons de Saint Augustin pour la conversion de païens et des donatistes (IV)”, in Recherches Augustiniennes 26 (1992), p. 79-80. O s. Dolbeau 26 é um dos raros casos de sermões agostinianos com datação praticamente certa.

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au 2674, praticamente um tratado sobre o Cristo mediador. Despon-tando do Sl 105, 4775 – que tinha sido cantado76, o Hiponense, depois de apresentar várias formas de idolatria pagã77 – opondo-se a elas –, volta-se à realidade da criação (os seres corpóreos e os espirituais78; a ordem dos seres) e à natureza da salvação (a iniquidade e sua supera-ção em Cristo79), a que se pode chegar purificando-se e ascendendo a Deus humildemente80. Então, fala de dois tipos de soberbos que não podem salvar-se, uns por crerem poder contar consigo mesmos somente e outros por crerem poder contar com falsos ritos81, e nin-guém pode salvar-se senão

por Jesus Cristo nosso Senhor [Rm 7, 24ss.], pelo único e verdadeiro mediador, Deus e homem que, se fosse só homem, não seria media-dor, se fosse só Deus, não seria mediador. E se ele não fosse mediador, não reconciliaria com Deus o homem que, pela iniquidade, [d’Ele] se

74. O mais longo dos sermões agostinianos, com mais de duas horas de duração (cf. F. DOLBEAU, Nouveaux sermons de Saint Augustin pour la conversion de païens et des donatistes (IV), in: Recherches Augustiniennes 26 (1992), p. 76). Devido às suas proporções, não o podemos apresentar como na análise dos sermões da seção sobre o Cristo profeta.

75. “Salva-nos, Senhor nosso Deus, e reúne-nos de entre as gentes, para confessarmos teu santo nome”.

76. S. Dolbeau 26,1 [DOLBEAU 366,1]: “[...] ut etiam atque etiam memineritis quod modo cantabatis [...]”.

77. S. Dolbeau 26,2-24 [DOLBEAU 366-384], retomadas em 33-35 [DOLBEAU 391-393].

78. S. Dolbeau 26,25 [DOLBEAU 384-385].

79. S. Dolbeau 26,26 [DOLBEAU 385-386].

80. S. Dolbeau 26,27-35 [DOLBEAU 386-393]. Agostinho entende, nestes parágrafos, ter havido quem percebesse a espiritualidade de Deus, mas, ensoberbecido, acabou por cultuar a criatura em vez de seu criador (cf. Rm 1,23ss.). Quanto à ascensão a Deus, estes parágrafos contêm prováveis elementos de filosofia neoplatônica, a cujos mediadores equivocados o Hiponense se refere. A esse respeito, veja-se Jean PÉPIN, “Falsi mediadores duo. Aspects de la médiation dans le sermon d’Augustin Contra paganos (S. Dolbeau 26)”, in Gaulven MADEC (ed.), Augustin Prédicateur (395-411), 1998, p. 395-417.

81. “Horum autem superborum [...] duo sunt genera. alii suae uirtuti se commiserunt, nullum adiutorem quaesiuerunt arbitrantes animas suas per philosophiam posse purgari, quasi nullo egentes mediatore. [...] sunt autem alii qui, cum uidissent uel credidissent esse deum cui reconciliandi sunt et de uiribus suis non praesumerent, purgari sacris uoluerunt [...]” (s. Dolbeau 26,36-37 [DOLBEAU 393-394]). Cf. também o parágrafo 61 [DOLBEAU 414-415].

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distanciara [cf. Ef 2, 13.16]. [...] [E] ninguém pode ser liberado senão pela confissão dos pecados Àquele que propicia a mediação (interpo-sito propitiatore)82.

O Hiponense, que desconstruíra as alternativas salvíficas pos-tas pelos ritos pagãos e, particularmente mediante o Sl 115,11 (cf. Rm 3,4), juntamente com Rm 7,2483, pela confiança do homem em si mesmo, passa então a indagar (quaerendum est) sobre a natureza (quid sit) do mediador84. Discorre sobre o diabo, qual falso mediador (mediator falsus), porque faz mediação (interponit se) para o mal, ar-rastando os soberbos, e sobre o humilde mediador (humilis mediator) que não falta a quem O busque humildemente (humiliter quaesi)85. O humano humilde, então, recorre ao mediador humilde – reconhe-cido por revelação antes da encarnação e por fé depois86 – e o sober-bo, a um falso mediador87.

Sabido quem é o único verdadeiro mediador – mediador hu-milde – e que ele deve ser homem e deve ser Deus, Agostinho expõe os elementos da humanidade do mediador que lhe permitem fazer a mediação, a assunção da carne e da mortalidade humana, mas sem o pecado:

Se fosse pecador, não poderia ser mediador. Se fosse mortal e pecador, seria o que são todos os homens, e já não seria mediador, mas preci-saria de um; pois todo homem é pecador e mortal. Mas Deus é justo ainda que [se faça] mortal. O mediador é humilde, justo e mortal; [...]

82. S. Dolbeau 26,36 [DOLBEAU 394].

83. Respectivamente, “Todo homem é mentiroso” e “Quem [o] libertará deste corpo de morte?”.

84. S. Dolbeau 26,38 [DOLBEAU 395]. A exposição sobre a natureza do mediador estende-se pelos parágrafos 39-40 [DOLBEAU 396-397].

85. S. Dolbeau 26,38 [DOLBEAU 395]. Veja-se também o parágrafo 44 [DOLBEAU 400-401].

86. “[...] et antiqui humiles per reuelationem agnouerunt [...] sicut nos per eius fidem [...]” (s. Dolbeau 26,38 [DOLBEAU 395]).

87. S. Dolbeau 26,38 [DOLBEAU 395-396]: “[...] ille mediator opponit superbus su-perbis, sicut humilibus humilis, per quasdam congruentias et per quandam inef-fabilem mirandamque iustitiam [...]. superbus ergo mediator superbis, humilibus humilis occurrit, sed ideo humilibus humilis, ut perducat ad altitudinem dei, ideo superbus superbis, ut altis in se intercludat altitudinem dei”.

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justo porque é Deus e mortal porque é homem88.

O homem Jesus Cristo é mediador porque tem a justiça do Pai, que lhe é igual na eternidade, e a mortalidade humana, resultante do pecado – que ele não tem –, humildemente assumida na encarna-ção89. O mediador, então, tem propriedades daqueles entre os quais faz a mediação: não poderia mediar se só tivesse suas propriedades divinas ou se só tivesse propriedades humanas, pois não estabeleceria a conexão entre os dois extremos, Deus e o homem90. O mediador tem as propriedades de quem purifica e de quem precisa de purifi-cação91 – sem a causa, isto é o pecado, da necessidade de purificação, mas só sua consequência, isto é, a condição mortal.

Pouco depois, afirma Agostinho: “Assumiu a carne o teu salva-dor, assumiu a carne o teu mediador e, ao assumi-la, assumiu a Igreja. Como a partir da Cabeça, degustou, ‘sacerdote para sempre’ [Sl 109, 4] e ‘expiação pelos pecados’ [1Jo 2, 2], o que ofereceria a Deus. O Verbo assumiu a natureza humana, e os dois tornaram-se um só”92. Assim, o mediador e sacerdote pode oferecer a Deus a natureza hu-mana purificada da mancha do pecado93. A associação entre a media-ção propiciatória e o sacerdócio reaparece pouco depois.

88. S. Dolbeau 26,39 [DOLBEAU 396].

89. Veja-se também s. Dolbeau 26,60 [DOLBEAU 413].

90. Assim, o mediador, por sua justiça, é o único capaz de purificar o ser humano peca-dor e libertá-lo da morte (cf. s. Dolbeau 26,40 [DOLBEAU 396-397]), curando-o da soberba (cf. s. Dolbeau 26,41 [DOLBEAU 397-398]) por inefável inserção e união ao Verbo divino (s. Dolbeau 26,44 [DOLBEAU 400]). Veja-se também o parágrafo 49 [DOLBEAU 404-405].

91. “[...] totum suscepit ille mediator, quia creatura mediatrix talis mundare [ho-minem] potest ab iniquitatibus et a mortalitate liberare [...]” (s. Dolbeau 26,44 [DOLBEAU 400]).

92. S. Dolbeau 26,43 [DOLBEAU 398], e cita Ef 5, 31ss, sobre a união de marido e mulher, mas em relação a Cristo e à Igreja (cf. loc. cit. [DOLBEAU 398-399]). Aqueles que o salvador, mediador, sacerdote oferece a Deus são os fiéis que o seguem na ressurreição (“[...] transiens hinc ad patrem, secuturis fidelibus [...]” (s. Dolbeau 26,43 [DOLBEAU 399]). Cf. também s. Dolbeau 26,62 [DOLBEAU 415-416].

93. Veja-se também s. Dolbeau 26,62 [DOLBEAU 416]: “[...] etiam carnalem ex ho-mine naturam sibi copulauit, ut sic homo disceret nec a sua natura se longinquum, quod solis caelestibus propinquare arbitrabatur, et per cognitam medietatem pur-gatus incommutabili diuinitati cohaereret”.

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Repetidas as naturezas (substantia) humana e divina de Cristo no único e verdadeiro mediador, o homem Jesus Cristo, diz Agosti-nho,

em sua carne, libertou a nossa. Pois ‘ele já não morre, e a morte não terá poder sobre ele’ [Rm 6,9]. A ele chegam as nossas preces, [...] pois ele mesmo é o sumo sacerdote que as oferece, porque ele mesmo se ofereceu em sacrifício por nós [cf. Hb 9,14]. [...] Ele é o único pon-tífice e o único sacerdote, que era prefigurado nos antigos sacerdotes de Deus. Por isso se exigiam sacerdotes sem manchas físicas [cf. Lv 21], porque só ele viveu sem a mancha do pecado, mesmo em seu corpo mortal. Porque o que era prefigurado no corpo deles era signi-ficado na vida d’Ele94.

O mediador e sumo sacerdote igualmente recebe nossas preces e as apresenta ao Pai – o que não acontecia com a figura veterotes-tamentária95. Os sacerdotes da Antiga Aliança somente ofereciam o sacrifício, e a ausência de manchas em seu corpo era uma figura da realidade da vida de Cristo, que, sendo mediador e sacerdote imacu-lado, pode oferecer a si mesmo e interceder por aqueles pelos quais o sacrifício é oferecido.

Nos dois parágrafos seguintes (50-51), põe-se a tratar do rei e do sacerdote com elementos que já nos são familiares: Davi prefigura o Cristo como rei e como sacerdote; Maria, sua mãe, é de estirpe real e sacerdotal96, mas, aqui, especifica: “Por isso estão no Senhor, na hu-manidade que assumiu, ambas as personalidades, a real e a sacerdotal. Rei, ele nos conduz a imitá-lo todo (omnem imitationem) no combate espiritual [...]; sacerdote, ele ofereceu-se a si mesmo como sacrifício para expiar e purificar nossos pecados”97. Mas a oferta que Cristo sa-cerdote faz de si mesmo por nós se estende ao santuário celeste, onde se encontra o Ressuscitado e aonde irão também seus fiéis; de lá, ele

94. S. Dolbeau 26,49 [DOLBEAU 404].

95. Cf. também, s. Dolbeau 26,57 [DOLBEAU 411].

96. S. Dolbeau 26,50 [DOLBEAU 405].

97. S. Dolbeau 26,50 [DOLBEAU 406]. “Por isso, figurativamente (in figura) antes se ungiam a ambos, ao rei e ao sacerdote” (loc. cit.), personagens simbolizados pelos dois peixes da multiplicação dos pães de Jo 6,9-13 (cf. s. Dolbeau 26,51 [DOL-BEAU 406-407]).

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intercede por aqueles que peregrinam aqui98 e aqui devem amá-lo, de fato99.

O sermão continua insistindo na prática humilde de boas obras, isto é, sem considerá-las mérito próprio100, e na adesão ao mediador humilde101.

2.3 Sacerdócio e reinado à luz da mediação

Diversamente dos textos da seção precedente, sobre o Cris-to profeta, não encontraremos, aqui, passagens do Hiponense com nenhuma consideração aparentemente contraditória. Pelo contrário, mais linearmente, e de modo progressivo – mesmo que o arco tem-poral entre a composição do primeiro e dos últimos textos não tenha sido tão grande –, encontramos Agostinho a acrescentar elementos, ainda que poucos, aos pontos fixos quanto ao sacerdócio e à realeza de Cristo.

Desde o primeiro texto que vimos (diu. qu. 61,2), Cristo con-centra, realmente, sacerdócio e realeza em sua carne, em sua encar-nação – sacerdócio e realeza que continuam na Jerusalém celeste, de onde continua a governar os seus e a interceder por eles. Em sua carne, nascido de estirpe real e sacerdotal, Cristo é rei que vence o pecado e é sacerdote que o expia, oferecendo em sacrifício – sacri-fício que deixa à sua Igreja – a si mesmo (cons. eu. 1,6), porque sem mancha alguma de pecado. Por isso, a reflexão sobre o sacerdócio e a realeza de Cristo passa a ser apresentada depois de Agostinho con-centrando-se na reflexão sobre o mediador (s. Dolbeau 26).

Para vencer, qual rei, o pecado, e expiá-lo, qual sacerdote ca-paz de oferecer a si mesmo, o mediador tem a justiça de Deus. Para apresentar a Deus a natureza humana purificada, ele tem a condi-ção mortal humana, humildemente aceita. Entre os extremos, de um lado, da imortalidade e justiça divinas, e, de outro, da mortalidade e

98. Cf. s. Dolbeau 26,53-54 [DOLBEAU 408-409].

99. Cf. s. Dolbeau 26,53 [DOLBEAU 408-409]. Entre outros textos escriturísticos, Agostinho lapidarmente comenta um: “‘Tive fome e me destes de comer’ [Mt 25,35]. Ele não diz ‘destes a eles’, mas ‘me destes’ [Mt 25,35]” (loc. cit. [DOL-BEAU 409]).

100. Cf. s. Dolbeau 26,56 [DOLBEAU 410-411].

101. S. Dolbeau 26,57-63 [DOLBEAU 411-417].

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iniquidade humanas, está o homem Jesus Cristo, Verbo encarnado, mortal e sem pecado; Deus feito homem; mediador, sacerdote, rei.

3. Munera Christi, munera ecclesiae – considerações fi-nais

Vimos uns poucos textos de Agostinho para compor uma ima-gem dos três ofícios do Cristo profeta, rei, sacerdote. Textos que não se encontram entre as grandes e mais conhecidas obras do Hiponen-se. Mesmo assim, se posto em paralelo com, por exemplo, os livros 7-9 e, particularmente, 11, de A cidade de Deus, o quadro aqui apre-sentado não destoa das conclusões da grande obra, ou das diversas imagens cristológicas oferecidas nos grandes comentários aos Salmos e ao Evangelho de João. Aliás, comparativamente, o último texto aqui visto (s. Dolbeau 26) é quase uma antecipação – claro, sem certos desenvolvimentos, como acerca das implicações do pecado original, por exemplo – da cristologia de A cidade de Deus. Contudo, nem mesmo nas grandes obras agostinianas temos um capítulo específico articulado sobre os três ofícios de Cristo como os concebemos hoje.

De certo modo, esta composição do tema dos três ofícios de Cristo a partir de obras agostinianas variadas, constitui também uma forma de abordagem do próprio Agostinho.

Vimos, quanto ao Cristo profeta, que há textos agostinianos (s. 232 e 234) em que o Hiponense parece negar-lhe o título, preferindo dizer que ele é mais que profeta. E, mesmo assim, há outro (c. Adim. 9) em que Agostinho apresenta – organizando uma exegese prosopo-gráfica – o Cristo a falar no/pelo profeta, habitando-o; ideia que se re-pete posteriormente em um texto talvez cronologicamente próximo daqueles em que parece negar a Cristo a função profética. Agostinho não se contradiz, e reconhece o Cristo como profeta. Mas preciso ter presente a quem o Hiponense fala e com que objetivo fala.

Para fortalecer a fé dos fiéis, particularmente dos neobatiza-dos, apresenta os discípulos de Emaús como discípulos decaídos de sua fé. Para os recém-batizados, esses discípulos não são modelo de discipulado, porque se mostraram desesperados diante de fatos con-trários àqueles que eram esperados. Mas, na intimidade com ele, a fé dos fiéis é fortalecida por aquele é que mais que profeta, é Senhor

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dos profetas. Sem a intimidade com ele, mesmo quem vê é cego. É preciso uma visão interior para ver o Cristo ressuscitado, o Verbo.

O Verbo encarnado anuncia o Pai, mas não só quando encar-nado. Ele O anuncia desde sempre, e é o único Verbo eterno, que, por falar em ambos os Testamentos, dá unidade a ambos. É o que Agostinho nos diz na obra antimaniqueia aqui considerada. É o mes-mo Verbo a, desde sempre, dizer a verdade, tanto mediante criaturas quanto pelo ou no profeta. Por isso, ele é profeta; mas não por identi-ficar-se com determinado personagem profético. É profeta porque no ou pelo profeta, quem anuncia a verdade é ele; e continua a anunciar as realidades futuras que esperamos. Realidades possíveis ao ser hu-mano graças à sua mediação.

Como realização da Antiga Aliança em sua própria carne, o Verbo encarnado assume em si o antigo sacerdócio e a antiga realeza, que progressivamente Agostinho lerá em conexão com o tema do Cristo mediador. E aqui outra forma de abordagem do pensamen-to agostiniano, que progride, acrescenta novos elementos e conserva pontos certos: Cristo é rei e sacerdote, assumindo, realmente, em sua carne dois ofícios distintos exercidos figurativamente por dois perso-nagens distintos na Antiga Aliança. Como rei, vence o pecado; como sacerdote, purifica do pecado e se oferece a si mesmo como sacrifício. E pode fazer tudo isso em sua carne (diu. qu. 61,2) porque é de es-tirpe real e sacerdotal (cons. eu. 1,4-6). Mas realeza e sacerdócio de Cristo em sua carne são ulteriores e melhor compreendidos à luz da reflexão sobre o único e verdadeiro mediador, o humilde mediador (s. Dolbeau 26).

O mediador vence o pecado e expia-o porque assumindo hu-mildemente a carne e a mortalidade humana, pode resgatar a hu-manidade e, em si mesmo, oferecê-la ao Pai. Afinal, sem a mancha do pecado, ele é justo como o Pai. Mediador, ele tem propriedades daqueles entre os quais faz a mediação. E, assim, ele é verdadeira-mente rei e sacerdote, aqui e na Jerusalém celeste; pois, ao assumir a carne, não deixa o que era (sua divindade) e, ao ressuscitar e ascender à direita do Pai, não deixa o que assumira (a humanidade). Daqui ao Cristo Total é um passo102. Passo dado por Agostinho mesmo – mas

102. Particularmente nos Comentários aos Salmos. Pois no saltério, quase como com-pleta profecia do Cristo (cf. De ciuitate Dei 17,4 [CCL 48,578-579]), é onde ele

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não explicitado nestas páginas, pois a extensão dos ofícios de Cristo ao cristão merece um artigo à parte; mesmo assim, uma breve recor-dação dessa conexão é necessária.

Ao assumir a natureza humana, o Cristo a incorpora em si para apresentá-la ao Pai, mas também se torna Cabeça do corpo daqueles que humildemente aderem a essa incorporação: Cristo é cabeça da Igreja. Eis o óbvio, frequentemente esquecido: a cabeça é quem deci-de, não os membros por si só.

A efetividade da adesão, estando ao s. Dolbeu 26, particular-mente, requer humildade. Humildade para aderir ao mediador hu-milde, humildade para manter-se coerentemente – por quanto nossa fragilidade, confessa, nos permita – nessa adesão. Na incorporação ao Cristo, sua humildade se torna a humildade de seu corpo, e a humil-dade do corpo desdobra-se na atenção para com o próximo, cuida-do mútuo. Atenção na oração mútua e no bem praticado ao próprio Cristo na pessoa do outro. Este cuidado é essencial para que os mem-bros do corpo consideremos o quanto seguimos a Cabeça. Os ofícios de Cristo são ofícios da Igreja. Nos cristãos, corpo de Cristo, deve-se ver o Cristo-Cabeça, profeta, rei, sacerdote, em ação na história após sua ascensão. Em meio a definições melhores, mais completas e orto-doxamente formuladas, não é isso que a Igreja é?

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frequentemente, seja como Cabeça, seja como seus membros (cf., por exemplo, respectivamente, en. Ps. 138,2 [CCL 40,1990] e 30, 2,1,4 [CCL 38,193]).

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