Hajasaúde!- entrevista
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Em 2013 foi publicado o Relatório do Grupo de Trabalho sobre a Prova Nacional de Seriação, que o Professor integrou. Nesse relatório foram propostas alterações ao modelo da prova nacional de seriação, e à forma de acesso ao internato médico. Em Janeiro deste ano, foi divulgado um projeto de decreto-‐lei (PDL) que versava sobre a formação médica especializada, que também prevê alterações no acesso ao internato médico, e a vários outros aspetos relevantes da sua organização. Gostaríamos
de explorar algumas das propostas conUdas em ambos os documentos, e compreender os prós e os contras destas, e a sua jusUficação.
Nova PNSSofia Leal Santos (SLS): No Relatório do GT-‐PNS era proposta a mudança do modelo, para um mais semelhante às provas do Na#onal Board of Medical Examiners. O PDL prevê uma nova prova de seleção a realizar pela primeira
Que futuro para o Internato MédicoEntrevista ao Professor Nuno Sousa
Sofia Leal Santos e Sofia Ferreira, 3º Ano
Suplemento à edição Abril-Maio-Junho do Haja Saúde!
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vez em 2015. No entanto, não é referido qual será o novo modelo nem quais as enUdades responsáveis por o desenvolver, e por elaborar e validar as perguntas. Apesar da indefinição, vê a proposta de mudança com o9mismo?
Nuno Sousa (NS): Com certeza que sim! Vamos disUnguir duas coisas que são muito importantes: eu fiz parte daquele grupo de trabalho que fez uma proposta para um novo modelo de prova, e para apontar alguns caminhos no senUdo de termos um novo modelo de seriação. Não tem nada a ver com a proposta do decreto-‐lei, soube dela ao mesmo tempo que vocês. A única coisa que fiz relaUvamente a essa PDL foi protestar relaUvamente a dois pontos. O primeiro era que entendia que era absolutamente in justo que ela fosse apl icada imediatamente, por exemplo, que este ano não houvesse o exame nem a colocação dos candidatos no ano seguinte, e a segunda coisa foi que fosse uUlizada a média de curso não ponderada numa eventual forma de seriação. Esses dois pontos eram tão absurdos que eu decidi protestar imediatamente em relação a eles, independentemente de haver outros pontos com os quais eu não concordo no projeto de decreto-‐lei, e de haver outros com os quais eu concordo. Portanto, protestei, levei esse documento ao fórum onde os diretores das escolas médicas se reúnem e todos, por unanimidade, decidimos apoiar o documento e enviámos essa “missiva” dois dias depois para o Ministério da Saúde, bem como para a ACSS e dirigida ao Sr. Secretário de Estado, e Uvemos uma resposta 24h depois a dizer que estava cancelado, esse projeto de decreto-‐lei.
SLS: Este projeto foi cancelado? Mas há algum em construção?NS: A resposta que eu Uve do Vice-‐Presidente da ACSS foi que estava cancelado e, portanto, não teria efeito imediato. Não sabemos se irá exisUr um novo PDL, se ele vai ser aberto a uma discussão pública, se vão ser chamados os intervenientes que vale a pena ouvir nestas circunstâncias. Sobre isso a única coisa que eu sei é que está suspenso.
SLS: E houve consenso entre as escolas médicas rela9vamente à normalização das médias?NS: Absolutamente. Notem que também há, ou houve, porque agora de facto há uma mudança de aUtude por parte da ANEM, mas houve até agora uma grande entropia criada pela própria ANEM relaUvamente à ponderação das médias. Como vocês sabem, não há nenhuma forma de ponderação perfeita, isso não existe. Há umas que têm
vantagens sobre outras, mas não há nenhuma perfeita. Qualquer forma de ponderar, para mim, é melhor que a ausência de ponderação. O problema é quando há 50% das pessoas que estão claramente beneficiadas, e que fazem tudo para que não mude nada. Quem está desse lado diz que está de acordo -‐ obviamente é quase insultuoso dizer às pessoas que não se está de acordo -‐ mas depois bloqueia. Esta conversa da ponderação das médias finais de licenciatura ou, hoje em dia, mestrado, é uma conversa que tem 20 anos! E as pessoas não se entendem por detalhes e pormenores. O que eu mostrei às pessoas é que, no úlUmo ano leUvo, a ECS-‐UM era a primeira classificada na média do exame de acesso, e era a úlUma classificada nas médias de curso. Eu até brinquei com isso, que há uma correlação entre ser primeiro e ser úlUmo. Isso é absurdo, as pessoas concordaram. Outra coisa que era absurda era, de repente, já na reta final do jogo, dizer agora às pessoas que este ano não há exame e depois logo se vê. Isso, enfim, é tão absurdo que esses dois pontos foram logo mudados, deram-‐nos logo razão. Agora, o que vai acontecer a seguir, não faço a mais pequena ideia, relaUvamente ao PDL.
SLS: Só em relação ao ponto das posições da ANEM: tanto quanto eu sei, pelo menos nos úl9mos 3 anos, as posições eram no sen9do de não quererem à inclusão da média para o acesso à especialidade.NS: Não.
SLS: Não recusavam a normalização.NS: Não, não. Nunca ninguém recusou! O problema é que nunca aceitaram! Repara que há uma nuance aqui: tu podes dizer “Ah sim, eu concordo”, mas alguém tem que fazer, entendeste? Porque o que estava a acontecer era que toda a gente concordava que Unha de ser feito, mas ninguém concordava sobre qual o modelo.
SLS: Mas isso foi feito nos úl9mos 2 anos.NS: Exatamente. Por isso é que eu disse que houve até agora uma grande entropia e, finalmente, há uma posição unânime dos estudantes de medicina relaUvamente à forma de ponderar. Resolvida a questão da ponderação, a pergunta que me podes colocar a seguir é “Eu concordo que essa nota faça parte do compósito para a pessoa se apresentar ao concurso de escolha do internato médico?” A resposta é sim, porque eu acho que é muito mais justo que o compósito, tal como foi na vossa seleção para entrar na universidade, não seja apenas dado por um único momento de avaliação. Porque todos nós temos dias melhores e dias piores, e isso é injusto, porque as pessoas
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têm um percurso prévio que tem que ser valorizado. Segunda pergunta que me poderias fazer a seguir: “Mas, então, concorda que as pessoas, sem saberem disso quando entraram na escola médica, possam depois ter essa alteração?”. Claro que concordo, porque quem vem para uma escola médica deve tentar sempre o melhor para ele próprio e, portanto, não vejo nenhuma razão de monta para as pessoas dizerem que o desconhecimento desse facto as impedia de fazer melhor. Discordo disso, acho que é uma posição radicalmente conservadora, com a qual eu não me revejo do ponto de vista da polí9ca social e da polí9ca pedagógica.
SLS: Em todo o caso, está es9pulado que é preciso haver um intervalo de 3 anos entre o anúncio da nova prova e a aplicação desta.NS: De acordo. Portanto, eu sou todo a favor do cumprimento das leis, independentemente de discordar delas, e nesse caso eu até discordo. Porque se, para o ano, acontecesse uma coisa gravíssima, teríamos de esperar 3 anos, assim, como está determinado. Portanto discordo do princípio da lei, mas ela existe e deve ser aplicada. Não estou com isto a dizer que, de um dia para o outro, essa mudança seja feita, mas também não vejo nenhuma razão para ter de se esperar mais 3 anos, mais 6... Daqui a pouco, só os teus netos é que poderiam beneficiar de uma mudança que é posiUva. E penso que toda a gente concorda com ela também. É bom que se diga isto. Lá está: não nos vamos prender nos detalhes quando no essencial estamos de acordo. Pronto, vamos regressar à primeira parte da tua pergunta.
SLS: A minha pergunta era acerca do modelo da prova. Tendo em conta que já foi feita a recomendação do grupo de trabalho e que este projeto, apesar de ter sido cancelado, também mencionava a prova já para 2015…MS: Mas o projeto de decreto-‐lei não tem nada a ver com a recomendação do grupo de trabalho…
SLS: … sim, a minha questão é se já está a haver trabalhos no sen9do de produzir a nova prova.NS: Não faço a mínima ideia, tens de perguntar isso à ACSS e ao Sr. Ministro ou Sr. Secretário de Estado. Eu não sei, não fui convocado para esse Upo de ações, até porque a missão do grupo de trabalho, como compreendes, terminou no dia em que nós entregámos o relatório. Porque é que nós fizemos essa recomendação? Digo isto com todo o à vontade: nós liderámos a mudança numa prova onde os nossos alunos pontuam sempre acima dos
outros. Portanto, o status quo para nós é favorável. Todos anos, os nossos alunos que se candidatam a esta prova Uram sempre as melhores médias nacionais, portanto, não é por eu achar que estamos mal: é porque eu acho que a prova é má. É uma questão de princípio. O que foi bonito neste exercício foi que nós provámos que havia um modelo alternaUvo que servia melhor o propósito, que é um propósito muito sério, que é seriar as pessoas para um momento decisivo para o resto da vida delas -‐ não é uma decisão qualquer. Segundo, que a prova era muito mais justa, que a prova media muito melhor o que se pretende medir quanto se está a fazer uma decisão desta natureza, que são competências clínicas, do que estar a fazer uma prova exclusivamente de memória. Mais do que isso, isto foi testado por centenas de jovens estudantes de medicina, que disseram que esta prova é melhor do que a prova que alguns anos depois mais tarde faziam. E, portanto, isso deu-‐nos uma enorme confiança.
SLS: Refere-‐se aos ques9onários que foram feitos depois das provas experimentais? [Em 2009 e 2011 foram realizadas provas experimentais de exames do NBME, nas escolas médicas portuguesas, nas quais par9ciparam voluntariamente milhares de alunos. Após a realização desta prova, em 2011, quer a ins9tuição organizadora, quer a ANEM, pediram aos par9cipantes feedback acerca da sua experiência, através de inquéritos.] NS: Isso, e a ANEM desconfiou da nossa insUtuição [NBME], e pediu para fazer ela própria um inquérito, como se nós esUvéssemos a manipular resultados, e eu disse ”façam os inquéritos que quiserem, é óUmo, quanto mais inquéritos melhor!”. E os resultados foram idênUcos, como é óbvio. Vocês conhecem-‐me e sabem, eu sou incapaz de manipular o que quer que seja. Goste ou não goste do resultado, é o resultado. E, portanto, a opinião de quem parUcipou era esmagadoramente favorável ao novo modelo. Quem não parUcipou nem sequer pode ter opinião. Como é que eu vou dizer que uma prova é melhor ou pior se eu nem sequer a fiz? Eu sei que as pessoas que parUciparam foram, talvez, um universo de 30-‐40% dos estudantes de medicina, mas foi quem quis! É que nem sequer Unham que pagar. Portanto, sinceramente, respeito a opinião de quem foi, os outros não sei. Portanto, fizemos essa recomendação para não ficar no ar, como é hábito em Portugal, que “é preciso mudar a prova”, mas mudar para quê, para que modelo? Não, nós dissemos e apontámos uma solução. O grupo de trabalho, onde estava, sem direito de voto, o presidente da ANEM [Francisco Mourão], foi consensual relaUvamente isso,
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consensual. Se leram bem esse documento, nesse documento não foi feita nenhuma recomendação para alterar o estatuto da prova.
SLS: Em termos de carácter de seriação ou de seleção?NS: Em termos de carácter de seriação para carácter de seleção. Se bem que houvesse membros que o defendem, e eu também o defendo. Eu acho inaceitável que um jovem mestre, perante uma prova que é uma prova de avaliação de competências clinicas, não é uma prova de memorização -‐ insisto nesta importanqssima nuance… Se me perguntares sobre a prova atual, só serve para seriar, e mal. Mas se a prova for uma prova que avalia os teus conhecimentos em medicina, acho que tens de demonstrar conhecimentos médicos, porque no fundo o empregador -‐ leia-‐se, neste caso, o SNS -‐ tem o direto de dizer “não, esta pessoa não tem competência para vir trabalhar comigo”. Da mesma maneira que eu tenho quando nós escolhemos os docentes e os invesUgadores: escolhemos os melhores, temos um critério. Portanto, isso depois passou para um cut-‐off que não sei quem fez, nós não fomos Udos nem achados relaUvamente a esse PDL. Eu não estou a dizer que a ideia de haver um cut-‐off me desagrade totalmente, agora é preciso perceber que cut-‐off, por que critérios…
SLS: Este critério, assim, será aleatório, até porque as perguntas vão ser novas, o grau de dificuldade não é conhecido…NS: Tens toda a razão, enfim, podiam dizer 50%, dizer 70%… e já agora porque não 90%, ou 10%? É só para nos entendermos relaUvamente ao que isto significa. Mais uma vez, acho que isto é uma coisa demasiado séria para ser trabalhada com tanta leviandade, porque acho que há aqui uma cota parte de irresponsabilidade. Aliás, retomando o exemplo da insUtuição com quem nós fizemos a primeira prova modelo: como vocês sabem, as pessoas [recém-‐graduados que realizam a prova] nem sequer recebem o valor da percentagem de respostas corretas, recebem um 3 digit score, que é um valor normalizado, o que significa que Urar 602 em 2014 representa o mesmo que Urar 602 em 1998. O resultado é padronizado para aquele valor dos três dígitos representar sempre o mesmo. Portanto, quer dizer que aquele valor corresponde ao mesmo valor há 5 anos atrás, e vai corresponder ao mesmo valor daqui a 5 anos. Exatamente para garanUr que esse cut-‐off, esse sim, tenha um significado.
SLS: As escolas, quando contactaram o ministério a propósito deste projecto, também falaram de alguma consultadoria ou negociação que pudesse haver, quando quisessem definir este 9po de critérios?NS: Estamos a falar de quê?
SLS: Por exemplo, em relação à mudança da prova, se ela assumir um carácter de seleção.NS: Como sabes, nós propúnhamos uma estrutura de governância, uma estrutura de coordenação nacional. Como sabes, eu sou membro do NBME, sou um dos 3 não-‐americanos dos 80 membros. Eu gosto sempre de fazer este disclosure statment. De facto, sou eu quem decide como é que os médicos nos EUA são avaliados e como são cerUficados e recerUficados, coisa que em Portugal não existe. Sim, nós pedimos ajuda [ao NBME]. Isto não quer dizer que nenhum dos membros daquele grupo de trabalho entenda que devemos pedir para fazerem a prova sempre. Nós queríamos é que eles nos ajudassem a montar uma prova decente, e criássemos, em Portugal, condições para daqui a 5 a 6 anos termos uma equipa de pessoas capazes de fazer uma prova de idênUca qualidade.
SLS: Eu referia-‐me, neste caso, aos critérios para cut-‐off.NS: O que foi discuUdo foi que o modelo, o compósito de seriação, não deve ser só o resultado daquela prova. Segundo, aquela prova não avalia todos os conhecimentos médicos, só avalia uma parte, os conhecimentos cogniUvos. Um médico é muito mais que componentes cogniUvos. Eu não estou a propor que se mude já, que se monte uma prova de competências clínicas, porque sei que é uma estrutura pesada. Mas se me perguntas como deveria ser, respondo-‐te: competências de comunicação,…, isso tudo também se avalia. Mas vamo-‐nos focar na avaliação do componente cogniUvo. O que nós dissemos foi que o valor com que vocês se apresentam para a escolha do internato médico deveria ter um componente que vem dessa prova, obviamente; devia ter um outro componente que vem da média ponderada da licenciatura -‐ e há quem defenda outros componentes: há quem defenda que as notas do 6º ano que, no fundo, já representa uma espécie de internato médico geral, também deveriam ser separadas disto. Isto já foi discuUdo muitas vezes por muitos grupos de trabalho, até com a intervenção de alunos. Até chegámos a propor, há 4 ou 5 anos, uma coisa destas com intervalos, para que pudesse ser trabalhada e ajustada ao longo do tempo. Quando estas coisas acontecerem, passa a fazer senUdo que esta prova, se for uma prova de qualidade, possa ter um cut-‐off.
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Repara, no teu acesso do secundário ao superior tens um cut-‐off. Aliás, na Medicina o cut-‐off até é diferente dos outros mestrados ou licenciaturas, porque em Medicina vocês não podem ter menos de 14. Claro que vocês me dizem assim “Ah isso não tem significado nenhum, porque ninguém Ura menos de 14”, e isto não é assim. É menUra. Há milhares de candidatos que têm menos de 14. Claro que quem tem menos de 14, nem lhe passa pela cabeça concorrer para medicina, porque sabe que existe um diferencial tão grande que nunca entraria. Mas existe um “cut-‐score”. Portanto, reparem, muitas das coisas que estamos aqui a falar são coisas que já existem num outro momento de escolha por parte dos jovens portugueses, que é o momento da escolha no acesso à universidade, e ninguém criUca isso.
SLS: Uma das consequências de inserir um cut-‐off, seria provavelmente o que já se verifica em Espanha nos úl9mos anos, desde que eles também inseriram um, que é terem cerca de 3000 recém-‐graduados que não ingressaram na especialidade, devido a esse cut-‐off, e que ficam numa situação indefinida, em que não podem exercer, mas também não têm acesso a formação.NS: Certo. Estás agora a tocar em vários problemas em simultâneo. Vamos lá ver... Porque eles depois acumulam-‐se. A tua pergunta tem muitas perguntas. A primeira é o que tu disseste, e é absolutamente verdade: mas porque é que é verdade? A primeira coisa pela qual é verdade é esta: é que em Portugal, e isto também é verdade noutros países, tu só podes exercer autonomamente medicina no final do 1º ano do teu internato de especialidade. Sabes o
que é que aconteceu no final do teu 1º ano do internato de especialidade? Nada. Mas, precisamente, nada. Repara: por milagre, no final do 1º ano do internato de especialidade, toda a gente pode exercer autonomamente. Mas porquê? Alguém fez alguma avaliação para dizer? Não. É absurdo! Porque que não é logo no início? Ou porque não é passados 3 anos? E isto é uma decisão da Ordem. Note-‐se: não só da Ordem, mas também da Ordem. Ainda alguém vai ter de me explicar porque é que naquele momento nós todos sofremos um “toque de Midas”. Se assim não fosse, tu poderias exercer medicina independentemente de teres entrado ou não no internato médico. Não é que eu esteja a defender esta solução, nota bem. Mas podias. Aliás, é curioso que em alguns países isso seja possível, mesmo dentro do espaço europeu, o que, portanto, coloca indivíduos que estão no mesmo espaço formaUvo em condições de absoluta desigualdade. Uns recebem “toque de Midas” no fim da graduação, outros têm de esperar 1 ano. Segunda parte da questão. O SNS é o único empregador?
SLS: Não.NS: Pois, é que não é. Portanto, isto de que nós estamos a falar é para o acesso ao internato médico dentro do SNS. Mas há outras vias. Não que eu esteja a dizer que estão bem, não. Estão bem se Uverem qualidade, tem que se medir a qualidade. Não tenho nada contra a formação em hospitais ou insUtuições prestadoras de cuidados de direito privado.
SLS: Mas o percurso não é o mesmo?
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NS: Atualmente. Em muitos locais do mundo não é.
SLS: Mas cá, de momento, é o mesmo percurso...NS: É o que estou a dizer. Mas se estes Uverem qualidade, também podem ser empregadores. Agora, têm de provar que têm qualidade, que é outra conversa. Nota que também é verdade que no SNS há os que têm qualidade, e os que não têm, é preciso dizer isto. Para a atribuição das idoneidades não há um critério cienqfico, muitas vezes. Não estou a dizer que é sempre, mas não há. E, portanto, todos estes ifs se enquadram na tua pergunta. Agora vamos voltar ao cerne da pergunta. Se é verdade que isso vai acontecer? É. Se é desejável? Não. Sinceramente, não é. Nota que também não estou com isto a dizer que não haja 1 a 2% que provavelmente não merecem, realmente, exercer medicina. Eu gosto de deixar estas coisas claras. Agora, voltamos à questão se os instrumentos que estão a ser usados para medir isso são válidos ou não. Se não forem, a conclusão não tem valor. Se forem...
SLS: Já se tentou avançar alguma vez com a possibilidade de fazer a avaliação para definir quando é que as pessoas deveriam ter direito a autonomia?NS: Isso é feito nos lugares civilizados do mundo, meu Deus.
SLS: Sim, eu refiro-‐me a Portugal.NS: Não. Portanto… fui o mais direto possível na resposta. Voltando atrás, se tu me perguntas assim: “Se eu acho -‐ e isto é uma opinião estritamente pessoal -‐ que há outras mo9vações no estabe lec imento dos cut -‐offs , nomeadamente mo9vações que sejam para refrear a onda de acesso ao internato médico?”. Acho que sim. Por isso é que digo que é altamente indesejado, porque houve um inves9mento muito grande do país naquelas pessoas e, de repente, há um desinves9mento que é, para mim, inaceitável. Insisto que se for por as pessoas não serem capazes, medidas por instrumentos válidos, isso deve ser feito. Percebem a nuance? Também insisto num ponto que é: apesar de eu ter dito isto, não é por nós sermos médicos que eu acho que temos direito, todos, a ter emprego. Agora, o que eu acho é que foi feito um grande invesUmento nas pessoas, e não deixar que este invesUmento vá até ao fim – quando estas decisões são medidas com instrumentos que são inválidos -‐ obviamente que para mim é um absurdo.
SLS: Nesse sen9do, faz sen9do o numerus clausus ser es9pulado de acordo com a previsão das vagas que serão possíveis para a especialidade, dali a 6 anos?
NS: “Nim”.
SLS: Porque…NS: Porque… Vamos começar pelo “sim”, que é mais fácil. Claro que o numerus clausus tem que refleUr as necessidades do país. Isso, para mim, é mais ou menos claro. A formação de um médico é demasiado cara para um país se dar ao luxo de formar médicos em excesso absoluto. “Sim”, ainda, porque temos que defender e pugnar pela qualidade da formação. E, portanto, se nós Uvermos alunos de medicina em excesso e, sobretudo, se Uvermos internos de especialidade em excesso -‐ porque a garrafa aperta-‐se muito mais no ciclo clínico das escolas médicas e na formação dos internos -‐ a qualidade da formação está em causa. Tudo isto tem de ser Udo em conta. “Não”, porque não é correto que tu estejas a dizer “eu, daqui a 5 anos, vou precisar de 5000 médicos, vou permiUr que só entrem 5000”, porque o país não é auUsta: os portugueses não existem só para Portugal, podem sair de Portugal e há muitos que o querem a fazer ou têm de fazer -‐ muitos porque o querem fazer, é bom que se diga isto -‐, e também há colegas nossos doutras nacionalidades, e que fizeram a formação noutros síUos, que podem, muito bem, querer vir para Portugal. Essa lógica de mobilidade é muito bem-‐vinda e, portanto, não vejo nenhuma razão para que este número da necessidade seja rigorosamente o mesmo número que à parUda.
SLS: Então terá que ter em conta o movimento esperado de saídas e entradas.NS: Terá de ter em conta um intervalo, obviamente, que é um intervalo de bom senso, porque há dinâmicas, há pessoas que desistem, há aqueles que não pretendem exercer medicina, há outros que querem dedicar-‐se exclusivamente a carreiras de invesUgação. Há muitas coisas que podem acontecer. Outra coisa é que nem todos são bons. E isto também é preciso que seja dito. E, destes Upos, há uns que ficam pelo caminho, e há outros que têm de ficar pelo caminho mais próximo do fim, não têm qualidade suficiente. É isso que eu acho. Esta ligação “o número aqui tem que ser igual ao número ali, para que toda a gente tenha emprego” não é opção; é um discurso que, para mim, nem sequer faz senUdo. Depois tens de ver que tu, e eu, e dezenas de milhares de pessoas, já esUvemos no 12º ano, e já quisemos fazer parte deste pool. É que eu conheço alunos que, uma semana antes de entrar na universidade, andam a pugnar para que este número seja claramente aumentado; os que entram no dia a seguir, dizem “não, isto [o nº de vagas] é cá para baixo”. Os que ficaram de fora sentem-‐se totalmente defraudados -‐
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porque também te vou dizer o que vai mal: “o rei vai nu” quando temos de dis9nguir o que tem 185 de um indivíduo que tem 184. É que vai mesmo nu.
SLS: Em relação à organização do internato, já há vários anos que se anuncia que o ano comum vai ser ex9nto -‐ supostamente até seria ex9nto em 2007 -‐ mas depois foi sendo adiado indefinidamente…NS: Isso era uma pergunta que deverias fazer ao ministro Correia de Campos: porque é que transformou uma disposição transitória numa coisa definiUva? Aquilo que aconteceu foi que tu fazias 6 anos e depois Unhas um internato geral de 2 anos. Depois, decidiu-‐se acabar com isto, porque se incorporou no 6º ano o internato geral. Para não teres 3 anos a concorrer no mesmo ano, e teres só 2, criaste uma disposição intermédia que é o IAC, porque assim em 2 anos amorUzavas este problema. Só que isto ficou para sempre.
SLS: E nunca mais voltou a ser discu9do?NS: Nunca.
SLS: Nem com a discussão acerca de criar um tronco comum para o 1º ano da especialidade?NS: O que é que eu defendo no internato? O que defendo é isso mesmo! Um aluno acaba os 6 anos de medicina, fez aqui um úlUmo ano que é um internato – e deve ser um internato em todo o lado, podemos depois discuUr se é ou não é -‐ e depois entra... No 6º ano a pessoa tomaria uma decisão, se queria ir para uma especialidade médica, cirúrgica ou técnica. E à frente, passado 1 ano e meio, 2 anos, faz-‐se um segundo exame e estes senhores podem escolher de acordo com as classificações, nomeadamente do seu desempenho. Por exemplo, se está em [tronco para especialidade] médica poderia escolher gastro, se queria otorrino poderia vir do tronco médico ou do tronco cirúrgico. Porque é que isto era muito mais interessante? Primeiro, dava tempo às pessoas de experimentarem outras coisas, dava outras ferramentas para fazer as coisas melhor, e dava, na minha opinião, uma solidez de formação muito maior. Porque eu conUnuo a dizer que fico admirado com o desconhecimento que [médicos de] algumas especialidades médicas têm da medicina interna, tal como dalgumas especialidades cirúrgicas da cirurgia, tal como algumas especialidades técnicas das coisas gerais das técnicas.
SLS: E esse período comum seria acrescentado ao que já existe para a especialidade em si?
NS: Não, porque eu não concordo com isso. Eu acho que um período de formação de 12 anos é um período mais do que suficiente. O que eu digo é [neste período] já não ias rodar pelas especialidades que não interessam ao teu tronco. Poderia ser um período de 12, 18, 24 meses, genérico. Depois, a parUr daqui, terias 2, 3 ou 4 anos adicionais da tua formação específica. Se me perguntas se estou a inventar alguma coisa, não estou! Este é o modelo anglo-‐saxónico npico.
SLS: Nem com as mudanças que se estão a preparar agora com o internato espanhol se pensou em fazer isto cá?NS: “Nuestros hermanos” nessas coisas estão Upicamente um bocadinho à nossa frente. Aí devo-‐te dizer nós temos vários pontos de contacto com as sociedades de educação médica espanholas. Há uma coisa curiosa: nós estamos sempre à f r en te dos e spanhó i s em te rmos experimentalistas. Mas quando chega ao momento de concre9zar eles estão sempre à nossa frente, porque eles tomam decisões, fazem coisas -‐ nem sempre certas, mas fazem.
SLS: Uma questão também relacionada com a organização do internato e as competências do interno de especialidade e levantada no PDL, era que o internato, em vez de ter as 40 horas obrigatórias e a possibilidade de exercer em outras a9vidades profissionais, passaria a conter a especialidade em regime de exclusividade. Qual é a opinião do professor?NS: Eu sou totalmente a favor da exclusividade, em qualquer fase que seja. Vamos ser concretos: qual é a profissão das vossas mães ou dos vossos pais?
SLS: A minha mãe é psicóloga escolar.Sofia Ferreira: A minha mãe é enfermeira.NS: Enfermeira, psicóloga escolar. A tua mãe não pode exercer psicologia noutras insUtuições. Por que razão é que eu posso estar a trabalhar das 8h até à 1h num hospital do SNS, que até me deu toda a formação, e às 2h da tarde vou trabalhar para uma insUtuição qualquer? Não há conflito de interesses? Meu Deus, claro que há! É tão óbvio que só um cego é que não vê. Se o SNS funciona menos bem, eu vou beneficiar às 3h da tarde, no meu consultório privado, o miúdo que “não vê bem” e cuja consulta no público demora 6 meses. Nenhum pai vai estar à espera 6 meses, leva-‐o ao médico!
SLS: Mas isto é extensível aos médicos recém-‐formados.NS: A tudo! Esta é daquelas questões que para mim é tão simples. Nota que é verdade também para todas as
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profissões associadas, não somente médicos, como enfermeiros e técnicos ligados à área da saúde. Todos deviam estar em exclusividade. Não estou com isto a dizer que eu não possa depois ter uma empresa, ou até ser psicólogo ou jardineiro, não há nenhum conflito de interesses. Como sabes, um médico não pode ser farmacêuUco ou ter propriedade de farmácias e outras coisas, algumas com alguma graça -‐ não podem ser associados as casas fúnebres, evidentemente. Se é evidente na farmácia, meu Deus, porque é que não é verdade dentro da própria profissão? Repara: há portugueses de primeira e portugueses de segunda. A minha mulher é professora do secundário, não pode dar explicações num raio de não sei quantos km; não pode dar aulas num colégio privado, e muito bem. Porque é que eu, enquanto médico, posso? Aliás, eu, enquanto professor, já não posso. É absurdo. Exclusividade? Sim, para todos! Claro que a exclusividade tem um pool, as pessoas têm de ter uma remuneração decente, mas isso também permite que isso aconteça. As pessoas dizem “ah, mas não há empregos para os médicos”: pois não, porque há uns tubarões que “vão a todas” -‐ que, já agora, é o sujeito que só pára duas horas no hospital. E, depois, um ano antes de se reformar, passa a exclusividade no hospital, para ter a reforma a tempo inteiro, e depois volta para o consultório. Não fez nada ilegal, mas esta história, contada nuns pais decente, cabe na cabeça de alguém? Aos outros que acabaram a especial idade, deveriam estar em exclusividade num síUo, ou no outro. Decidam-‐se. Só isso abriria milhares de vagas. Porque as vagas dos quadros dos hospitais estão ocupadas por senhores de muita idade, que nem todos fazem muito, e depois não há nenhum mecanismo para os diretores de serviço os mandarem embora, porque é a dita “função pública”.
SLS: Há pouco falou da nomeação das idoneidades e da capacidade forma9va dos serviços. Tem havido alguma crí9ca interna ou alguma tenta9va de o9mizar esse processo?NS: Eu acho que há críUca interna e externa. Acho que há esforços muito genuínos e muito interessantes de melhoria, da mesma maneira que há lobbying e processos menos transparentes.
SLS: E seria benéfico ter uma outra en9dade que não faça parte do processo [atualmente] a par9cipar?NS: As idoneidades têm um componente importante, que é um componente técnico, e é necessário pessoas com competência para o fazer. Se essas pessoas são externas? É evidente que devem ser externas, mas nesse senUdo a OM
também tem algum nível de estabilidade – não é isso que estou a pôr em questão -‐ até porque a esmagadora maioria das pessoas têm qualidade e faz um trabalho bem feito. E também é verdade que há lobbying: ninguém consegue perceber porque é que em algumas especialidades só abrem x vagas, porque é que urologia e gastro abrem tão poucas vagas… Sobretudo em especialidades onde há necessidades -‐ já não falo naquelas em que há excesso. E isto é verdade, público e notório, mas ninguém faz nada, porque isso cria a tal ideia do lobbying. É um regime de alguma proteção. O que eu acho destas situações? Eu acho que os mecanismos estão bem, têm de ser monitorizados na sua aplicação e qualidade, têm que ser vigiados, como em todo o lado. Podes ter excecionais mecanismos e legis lação e regras extraordinárias, se aquilo não for aplicado não serve de nada e, infelizmente, isso é muito comum em Portugal.
SLS: Só para terminar: em relação às mudanças que falámos no início no acesso ao internato, há alguma perspe9va das escolas intervirem junto do ministério para promoverem essa mudança, que foi proposta no grupo de trabalho e noutras ocasiões?NS: Em 2010, penso eu, todos os diretores de todas as escolas médicas portuguesas escreveram uma carta à ministra Ana Jorge a propor a mudança do paradigma da prova, uma prova diferente, algo com que a ministra Ana Jorge concordou. Anunciou publicamente 7 vezes a mudança e, pelos vistos, esqueceu-‐se de escrevê-‐la. Quatro anos depois ainda não temos uma nova prova. Repara, não é que todo o mal do mundo esteja na prova, é evidente que é apenas o primeiro passo, para que depois seja possível mudar outras coisas, porque toda a nossa conversa se centrou na qualidade dos instrumentos: se tu não tens um bom instrumento para realmente medir aquilo que queres medir, todas as elações que Urares dali são erradas. Este é o primeiro passo, há outros que precisam de mudar. Para o ano é preciso pensar na ponderação das médias de licenciatura, qualidade formaUva. Vocês são avaliados em múlUplas dimensões, já experimentaram isso e sabem que uma coisa é responder certo à pergunta, outra coisa é fazer. E depois há outras dimensões, que todos sabemos medir… eu às vezes faço-‐vos perguntas simples -‐ se vocês gostavam que alguns colegas fossem vossos médicos -‐ e vejo pela reação a resposta. Não têm que ma verbalizar, e até pode ser porque até são completamente capazes e fazem os gestos de uma forma correta, mas falta qualquer coisa. É esta avaliação integral que seria o sonho de qualquer
hajaSaúde! 9
insUtuição, de qualquer autoridade, qualquer autoridade regional ou nacional, porque isso sim é que faria senUdo.
SLS: Isso seria válido tanto para o acesso a especialidade como para o acesso ao ensino superior.NS: Sim, como é óbvio. Como seria verdade para a manutenção da cerUficação para o exercício da medicina. Eu gosto de dar o seguinte exemplo: eu acabei a minha licenciatura em 1992, terminei a minha especialidade em 2000, porque eu fui daqueles que 9veram de ir para a tropa. E, de 2000 para cá, há 14 anos que nunca ninguém me perguntou se li algum ar9go ciennfico. E, portanto, [com] os doentes que vêm ter comigo -‐ agora só faço aUvidade clinica na área de invesUgação, mas os que vinham -‐ há uma relação de crença. Eles acreditam que eu sei alguma coisa daquilo. Não sabem, mas acreditam. E daí que frequentemente entre os médicos e os profissionais de saúde, a malta diga: “o bom de se ser médico é saber em quem posso confiar”, e isto é formidável. Então, como posso aceitar que um sujeito que não consinto que seja um clinico dos meus filhos, da minha mulher, da minha mãe, dos meus amigos, possa depois ser médico dos outros?
SF: Em relação ao regime de exclusividade, isto não se aplica se, por exemplo, a um médico quiser fazer inves9gação. Não poderá haver um conflito de interesse entre o facto de exercer medicina e fazer inves9gação? Por exemplo: vamos supor que esse médico par9cipa numa inves9gação para um novo fármaco para hepa9te, não poderia ele eventualmente desviar doentes para a sua inves9gação?
NS: Não, porque isso ele não pode fazer, no senUdo em que quebraria regras éUcas, que regulam os ensaios clínicos. Isso está extraordinariamente bem regulamentado e bem monitorizado. E é obrigatório para esse médico fazer os disclosure statements sempre que vai fazer uma intervenção pública a propósito desse fármaco. Ele não está a desviar doentes para exercer a mesma aUvidade que é a aUvidade clinica, está a fazer dois exercícios profissionais diferentes. O que eu digo é que não posso estar a fazer a mesma aUvidade em dois síUos diferentes e dizer que não há conflito de interesse. Aliás reparem que, fugindo do domínio público, na esmagadora maioria das empresas privadas, por exemplo, não é permiUdo a um trabalhador trabalhar numa empresa do mesmo ramo, concorrente. A alguém que trabalha na TMN de certeza que não lhe é permiUdo trabalhar na Vodafone. É que nem lhe passaria pela cabeça, notem bem.