Entrevista PHA

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PHA - Olá, tudo bem ? Hoje vamos tratar da punição aos crimes do regime militar. Da tortura e do desaparecimento de militantes políticos. O Ministério Público Federal de São Paulo entrou com uma ação civil contra o senador por São Paulo Romeu Tuma, e o então prefeito de São Paulo e hoje deputado federal Paulo Maluf. Os dois são acusados de ocultar cadáveres de militantes políticos no cemitério de Perus e Vila Formosa na cidade de São Paulo. Os procuradores da República em São Paulo Marlon Alberto Weichert e Eugênia Augusta Fávero responsabilizam ainda o médico legista Harry Shibata e também o prefeito de São Paulo Miguel Colassuono. Além disso, numa outra ação eles acusam quatro outros médicos legistas, como Badan Palhares e Daniel Muñoz, por impedirem ou dificultarem a identificação dos cadáveres. Fávero e Weichert são pioneiros nessas ações que visam punir crimes praticados no regime militar. Eles são responsáveis pela ação

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PHA - Olá, tudo bem ?

Hoje vamos tratar da punição aos crimes do regime militar. Da tortura e do desaparecimento de militantes políticos. O Ministério Público Federal de São Paulo entrou com uma ação civil contra o senador por São Paulo Romeu Tuma, e o então prefeito de São Paulo e hoje deputado federal Paulo Maluf.

Os dois são acusados de ocultar cadáveres de militantes políticos no cemitério de Perus e Vila Formosa na cidade de São Paulo.

Os procuradores da República em São Paulo Marlon Alberto Weichert e Eugênia Augusta Fávero responsabilizam ainda o médico legista Harry Shibata e também o prefeito de São Paulo Miguel Colassuono.

Além disso, numa outra ação eles acusam quatro outros médicos legistas, como Badan Palhares e Daniel Muñoz, por impedirem ou dificultarem a identificação dos cadáveres.

Fávero e Weichert são pioneiros nessas ações que visam punir crimes praticados no regime militar. Eles são responsáveis pela ação contra o coronel Carlos Alberto Ustra, que comandou o Doi-Codi quando lá se torturavam presos políticos. Eu converso com Mario Alberto Weichert e com a procuradora Eugênia Augusta Fávero. Muito obrigada por tê-los aqui de volta em nosso programa, Entrevista Record.

PHA: A primeira questão seria descrever exatamente quais

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as acusações que são feitas a esses personagens notórios da política nacional, Romeu Tuma e Paulo Maluf?EAF: Com relação ao Romeu Tuma, é no sentido de que ele foi diretor do DOPS e ele era responsável por toda a documentação dos presos torturados no Doi-Codi ou então no próprio DOPS e esses presos muitas vezes eram mortos. Esse homicídio era documentado de maneira a ocultar a real identidade do preso, nada era comunicado à família e esta pessoa era enviada ao Instituto Médico Legal com base numa versão fantasiosa da morte, com um nome falso. Essa versão era chancelada por sua vez no IML, que encaminhava o corpo para um desses cemitérios, Vila Formosa ou Perus, já com prévio acordo com o município. E esses corpos eram enterrados em quadras específicas para esses cadáveres denominados “especiais”, que eram os cadáveres dos terroristas. E o cemitério de Perus acabou então sendo construído na gestão do então prefeito Paulo Maluf e já destinado a ser um centro de ocultação desses cadáveres oriundos do IML.

PHA: Quer dizer, então, que o cemitério de Perus foi construído para ocultar cadáveres?MAW: Não só. Ele é um cemitério pensado acima de tudo para enterrar indigentes. E a estratégia da ditadura militar era fazer com que esses desaparecidos políticos fossem também enterrados como indigentes. Embora a ditadura e órgãos de repressão tivessem toda a informação necessária para identificá-los adequadamente.

PHA: Embora eles fossem mandados para lá com nomes falsos, os codinomes da atividade política...MAW: Exatamente. Eles eram mandados com nomes

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falsos, mas tanto o DOPS como o Doi-Codi sabiam exatamente de quem se tratavam. E nós temos elementos que estão juntados nesta ação e demonstram que, inclusive, o Dops tinha conhecimento da identidade verdadeira, tinha conhecimento da identidade falsa. E as famílias procuraram o Dops pedindo informações...

PHA: Ou seja, procurou o Romeu Tuma?MAW: Procurou o Dops, que era dirigida pelo réu Romeu Tuma, para que informasse se sabia daquela prisão e eventualmente daquela morte. E a posição do Dops, inclusive do Romeu Tuma, era de negar que tivessem alguma informação.

PHA: Qual a participação do legista Harry Shibata?EAF: Harry Shibata assumiu posições administrativas de comando no IML, mesmo quando o diretor oficialmente era outro, outra pessoa, Doutor Arnaldo Siqueira, que lidava com estes cadáveres “especiais”, os cadáveres dos terroristas. (Shibata era) quem lidava com o município de São Paulo, com o serviço funerário, na pessoa de Fábio Bueno , inclusive nomeado para esta função pelo prefeito Paulo Maluf...

PHA: Fábio Pereira Bueno, diretor do serviço funerário municipal?EAF: Exato. Era sempre Harry Shibata. Então, Harry Shibata atuava tanto quanto médico, fazendo os laudos, ele assinou vários laudos de pessoas que foram vítimas de torturas intensas e deixaram marcas que eram impossíveis não serem descritas no laudo. E mesmo assim, essas

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pessoas passavam pelo IML e eram enterradas sem nenhuma anotação relativa a essas marcas visíveis de tortura.

PHA: O press-release do Ministério Público Federal aqui de São Paulo diz que Harry Shibata assinou laudos necroscópicos atestando falsamente causas da morte, ignorando muitas vezes lesões de tortura, como foi por exemplo, o caso de Wladimir Herzog e Sonia Angel Jones. Ou seja, ele é um dos responsáveis pela tentativa de ocultar a morte sob tortura do Herzog.EAF: Era um procedimento da repressão brasileira.Torturar, muitas vezes matar o opositor político e o Instituto Médico Legal foi peça fundamental para que isso tivesse sucesso. Então, (Shibata) assinava todos esses laudos, com marcas evidentes de homicídio, por meio cruel, que é a tortura,dizendo que foi obra de um atropelamento,de um auto-estrangulamento, coisa que não existe anotação parecida na medicina (auto-estrangulamento). O caso da Sonia, é emblemático: ela teve até os seios arrancados durante semanas de tortura a que foi submetida.

PHA: Arrancados os seios?EAF: Sim. Nada disso foi descrito no laudo pelo Harry Shibata.

PHA: Qual a participação exata do Paulo Maluf?MAW: Vamos voltar à nomeação de Paulo Maluf. Paulo Maluf e sua família eram de relacionamento estreito com o presidente Costa e Silva, o general que, então, governava

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o país. E há fonte que revela que a nomeação de Paulo Maluf se deu em função dessa proximidade. O presidente determinou ao governador do Estado que nomeasse Maluf. Ele fez parte dentro da estrutura de poder municipal dessa... vamos chamar, dessa organização para permitir a ocultação de vítimas da repressão. Então, é na sua gestão que se constrói o cemitério de Perus com toda essa vocação e essa organização onde se coloca o Fábio como diretor, para que ele possa fazer essa ligação com o IML e com DOPS. E mais, é na sua gestão que se pretende construir um crematório para indigentes. Isso é tão sem sentido, já que a cremação de um resto mortal pressupõe sempre dois elementos fundamentais: 1- a plena identificação da pessoa; e 2- que essa pessoa tenha autorizado, em vida, sua cremação, ou que a família autorize essa cremação. O que pressupõe, obviamente, que ela está devidamente identificada. E o Brasil durante a repressão, São Paulo, quis construir um ou dois crematórios para indigentes. A tal ponto que a empresa inglesa que ganhou a licitação se recusou, dizendo: olha, eu não construo crematórios para indigentes. Crematório pressupõe um espaço de oração, pressupõe uma construção que seja incompatível com esse processo de eliminação de provas...

... a cremação nunca pode ser aplicada em um caso de morte onde haja suspeita de violência. (Deve-se) permitir que uma exumação no futuro possa elucidar. E aqui em São Paulo o que a prefeitura quis, liderada neste projeto pelo prefeito (Maluf), era fazer o oposto. Vamos cremar indigentes, e, mais uma vez, cremando indigentes, estamos cremando opositores políticos.

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PHA: Quer dizer que, além de criar as condições políticas para que esse sistema todo funcionasse, Maluf queria criar um crematório, construir fisicamente um crematório, ou seja, transportar para cá uma tecnologia nazista, de um campo de concentração, é isto?EAF: É, inclusive o Fábio Pereira Bueno, que é réu nessa ação, chegou a ser enviado em missão oficial à Argentina e ao Uruguai... E lá, ele verifica que na Argentina estavam cremando indigentes.Ou seja, milhares de corpos foram cremados na Argentina com este processo. E o Fábio Pereira Bueno descreve que o procedimento lá era uma coisa assustadora. Queimavam corpos nus, os corpos ficavam meses numa fila aguardando até o momento de ser cremado. E ele fez um relatório e trouxe toda esta experiência para o Brasil e tentou então...

PHA: Há esse relatório documentalmente?EAF: Sim, sim. Houve um processo oficial. Ele foi em missão oficial do serviço funerário municipal. Bem, então isso tem início na gestão de Paulo Maluf. Mas o Paulo Maluf ficou até 71, então, no processo, o que fica muito claro é a colaboração do município com o sistema de repressão de maneira a (usar) os cemitérios municipais como centro de ocultação. Há dois projetos do período de Paulo Maluf, duas menções e nenhum chegou a ser implantado. Porque a própria empresa fabricante do forno disse que estranhava as condições do projeto e ainda não conseguiram operar a lei, no caso brasileira, que exige autorização em vida para o caso de cremação. Foi onde surge a vala de Perus, aí é mais um capítulo. Isso em 75.

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PHA: Então, como não foi possível cremar, se criou a vala, é isso?EAF: exatamente. Aí entra Miguel Colassuono.

PHA: Ah, então, Miguel Colassuono...MAW: São retirados os restos mortais dos indigentes, desossados, que estavam em duas quadras de Perus e são separados. Primeiro, com a notícia de que iam esperar a construção do crematório para fazer a eliminação definitiva desses restos mortais. Quando o projeto de crematório de indigentes não vai adiante, então se constrói essa vala clandestina, no cemitério de Perus, e se jogam ali mais de mil ossadas das quadras de indigentes, que sabidamente, incluíam os desaparecidos políticos. E essa quadra então fica escondida embaixo de um cruzeiro, de uma cruz, no cemitério de Perus, até que um trabalho conjunto da imprensa com os familiares revela a existência deste local clandestino de sepultamento.

PHA: Mas onde entra o Colassuono?MAW: O Colassuono foi o prefeito ao tempo em que o cemitério de Vila Formosa foi reformado, e o cemitério...EAF: Tanto a vala quanto a reforma de Vila Formosa.MAW: Porque o cemitério de Vila Formosa, antes da inauguração do cemitério de Perus, era o destinado a indigentes. E já se adotou lá esta pratica de colocar desaparecidos políticos como indigentes, misturados. Em 1975, foi feito uma grande reforma, uma reurbanização do cemitério de Vila Formosa. Passaram a retro escavadeira por cima destas quadras, plantaram bosques... aterraram uma parte, fizeram uma rua.

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PHA: Isso, na gestão Colassuono?EAF: exatamente.

PHA: Ele tentou reurbanizar...EAF: Tentou não. Ele reurbanizou. Foram plantadas árvores, abriram ruas, desconsiderando as sepulturas de indigentes. Então, hoje, quando vamos a Vila Formosa, a impressão é que sempre foi assim. Mas, se nós conversamos com os coveiros da época, eles falam: não, aqui tinha sepultura. Mas o que aconteceu com essas sepulturas? Ah! A gente não sabe! Chegaram a mencionar a existência de um ossário clandestino também em Vila Formosa, isso também é agora objeto de investigação.

PHA: E todos os corpos que estiveram nessas valas comuns, já estão identificados, separados para identificação, ou ainda não?MAW: Não. Na verdade esse é o motivo da segunda ação que foi proposta pelo Ministério Federal na semana passada. Porque desde 1990...

PHA: Esta que envolve o Badan Palhares, por exemplo?MAW: Isto. Isto. E três universidades. Unicamp, Universidade Federal de Minas Gerais e a USP. Porque quando se faz a abertura da vala em 1990, o IML tinha ainda entre seus profissionais diversos legistas que atuaram durante a ditadura. Então, os movimentos dos direitos humanos recusam a possibilidade de o IML ser a instituição encarregada de fazer a exumação e identificação destes corpos. Então, a Unicamp é contratada, é escolhida, sob a liderança do professor

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Badan Palhares. Começa inclusive com um excelente resultado. Logo no inicio a identificação de cinco ossadas e que levam até a um otimismo neste trabalho. Mas, repentinamente, um ano após, dois anos após, há um abandono,surpreendente abandono. A Unicamp, a equipe da Badan Palhares passam a se desinteressar pelo assunto. E em 1999, nove anos depois, é que o Ministério Público foi procurado pelos familiares, já desanimados, desesperados com a falta de apoio de todos os órgãos públicos para fazer este trabalho e pede que a instituição intervenha para que isto vá adiante.

PHA: Quer dizer que este trabalho de identificação está congelado?MAW: Na verdade, houve pouquíssimo avanço desde 1992, 20 anos praticamente...EAF: E apenas por impulso do Ministério Publico Federal, graças a requisições, mas tudo é muito lento.

PHA: Ou seja, a USP e a UFMG e a Unicamp não se mexem?MAW: Eles não se mexeram algum tempo, por isto estão sendo processados, mas acho que o mais grave é que o Governo Federal e o governo estadual não se interessam. Há uma comissão especial...

PHA: Nem o governo Lula, nem o governo Serra?MAW: É. E podemos falar também do governo Fernando Henrique, do governo Alckmin, ou seja,isto é um processo que vem de longa data.

PHA: É uma pedra que ninguém quer revirar.

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MAW: Embora a lei preveja uma comissão especial, no âmbito federal, uma comissão de mortos e desaparecidos que é composta de membros notáveis. Só que a União não lhe dá nenhuma estrutura para trabalhar e fazer essa identificação. Ou seja, há pessoas que trabalham gratuitamente, trabalham muito bem, mas, não tem um cientista, não tem um carro, não tem assessor, não tem laboratório, não tem nem datilografo. O computador talvez eles levem o pessoal... (risos)

PHA: Agora, Dra Fávero, o que pode acontecer com o Maluf, o deputado federal mais votado da história de São Paulo, Paulo Maluf, e o senador Romeu Tuma? Eles podem perder o mandato?EAF: Não podem, porque essa é uma ação cível e a Constituição brasileira proíbe perda de mandato nesses casos. Mas, eles podem ser declarados como responsáveis de todo esse processo que envolve o desaparecimento de pessoas. Eles podem ser condenados a pagar dano moral coletivo no valor de até 10% do seu patrimônio. Eles podem perder eventuais aposentadorias ... não podem assumir mais nenhuma outra função pública, ou perder alguma função publica que não seja eletiva.

PHA: E se eles fizerem como o presidente Nelson Mandela fez na África do Sul, forem a uma repartição pública e confessarem tudo?MAW: Isso não pode significar impunidade ...

PHA: Porque lá na África do Sul foi feito uma lei em que se você confessasse, você ...

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MAW: Com muitas restrições. A gente costuma achar que lá houve uma troca pura e simplesmente de verdade por punição,e não é bem assim. Era um processo muito complexo, tinha que ser uma revelação integral dos fatos, a família tinha que concordar, ele tinha que delatar outras pessoas, o acusado era preso durante a confissão. E hoje, o Direito internacional já não aceitaria claramente esta proposta. A Colômbia pensou em fazer algo parecido para desarmar as milícias, inclusive a FARC e não teve sucesso. O Direito internacional proíbe, hoje não se aceita mais isso. Agora, se aceita minorar o grau de responsabilização. Então, o que nós apontamos nessa ação é que se, até a sentença, algum dos réus fizer revelações substancialmente novas, que digam sobre circunstâncias de morte, sobre o modo de operação do aparelho de repressão,então, pedimos que o juiz considere isto na fixação ou numa redução da sanção patrimonial.

PHA: Como é possível conciliar este trabalho de vocês com a Lei da Anistia?EAF: A Lei da Anistia diz respeito a crimes. E ela fala em perdão de penas. Então, é no âmbito penal e criminal. E nós estamos falando de responsabilização civil. Para nós, a Lei da Anistia não atingiria ações civis. Por outro lado, nós também entendemos que o texto da Lei da Anistia é claro ao beneficiar apenas os militantes políticos, os opositores do governo. Ela diz que vai perdoar crimes políticos e conexos com os crimes políticos. Crime político, por definição, diz respeito àquele que quer derrubar o Governo, e, não propriamente, àquele que quer defender o Governo. Essa é uma questão jurídica, ela foi submetida ao Supremo Tribunal Federal, e acreditamos que, se for aplicada uma

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interpretação técnica para a Lei da Anistia, vai ficar muito claro que ela não diz respeito aos militares, aos autores, aos responsáveis militares e civis que protegiam o Governo. E ainda há uma expressa proibição de auto-anistia: o Governo não poderia se auto-perdoar, especialmente numa questão deste tipo (ocultação de cadáveres).

PHA: O senador Romeu Tuma, na qualidade de diretor geral do DOPS, o deputadp Paulo Maluf, como prefeito da cidade de São Paulo, Miguel Colassuono, como prefeito de São Paulo, eles não estariam beneficiados pela Lei da Anistia? Eles estavam defendendo o regime militar...MAW: Mas, a Lei da Anistia tem que ser analisada apenas com a matéria criminal, se trata de uma anistia criminal, anistia penal, e o direto conhece duas grandes áreas - é a área penal e a área civil. Então, uma anistia que foi dada para a área penal não se expande naturalmente para a área civil. Seria necessária uma outra lei que tratasse especificamente deste modelo, e isso não há. Então, o que tem quer aplicado é a regra geral da responsabilização. Mas, acho que é muito importante, Paulo, entender que esse atos praticados pelas pessoas envolvidas na repressão,seja os militares, seja os civis que apanharam, são muito graves, são violações do direito humano que a comunidade internacional não tolera, em hipótese alguma. Pelo menos desde o fim do regime nazista, quando se revelaram as barbaridades que o Governo nazista havia feito contra sua própria população. Acho que esse é um aspecto muito importante.

PHA: Eu entendo isso Dr Weichert, mas veja, temos diante de nós um grande obstáculo constitucional legal, que é

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chamada a Lei da Anistia, sobre a qual já se manifestou, antes que a questão estivesse sob julgamento do Supremo Tribunal Federal, o presidente do STF,o ministro Gilmar Mendes. Ele já disse que tratar desses assuntos de que estamos tratando aqui é provocar uma desorganização institucional no país,como aconteceu em outros países. Eu não sei onde provocou, em que país do mundo, mas, enfim, é a opinião dele, vamos levar em consideração. Com esse raciocínio, por exemplo, ocultar o cadáver de um militante político, tentar cremá-lo num crematório, evidentemente que isso ultrapassa todos os limites da nossa capacidade de não se indignar, mas como usar isso para contornar a Lei da Anistia ?MAW: Na verdade,não precisamos contornar a Anistia, precisamos enfrentar a Lei Anistia e compreender o que ela diz. O que ela poderia dizer no limite. E ela diz, para nós é muito claro, que estão anistiados os crimes políticos, aqueles que agiram contra o Estado, com a vontade de derrubar o Governo. Não podemos ampliar e dizer: não, como “crimes políticos” também estão aqueles que defenderam o Estado autoritário. Isso (não é aceito) em nenhuma interpretação técnica. A gente aprende isso na faculdade, seria impossível essa lei ampliativa. E mesmo que estivesse escrito na Lei – o que não está -, olha, os militares e civis que colaboraram com a repressão estão anistiados, vamos supor. Essa lei não seria válida, ela seria absolutamente inválida diante das obrigações que o Estado brasileiro tem com a comunidade internacional. O Direito brasileiro teria um limite, que não poderia ser ultrapassado prever impunidade para agente do Estado que torturou, matou e perseguiu seus próprios cidadãos.

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PHA: Dra. Fávero, qual o tipo de sanção ou recriminação internacional que o Brasil pode sofrer se mantiver como pedra angular da discussão toda que temos aqui a Lei da Anistia.EAF: As sanções internacionais são diversas. O Brasil acaba ficando muito mal no cenário internacional, no momento em que ele, sem sofrer ainda nenhuma condenação no plano internacional formal, ele já se recusa a responsabilizar civil ou criminalmente autores desses fatos. O Brasil já vem recebendo recomendações da ONU desde 2005, no mínimo. O Brasil já recebeu formalmente um pedido da ONU: por favor, para fazer a transição para o regime democrático, é preciso considerar além das indenizações dos culpados por estes fatos.

PHA: E até agora só temos tratado do dinheiro?EAF: Até agora só tratamos do dinheiro. Eu queria voltar no obstáculo da Lei da Anistia. Na verdade, o obstáculo não é a Lei da Anistia. É a interpretação que se faz dela. Os tribunais brasileiros, no âmbito da justiça federal, por exemplo, ainda não disseram que essas pessoas estão cobertas pela Lei da Anistia Nós estamos ainda perseguindo este caminho.

PHA: O que aconteceu com a ação que os senhores moveram contra o coronel Ustra?EAF: Está suspensa,aguardando a decisão do STF sobre a Lei da Anistia. Então, suponhamos que o STF venha dizer que sim, que a Lei da Anistia atinge os militares e civis que contribuíram para a repressão política. Aí (essa decisão) pode ser levada para cortes internacionais, e elas vão

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recomendar ao Governo brasileiro que reveja sua posição. E depois, se o Brasil continuar descumprindo (a lei internacional) ele pode sofrer embargos, ele pode sofrer sanções políticas. Ele pode por exemplo, não ter mais condições de pleitear assentos na ONU, entre outras pretensões no âmbito internacional.

PHA: Quer dizer então,que o Brasil pode deixar de ter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU por causa Paulo Maluf...EAF: Se ele for um descumpridor das decisões internacionais, sim. Ele estará em débito e não poderá pleitear, fazer parte dessa comunidade, de cujas decisões ele próprio discorda.MAW:O Brasil já está respondendo a um processo na Corte Interamericana de Direitos Humanos, no âmbito da OEA, por esse desrespeito à apuração dos direitos humanos, no caso da guerrilha do Araguaia. Mas a corte pode chegar ao ponto de dizer: olha, isso que aconteceu no Araguaia viola as obrigações do Brasil nas Américas. Não só o que aconteceu no Araguaia, como o que está acontecendo em toda situação de impunidade, de ocultação, de mentira sobre o período da ditadura militar. A partir desse momento, o Brasil entra numa espécie de lista negra da OEA. A OEA vai publicá-la anualmente, enquanto o Brasil não tiver revertido essa situação. (A OEA vai dizer) que o Brasil não cumpriu uma decisão da corte interamericana. Isso tem um impacto importante...

PHA: Quer dizer que o Brasil luta pela posse do Zelaya e não pune o Maluf, é isso?MAW: O Brasil apóia a punição dos nazistas, mas não quer

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punir aqueles que aqui no Brasil imitaram a conduta dos alemães.

PHA: Como, por exemplo, construir um crematório para botar fogo nos militantes. Agora,vamos tentar rapidamente comparar a posição brasileira com o que fizeram Uruguai, Argentina, o Chile e outros países que integraram aquela operação Condor, de que o Brasil fez parte. Em que pé estamos?EAF: O que ficou é que o Brasil foi o exemplo para a Operação Condor. Parece que houve um certo espelhamento desses países no que o Brasil fazia na época. O Brasil foi um dos primeiros a começar com essa conduta de perseguir. Contam que havia até cursos no Brasil para esses militares . O Brasil teve então o papel importante de precursor dessa política que uniu esses países na perseguição política aos militantes. E agora o Brasil está sendo exemplo, só que no sentido contrário. Enquanto todos os demais estão adotando medidas ... o que há é a demonstração de que esses países querem fazer essa responsabilização, querem a revelação integral da verdade.E o Brasil não está fazendo o mesmo.

PHA: No Chile, o Contreras que era o chefe do Doi-Codi está preso. O Pinochet morreu em regime de prisão domiciliar e processado. Só não foi preso porque deu parte de maluco ...

MAW – E a Inglaterra acreditou ...

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PHA – O Tony Blair ... Na Argentina tão todos sendo julgados.EAF: Mais de 300 casos.MAW: Argentina é a que mais fez em termos de reparação, responsabilização e apuração da verdade. Eles tem também construído centros de memória, por exemplo, a Escolada Armada foi transformada num centro de memória, ela era talvez o maior centro de terror que a América Latina conheceu.

PAH: Essa ação de vocês prevê também a criação de um centro de memória, é isso?MAW: Nós estamos discutindo que o Estado brasileiro, o Governo federal e estadual façam um espaço de memória para revelar às próximas gerações, nossos filhos, e a nós mesmos, o que aconteceu. Tudo com a intenção de...

PAH: Como se fosse nosso Museu do Holocausto?MAW: É isso. Se a gente não der a conhecer às próximas gerações o que aconteceu no passado recente, nós estamos assumindo o risco de que nada aconteceu, que pode ser feito de novo. A Historia conta que aqueles que não depuram adequadamente seu passado vão incorrer nos mesmos erros no futuro.EAF: Infelizmente, é o que já estamos vendo hoje no Brasil. Temos pouco espaço de memória, mas os poucos que existem, os estudantes estão sendo levados para visitar e a fala recorrente é: nós não sabíamos de nada. E hoje, quando falamos em ações desse tipo, eles dizem: mas ainda há desaparecidos políticos no Brasil? Há cadáveres para serem identificados? As pessoas se

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espantam, porque pensam que é um tema absolutamente superado, e isto não é verdade.

PHA: Onde seria esse centro da memória, o senhor chegou a sugerir:?MAW: A gente sugere, que, antes de tudo, seja o principal centro de terror que foi o Doi-Codi (em São Paulo), que hoje é uma delegacia que funciona aqui no bairro do Paraíso.

PHA: Eu tive agora a possibilidade de no meu site, o Conversa Afiada, publicar um documento que o Fernando Moraes, aquele escritor, nos cedeu, de uma decisão do Paulo Maluf cedendo a área para que se instalasse para que se instalasse o Doi-Codi.EAF: Nós comentamos isso na ação, a repressão política ela foi organizada de fato, com a participação do estado e do município. Essa cessão, desse espaço, pelo então governador Paulo Maluf para então ser o pivô...

PHA: O quartel general!MAW: A gente não pode esquecer que, antes do Doi-Codi, houve a tal Operação Bandeirante. Ela era inclusive não-oficial, ela era oficiosa. À margem da estrutura efetiva do Exército e da Polícia.

PHA – É a OBAN, criada pelo governador Abreu Sodré...

MAW- ... E como ela não podia ter estruturas orçamentárias, ela recolhia contribuições entre o empresariado paulista.

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PHA: E deu origem a um documentário a respeito do “Cidadão Boilensen”. Dra Fávero muito obrigado, Dr. Weichert, muito obrigado!