GUSTAVO DE CASTRO CASA DAS MUSAS · da casa para outro. Às vezes uma ... ornando cada um de nós a...

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Filosofia da Comunicação (Comunicosofia) GUSTAVO DE CASTRO CASA DAS MUSAS

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Filosofia

da

Comunicação

(Comunicosofia)

GUSTAVO DE CASTRO

CASA DAS MUSAS

pilotis

abertura

a casa de Hermes, p.

introdução

frasementos poéticos, p.

parte I – água

os fragmentos da água, p.

parte II – fogo o guardador de chamas, p.

parte III – ar

o colecionador de ventos, p.

parte IV – terra o leitor de polens, p.

sobre o autor, p.

Saber interpor-se constantemente entre si próprio e as

coisas é o mais alto grau de sabedoria e prudência.

Fernando Pessoa

Só existe ciência daquilo que é oculto.

Gaston Bachelard

A Luiz Martins

Copyright 2005 by Gustavo de Castro e Silva

Ilustração da capa: Hermes

Diagramação: Fernando Brasil

Revisão: F.D & G.C. S.

Coordenação editorial: Luiz Martins da Silva

Printed in Brasil

Impresso no Brasil

2005

Direitos para esta edição

Ed. Casa das Musas

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Castro e Silva, Gustavo de.

Filosofia da Comunicação - Comunicosofia / Gustavo de

Castro e Silva; - Brasília: Ed. Casa das Musas, 2005. Col. Textos

em Comunicação.

75p., 21cm.

ISBN

1.Filosofia. 2. Comunicação. 3. Teoria

CDU 301.153.2

CDD 301.16

abertura

a casa de hermes por Florence Dravet

s deuses não precisam trancar suas casas antes de sair. Até

porque, eles nunca saem totalmente. O que acontece é que a

vastidão de suas moradas os faz ao mesmo tempo presentes e

ausentes em cada recanto. Suponhamos, então, que Hermes nunca

saia de casa, mas também não esteja verdadeiramente presente em

nenhum de seus cômodos. Suponhamos que ele deixe sempre

algumas portas abertas para que caminhantes, curiosos e estudiosos

possam entrar e passear em sua vasta morada. A dificuldade é que o

percurso nunca acaba porque a casa de um deus sempre apresenta

algo de labiríntico, de misterioso, de surpreendente.

Os cômodos, por exemplo, nunca possuem uma só porta;

existem várias possibilidades de entrar e sair, de passar de um lugar

da casa para outro. Às vezes uma porta escancarada esconde outra,

ainda fechada, como um acesso a ser descoberto que pode conduzir

a um lugar pouco freqüentado ou totalmente ignorado. Não se sabe

exatamente quais os limites da casa de Hermes, nem a quantidade

de cômodos. O que se sabe — e é o que este livro explora — é que

existe sempre uma outra possibilidade, uma nova porta de entrada,

uma outra passagem para se conhecer a morada do deus

mensageiro.

Abordar a comunicação seguindo os caminhos da natureza

através dos quatro elementos é o método adotado aqui, que permite

dar conta da dimensão ilimitada e prolífera da sua observação. Pois

ela é pensada sucessivamente como água, fogo, ar e terra, sendo

primeiro algo que flui, para depois arder, evaporar-se e derramar-se

em pólens sobre a terra, fertilizando-a. Há pouca preocupação aqui

em analisar suas concreções ou manifestações em nosso mundo,

interessando mais idealizá-la no sentido de concebê-la através de

prismas abstratos, onde caibam tanto as realizações comunicativas

— as diversas linguagens, os seus meios e fins — como as suas

formas imaginais e criadoras e, ainda, suas formas livres e

desconhecidas. Os quatro elementos representam, simultaneamente,

O

a totalidade porque são ligados entre si, e a parte ínfima porque são

fragmentos de algo maior que aparecem acrescidos pela lupa do

olhar investigador daquele que quer saber, conhecer, compreender.

Para enfrentar as dificuldades labirínticas da casa de Hermes, é

preciso desfazer-se dos antolhos do medo e dos reducionismos que

mantêm as portas fechadas, compartimentando os espaços. É

necessário deixar fluir córregos d‘água, saber aquecer-se às chamas

da criação, voar ao grado dos ventos anunciadores e reverter-se

depois, transformando e polinizando o mundo. Porque a vasta casa

da linguagem precisa ser melhor ocupada pelo homem,

Comunicosofia é um convite a conhecer a comunicação,

questionando, sonhando, criando, imaginando, amando.

Introdução

frasementos poéticos

1. Assim como não consigo me reconhecer sem a dimensão

espiritual, não consigo me reconhecer sem a dimensão

comunicativa. O elo comunicação e espiritualidade sempre me

significou – no fundo – um tipo de busca. Em ciências sociais,

chamo de Comunicação Vertical ou Comunicosofia. A busca pelo

alto sempre me pareceu também o mesmo que uma busca pelo

autos = si mesmo, si próprio, eu mesmo. Todas as vezes que

pensava na possibilidade de uma unidade do conhecimento, não sei

porque, olhava o céu. Achava que ele conseguiria representar a

totalidade do dizível e do indizível. Depois, como se fosse um

complemento disso, olhava para dentro de mim, para o céu interior,

e dizia uma frase, sempre a mesma: ―para o alto (autos) é que se

anda‖.

2. O vertical me atingiu em cheio com a espiritualidade e com a

poesia. Fiz da comunicação o médium para chegar a ambas.

Atingiu-me com a poesia ao encontrar, em Montevidéu, Roberto

Juarroz e a sua Poesia Vertical, livro que me inspira ainda hoje.

Com a espiritualidade, ao encontrar, em Roma, o místico e filósofo

Marcelo Costa Nunes e sua Parosofia. Dois signos da verticalidade,

dois modos de ser-no-mundo, ambos convergentes, sensíveis e

promotores de sensibilidade e conhecimento. Com eles aprendi que

a força dos relâmpagos do alto (autos) ilumina a educação na noite

do homem. As profundezas de nossa alma talvez comuniquem mais

que as mídias de massa.

3. Um estudo sobre a comunicação – pelo menos no meu caso – não

pode deixar de ser um estudo sobre a poesia e a espiritualidade. Não

pode deixar de discorrer necessariamente sobre a verticalidade da

palavra e do espírito. A verticalidade é por si só ascendente e

descendente: alavanca a mente e a alma aos estados de elevação e

evolução e aos de queda e declínio. Para acessar os limites deste

estudo, recorrerei à multiplicidade dos estados d‘alma: leituras,

experiências, memórias, subjetividades... será um mergulho nas

estruturas psico-socio-espirituais desse não-sei-quê essencial que é

a comunicação.

4. Estendo as mãos à palavra, companheira inseparável nesta

jornada. Talvez ela me ajude a contar o que o silêncio me contou.

Estendo as mãos também à você, caro leitor, mirante desta jornada.

É interessante cruzar seu caminho assim com palavras e silêncios.

Você acha que isso foi uma coincidência? Acho que não. E não

acho pelo simples fato de que coincidências não existem. O que

existe são concomitâncias!

5. Os silêncios sensíveis da comunicação advém de todas as partes

do interior da gente. Parecem estruturas e impressões mitigadas na

concomitância dos momentos tatuados no mármore do corpo.

Acatará a comunicação as leis da natureza ou as leis dessas

concomitâncias? Talvez ambas. Na sua fruição incerta, ela molda

variados vasos. E, como diz Drummond, ―os cacos de vida colados

formam uma estranha xícara‖. A comunicação vai aos poucos

ornando cada um de nós a depender do oleiro, do barro, do tempo,

do cozimento, para em seguida, dentro do vaso já pronto, dispor de

águas e flores e liquens. Ou não dispor de nada. A comunicação

zanguezagueia conosco no arrabalde dos jogos sensíveis e brutais

que marcam a nossa pele. Nela, somos pedaços de gente colados,

somos esquecimento e desterro, reconhecimento e espelho, falas

depositadas dentro de um pote que ninguém sabe ao certo definir o

que contém.

6. A comunicação bem que poderia se parecer à relação que há na

sensibilidade da pétala ao cair e roçar o pensamento de quem a

pensa. A pétala voa direto ao chão com a leveza aérea dos seres

alados. Nenhuma palavra pode detê-la, nenhum suspiro suspendê-la.

Sem embargo, pétala e pensamento deveriam abrir juntos como se

fizessem parte da mesma flor. Perfumar o pensamento, adornar a

razão, eis uma fusão sensível necessária à comunicação. Para que o

pensamento esteja perfumado e a pétala possa ser pensada é

necessário que pétala e pensamento possam ser recolhidos juntos.

7. Algum poeta disse certa vez: ―Não sei colher só sei semear‖.

Semear flores e pensamentos, histórias e memórias, prosas e poesias

para que o leitor colha a si mesmo no seu jardim interior. Pretensões

de quem ama os caminhos para dentro. Tomei certa vez o caminho

que subia a montanha da alma. Segui sozinho, acompanhado apenas

de um caderno. Tomei a estrada a norte e iniciei a jornada. Este

livro é a história desta busca, destas anotações, das paradas, leituras,

meditações e perdas. É também a história de uma angústia, o roteiro

de uma dor e de um despedaçamento. Ao decidir trilhar a estrada da

poesia e da espiritualidade pelo caminho da linguagem não tive

como me esquivar do touro branco selvagem que me atacou pelo

caminho.

8. Proponho a todos, principalmente a você, uma anamnese da

palavra ―comunicação‖. Quando foi que você ouviu falar pela

primeira vez dela? É difícil lembrar, mas procure voltar no tempo.

Praticamos comunicação antes mesmo de pensarmos nela. Se é que

um dia nela pensamos. Nascemos e vemos nossos pais ouvindo

música, rádio, lendo jornais, vendo tv, falando uns com os outros.

Antes disso, um processo mais profundo de comunicação se

estabelece: somos beijados, acariciados, tocados, amados.

Paralelamente, outro processo também desencadeia: sonhamos,

ouvimos e inventamos histórias, estamos enquanto crianças no

limiar entre o sonho e a realidade. É por isso que acho que a

comunicação nasce de três processos distintos: do silêncio, do amor

e da imaginação. Depois disso, agregam-se outros processos e mais

outros e tudo complexifica. É por isso que fiz esta proposta: quais

as suas mais remotas relações com a comunicação? Quando criança

eu gostava de imitar os locutores de rádio. Tomava uma escova de

cabelo na mão e ficava inventando histórias. Depois, aos doze anos

mais ou menos, no dia da morte de John Lennon, minha mãe

chegou em casa com uma máquina de escrever Olivetti. Meus olhos

se acenderam: passei a escrever histórias sem parar, deste então.

Quis ser escritor, poeta, coisas assim. Mas e você, como encontrou

esta dama, a comunicação? O que você quis e o quer com ela?

9. Será que a comunicação realmente existe, ou estamos falando

mesmo é de outra coisa? Quando falamos de comunicação não

estamos falando de um ideal desejável, inspirador, um modelo a ser

perseguido? Será que não falamos de fato de trocas de informações

subjetivas, relações indiretas, transversais, multidirecionais? A

comunicação lembra um plasma. Varia na forma e no conteúdo a

cada instante. Diferente de outros materiais que variam na forma

mas mantêm o volume, o plasma varia sempre. Acho que a

comunicação possui as quatro características da matéria: sólido,

líquido, gasoso e plasmático. Possui os quatro sabores: doce,

amargo, azedo e salgado. Possui as quatro virtudes cardeais:

sabedoria, fortaleza, prudência e temperança. Possui também,

obviamente, os sete pecados capitais. Além destas, outras são as

naturezas da comunicação.

10. Andei por isso mesmo buscando essa natureza em regiões que,

pelos menos alguns comunicadores, esqueceram: na poesia e na

espiritualidade. Isso porque acho que a comunicação precisa

reencontrar a alegria, deixar de lado a sisudez dos produtos, das

programações, das teorias, da academia, do mercado e entrar na

vida do homem como uma filosofia de vida. A comunicação como

belas artes!!! Essa visão vê a comunicação com o que lhe é mais

próprio: o conceito aberto, conceptor, concepção pronta a entender-

se com outra. Trata-se de uma complexidade sutil, ligações e

religações plasmáticas. Mas aprende também as lições dos outros

elementos.

11. Vejo a espiritualidade como uma física da natureza e das

energias, e a poesia como filosofia espiritual. O além exige sempre

mediação (e meditação) de algo e de alguém. Aqui, neste ensaio, a

mediação da espiritualidade não aparecerá explicitamente, apenas

implicitamente, mas a poesia, não. Essa gritará o tempo todo os seus

desassossegos de silêncio. Comecei a escrever estas notas como

anotações de aula, o que chamo de inscriações, porque me inscrevo

nelas ao mesmo tempo que me recrio também. Todos dizem que

não tenho um pingo de juízo por querer estudar a comunicação a

partir das matrizes da poesia e da espiritualidade. Dou certa razão

aos que dizem isto. Mas não me importo muito. Tratar com o

incerto, sempre foi uma forma de avançar nos limites do insólito e

da compreensão.

12. Para quem nasce num país como o Brasil, não é muito difícil

relacionar incerteza e compreensão. Antônio Alçada Batista conta

que em meados da década de cinqüenta do século vinte, o Brasil era

o único país da América Latina em que as touradas não haviam

dado certo. Um empresário chegou a erguer uma arena, importar

bois e toureiros da Espanha e do México e divulgar a novidade por

toda a cidade do Rio de Janeiro, onde foi montado, próximo ao

Maracanã, o cenário daquela primeira tentativa. O público

compareceu em massa, mas após o evento os organizadores

decidiram nunca mais realizar uma tourada por estas paragens. É

que o Brasil, diferentemente dos outros países, foi o único lugar

onde o público vibrava e torcia para o touro, desejando que esse

estraçalhasse o toureiro.

13. Compreender os limites da comunicação exige uma certa dose

de abertura às possibilidades. Dizem que quando um físico amigo

de Niels Bohr, prêmio Nobel de física de 1913, foi até sua casa de

campo e viu, dependurada na porta, uma ferradura, disse ao

dinamarquês: ―Você, Niels, crendo em superstições?‖. Bohr

respondeu que havia ganho a ferradura de presente de um camponês

e quando argumentou que não acreditava naquilo, o homem

respondeu: ―Não importa, funciona independente da sua crença!‖.

14. Para compreender a comunicação devemos estar abertos

também ao encontro, ao amor e à paixão, coisa que muito

pesquisador em comunicação não gosta de falar. Dizem que no dia

do funeral de são Francisco de Assis o cortejo seguido pelos frades

passou defronte o convento onde morava santa Clara. O cortejo

parou por um momento ali em frente, e Clara, que já esperava do

lado de fora o corpo junto às irmãs, aproximou-se do santo, moveu

os lábios até o braço de Francisco e o beijou. De repente, como se

fosse beijá-lo de novo, mordeu a pele do braço do poverello,

arrancando-lhe um pedaço de carne. Diante de todos, mastigou e

engoliu. Depois disso, nada disse e nada mais precisou dizer. Da

fúria carnal e espiritual do amor, sabemos todos.

15. Mas a comunicação é também simulacro, reflexo, jogo de cena.

E por falar em jogo de cena, uma imagem para pensar a

comunicação:

No ônibus não havia ninguém de pé. Todos estavam sentados,

voltando para casa depois de um dia de trabalho. O final de tarde

não anunciava nada além da noite triste. E o ônibus seguia o seu

caminho sem novidade. Foi quando num ponto qualquer subiu um

vendedor de espelhos, carregando um volume deles amarrados.

Como não havia lugar, o homem ficou de pé, segurando os espelhos

voltados para nós, os passageiros. E eis que de repente todos

começamos a olhar, a nos ver ali refletidos, oscilantes, tumultuados,

virando curvas, saindo e entrando em cena, aparecendo e sumindo

ali sentados à espera de nos ver aparecer e sumir em imagens

acidentadas de nós mesmos. O vendedor de espelhos nos despertou

uma imagem em conformidade com o que somos de fato: seres

sendo levados de um ponto a outro do itinerário, cuja imagem

patética e passiva não faz mais do que oscilar, enquanto espera ela

desaparecer de vez, na invisibilidade final.

16. A comunicação é panapaná. De acordo com Câmara Cascudo

panapaná é uma migração de borboletas alaranjadas com laivos de

açafrão nas asas impacientes, advindas em miraculoso caudal pelo

vento nordeste. Panapaná é a forma de quem sabe tocar flores,

ondular dunas, caminhar ventos...

17. Tudo isso e um pouco mais. A comunicação não tem fronteira, é

ciência aberta, por mais que não queiram, por mais que a queiram

mídia impressa, eletrônica, radiofônica, etc, etc, etc. a comunicação

em si é o espaço de contato fluído e dinâmico de tudo para com

tudo. Este ensaio, não fala diretamente a língua do jornalismo, nem

da publicidade, nem das relações públicas, nem de nenhuma

habilitação. Fala apenas a língua da linguagem.

18. Se tem uma mídia que me interessa aqui é essa: a língua da

linguagem. E o meio que decidi explorar foi o dos elementos: água,

ar, terra, fogo. Estes são os médiuns que me interessa aqui explorar.

Então vamos a eles.

parte I – água

os fragmentos da água

1. Nesta Comunicosofia estarei inspirado no próprio Hermes: terei

asas nos pés e na cabeça, por isso tentarei pensar e sonhar

livremente; serei, como ele, ladrão de palavras, imagens, saberes,

utilizarei citações, frases e poemas dos outros para levar até você.

Neste Diário Sentimental dos Elementos pensarei a comunicação

como uma meditação que busca a sua própria natureza, seja ela

natural ou transcendental. Uma introdução à comunicação não

descura os elementos que compõem os seus diversos saberes. Busco

por isso aqui uma Comunicosofia: a sabedoria do ser-com...

2. Os saberes da comunicação: fragmentos de uma unidade perdida.

Para conhecer a comunicação, primeiro ser um Relieur (religador),

um Complexeur (tecedor) e cultivar o espírito dos fios e dos nós. E

em seu tecer-saber, calar-se. Ruminar atento a polifonia do mundo,

sentir o Aberto. Porque é isso o que é a comunicação: fragmento à

procura de encaixe, logos da unidade múltipla1

3. Comunicação. Palavra-risco porque palavra-palavras. Também,

palavra-guarda-chuva. Além de abrigar seres-conceitos, abriga uma

sinfonia de formas e variações. Por isso posso te explicar te

decompondo: ação comum; dinâmica de tornar o mesmo, igual,

variação comunnis: Comum-idade; Comum-ação... Mas és muito

mais, minha senhora, do que isto. És a companheira da unidade:

Com-Um, unidade que se faz acompanhar da diversidade. Com-Um

recupera o sentido do grego ksyn-on: ksyn [syn] (com) e on

(particípio presente do verbo eimi = ser). Com-Um = ser

conjuntamente um.2

4. Pelo fato de seres unitas multiplex, me desobrigo a te entender

totalmente. Meu acesso a ti é pelas vias complexas. Sempre quando

te busco, encontro outra coisa, mais e mais, por isso aprendi que és

como um rio que nunca pára de correr. Não tenho dúvida:

Comunicação és água!

5. És igual à água, minha senhora. Alimentas o homem, as terras, o

gado. És todas as formas em teu estar. Sedenta, estás em tudo,

porque tudo fala. Só não podes estar parada, porque quando és água

empoçada, apodreces e matas quem de ti se alimenta. Palavra-rio,

palavra-curso, palavra-discurso. Comunicação é discurso, estrutura,

reunião (dioikounti) das casas que habitamos. Rio que corre

penetrando em filetes de água, os canais de todas as casas.

6. Quando um rio corta, corta-se de vez o discurso-rio de água que ele fazia; cortado, a água quebra-se em pedaços, em poços de água, em água paralítica. Em situação de poço, a água equivale a uma palavra em situação dicionária: isolada, estanque no poço dela mesma,

e porque assim estanque, estancada; e mais: porque assim estancada, muda, e muda porque com nenhuma comunica, porque cortou-se a sintaxe desse rio, o fio de água por que ele discorria. O discurso de um rio, seu discurso-rio. Chega raramente a se reatar de vez; um rio precisa de muito fio de água para refazer o fio antigo que o fez. Salvo a grandiloquência de uma cheia lhe impondo interina outra linguagem, um rio precisa de muita água em fios para que todos os poços se enfrasem: se reatando, de um para outro poço, em frase curtas, então frase a frase, até a sentença-rio do discurso único em que se tem voz a sede ele combate. (João Cabral de Melo Neto)

3

7. Teus significados? Correr, fluir, vagar, trazer, levar, nutrir... Não

suportas água parada, atacas as paralisias e se te aprisionam,

morres. Teu saber resulta dos que andam, dos que estão atentos ao

teu apelo. Mas quem não sabe te beber, nem te sabe nadar, esses

padecem por te acharem passageira, fugaz, efêmera, mortal. Não

conhecem teu substantivo curso. Nem contigo se fazem com. Com

curso.4

8. Minha senhora, te partiram em tantas. Desviaram várias vezes o

curso do teu rio, te represando ora aqui, ora ali. Ao te deterem,

queriam te conhecer, investigar tuas fontes, avaliar a tua

propriedade, teu sabor e pureza. E viram que não és tão pura assim,

pois arrastas contigo os compostos químicos das terras por onde

passas, os lixos, os restos, os dejetos, tudo levas nos caminhos do

teu fluir rumo ao mar.5

9. Minha senhora, conheço quase todos os teus nomes. Só não

entendo por que tens tantos? Por que és assim? Ou porque sabes

muito bem quem és e não temes as máscaras que te colocam, ou

porque nunca te encontrastes em um nome, em uma identidade, um

modo, um jeito, uma forma. Dize-me, és múltipla ou és uma? Acho

que és semelhante a uma alcachofra ou a um imenso cebolão:

universos dentro de universos, palavras dentro de palavras, histórias

dentro de histórias.

10. Quantas gotas precisamos para explicar a água?

Quanta água é imprescindível para encher um copo?

Quantos copos são necessários para matar a sede?

Cada gota-palavra ajuda a explicar,

cada copo-discurso, a compreender,

cada sede-ruído, a buscar.

A comunicação é uma casa que nunca fica pronta.

11. Para conhecer a comunicação, evitar a água parada. A palavra

dicionária que não leva a nenhum discurso. Há um rio que sempre

corre em direção a tudo o que comunica. Por isso, para conhecer a

comunicação, começar pelo silêncio. Ele é o que tudo pontua no

discurso-rio. Mas o silêncio, na verdade, não existe, porque tudo é

som, música, melodia. O tempo todo, a todo instante, canta-se um

canto quieto. Por isso nós não ouvimos. Mas ao nascer, o sol emite

um som; a flor, ao abrir-se, canta a aurora; a cadeira, inerte na sala

vazia, dedilha a música da ruína; a caixa oca, sona uma ária

desconhecida aos nossos ouvidos. Toda a natureza canta: o

desprender-se de uma folha ou um fio de cabelo, o passar de uma

nuvem, o pousar de uma pena sobre o chão. A aparente ausência de

som é só aparente. Por isso a comunicação é melodia secreta. Um

canto e um baile de sentidos, dança e movimento, festa com muitos

con-vivas.6

12. O silêncio contém em si burrice e sabedoria. Um ditado árabe

diz: ―Todos querem falar, poucos querem pensar e ninguém quer

ouvir‖.

13. A fala que mais se aproxima do silêncio é a poesia e a oração. O

recolhimento sem palavras para dentro de nós mesmos, deixando

que falem ‗outras‘ vozes. Uma inscrição num monastério dizia

exatamente isto: ―Só fale se for melhorar o silêncio‖. De que forma

então a fala pode melhorar o silêncio?7

14. Inscrição num templo em Brasília: ―Se você tem dificuldades

em compreender o que é o silêncio, fique calado, que é o mesmo‖.

Fechar a boca faz falar o coração, a mente, a alma. Mas na era da

polifonia geral, ninguém quer ficar calado; o silêncio incomoda,

agonia, perturba, por isso deveríamos aprender na escola também

não só a alfabetização por palavras, mas também por silêncios. De

que consiste esta alfabetização? Consiste em aprender a sentir o

pensamento, ruminar a arte, perceber a si e as pessoas, e o ambiente

a nossa volta.

15. O silêncio que fica entre duas palavras não é o mesmo silêncio

que envolve uma cabeça quando cai, nem tampouco o que anuncia a

presença da árvore quando se apaga o incêndio vespertino do vento.

Assim como cada voz tem um timbre e uma altura, cada silêncio

tem um registro e uma profundidade.O silêncio de um homem é

distinto do silêncio de outro e não é o mesmo calar um nome que

calar outro nome.8

Existe um alfabeto do silêncio,

mas não nos ensinaram a soletrá-lo.

Freqüentemente, a leitura do silêncio

é a única durável,

talvez mais que o leitor.

(Roberto Juarroz)

16. Mas o que é o silêncio? Existe Tacere = silêncio verbal,

diferente de Silere = tranqüilidade, ausência de movimento e de

ruído. ―Silere remete a uma espécie de virgindade intemporal das

coisas, antes de nascerem ou depois de desaparecerem‖. Silentes

são os mortos. O silêncio é a forma mais acabada de se aproximar

de Deus e de sua criação. O silêncio coincide com a aparição do

verbo: começa a linguagem, o ato da fala (Locutio).9

17. Na visão mística de Jacob Boehme (1575-1624), Deus ―em si‖ é

pureza, claridade, bondade e silêncio. Seu silêncio o torna

incognoscível, estado sem paradigma, sem sinal. Para manifestar-se,

Deus cria um contrarium de si mesmo, representado na Cabala –

sistema filosófico oculto hebraico – pelos 7 Sephiroth. Deus começa

a falar através de Sophia.10

18. O tema do silêncio está sempre ligado ao da palavra. Todos têm

direito ao silêncio, mas nem todos à palavra. Entre os gregos havia

uma palavra para indicar esse direito: Isegoria (outro nome para

democracia): direito para todos de falar na assembléia. Problema

sempre atual, o direito à palavra relaciona-se diretamente ao direito

à expressão. E o direito ao silêncio, quem reclama?

19. Silenciar é também uma tática de vida. Para Bacon é uma arte

de velar-se ou ocultar-se. São três os graus: 1. homem reservado,

discreto e calado, que não se expõe; 2. dissimulação ―negativa‖,

parecer diferente do que é realmente e 3. dissimulação ―positiva‖,

fingimento, dizer-se diferente do que realmente se é, fingir para

passar melhor.11

20. ―Pessoas silenciosas são perigosas‖, diz o ditado. O silêncio é

uma arma. Uma forma de ação contra a opressão. Por isso, a

Inquisição via no silêncio também uma forma implícita de protesto

contra a fé católica. Torquemada (1420-1498) chama de ―heresia

implícita‖ a uma linguagem que não se declara a favor da Igreja. O

crime era: ―Preso por motivo de implícito‖ ou ―Condenado por

motivo de silêncio‖. Santo Agostinho estabelece a obrigação de

dizer ―tudo autenticamente‖, seja lá quais forem as conseqüências.12

21. A franqueza em excesso denota um certo tipo de burrice.

22. Para Tímon, o cético, o silêncio (aphasía: ciência do tacere), é

uma atitude psicológica, que diz respeito à alma; uma atitude lógica,

que diz respeito à postura diante das ―verdades‖; e uma postura

ética, que visa a obter repouso, ataraxia. Recusa-se à fala

sistemática e dogmática, mas nem por isso é um silêncio só da boca,

mas do pensamento e da razão.

23. Ataraxia: impertubabilidade da alma. O silêncio adquire aqui

uma forma mais ou menos estóica, sábia. Bacon conta uma história:

―Conta-se que, reunindo-se um multidão de filósofos em grande

pompa na presença do enviado de um rei estrangeiro, cada um se

empenhava em ostentar sua sabedoria, a fim de que o enviado,

formando a respeito deles a mais elevada idéia, pudesse fazer um

belo relatório sobre a maravilhosa sabedoria grega. Contudo, um

(Zenão) deles não dizia uma palavra e não apresentava sua parte; o

enviado voltou-se para ele perguntou: ‗E o senhor, nada tem a me

dizer que sirva para o meu relatório?‘ – Diga a seu rei – respondeu-

lhe o filósofo – que o senhor encontrou entre os gregos um homem

que sabia calar‖.13

24. Maurice Blanchot descreve uma questão formulada por Kafka:

―Kafka desejava saber em que momento e quantas vezes, estando

oito pessoas a conversar, convém tomar a palavra para não passar

por calado‖. ―Angustia conhecida‖, diz Barthes, ―creio, pela maioria

de nós: preciso dizer alguma coisa, qualquer coisa, etc, senão vão

pensar que estou entediado (o que, no entanto, é verdade)‖.

25. Não é possível amizade quando dois silêncios não se combinam.

(Mário Quintana).14

26. Na mística do oriente, no Zen sobretudo, há uma desconfiança

em relação à palavra. Entre os 500 discípulos que entendiam bem o

budismo e que deveriam ser escolhidos para suceder o quinto

patriarca, foi escolhido um que não entendia nada de budismo, que

só conhecia o caminho e nada mais. No Tao, Lao Tse diz: ―Quem

conhece o Tao não fala dele; quem fala dele não o conhece‖. A

iniciação começa por ―não julgar nem falar mais‖. Silêncio total,

radical: interior e exterior = silere = silêncio de toda a natureza. O

homem seria um ruído na natureza.

27. O Deus do silêncio entre os africanos é Obaluaiê (senhor da

terra e da morte, coberto por um filá de palha = mistério, apresenta

pelo silêncio o que realmente importa: a vida). O deus do silêncio

entre os gregos é Harpócrates, cuja simbologia é uma criança com

um dedo na boca. Silêncio, diz Sartre, não é mutismo, mas outro

falar. Fala, trampolim para o silêncio; silêncio, trampolim para a

sabedoria. Na música tacet ―calar-se‖, em latim, corresponde ao

silêncio de um instrumento ou de uma voz como parte de um trecho

musical. Taceo = Tacere = tácito (ser implícito, prudente, calado).

28. Samuel Beckett diz que ―somos uma ilha de carne cercada de

silêncios por todos os lados‖. Em nosso corpo, habitam muitas

vozes, ecoam sons vindos de todas as partes do interior da gente. Só

através do silêncio poderemos ouvir todas elas. O ruído e os

rumores não facilitam em nada o curso do rio. São pedras que

impedem a passagem, mas que nos servem para meditar sobre a

força e o fluxo das passagens.

29. Para penetrar nos mistérios da comunicação, silenciar. Sentir o

expressar de cada fagulha desse som erudito. A mesma regra vale

para aprender sobre os silêncios do corpo e suas falas. Do corpo,

primeiro entender nossa identidade Frankenstein. Pois somos

realizações de um cientista em seu laboratório. Deve ser por isso

que toda comunidade é um laboratório e viver é um experimentar-

se. Somos misturas de eus = autos, colagens de experiências,

imprintings racionais, tatuagens de sentimentos; peles sobre peles,

homem-máquina com um coração de carne.15

30. O silêncio do corpo fala por expressões e gestos. Braços

cruzados, tez franzida, baton na boca, movimento das mãos, postura

ereta... Cada expressão pode indicar uma fala; cada gesto um

pedido, uma recusa, uma aceitação; um olhar geralmente diz tudo;

uma doença ou uma dor num ponto do corpo é um sinal com muitos

discursos. Um silêncio contém mais palavras do que muitas

imagens.16

31. O corpo é a primeira comunicação. Tudo se estende a partir dele

e a tudo ele acolhe. Para entendê-lo, ouvi-lo. Do pé à cabeça, sinais

e códigos ele emite o tempo todo para que ouçamos os seus

sussurros. Devíamos conversar o tempo todo com ele, percebendo

nele os fios que nos unem a nós mesmos, ao outro, às comunidades

e ao invisível.

32. ―A pele é a ponte do sensível no contato com o mundo e pode

ser também um abismo. É o nosso órgão mais extenso, é o nosso

código mais intenso, um lar de profundas memórias. O corpo sente,

toca, fala, comunga. Vida incorporada, corpo da Vida‖. Roberto

Crema.17

33. Pensar o mundo que se sente; fazer raciocinar o coração.

Estruturar uma cardiótica:

A santidade é uma genialidade do coração. Do coração nasce um

mundo novo; o entusiasmo demiurgo do coração superpõe os

mundos. A inspiração criadora do coração é a chave para a

compreensão dos santos. O capítulo principal de uma cardiótica,

que se ocuparia do sentido e da lógica do coração, teria que tratar

dos santos e do infinito de seu coração.18

(Emil Cioran)

34. A comunicação mediada pelos sentimentos estabelece vínculos

diferentes que a mediada pela palavra. A diferença está no espaço e

no tempo. Os vínculos são duradores, as distâncias não impedem a

manutenção dos fios. A duração (tempo) e a geografia (espaço) da

comunicação determinam a força e a elasticidade dos vínculos, mas

são determinados pelas sensibilidades de nossos contatos. Com

tatos corporais: a forma de ligar os homens pelos fios do amor.

35. No fundo, as sensibilidades é o que dá suporte às relações. Mas

será que existe relação que não abrigue em si, conjuntamente, uma

finalidade instrumental e outra comunicativa? Será que as relações

devem ser sempre uma coisa ou outra? Através das várias formas de

contato amoroso, aprendemos que as relações abrigam em si a

diversidade dos fins e dos meios: nem sempre o ar é transparente,

nem sempre nevoado. Em todos os casos, estamos sempre a

desembaçar vidros e espelhos. Buscamos transparências e uma

visão melhor da realidade. Mesmo sabendo que todas as formas

estão borradas.

36. Na comunicação, uma parte é forma, a outra conteúdo; uma

parte é aparência, a outra essência; uma parte é céu, a outra inferno;

uma parte história que dura, a outra história que passa; uma parte é

amor, a outra ódio; uma parte simples, a outra complexa; uma parte

problema, a outra solução; uma parte encontro, a outra separação;

uma parte é análise, a outra é síntese, uma parte prosa, a outra

poesia; uma parte mente, a outra coração... Religuemos pois todas

as partes e teremos uma filosofia do abraço numa simbiosofia da

comunicação.19

37. Toque com suas mãos o seu corpo e o alheio. Haverá aí nova

interação. Com a boca, mastigue palavras imaginadas: força, bem,

vontade, saúde, paz... E as engula! Com os olhos, aprenda a

contemplar o mínimo; com o coração a sentir o máximo. Com os

ouvidos, escute os silêncios da tua respiração. Ensine o seu corpo a

sair da teoria da comunicação para entrar na empíria das conexões.20

38. Não existe senão um só templo no universo,

e é o Corpo do Homem. Curvar-se

diante do homem é um ato de reverência

diante desta Revelação de Carne.

Tocamos o céu quando colocamos

nossas mãos num corpo humano.

(Novalis)

39. O corpo do homem, diz Leloup, é o seu próprio livro de estudo.

Basta ir virando as páginas, através de uma anamnese física e

psicológica para ir encontrando os códigos que o explica.

40. Resumo explicativo do homem, assim o corpo fala: a cabeça é a

nossa síntese; os ombros falam de nossa autonomia; o coração da

nossa sociabilidade; o ventre é nossa consciência familiar; os

genitais revelam nosso inconsciente; os joelhos nosso acolhimento;

os pés, a relação com nossa mãe. O corpo é uma caixa de

ressonância: a sincronicidade entre nossas memórias e o nosso

estado físico.

41. O mais profundo é a pele.

(Paul Valéry)

42. Comunicação, és diafragma! Diafragma (phren) que fez nascer

o conhecimento que se adquire através dos sentidos, o saber prático,

a prudência (phronesis) pois és guerra e paz; sístole e diástole;

metáfora e metonímia; abertura e fechamento. Quando és assim, te

entendo. Mas não entendo os que te nomeiam apenas como isto ou

aquilo, porque em teu discurso-rio, passas por todas as terras. És

isto e aquilo: esclarecimento e alienação, ideologia e apatia; massa e

individuação; corpo e alma; mente e coração...

43. Delicadeza e sensibilidade: valores esquecidos pelo

comunicador. O cinema e a literatura – ou a arte em geral – quando

esquecem desses valores, padecem de um mal conhecido: a soberba.

Talvez pelo fato de delicado vir de Delicatus = efeminado ele seja

deslembrado. Quando o viril cede lugar a um valor feminino, faz

com que algumas pessoas não percebam o requinte de qualidade ali

presente. Há quem condene a delicadeza, diz Paul Valéry, por achar

que ela debilita os ânimos, por achar que o extremo do gosto, do

polimento e do refinamento não combina com a força da energia.21

44. A gentileza faz parte da magnanimidade de quem tem a mente

aberta.

(Nietszche)22

45. Quando se busca o saber prático da comunicação, a desproteção

é quase que absoluta. Vai-se à comunicação com o que se tem. Se

se está aberto, ela flui; se fechado, ela empoça. O comunicador é o

guardião da interdisciplinaridade. Devia ser também oficiador de

uma reflexividade permanente que prolonga e aprofunda os sentidos

e os desentidos do mundo.

46. O comunicador é um nexologista. Os medievais diziam que

inteligência é a capacidade de pôr em relação. Legein para os

gregos, significa prender, tomar. Como metáfora alude a uma

conexão entre o que parece heterogêneo. Com prendere = formar

nós e laços entre os diversos fios, tecendo uma colcha colorida.

47. Comunicação entendida como a arte de prender e remeter,

estabelecer vizinhanças e tecer vetores de sentido, consiste em

diminuir o espaço entre nós, a reflexividade e a coisa.

48. Comunicação é heteromobilidade: move algo mais do que

atores, situações, mensagens e códigos. Move o próprio espírito do

cosmos. Talvez por isso ela abrigue em si uma ecologia da

linguagem.

49. Comunicadores são profissionais da arte de estar sempre na

realidade. Por isso é bom a advertência: realidade demais mata!

Comunicador, não guarda os teus sonhos. Vive-os. A realidade não

os tem tão belos quanto a arte!23

50. O fato é um aspecto secundário da realidade.

(Mário Quintana)

51. O comunicador é um cooperador. Não faz sozinho, mas junto.

Em con junto.

52. Conjunções: pleno e não plenos, convergente-divergente,

consoante-dissonante, e de todos, um; e de um, todos.

(Heráclito de Éfeso)24

53. Para ser comunicador, tradutor. Toda a comunicação é uma

forma de tradução. Deve ser por isto que comunicadores e

tradutores são traidores da realidade objetiva: tradutore = traditore.

Traduzir é trair? Mas há outro modo de acessar o saber que não se

sabe? O original não é, já de alguma forma, tradução? Fale da coisa

que está diante dos seus olhos: você está sendo fiel ao original ou

fazendo uma leitura sua da coisa?

54. Este é o Discurso, a convergência de muitos cursos, a

sobreposição de correntes. Os cursos, ao discorrerem, enredam-se

e desenredam-se, convergem e divergem no fluir que se refaz.

Traduzir é manter viva a tradição, é impedir que o rio se corte em

poços, que estanque, que morra (...). O discurso em curso requer a

tradução.25

(Donaldo Schuler)

55. A tradução – dizem-no com desprezo – não é a mesma coisa

que o original.

Talvez porque tradutor e autor não sejam a mesma pessoa.

Se fossem, teriam a mesma língua, o mesmo nome, a mesma

mulher, o mesmo cachorro.

O que, convenhamos, havia de ser supinamente monótono.

Para evitar tal monotonia, o bom Deus dispôs, já no dia

da criação, que tradução e original

nunca fossem exatamente a mesma coisa.

Glória, pois, a Deus nas alturas, e paz, sob a terra, aos

leitores de má vontade.

(José Paulo Paes)26

56. O tradutor deve escolher bem os caminhos da palavra. A palavra que acesse

e participe o real. Do contrário, não conseguirá fazer chegar ao outro (receptor)

nem uma fagulha desse real. Os caminhos que conduzem ao nome não seguem

sozinhos. Necessitam dos homens para percorrê-los. É Quintana quem diz: ―O

triste dos caminhos é que eles jamais podem ir aonde querem‖.

57. O comunicador é o homo legens. Homem-leitura: que lê e é lido, que

escreve e descreve, que traduz, recria e comunica a criação, sua ou de outrem. O

comunicador deveria ser um criador: fartar-se do inesgotável.27

58. Embora toda tradução seja uma espécie de recriação = imitação =

mimetismo = mimesis = comunicação, o comunicador está sempre a criar: a si

mesmo, o ambiente, a mensagem, o outro, as trocas e os vínculos. Sua

comunicação deve ser um conjunto de movimentos coordenados com vistas à

beleza e ao entendimento. Deve dar expressões de dança a todos os

pensamentos e relações. E fazer dos atos de linguagem um encontro ajustado.

Ou em busca de ajuste. Semelhante a um casal que baila o difícil tango.

59. O baile da comunicação: contatos, experimentos, festa. Não há comunicação

que não seja uma troca experimental. Avançar um passo e criar um movimento

coordenado. Amar o que vai além do que se é. Comunicação: mostra-me o

caminho para mim mesmo: abre uma fenda em minha espessura. Faz-me ir

além do meu próprio limite. 28

60. Cada um de nós tem sua maneira de amar e de odiar, e esse amor, esse ódio

refletem toda a nossa personalidade. Porém, a linguagem designa esses estados

pelas mesmas palavras em todos os homens; por isso, só pôde fixar o aspecto

objetivo e impessoal do amor, do ódio e de todos os sentimentos que agitam a

alma. (...) Mas, assim como poderemos intercalar indefinidamente pontos entre

dois espaços de um móbile sem jamais preencher o espaço percorrido, assim,

pelo simples fato de que falamos, pelo simples fato de que associamos idéias

umas às outras e que essas idéias se justapõem em vez de se interpenetrarem,

falimos na tarefa de traduzir inteiramente em palavras aquilo que a nossa alma

sente: o pensamento permanece incomensurável com a linguagem.

(Henri Bergson)29

61. No Gênesis, a criação vem após o caos pelo instrumento do

verbo. Ela é uma forma de pôr em ordem a desordem pelo ofício

mágico da linguagem. A linguagem é por isso uma forma de

capturar e arrumar o mundo da desarrumação geral. Às vezes, ela

mesma esfrangalha a tudo. A criação é como a fotografia: ―seus

olhos emboscam o tempo no degrau de cada minuto‖, (Mia

Couto).30

62. A criação é como a fotografia: requer filosofia própria. Quase

uma regra de vida. Porque toda arte é um olhar indireto sobre a

realidade. Um olhar demiurgo. Para criar, captar o daimon da

natureza.31

63. Sugestões ao criador: Separar-se do mundo com elegância; dar

perfil e graça à tristeza; ter um estilo só teu; marchar ao compasso

das recordações; ir passo a passo para o impalpável; respirar nos

limites vacilantes das coisas; renascer o passado em uma

inundação de aromas; o odor, mediante o que vencemos ao tempo;

o contorno das coisas invisíveis; as forças do imaterial; fundir-se

no intangível; apalpar o mundo que flutua no perfume; diálogo

aéreo e dissolução em vôo; banhar-se em teu próprio reflexo...

(Emil Cioran)

64. Ao simbolizar o fim do caos pela constituição de uma forma, a

criação assemelha-se à invenção. A invenção é a percepção de uma

ordem nova. A criação, a instalação dessa ordem por uma energia

que organiza os dados informes. A criação é o efeito/resultado dessa

energia. É a relação invenção-criação que faz surgir um novo

tempo.

65. A comunicação criativa é vista na mitologia egípcia por quatro

desenhos geométricos: a espiral redonda que indica a energia

cósmica insuflada pelo espírito criador; a espiral quadrada que

significa a energia em ação no seio do universo; uma nuvem

informe, imagem do caos primitivo e o quadrado, que representa a

terra e o mundo organizado.32

66. A comunicação criativa nunca cessa. Depois do ato criador a

matéria criada apresenta duas formas: a imanente e a transcendente.

A imanente é a própria matéria participando da energia criadora e

tendendo sempre para formas diferenciadas. A transcendente, a

energia criadora continua a sua obra e a mantém na existência,

sendo a matéria concebida como uma criação contínua.

67. O simbolismo da criação une-se ao da água e ao da planície. A

comunicação criativa participa do espírito do vale. O espírito que

recebe todas as águas para formar um único curso-discurso. Nesse

sentido, a comunicação acolhe todos os rios. Como a água, pode ser

fonte, meio e logos. Fonte por onde jorram as relações, meio de

expressão das linguagens e dos sentidos, logos que regenera e

vivifica.33

68. Como a água, a comunicação é uma massa indiferenciada,

representa a infinidade dos possíveis. Contém o virtual, o informal e

as promessas de desenvolvimento. Como a água, a comunicação

busca a coesão na adaptabilidade. É símbolo do que se reintegra e

do que se inicia. Batiza-se o homem pela água. Não é também

através do batismo que o homem recebe um nome?34

69. A água insere o homem na comunidade. A criatividade retira o

homem do caos. ―A criatividade de cada um depende da

comunidade na qual se insere‖, diz Maffesoli. Já o poeta, Quintana,

falando sobre a criatividade aconselha o seguinte: Desconfiar da

observação direta. Um romancista de lápis em punho no meio da

vida – esse atento senhor acaba fazendo apenas reportagens. É

melhor esperar que a poeira baixe, que as águas ressenerem:

deixar tudo à deriva da memória. Porque a memória escolhe,

recria. Quanto ao poeta que nunca se lembra, inventa. E fica mais

perto da verdadeira realidade.35

70. Memória e comunicação: um casamento que redunda às vezes

em arte. Olhar para o futuro com o objetivo de criar memória. Olhar

para a memória com o objetivo de ver o futuro.

71. A memória e o batismo nos legam um nome. Cai sobre nós uma

classificação indelével, definitiva. Agora já não somos nós mesmos,

em si, mas uma marca querendo ter identidade. E sobre esta marca-

nome, colocamos outras marcas: tatuagens, grifes, etiquetas... E se

tirarmos tudo de sobre, nome, marca, tatoo, grifes, etiquetas, o que

fica?

72. Eu, Etiqueta

Em minha calça está grudado um nome

Que não é meu de batismo ou de cartório,36

Um nome... estranho.

Meu blusão traz lembrete de bebida

Que jamais pus na boca, nesta vida.

Em minha camiseta, a marca de cigarro

Que não fumo, até hoje não fumei.

Minhas meias falam de produto

Que nunca experimentei

Mas são comunicados a meus pés.

Meu tênis é proclama colorido

De alguma coisa não provada

Por este provador de longa idade.

Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,

Minha gravata e cinto e escova e pente,

Meu copo, minha xícara,

Minha toalha de banho e sabonete,

Meu isso meu aquilo,

Desde a cabeça ao bico dos sapatos,

São mensagens,

Letras falantes,

Gritos visuais,

Ordens de uso, abuso, reincidêndia,

Costume, hábito, premência,

Indispensabilidade,

e fazem de mim homem-anúncio itinerante,

escravo da matéria anunciada.37

Estou, estou na moda.

É doce estar na moda, ainda que a moda

Seja negar minha identidade,

Trocá-la por mil, açambarcando

Todas as marcas registradas,

Todos os logotipos de mercado.

Com que inocência demito-me de ser

Eu que antes era e me sabia

Tão diverso dos outros, tão mim-mesmo,

Ser pensante, sentinte e solidário

Com outros seres diversos e conscientes

De sua humana, invencível condição.

Agora sou anúncio,

Ora vulgar ora bizarro,

Em língua nacional ou em qualquer língua

(qualquer principalmente).38

E nisto me comprazo, tiro glória

De minha anulação.

Não sou – vê lá – anúncio contratado.

Eu é que mimosamente pago

Para anunciar, para vender

Em bares festas praias pérgulas piscinas,

e bem à vista exibo esta etiqueta

global no corpo que desiste

de ser veste e sandália de uma essência

tão viva, independente,

que moda ou suborno algum a compromete.

Onde terei jogado fora

Meu gosto e capacidade de escolher,

Minhas idiossincrasias tão pessoais,

Tão minhas que no rosto se espelhavam,

e cada gesto, cada olhar,

cada vinco de roupa

resumia uma estética?

Hoje sou costurado, sou tecido,

Sou gravado de forma universal,

Saio da estamparia, não de casa,

Da vitrina me tiram, recolocam,

Objeto pulsante mas objeto

Que se oferece como signo de outros

Objetos estáticos, tarifados.

Por me ostentar assim, tão orgulhoso

De ser não eu, mas artigo industrial,

Peço que meu nome retifiquem.

Já não me convém o título de homem.39

Meu nome novo é coisa.

Eu sou coisa, coisamente.

(Carlos Drummond de Andrade).

73. Minha senhora, quando os poetas te cantam, calo-me. Mesmo

que cantem tua face sombria. Remexo minha memória em busca

das marcas que me anunciam. Antes, eu era tão mim-mesmo, ser

pensante, sentinte, agora, demito-me de ser. Meu novo nome é

coisa. Foste tu, minha senhora, que me fizestes assim?

74. O que tem coisificado = reificado o homem? A comunicação em

sua forma instrumental ou o uso do jornalismo, da publicidade, do

marketing, das relações públicas em sua expressão tecnicizante?

Talvez isso seja só mera desculpa. No final das contas talvez o

homem é que esteja coisificando o próprio homem. E nada mais.

75. Era uma vez um homem que vivia montado nas costas de outro

homem. Andava assim todo o dia, de um lado para o outro. O que

ia montado, vivia dizendo para todos: “Oh...Deus, como queria

aliviar o peso deste pobre homem!...”, e completava, “menos

saindo de cima dele”. Às vezes acho, minha senhora, que os

homens são assim, mas que, como não querem admitir que são,

usam o teu nome, Mídia, para aumentar ainda mais o peso de nossas

mazelas.

76. Que dizer da comunicação que não tem sabedoria o suficiente

para superar as suas mazelas?

77. Toda técnica, em sua forma mais elevada, redunda em arte.

Toda arte exige uma técnica e não existe elevada arte que não

possua em si apurada técnica. Arte vem do grego Techné =

conhecer-se no próprio ato de produzir = Poiesis.

78. Assim é a comunicação em sua forma mais elevada: arte. O

mesmo que filosofia espiritual. Enquanto filosofia espiritual, o

fundamento da comunicação e das relações sociais é o amor. E o

amor faz nascer e manter os vínculos elementares e supra-sensíveis.

O conceito de amor de Humberto Maturana vale como um conceito

possível para a comunicação. ―Encaixe dinâmico recíproco

espontâneo que acontece ou não acontece e só acontece quando

acontece‖. Em Maturana, o amor é ―congruência estrutural‖,

coordenação de coordenação de linguagem. Nasce com ele uma

Teoria da Comunicação.40

79. Queria pensar uma Teoria da Comunicação extraída dos

elementos da natureza. João José Curvello, quando as águas de

março deixavam o verão, falou de uma escola de pensamento assim,

chamou ―Escola de Águas Claras‖, em referência a um locus,

obviamente, mas também em relação à necessidade dela apreender

algo sobre a fluidez de seu conceito, diria até, necessidade

existencial e técnica, por um lado e inacessibilidade determinada de

forma, porque múltipla e variada, por outro. Um conceito assim nos

ensina muito. Turva, fluída e móvel, a comunicação só funciona se

se emenda aos fluxos, sejam eles sociais ou não. ―Águas

emendadas‖, a comunicação corre em direção ao mar. Qual o seu

mar? A totalidade.

80. Símbolo da eficácia no oriente, a água é o que está por toda a

parte, no vento, na terra, nas nuvens e no corpo do homem. A água

é como a comunicação: uma encruzilhada onde as linhas

geográficas e geocognitivas se encontram. A comunicação é um

espaço-escola aberto que abraça direções e jornadas diversas e

adversas. Penso agora porque as escolas de pensamento ganham

nomes de lugares: escola de Frankfurt, de Chicago, de Viena, de

Palo Alto, de Birmighan, de Perdizes, de Águas Claras... Deve ser,

como diz Heidegger, pelo fato de que o lugar determina a co-

locação. A fala cantada a partir de Águas Claras então, canta o

mergulho nos elementos primeiros da comunicação: a filosofia, a

arte, o encontro: uma volta filosófica e poética a uma comunicação

como conjunto dos saberes inter-relacionais, mas também o

despertar para as essências veladas dos níveis de contato humano e

supra-humano. Esse inter da comunicação é o contato entre

intimidades, sejam elas racionais e/ou sensíveis.

81. Chico Lucas nunca saiu de sua aldeia. Nunca leu Benjamim

nem Adorno e muito menos ouviu falar em Bourdieu. Mas sabe

teoria da comunicação como ninguém. Aprendeu a ler o tempo, o

espaço, o coração dos homens. Aprendeu a ler os olhos do povo,

como diz. Durante a seara e o plantio, nos campos tristes e secos do

Rio Grande do Norte, ele conta histórias para os camponeses

enquanto eles colhem ou semeiam. Uma dessas histórias ficou na

minha memória. ―Caminhava no mato quando, dizia ele, vi duas

cobras brigando. Era algo assustador. Uma cena Terrível. De

repente, uma mordeu o rabo da outra e ambas começaram a se

comer. Vagarosamente, foram se comendo. Até que, quando uma

chegou bem perto da cabeça da outra, aprontaram o bote final.

Abriram bem a boca e, num lance, se engoliram de uma só vez.

Nesse momento, desapareceram no ar...‖. Alguém que estava

ouvindo perguntou: ―Mas Chico, como isso pôde acontecer?‖E ele:

―Não sei, só sei que foi assim‖.41

82. Às vezes acho que a comunicação é pura continuidade: cobra

que engole o próprio rabo. Fim e recomeço em si mesmo. Às vezes

acho que a comunicação é como uma contenda de significados, dois

entendimentos ‗brigando‘ entre si, um alimentando-se do outro,

incessantemente.

83. Um alimenta o outro. Mas não é isso o que é o amor? O amor é

como a comunicação, tem muitos nomes. Há o amor que suga

(Pornéia); o amor que é harmonia (Storgué) o que nos dá asas e

estimula nosso libido (Eros); o que é dom, devotamento (Ennóia), o

que é gratidão (Kharis), o que é amor que partilha do alimento vital

(Ágape); o amor que é amigo da sabedoria (Philia). ―Amar a partir

da nossa plenitude e não da nossa carência‖, diz Leloup. Se

comunicar também.

84. Amizade

Quando o silêncio a dois não se torna incômodo.

Amor

Quando o silêncio a dois se torna cômodo.

(Mário Quintana)

85. Conheço uma mulher que todas as vezes que viaja para o litoral

traz água do mar para o seu amor. É que o seu amor é filho de

Iemanjá e edificou para a deusa um pequeno altar onde oferta

conchas marinhas e água salgada. Portadora de águas oceânicas, ela

sabe que esta pequena oferenda alimenta mesmo um ‗mar adentro‘.

86. A verdadeira comunicação se faz com sutilezas. Pena que

tenham esquecido a poesia e o amor nas teorias da comunicação.

Nessas teorias, há muita ‗massa‘ e pouco homem. Há muita palavra

e pouco silêncio. Há muitas certezas e poucas dúvidas. Para lidar

com o conhecimento e a comunicação e, principalmente, para fazer

pesquisa científica, partir da dúvida.

87. É preciso que eu, incessantemente, mergulhe na água da

dúvida.

(Wittgenstein)

88. A água me ensina sobre a dúvida da linguagem e do viver. Uma

vez, aos dezoito anos, considerei-me morto, afogado sob o mar.

Havia tomado umas cervejas a mais e entrei na praia. Nadei até o

fundo, aventurosamente. Depois parei, boiei, curti o céu... Quando

tentei voltar descobri que havia uma correnteza contrária, a maré

estava secando. Quanto mais eu nadava menos saía do lugar. Logo

fiquei cansado. Não tinha mais forças, havia engolido água salgada,

o que torna nosso corpo pesado. Parei e senti que meu corpo

começava a afundar. Distante da praia, vi minhas esperanças irem

embora. Afundei. E, quando cheguei ao fundo, tomei pé e subi,

alavancando-me. Ao chegar na superfície, punha a cabeça para fora

d‘água e respirava um pouco, e logo afundava novamente... Fiquei

nesse lento iô-iô, subindo e descendo por muito tempo. Foi quando

senti que ia morrer. Por longos minutos, considerei-me partindo...

Lembro-me dos meus pensamentos ali: ―estou morrendo!...mas eu

não queria...tenho tanto ainda por fazer...‖, pensei. Toda a minha

curta vida passou como um relâmpago, um filme diante de mim. Foi

quando, ao subir, talvez uma última vez, uma mão agarrou-me, era

um surfista. Ele disse: ―ei, cara, você está morrendo‖. Eu não

conseguia mais falar, nem os olhos abriam direito. Ele tomou meu

corpo, me fez abraçar a prancha e me empurrou na onda que se

seguiu. De onda em onda, cheguei na praia. Lembro-me de ter

beijado a areia. Lembro-me do vulto do surfista se aproximando

para pegar a prancha. Lembro-me tentando – mas sem forças –

agradecer a ele. Lembro-me que a água me fez pensar muito sobre o

que é não ter certezas sobre o destino. É por isso que até hoje

acalento em mim mortes ao meu fluído e incerto viver...

89. Tão frenético anda o mar

que não se ouviria o morto

bater a porta e chamar...

(Cecília Meireles)42

90. No pensamento e na ciência, às vezes até na vida, é melhor ter

dúvidas. Gustave Flaubert, diz Juremir Machado, é o modelo de

intelectual que privilegia a dúvida à certeza. ―Sabe que em cada

verdade habita a possibilidade do não. A certeza gera um sistema

autocomplacente que parte da suposta compreensão superior da

existência e termina na mediocrização da vida‖.43

91. Também traímos a água

A chuva não se reparte para isso,

o rio não corre para isso,

o charco não se detém para isso,

o mar não é presença para isso.

Outra vezes perdemos a mensagem,

as vocais abertas

da linguagem da água,

sua inaudita transparência palpável.

Nem sequer sabemos

beber a transparência.

beber algo é aprendê-lo.

E aprender a transparência é o começo

de aprender o invisível.

(Roberto Juarroz)44

92. Passa-se com a alma algo semelhante ao que acontece à água:

flui. Hoje está um rio. Amanhã estará mar. A água toma a forma do

recipiente. Dentro de uma garrafa parece uma garrafa. Porém, não

é uma garrafa. Eulálio será sempre Eulálio, que encarne (em

carne), quer em peixe. Vem-me à memória a imagem a preto e

branco de Martin Luther King discussando à multidão: “eu tive um

sonho”. Ele deveria ter dito antes: “eu fiz um sonhos”. Há alguma

diferença, pensando bem, entre ter um sonho e fazer um sonho.

Eu fiz um sonho. (José Eduardo Agualusa)45

parte II – fogo

o guardador de chamas

1. Da água dos pensamentos ao fogo do coração. Na comunicação,

deixamos de lado a comunicação com o lado de lá. Apesar da

palavra mídia = médium, separamos as coisas. E as coisas não se

separam. Todos somos mediadores entre algo e algo. Quiçá

fôssemos entre o Algo e outro alguém.46

2. Todas as vezes que acendo uma vela sou levado a querer proteger

a chama contra o vento. Ponho as mãos ao redor para que ela não se

apague. Para que a fragilidade não se perca. Às vezes, tenho

vontade de fazer o mesmo com a comunicação, que a qualquer

sopro, se perde. Torna-se imposição, coerção, informação

autoritária, arrogância.

3. O espírito sempre foi associado à chama. A sarça ardente, em

Moisés, as carruagens de fogo, de Elias, as labaredas do Espírito

Santo, no Ato dos Apóstolos. O espírito é a linguagem da luz. A

comunicação é a resposta do mundo.

4. Ouço a expressão popular: ―Você se queima pela língua‖. E

penso nas línguas de fogo do Pentecostes. Penso também nos

dragões. Cada ser à sua maneira, o homem, o espírito e os dragões,

possuem brasas na boca. Agora entendo porque as palavras

aquecem, destroem, infundem vida. Será por isso que a palavra

‗chama‘ é tão próxima da palavra ‗chamar‘?

5. Temos uma chama acesa dentro da boca: a língua. Na cor e na

forma, a imagem de uma chama.

6. As línguas são o melhor espelho do espírito humano.47

(Leibniz)

7. Língua, nome, palavra... o homem tem encontrado muitas formas

de encaixotar o sentido do mundo dentro de compartimentos e

classificações. Por que será que os nomes não são todos os mesmos

em todas as línguas? Na verdade, não conseguimos nos livrar do

mito de Babel. Instituída a polifonia, agora a palavra tem de alçar –

e se contentar – com torres humanas.

8. O nome: esses olhos e ouvidos de todas as coisas. O nome tem

também boca, tato, paladar. Tatua uma inscrição ora tribal ora

moderna na língua de todos nós. Torna-se um corpo a parte, uma

pele a parte, sobre nossa epiderme. Roberto Juarroz, num verso sem

título, canta o seguinte:

Palavra: esse corpo para tudo.

Palavra: esses olhos abertos.48

9. SÓCRATES: Não estás contente com o fato de que o nome seja

definido como uma representação do objeto?

CRÁTILO: Estou.49

SÓCRATES: E o fato de dizermos que, entre os nomes, uns foram

compostos com o auxílio de nomes mais antigos, e outros são

primitivos, não te parece certo?

CRÁTILO: Parece.

SÓCRATES: Mas, se os nomes primitivos devem ser

representações, tens uma melhor forma de torná-los representações

do que torná-los tão similares quanto possível aos objetos que

devem representar? Ou ficas mais satisfeito com a explicação, dada

por Hermógenes e muitos outros, de que os nomes são convenções e

que representam os objetos para aqueles que disso convieram e que

conheciam os objetos antes? Admites que a correção de um nome

consiste nessa convenção, e que essa convenção pode de forma

indiferente ser estabelecida como a vemos estabelecida, ou, ao

contrário, que é indiferente chamar de grande o que chamamos de

pequeno e de pequeno o que chamamos de grande? Qual desses

dois modos preferes?50

CRÁTILO: Em todo caso, Sócrates, uma imitação similar é

preferível do que qualquer outro meio para representar aquilo que

se representa.

SÓCRATES: Tens razão. Portanto, para que o nome seja similar ao

objeto, os elementos de que se constituirá o nome primitivo devem,

por necessidade, ser naturalmente similares aos objetos? (...) Ora

esses elementos são as letras?

CRÁTILO: Sim.

SÓCRATES: Pensas que temos razão em dizer que o “r” tem

semelhança com o alento, o movimento e a dureza?

CRÁTILO: Penso que sim.

SÓCRATES: E o “l” com o liso, o doce e as outras propriedades de

que falávamos ainda agora?

CRÁTILO: Sim, na minha opinião.

SÓCRATES: Ora sabes que para a mesma noção nós dizemos

sklêrotês (dureza), e as pessoas de Eretria sklêrotêr?

CRÁTILO: Perfeitamente.

SÓCRATES: O “r” e o “s” se parecem então tanto, um com o

outro? A mesma noção é representada por nós com o “s” final e

por eles com o “r”, ou não o é em um dos casos?

CRÁTILO: É sim, em ambos os casos.

SÓCRATES: Enquanto o “r” e o “s” são similares ou enquanto

não o são?

CRÁTILO: Enquanto são similares.

SÓCRATES: São similares em todo lugar?

CRÁTILO: São, ao menos, talvez, para a representação da

mobilidade.

SÓCRATES: E é também assim com o “l” colocado no nome? Ele

não expressa, ao contrário, a dureza?

CRÁTILO: Talvez ele não esteja no lugar certo, Sócrates. Como no

caso que citavas ainda agora para Hermógenes, retirando e

inserindo as letras em seus lugares – e justamente, a meu ver – aqui

também deve-se substituir o “r”pelo “l”.

SÓCRATES: Tens razão, Mas como! Com a pronúncia atual não

nos compreendemos um e outro quando dizemos sklêros (duro), e tu

mesmo não sabes neste exato momento de que estou falando?

CRÁTILO: Sei, pelo uso, meu caro amigo.

SÓCRATES: Mas ao falar em uso, pensas que estás falando outra

coisa senão na convenção? Por uso, não estás querendo dizer que

eu, ao articular essa palavra, tenho essa coisa em mente, e que tu

reconheces que é essa coisa que tenho em mente? Não é esse teu

pensamento?

CRÁTILO: É

SÓCRATES: Conseqüentemente, se a reconheces quando a

articulo, obténs de mim uma representação?

CRÁTILO: É.

SÓCRATES: E com o auxílio de algo que não se parece com o que

tenho em mente quando a articulo, já que o “l” não é em nada

similar com a dureza (sklêrotês) de que falas. Mas, se assim for,

não é verdade que tu convéns contigo mesmo e que a correção da

palavra se tornará para ti uma convenção, já que as letras

similares e não similares são igualmente expressivas, uma vez

admitidas pelo uso e a convenção? Mesmo que o uso não tenha

absolutamente nada de convenção, não é mais a semelhança que

teremos razão de definir como meio de representação, mas o uso.

Pois este faz uso tanto do similar como do dissimilar para

representar. E, como estamos de acordo Crátilo – pois, tomarei teu

silêncio por um consentimento – a convenção, qualquer que seja, e

o uso devem necessariamente contribuir para a representação

daquilo que temos em mente ao falarmos. Tomemos, se quiseres,

Crátilo, o número como exemplo. Como pensas poder aplicar a

cada um dos números em particular nomes que se pareçam com

eles, se não atribuíres à tua concordância e convenção uma

autoridade decisiva no que diz respeito à correção dos nomes? Eu

também, gosto que os nomes sejam tão parecidos quanto possível

com os objetos: mas temo que, na realidade, seja aqui necessário,

para retomar a palavra de Hermógenes, atirar laboriosamente

sobre a semelhança, e que sejamos forçados a recorrer novamente,

para a correção dos nomes, a esse grosseiro expediente que é a

convenção. Ou seja, a mais bela maneira possível de falar

consistiria provavelmente em empregar nomes que fossem todos, ou

na maioria, semelhantes aos objetos, ou seja apropriados; e a mais

feia, no caso contrário.

10. Comparadas entre si, as diversas línguas mostram que não se

chega nunca à verdade pelas palavras, nem mesmo a uma

expressão adequada: do contrário, não haveria tantas línguas. A

“coisa em si” (seria justamente a pura verdade sem

conseqüências), até para aquele que fabrica as línguas, é

completamente inabarcável e não vale os esforços exigidos. Ele

somente designa as relações entre as coisas e os homens e recorre

para expressá-las ao auxílio das metáforas as mais ousadas.

Transpor primeiro uma excitação nervosa em imagem! Primeira

metáfora. A imagem novamente transformada em som articulado!

Segunda metáfora. E todas as vezes, pulo completo de uma esfera

para outra esfera, diferente e totalmente nova. Pode-se imaginar

um homem completamente surdo que nunca tenha tido nenhuma

sensação sonora nem musical: da mesma forma como se espanta

com as figuras acústicas de Chladni (1) na areia, encontra sua

causa no tremido das cordas e, em função disso, jura saber o que

os homens chamam de som, da mesma forma acontece conosco com

relação à linguagem. Acreditamos que sabemos algo sobre as

coisas em si quando falamos em árvores, cores, neve e flores e no

entanto não possuímos nada além de metáforas para as coisas, que

não correspondem em nada às entidades originais. Como o som

enquanto figura de areia, o X enigmático da coisa em si é tido

primeiro como excitação nervosa, depois como imagem, finalmente

como som articulado. Em todo caso, não é de forma lógica que

procede o nascimento da linguagem e, se todo o material dentro do

qual e a partir do qual o homem da verdade, o sábio, o filósofo,

trabalha e depois constrói, não provém de nenhum lugar, também

não provém de forma alguma da essência das coisas.

(Nietzsche)51

11. “É uma glória para ti!”

“Não estou entendendo o que queres dizer com glória”, respondeu

Alice. Humpty Dumpty sorriu com ar de desdém. “Naturalmente

que não sabes, enquanto eu não te disser. Eu quis dizer: é um

argumento decisivo para ti!”

“Mas „glória‟ não significa „argumento decisivo‟”, retrucou Alice.

“Quando utilizo uma palavra”, declarou Humpty Dumpty com

gravidade, “ela significaexatamente aquilo que decidi que ela

significaria – sem mais, nem menos”.

“Mas o problema”, disse Alice, “é saber se podes fazer com que as

palavras signifiquem coisas diferentes”.

“O problema”, disse Humpty Dumpty, “é saber quem é que manda,

só isso!”.

(Lewis Caroll)52

12. O nome parece sempre precisar de alguém para anunciá-lo. Ele

parece não saber pronunciar a si mesmo. Por isso é ao mesmo

tempo virtude e defeito proverbial. É extravagante, mas segue

regras. O extravagante por sua vez se torna habitual, mas não há

motivo para crer que se torne vulgar ou ordinário. Os nomes

fotografam figuras espaciais e imaginais. São objetivos e

necessários, parecem casuais e despersonalizados, mas possuem

algo de inconfundível, de raro, talvez até de magnífico. Os nomes

conseguem investigar e descobrir coisas. Aprisionam palavras, são

cômicos e possuem falas, crescem, possuem espelhos, são

numerosos, impossíveis de contar. São de espécies: os que nos

acompanham e os que encontramos ao passar pelos mais variados

espaços. O nome dá forma a tudo o que contém. Os nomes trazem

consigo fragmentos, figuras, mas também ocultam e obscurecem os

mesmos. Estão fechados em torno de si. Têm uma história

atribulada; decaem e reflorescem, repovoam-se, adequam-se às

exigências; são estranhos, incongruentes, usurpadores, velozes,

adaptam-se. Reconstroem coisas, mudam com o costume e as

populações, sofrem deteriorações, são compactos como um ser

vivo. Possuem respiração, odor. Perdeu-se a ordem de seu

seqüenciamento. Podem ter significado uma coisa antes e, hoje,

significar outra. Possuem história.

13. O nome gosta de andar encangado com outro. A regra é sempre

misturá-los e tentar recolocá-los num lugar. O nome também possui

música, explosão, incêndio, alarido. O nome magnetiza os olhares e

os pensamentos. Visto de dentro é uma cidade. Mas o nome muda à

medida que dele se aproxima. É distante, é variado e diz muitas

coisas, de maneiras diferentes.

14. Acredito que nós temos mais idéias do que palavras. Quantas

coisas sentidas que não são nomeadas! Tem um sem número dessas

coisas na moral, na poesia, nas belas-artes. Confesso que eu nunca

soube dizer o que senti na Andrienne de Térence, nem na Vênus de

Médicis. Talvez seja a razão pela qual essas obras sempre me são

novas. Não se retém quase nada sem o recurso das palavras e as

palavras quase nunca bastam para dizer com precisão aquilo que

sentimos.

(Denis Diderot)53

15. A arte pode dizer talvez com precisão aquilo que sentimos. É

por isso que arte e gosto podem ser definidos pelo nome de

sensibilidade.

16. Quando, na alma, desperta-se verdadeiramente o sentimento de

que a língua não é um mero instrumento de comunicação visando à

compreensão recíproca, mas um verdadeiro mundo que o espírito,

pelo aprimoramento interior de sua própria força, deve

necessariamente colocar entre si e os objetos, então a alma está no

verdadeiro caminho de ter sempre algo mais a encontrar na língua

e de sempre colocar nela algo mais.

(Wilhelm von Humboldt)54

17. Seguirei eliminando as palavras más que pus em meu todo,

ainda que meu todo fique sem palavras.

(Antonio Porchia)

18. O papel do ferreiro junto ao fogo, forjando a liga de metal,

técnico de instrumentos para o homem, lembra algum tipo de

comunicador, certos técnicos dos ofício de forjar realidades, e fazer

a ligação entre o homem e o mundo. Meio Hefestos, ele guarda nas

profundezas os mistérios do que forja, a mística da transformação.

19. Há certamente algo inexpressível. Ele se mostra, é o elemento

místico. Aquilo que não se pode falar deve-se calar.

(L. Wittgenstein)55

20. Apagar uma chama me deslumbra mais que acendê-la.

(Roberto Juarroz)56

21. O homem, ponto luminoso de sua própria noite, quando quer apagá-la, se

extingue.

(Antonio Porchia)57

22. Atiço em mim uma chama... O meu coração é o lar onde mora a

comunicação. A boca fala o que o coração sente. Como o fogo, a

comunicação é o motor da regeneração periódica. Deve ser por isso

que a palavra ‗fogo‘ e a palavra ‗pureza‘ têm o mesmo nome em

sânscrito: porque as chamas têm a capacidade de levar todas as

coisas a seu estado sutil.58

23. Fogo interior, conhecimento penetrante, iluminação. As chamas

buscam sempre o alto, enquanto busca. A comunicação por sua vez

busca todos os horizontes: o alto, o baixo, os lados, o dentro. A

comunicação é como o sol: atiça seu calor em todas as direções. A

comunicação: ou é penetração ou absorção ou destruição. São essas

três naturezas da comunicação a luz do fogo.

24. A comunicação pela poesia e pelo coração. Coração em chamas: calor

humano, simpatia, amor à natureza, alegria. Proponho uma nova e uma velha

teoria da comunicação: o mundo como poema. Em que o seu sistema é a

palavra poética tornada ação concreta na vida, com vistas à sabedoria ou a uma

ética espiritual. Proponho a comunicosofia: a prática de viver o mundo como

poema vertical.

25. Penetra surdamente no reino das palavras....

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

(Carlos Drummond de Andrade)

26. Onde nasce a comunicação? Primeiro, ou veio o caos, ou o silêncio, ou um

leve ruído musical, ou o vazio... A força da linguagem reside nos ‗ocos‘ da

linguagem. Primeiro, creio, veio o silêncio-poema, depois a prosa-palavra.

Reside aqui uma ontologia da comunicação. A palavra tem esse poder

misterioso de transformar o que não existe em realidade e de dar aparência de

irrealidade ao que realmente existe.

27. Como é possível que a linguagem tenha tamanho poder mistificador? E, ao

mesmo tempo, como é possível que, em todas as culturas, na relação entre os

homens e as divindades, entre o profano e o sagrado, o papel fundamental de

revelação da verdade seja sempre dado à linguagem, à palavra sagrada e

verdadeira que os deuses dizem aos homens? Como uma mesma coisa – a

palavra, o discurso – pode ser origem, ao mesmo tempo, da verdade e da

falsidade? Como a linguagem pode mostrar e esconder?

(Marilena Chauí) 59

28. O mundo é um poema que se declama sem cessar. Poema terrificante,

destruidor. Poema em forma de prosa; prosa vazia; vazio de pensamentos e

sensibilidades. O mundo é um poema escrito e guardado. Poema oculto, mágico,

encantador. Poema vertical que revela ao homem-mundo, ao mundo-homem, a

chama que ele é.

29. Heráclito comparava o mundo à chama de uma vela que queima sem cessar.

Transformando a cera em fogo, o fogo em fumaça, a fumaça em ar, o ar em

vida, a vida em morte, o mundo nunca pára de poemar. O dia se torna noite, o

verão vira primavera, o quente esfria, o úmido seca, tudo se transforma no seu

contrário, num fluxo perpétuo.

30. A palavra tem mil faces, disse Drummond, assim como a comunicação.

Pharmakon, em o Fedro de Platão, que significa farmácia, poção, diz que a

linguagem é remédio, veneno e cosmético. Remédio porque através do diálogo,

do conhecimento, conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender com os

outros. É veneno quando, pela sedução das palavras, nos faz aceitar fascinados,

o que vimos ou lemos. É cosmético quando maquia – para o bem e para o mal –

a realidade.60

31. Dizem que a comunicação tem mil e uma utilidades. Se tem mesmo, não

usa nem dez por cento delas. Centrou seu universo na mídia de massa e

esqueceu do resto. A comunicação é uma porta aberta por onde o mundo passa.

Mas quase não passa ninguém. A maioria acaba vendo o mundo da janela-da-

televisão. E o mundo não passa na televisão, no rádio, no jornal... O mundo não

passa. Nós é que passamos. Para que serve tanta mídia-de-massa, afinal? Estar

mais informado é o mesmo que ser compreensivo?61

32. Que faremos destes jornais, com telegramas, notícias,

anúncios, fotografias, opiniões...?

Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra:

e o sol empalidece suas letras infinitas.

Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?

Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.

De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa;

de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.

Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:

“os jornais servem para fazer embrulhos”.

E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.

(Cecília Meireles)62

33. Ao ver o mundo passar pela janela, o homem empobreceu a

experiência. Parece que viramos, com a tv, definitivamente,

sedentários. Deixamos de ir-e-vir. E o ir-e-vir é a própria

comunicação. Ir ao deserto ou à floresta ou a um museu não é o

mesmo que ver pela televisão. Vir conhecer gentes, contar e ouvir

histórias, vivenciar realidades, experimentar a vida deixou de ser

prazer, aventura. Perdemos com a experiência, nos tornamos mais

pobres.63

34. Releio o poema Jornal, Longe, de Cecília Meireles. Ela bem

que poderia ter dito: ―que faremos com a mídia‖, observaria ela lá

na terceira estrofe, ―longe do mundo e dos homens?‖. Este recado

de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.

35. Para expressar-se, o poema do mundo exige uma linguagem. De

forma simples, podemos dizer que ―a linguagem é um sistema de

signos ou sinais usados para indicar coisas, para a comunicação

entre pessoas e para a expressão de idéias, valores e sentimentos‖.

Como capacidade de expressão dos seres humanos e dos animais,

ela é natural. Os homens nascem com uma capacidade

(aparelhagem) física, anatômica, nervosa e cerebral que lhes

permite expressarem-se por palavras, mas as línguas são

convencionais. Surgem das condições históricas, geográficas,

econômicas e políticas. São fatos culturais.64

36. Temos também as perturbações na linguagem: afasia, agrafia,

surdez verbal e cegueira verbal. A afasia é a incapacidade para usar

e compreender a palavra; a agrafia é a incapacidade para escrever

ou escrever determinadas palavras; a surdez verbal é ouvir palavras

sem conseguir compreender, e a cegueira verbal é ler sem conseguir

entender.

37. Pra que falar?

Mas, para que calar?

Não existe ouvido para nossa palavra.

Mas tampouco há ouvido para nosso silêncio.

Ambos se alimentam unicamente entre si.

E às vezes intercambiam suas zonas,

como se quisessem amparar-se mutuamente.

(Roberto Juarroz)

38. São quantas as faces da linguagem? Os gregos, para referir-se a

ela tinham duas palavras: mythos e logos. Mythos é a palavra

ficcional, mítica, mágica, religiosa, artística. Logos é a palavra

técnica, conceitual, causal, metódica, demonstrativa, científica.

Lemos em Chauí: ―Logos é uma palavra síntese de três idéias:

fala/palavra; pensamento/idéia e realidade/ser. Logos é a palavra

racional do conhecimento do real. É discurso (ou seja, argumento e

prova), pensamento (ou seja, raciocínio e demonstração) e realidade

(ou seja, nexos e ligações universais entre os seres). É a palavra-

pensamento compartilhada: diálogo; é a palavra-pensamento

verdadeira: lógica; é a palavra-conhecimento de alguma coisa: o

‗logia‘‖. O poder da palavra desenvolve o conhecimento racional e

forma os conceitos e idéias.

39. As palavras como os cristais têm faces e gêneros de rotações

com propriedades diversas, e as luzes se refrangem segundo os

cristais-palavras são orientados, segundo as lâminas e as

polaridades são talhadas e sobrepostas.

(Ítalo Calvino)

40. Vivemos num tempo em que as múltiplas faces da palavra são

cada vez mais exploradas, todas as nuances, os prismas, os pontos

de vistas. Fala-se na televisão, no celular, no rádio, nas ruas. Há um

excesso de falas e ainda assim nem todos têm direito à palavra. O

que está acontecendo? O que houve com a comunicação? 41. Que tempos são estes

em que uma conversa é quase um delito,

porque estamos rodeados

de tantas coisas ditas?

(Francis Ponge)

42. A palavra, a falada, mas sobretudo a escrita, pode ser um perigo

para o homem e a memória. Essa era a advertência de Platão, em o

Fedro. Sócrates narra ao discípulo a visita de Thoth, o deus das

invenções a Thamus, rei do Egito, (Thoth é o mesmo Hermes para

os gregos). Dentre as suas invenções, expõe a escrita, apresentando

ao rei as suas vantagens. Thoth fala sobre a escrita como uma

receita segura para a memória e a sabedoria dos egípcios. O faraó

posiciona-se contrário à invenção, argumentando entre outras coisas

a diferença entre mnemose (memória) e anamnese (recordação). A

escrita, como toda tecnologia, tem suas vantagens e desvantagens.

43. Thoth, meu exemplo de inventor, o descobridor de uma arte não é o melhor juiz para avaliar o bem ou o dano que ela causará naqueles que a pratiquem. Portanto, você, que é pai da escrita, por afeição ao seu rebento,

atribui-lhe o oposto de sua verdadeira função. Aqueles que a

adquirem vão parar de exercitar a memória e se tornarão

esquecidos; confiarão na escrita para trazer coisas à sua

lembrança por sinais externos, em vez de fazê-lo por meio de seus

recursos internos. O que você descobriu é a receita para a

recordação, não para a memória ...

(Platão)

44. Mas nem só de deuses vive a comunicação. Devemos lembrar

também os demônios. O demônio da comunicação é Astharoth. A

ele foi dado pela Divindade a missão de ser o canal de comunicação

entre os homens e os demônios, por isso todos os tratados de

demonologia o descrevem como solícito, educado, gentil e sábio.

Tem como símbolo, uma espada voltada para baixo, como sinal de

justiça que se faz presente, enquanto seu irmão, Asmodeo, tem a

espada voltada para cima, como símbolo da justiça executora.

45. Astharoth é andrógino. Sua face feminina é Astarte, a masculina é Astharoth

esmo. É o único demônio que possuí o Asth em seu nome, prefixo de astral. Foi

conhecido na antiguidade como Dogon, cultuado na Síria Salomão ergueu um

templo em sua homenagem. Esse demônio participa com Hermes e Thot de

uma mesma identidade energético-comunicativa, só que do lado oposto. Ele é,

como dissemos, canal por excelência para os homens de todos os

conhecimentos, divinos e diabólicos, por isso mesmo é sedutor. Seu dia é 16 de

agosto.

46. Para compreender os efeitos maléficos da mídia de massa, deveríamos

entender melhor as ações dos demônios? Não se trata de diabolizar a mídia. Não

mesmo? Trata-se apenas de entender que a mídia tem muito a ensinar aos

demônios. Ou será o inverso?

47. A luz do écran, a voz do telefone, a notícia ―quente‖ do jornal, a última

campanha da Coca, etc, são fogos que aquecem a alma solitária do homem. São

mais do que isso, na verdade, são distrações, companhias, sortilégios. Não dá

mais para ficar sem. Não dá mesmo? Desde 1998 não vejo mais televisão

sistematicamente. O que aconteceu comigo? Não me senti desinformado em

nada, nem das novelas. Consegui dedicar muito mais tempo às minhas leituras,

ao cinema, ao teatro, a música e, principalmente, a mim mesmo. Para isso, me

liguei em todos os canais da existência, vi que cada coisa guarda uma

mensagem, um sussurro, uma notícia.

48. Cada coisa é uma mensagem,

um pulso que mostra,

uma escotilha vazia.

Mas entre as mensagens das coisas

vão-se desenhando outras mensagens,

ali no intervalo,

entre uma coisa e outra,

conformados por elas e sem elas,

como se o que está

decidisse sem querer o estar

daquilo que não está.

Buscar essas mensagens intermediárias,

a forma que se forma entre as formas,

é completar o código.

Ou talvez descobri-lo.

Buscar a rosa

que fica entre as rosas.

Ainda que não sejam rosas.

(R. Juarroz IX,11)

parte III – ar

o colecionador de ventos

1. De todas as forças, o ar talvez seja a que mais me inspira. É que

ouço o vento falando comigo desde criança e, ao longo dos anos,

travamos um diálogo sem fim... Ele me sugere temas, me conta

histórias, me aconselha, me ensina a voar... Uma vez, quando

criança, correndo na praia, uma lufada de vento me nocauteou. Caí

derrubado por ele. Levantei-me da areia pensativo. Desde então,

respeito a leveza, sou esbofeteado por vozes e vazios, abençôo-me

do invisível.65

2. Sinto no ar, o sopro das narrações. Contar histórias é uma forma

de comunicar ao homem a vida humana. Ler e ouvir histórias é uma

singela forma de ser feliz; é isso que alguns chamam de felicidade

literária; aquilo que o mito faz brotar em nós quando é semeado nas

terras do ar: nos vales da imaginação.

3. Em diversas tradições e culturas, a comunicação humana tem

sido associada às divindades e sobretudo, às forças da natureza.

Mitos astecas, gregos, escandinavos, egípcios, latinos, orientais,

africanos, entre outros, dão conta da presença de figuras

responsáveis pelo fluxo de informações entre homens e deuses ou,

de modo mais complexo, entre natureza e cultura.

4. A presença de seres geradores de elos e contatos, promotores de

vínculos, responsáveis por caminhos, revela um papel crucial dessas

divindades no imaginário humano, tendo em conta que o papel

desempenhado por eles, hoje, no estudo das linguagens e da própria

cultura, não nos permite relegar a segundo plano a dimensão

antropocósmica.

5. Levar a comunicação é o mesmo que levar a luz? Prometeu,

espécie de repórter divino, portou e comunicou o fogo ao homem,

por conta disso morre e renasce todos os dias, tendo seu fígado

devorado pelos abutres.

6. Odin faz dos corvos os seus repórteres. Quando ele quer manter-

se informado, manda-os sobre a terra e eles trazem notícias do

tenebroso mundo humano. Repórteres-corvos. Alguém vê nisso

alguma semelhança?

7. A linguagem dos mitos: a velha e a nova gramática da

comunicação. Enquanto conhecimento e narração, os mitos são uma

nova forma de compreender a comunicação.

8. No mundo atual, não é comum aceitar o risco de pensar

conjuntamente antropologia, espiritualidade, ciência e filosofia,

tendo o mito como motor-metáfora do conhecimento. Tal risco é

mesmo um dos desafios postos ao pensamento para o século XXI. O

século XXI, para o prêmio Nobel, Ilya Prigogine, ―ou será espiritual

ou não será nada‖. O espiritual aqui deve ser entendido como

abertura (daisen) antropológica do homem a uma dimensão que,

historicamente, foi dogmatizada e mistificada.66

9. O pensamento não pode mais estar preso a dogmas, sejam eles

acadêmicos, administrativo-empresariais, religiosos ou econômicos.

A ciência, arvorando-se como fiel depositária do pensamento

lógico-conceitual, encastelou-se em paradigmas mecanicistas e em

teorias incomunicáveis, malgrado todos os esforços cognitivos e

ideológicos empenhados na religação dos saberes. O continente das

ciências humanas ao ser desconectado das ciências da natureza

produziu, numa e noutra parte, uma fragmentação disciplinar de

proporções assustadoras. O desafio da religação de saberes consiste,

para o século, no próprio itinerário a que se destina nossa teoria do

conhecimento. O contrário desta hipótese, ou a contínua

parcelarização dessas áreas, só acentuaria o que hoje já é

perceptível, principalmente, nas instituições acadêmicas e culturais:

a fragmentação do conhecimento e sua hiper-especialização.

10. Criticar os efeitos perversos que a cisão entre as culturas

científica e humanista foi capaz de provocar na sociedade e na

cultura requer uma atitude também crítica, mas antes de autocrítica.

A aproximação entre ciência e espiritualidade corresponde, além de

uma busca poética, por facilitar o diálogo transdisciplinar entre

campos, a uma revisão mesmo da epistemologia contemporânea,

―uma reforma de pensamento‖, nos dizeres de Edgar Morin. Requer

uma re-leitura aberta e complexa do conhecimento produzido pelo

conjunto dos saberes planetários.67

11. Constata-se que os sistemas culturais, além de serem

constituídos por padrões, normas, mitos, valores, ordens e imagens,

exibem uma ampla zona obscura antropocósmica que vitaliza

subjetividades nômades, produzindo comunicações dos mais

variados matizes, que retroalimentam explosões imaginais. Tal

constatação nos faz perceber que a presença do mito na

contemporaneidade não é apenas mera figura alegórica.68

12. Infelizmente, o mito deixou de ser visto, até certo ponto, como

fonte de compreensão do humano. Hoje, o mito nos coloca não

apenas o problema do conhecimento metafórico e narrativo – como

uma das vias de entrada ao pensamento científico –, mas o

problema da sabedoria e da abertura antropocósmica. George

Gusdorf já falava da necessidade de restituir através do mito a

―unidade perdida‖ do homem com a natureza. Os mitos, diz ele, são

registros da experiência unitária do homem em sua plenitude.

13. O mito é algo capaz de agir transformadoramente sobre a

realidade humana, impregnando as linguagens, o senso comum, a

sensibilidade, as narrativas, afirmando-se constantemente como

uma conduta de retorno à ordem, princípio equilibrador da psique,

espécie de formulário da reintegração. Alceu Amoroso Lima

adverte que se segue à criação de um mito o surgimento de uma

mística, isto é, o aparecimento de uma ordem implicada (David

Bohn) voltada para o diálogo numinoso e harmonioso com o

mundo, um mergulho radical e profundo nos sentidos e narrações

ocultas que a natureza constantemente nos oferece. Mística aqui

entendida também no sentido de um conjunto aurático de valores e

atitudes.69

14. Com o desenvolvimento da filosofia pós-socrática e, séculos

depois, com a separação do Estado da Igreja e a conseqüente

secularização do pensamento, a consciência reflexiva fez parecer

que havia eliminado de vez a consciência mítica. Edgar Morin irá

dizer que, tentando se livrar do mito, a ciência acabou mitificando a

si mesma. Parafraseando Leszek Kolakowski, a questão hoje é saber

se a sociedade e a cultura podem durar e sobreviver sem se enraizar

no caos organizador do mito. Regis de Moraes vai mais além e

entende que é justamente na consciência mítica que sobrevive, na

cultura e na subjetividade humana, a fonte do sagrado.

15. O sagrado busca devolver o universo cósmico, reunificado por

uma inteligibilidade não racionalista, mas fideísta. Uma nova

intuição mágica reinventa a realidade para grande quantidade de

seres humanos que, ao contrário de passarem a enxergar outro

mundo, enxergam o mesmo mundo de uma forma diferente – a

partir de um ângulo novo.

(Regis de Moraes)70

16. O sagrado só sobrevive entre os que lhe são sensíveis, e para

tanto, exige a reprodução contínua de mitos e ritos que lhe dão

forma no meio sociocultural. Reside no mito, a meu ver, uma

racionalidade ainda pouco explorada. Para além do uso ambíguo

que se faz da palavra, assinalando uma dupla valorização para ela,

ora negativa, ora positiva, ora engano e mistificação, ora

sublimidade e encanto, o mito propicia um deslocamento da razão

para os limites da sabedoria. Uma das maiores aquisições do

pensamento contemporâneo foi a consciência dos limites. Frente à

destruição acelerada dos recursos naturais do planeta, o homem

pouco a pouco vem tematizando sobre a importância da sabedoria.71

17. A sabedoria, cujo coração é mais do que inquieto, foi e é

banalizada por todos os lados. Virou auto-ajuda aqui, holismo

destituído dos princípios de contradição ali, ganha-pão de editoras e

escritores acolá. Entre os gregos antigos, a sabedoria era um

conjunto de regras para uma vida que se poderia chamar sábia. Na

Idade Média, o termo foi vulgarizado pela Igreja Católica,

especialmente a partir do século XV, quando virou sinônimo de

prudência e moderação. Sabemos que, desde o início, a filosofia

grega está ligada à sabedoria, pois, na origem da palavra, aparece o

termo Sofia (sabedoria). Necessária e impossível, a sabedoria,

historicamente, nunca dispensou de sua racionalidade a lógica dos

mitos. Em nenhuma cultura as narrativas – fonte de todas as

sabedorias – foram deixadas de lado ou tidas como dimensão de

uma consciência não-reflexiva. Ao contrário, vista a partir da

cultura, a noção de sabedoria está arraigada nos saberes da tradição,

nos ditos populares, na oralidade, nos contos ancestrais, passados de

pai para filho. Quem arriscaria dizer que não existe sabedoria na

poesia e na filosofia? Deste ponto, o que são elas senão parte de

uma grande narrativa?

18. O filósofo-poeta Heráclito disse: ―Homens que amam a

sabedoria precisam ter muitos conhecimentos‖. E o conhecimento

aqui não é meramente formal, mas sobretudo imaginal. Interessante

notar que homens que amam a sabedoria denota claramente uma

referência aos filósofos. São eles que necessitam ter conhecimentos,

de modo que todo aquele que busca a sabedoria e, por conseguinte,

a ama, é um filósofo. O poeta-filósofo Rimbaud, por sua vez, disse:

―Concluo como sagrada a desordem de meu espírito‖. Ele

compreendeu que na desordem há algo que reorganiza a dimensão

sacra da vida, algo que tira a insipidez mecânica da existência e a

conduz para um patamar mais aventureiro. Espíritos de coração

inquieto como Nietzsche, Hölderlin e Van Gogh, todos eles

partícipes de uma consciência mítica, viveram os limites da própria

razão humana: entre a loucura e a sabedoria.

19. Um dos mitos que ‗governa‘ a noção de sabedoria é o mito de

Hermes (para os gregos) ou Thoth (para os egípcios), isso porque,

para alguns estudiosos, o deus egípcio Thoth possui os mesmos

atributos da figura do Hermes grego, sendo este apenas

representado de outra forma. No Egito, Thoth é representado ora

com as feições de um babuíno, ora com as feições de um íbis, cujo

bico encurvado lembra uma lua crescente. Por esse motivo, ele é, no

Egito, o Deus da Lua. Além disso, Thoth possui muitas outras

atribuições: é senhor da sabedoria porque é o medidor dos tempos,

tem a capacidade de medir os céus, compreendendo as distâncias, os

cursos, as constelações e a influência delas em nossa vida. Por isso,

através do curso das estrelas, ensinou ao homem a astronomia, o

cálculo de medidas e com isso, dizem, inventou a matemática e a

geometria.

20. Em Thoth já podemos ver a intrínseca relação do conhecimento

científico (através do ensinamento das leis que regem a natureza)

com os mitos e a sabedoria. Thoth dialoga com os humanos e lhes

ensina, além disso, como usar os medicamentos, a arte de trabalhar

os metais e sobretudo a arte da música (a ele é atribuída a invenção

da lira de três cordas). A relação desse mito com a racionalidade

humana não pára por aí. Entre os egípcios, existe a crença de que

Thoth compreende todos os mistérios da mente humana, porque foi

ele quem ensinou o homem a pensar; ele conhece todas as

articulações criativas da linguagem. Assim, ensinou os homens a

organizarem os seus pensamentos através da escrita, estruturando

tudo numa linguagem apropriada. A ele é atribuída a invenção de

todas as palavras que existem. A linguagem é um sistema

classificatório e, ao criar os hieróglifos, Thoth propiciou também a

invenção de sistemas de numeração. Como deus da escrita e da

ciência, ele tornou-se, na história egípcia, o senhor de todo o

conhecimento, sendo que, para aquela cultura, o conhecimento não

está dissociado da magia. Ali, todo e qualquer escriba, antes de

redigir qualquer texto, deveria endereçar uma oração ao deus: ―Oh,

Thoth, proteja-me das palavras vãs. Seja tarde minha manhã. Es

uma doce fonte para o viajante sedento no meio do deserto. Ela é

lacrada para o loquaz e aberta para o silencioso‖.

21. Em Roma, também na Antigüidade, as estâncias dedicadas à

contemplação, estudo e leitura nos palácios imperiais eram

denominadas de Hermeum, em homenagem ao deus grego Hermes.

Os velhos sábios descreviam Hermes como o ―coração da luz‖, a

―língua do criador‖, o escriba capaz de redigir as narrações dos

deuses. Na Grécia, ele era representado ora com asas nos pés, ora

com asas na cabeça, ágil e hábil negociador. Hermes sempre me

pareceu o deus das conexões, símbolo da inteligência criativa e

realizadora, capaz de esclarecer, mas também de perverter através

do exercício da mediação, dos vínculos, da comunicação e do

silêncio. Por ser ele o senhor das encruzilhadas, pode conduzir

viajantes e leitores tanto ao caminho da farsa e da ilusão quanto ao

do esclarecimento e da revelação.

22. Deus de olhar claro, observador crítico por excelência, Hermes

é, sabidamente, no panteão grego, o mensageiro dos deuses, o que

lhe valeu o patronato da eloqüência e da comunicação. Conhecido

pela discrição, consegue logo ao alvorecer penetrar os interstícios

da vida humana com sua natureza plástica, mutável, ambígua e leve,

conseguindo ser ao mesmo tempo atraente e complexo. Platão diz

no Crátilo que ele se relaciona ao discurso (logos), que possui

características de intérprete (hermeneus) e de hábil comerciante. Diz

também que ele utiliza as palavras com rara maestria, geralmente

para fazer ficção ou enganar os outros. É ainda um deus ladrão, que

rouba informações e saberes para pô-los em circulação, visto que

todas as suas habilidades relacionam-se, como vemos, ao poder do

discurso.

23. Por dominar a retórica e os diversos tipos de linguagem é que

Hermes valoriza sobretudo o silêncio. É desse modo que ele

desenvolve uma outra capacidade sua: a alquimia. O poder de

transformar por conta própria uma coisa em outra, de subverter a

ordem natural das coisas, para refazê-las artificialmente é um dom

concedido somente a quem possui a pedra filosofal ou, quem sabe,

um modus operandi comunicacional próprio. É no silêncio e na

meditação que ele encontra a justa medida para as suas ações, sejam

elas de encantamento, transmissão, falseamento ou mistificação.

24. A semelhança de Hermes com o universo da comunicação e da

literatura vai além. Ele exerce o papel de guia, que auxilia

navegantes e andarilhos na melhor rota a seguir, engendrando por

isso três funções básicas: narração, explicação e revelação. Tem a

missão de pôr a descoberto, da melhor forma possível, o comércio

de informações que circulam no mundo, nem que para isso tenha de

utilizar-se da astúcia e de subterfúgios.

25. Hermes é mestre em um certo tipo de saber, que podemos

chamar de transdisciplinar, por conseguir intermediar e dialogar

com todos os conhecimentos, sem privilegiar este ou aquele ou,

ainda, especializar-se num único. É ele também quem estabelece os

nós sígnicos com o mundo, quem institui – dirá Italo Calvino – as

relações entre as leis universais e os casos particulares, entre os

deuses e os homens, entre as formas da natureza e as formas da

cultura, entre os objetos do mundo e todos os seres pensantes.

26. Freud, Jung, Marx, Tales, Nietzsche, Spinoza, Vico, Montaigne,

Rousseau, Chardin, Einstein, Newton, Descartes, Bergson, Hegel,

Deleuze, Cioran... ao que parece, não houve pensador que não tenha

utilizado os mitos como fonte de apoio, afirmação, negação ou

crítica à formulação de seus pensamentos. Os mitos estão por todas

as partes, impregnando a racionalidade humana.

27. A busca pelo mito como suporte ou crítica tem razão de ser.

Como são lentes bifocais, os mitos podem ajudar o homem a ver

melhor a realidade que o cerca assim como podem torná-lo mais

míope. Contudo, a meu ver, os homens que buscaram o

conhecimento e a sabedoria não relegaram os mitos a um segundo

plano. A capacidade de interpretação e reinterpretação que um

único mito porta consigo leva por vezes o seu intérprete a

descobertas inesperadas. Os mitos nos ensinam que não existe um

programa de sabedoria, uma fórmula mágica a cumprir, e pronto:

eis o sábio! O que existe é uma busca, um esforço, indícios de que a

sabedoria pode estar nos caminhos da ética, de uma auto-ética ou de

um antropoética. A antropoética implica a aceitação da

sensibilidade, da leveza e da delicadeza como condições primeiras à

sua senda. Exige evitar a baixeza, pulsões vingativas e maldosas,

supõe autocrítica, auto-exame, mito-análise, aceitação da crítica do

outro, aceitação de si, exercício da compreensão.72

28. Se existe um centro na sabedoria, deve orbitar em torno dele um

número exacerbado de virtudes e valores, dos mais variados tipos,

com os mais variados nomes, contando as mais variadas histórias.

Para uns é sábio nada ter, ser desapegado e despreocupado com os

bens materiais; para outros, sábio é moderar bens materiais e

espirituais; para uns, sábio é a capacidade de enfrentar as

dificuldades e superá-las, indo além do que se pensava poder ir,

para outros, é a escolha do difícil, do complexo, porque só por essa

via pode se alcançar a harmonia e a paz; para uns, sábio é a

capacidade de suportar em silêncio as adversidades da vida, para

outros, é a capacidade de ação e resolução dos problemas; para uns,

sábio é nada esperar, para outros sábio é ter esperança; para uns,

sábio é ser asceta, isolar-se do mundo, para outros, sábio é saber se

comunicar, interagir, dialogar, aprender com os outros; para uns,

sábio é reconhecer que nada se sabe, para outros é reconhecer que

nem isso se sabe ao certo; para uns, sábio é seguir o caminho do

meio, para outros, sábio é seguir todos os caminhos...

29. Diz uma antiga história, conhecida de todos, que um jovem

rapaz muito cedo decidiu procurar a sabedoria. Leu todos os livros

que pôde, viajou por todas as vilas que conseguiu, conversou com

todos os mestres do caminho, visitou todos os desertos isolados do

mundo, enfim, experimentou a vida sempre buscando por ela. Onde

chegava, perguntava o que era a sabedoria, onde ela estava, como e

quem a possuía...Passaram-se os anos e, já velho, não havia

encontrado resposta para a sua pergunta. Aquele pobre homem

nunca havia sossegado o seu coração, sempre inquieto, a despeito

de tudo o que havia visto, vivido, lido e ouvido. Um belo dia,

brincando com o seu neto, este lhe perguntou o que era o ―ar‖... O

velho deu uma explicação simples. Disse que o ar era para o homem

o que a água era para o peixe. Estava dentro e fora dele, por todos

lados, alimentando e nutrindo toda a vida, todos os seres, todas as

espécies, fauna e flora. Estava em todas as partes mas ninguém

podia vê-lo. O homem via a água, mas o peixe não. Assim, o

homem não via o ar, mas os deuses sim, podiam ver. Súbito, o

velho homem teve, sozinho, uma luz, e duvidou: talvez a sabedoria

seja assim...73

30. Nunca ouvi um professor meu de jornalismo falar da

necessidade do mito e da sabedoria na comunicação. Talvez porque

ela não seja mesmo necessária. Se for, quais os parâmetros para a

sua constituição? Como estudá-la, compreendê-la, investigá-la?

Para que haja uma comunicosofia primeiro é necessário uma

comunicologia. Para que haja uma comunicologia, primeiro é

necessário estudar o aberto.

31. Acolher o aberto: investigá-lo, abraçá-lo. Para começar,

observar o céu. Mas como é que se observa o céu? Espreitando

todos os ventos, todas as nuvens, todos os tempos? Acolhendo a

totalidade? Pesquisar é aceitar a abertura, a busca, a ignorância de

quem procura, no fundo, pelo que não sabe. E é desse não saber que

nasce o conhecimento.

32. Quem investiga não sabe, tateia, dá um jeito, hesita, mantém as

suas próprias escolhas abertas. Temos de ser como o passarinho que

investiga o céu em busca do azul perfeito. Quem pesquisa, deve ter

uma inquietude de passarinho. Pesquisar é uma forma de construir

mergulhos e sobrevôos.

33. Na Babilônia, por volta de 1800 a C. havia os daglil-issure ou

os ―observadores de pássaros‖. Eram especialistas na arte de

predizer o futuro a partir do comportamento das aves. No Nordeste

do Brasil tem o vem-vem, pássaro que anuncia pelo canto, chegadas

e partidas. É assim que é a investigação, um pássaro: sobrevôos e

mergulhos profundos nas camadas do objeto e da existência.

34. Para construir a famosa biblioteca de Alexandria, Ptolomeu

espalhou pesquisadores por todo o mundo conhecido. Pediu que

esses pesquisadores trouxessem das terras distantes, cópias e livros

das principais obras conhecidas da humanidade. Conseguiu assim,

com esse esforço, construir um dos maiores templos do saber da

Antigüidade. Propiciar o saber e a arte é uma forma de facilitar a

concórdia, mas sobretudo, a elevação espiritual do homem.

35. Para construir um saber, partimos de um não saber. Dúvidas,

incertezas, inquietações, curiosidades promovem a busca e a

construção.

36. ...sem dúvida, jamais saberemos

donde nos vem o Saber,

por muitos que sejam as fontes possíveis:

ver, ouvir ou observar;

falar, sustentar, contradizer;

contrafazer, imitar, desejar, odiar, amar;

ter medo e defender-se,

aventurar-se, arriscar, apostar,

viver e trabalhar juntos ou separados,

querer dominar por posse ou predomínio,

aliviar a dor, tratar as doenças

ou matar por assassínio ou guerra;

ficar espantado perante a morte,

orar até ao êxtase;

fabricar com as próprias mãos,

cuidar da terra ou destruir...

37. O conhecimento difere da informação; a informação difere do

saber; o saber difere da sabedoria e a sabedoria do conhecimento.

38. O conhecimento é um fenômeno multidimensional que

comporta competência, aptidão para produzir conhecimento,

atividade cognitiva e um saber resultante dessa atividade. É

simultaneamente físico, biológico, cerebral, mental, cultural,

psicológico, social.74

39. Informação é uma unidade de conhecimento que explica uma

unidade de conhecimento que explica uma unidade de

conhecimento...75

40. Sabedoria é auto-conhecimento. (―Sê o escultor e o mestre de ti

mesmo‖ – Nietzsche).

41. Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento; onde

está o conhecimento perdido na informação.

(T. S. Eliot)

42. Pode-se também começar a busca do conhecimento

comunicacional – aquele que une informação, saberes, imagens,

diálogos, mitos, experiências, savoir faire – observando uma onda

na praia. A observação exige um temperamento, um estado de

ânimo e um concurso de circunstância conforme.

43. O senhor Palomar vê uma onda apontar na distância, crescer,

aproximar-se, mudar de forma de cor, revolver-se sobre si mesma,

quebrar-se, desfazer... É muito difícil isolar uma onda da que lhe

segue de imediato... Não se pode observar uma onda sem levar em

conta os aspectos complexos que concorrem para formá-la e

aqueles também complexos a que essa dá ensejo. Tais aspectos

variam continuamente, decorrendo daí que cada onda é diferente

da outra onda; mas da mesma maneira é verdade que cada onda é

igual a outra onda, mesmo quando não imediatamente contígua ou

sucessiva; enfim, são formas e seqüências que se repetem, ainda

que distribuídas de modo irregular no espaço e no tempo.

(Italo Calvino)76

44. Para conhecer algo é necessário um método = caminho. Até

mesmo para conhecer uma onda, o rumor do vento, a vida das

formigas ou dos homens, uma moda, um estado, qualquer coisa,

preciso de um método. Preciso de um caminho para chegar até essa

coisa. É preciso, neste método, ir da análise à síntese e da sistêmica

à analítica, indo e vindo. É preciso tentar acusar o contraste entre

uma sintaxe aparentemente linear, clássica, e uma realidade

aparentemente complexa, não linear. Pesquisar é administrar ordem

e desordem.

45. Os gregos tinham uma palavra, Themata, para definir nossas

buscas obsessivas. Nós estamos sempre ligados a certos temas, nós

os perseguimos, ou será que são eles que nos perseguem? Em cada

pesquisa temos também que nos auto-investigar. É necessário que o

pesquisador esteja na pesquisa porque, ao final, o resultado da sua

pesquisa, acho até que o resultado de qualquer pesquisa, será

sempre uma objetividade subjetivada.

46. Necessitamos não só de uma epistemologia dos sistemas

observados, mas também de uma epistemologia dos sistemas

observadores.

(H. von Foerster)77

47. O primeiro critério de um pesquisador é ter olhos e coração. Ter

olhos espalhados por toda a pele e um coração pulsando na cabeça.

Sem sensibilidade não se faz nada. Sem atenção, acuidade, cuidado,

método só se chega a resultados parciais. Embora toda pesquisa

seja, ao final, um resultado parcial, sempre é bom acreditar que se

sabe alguma coisa. Ao final da pesquisa, o pesquisador deve olhar

para si mesmo e perguntar: que sei eu?

48. Que sei eu?

(Montaigne)

49. Perguntemos a nós mesmos: que sabemos? E mais: que sabemos

sobre a comunicação? Será que temos realmente produzido

conhecimento ou reproduzido objetos? Será que temos estudado

somente mídia ou a comunicação em sua multiplicidade e

totalidade? Será possível estudar a comunicação em sua totalidade?

Metrodoro de Chio disse: ―Não sabemos se sabemos. Não sabemos

nem mesmo o que é saber‖. O mesmo vale para a comunicação.

Não sabemos o que é comunicação. Não sabemos nem mesmo o

que é o saber comunicacional.

50. Para ser um bom pesquisador, ser um bom costureiro. Um

complexeur. Só conseguindo manter a comunicação entre todos os

aspectos observados, colhidos, costurando-os conjuntamente, pode-

se começar a segunda fase da operação: estender este conhecimento

para os seus próprios limites.

51. Tem gente que pesquisa melhor com os pés no chão, tem gente

que pesquisa melhor com a cabeça nas nuvens; tem gente que gosta

do caos, outros da ordem, uns preferem ‗uma coisa de cada vez‘,

outros, ‗tudo ao mesmo tempo agora‘; uns não sabem por onde

começar, outros, começam pelos livros, outros nunca começam,

outros nunca terminam. Todos os caminhos da pesquisa conduzem

ao pesquisador. Olhar para o alto, olhar para baixo... não são duas

maneiras de olhar para si mesmo?

52. Um homem apaixonado pelo céu andava o tempo todo de rosto

para

cima, a contemplar as mutáveis configurações das nuvens e o

brilho distante das estrelas.

Nesse embevecimento, não viu uma trave contra a qual topou

violentamente com a testa. Um amigo zombou da sua distração,

dizendo que quem só quer ver estrelas acaba vendo as estrelas

que não quer.

Espírito previdente, esse amigo vivia de olhos postos no chão,

atento a cada acidente do caminho. Por isso não pôde ter sequer

um vislumbre da maravilhosa fulguração do meteoro que um dia

lhe

esmagou a cabeça.

(José Paulo Paes)78

53. Como e o que pesquisar? Comece perguntando ao seu coração:

o que eu gosto realmente? Depois pergunte: o que me interessa

pensar? Que idéias me atraem? O que me inquieta, o que, no

conhecimento, me dá prazer? Depois de responder estas questões,

comece a brincar de fazer-

saberes. Não é uma brincadeira perigosa, não muito, só um pouco.

Você já brincou de colar? Primeiro recorte, depois cole. Mas não

cole dos outros. Isso é feio. Só vai mostrar que você não sabe

brincar, que não é criativo. Se não souber responder, faça uma lista,

por escrito, converse com outros que brincam há mais tempo do que

você. Eles podem te ajudar. Mas cuidado. Tem muita gente que

pensa que sabe brincar. Mas são tristes, feios por dentro. Eles

podem querer que você seja igual a eles. Procure os que são felizes

por dentro. Esses nunca vão o desestimular. Então comece a brincar

assim, perguntando: o que eu acho que devo conhecer?

54. Que belo tema de disputa sofística tu nos trazes, Menon; é a

teoria segundo a qual não se pode procurar nem o que se conhece,

nem o que não se conhece. O que se conhece porque, conhecendo-

o, não se tem necessidade de procurá-lo; o que não se conhece

porque não se sabe o que se deve procurar.

(Platão)

55. Para brincar de pesquisa é preciso saber recortar bem. Você já

brincou de recortar? Nesta brincadeira, é preciso saber recortar bem

direitinho. Quanto melhor o corte, melhor o encaixe, a colagem, o

quadro geral. Seja um bricoleur aplicado, atento, cuidadoso. Você

não pode dar conta de colar todas as imagens, todas idéias e todos

os objetos. Não tem problema. Você não tem que dar conta de tudo

isso. Por isso é que o recorte tem que ser bem feito, para que o

resultado seja todo seu. É preciso que você encontre as imagens

certas para as idéias certas. É preciso que o objeto esteja bem

colado às imagens e idéias e que haja a liga perfeita para que ele

não fique sem aderência e destaque. Cole o objeto no lugar certo.

Depois mostre aos outros o seu trabalho; seja crítico e auto-crítico.

Esse tipo de brincadeira deve servir para deixar a gente mais feliz e

não mais triste.

56. A pesquisa é a procura da verdade. Assim ela vale porque é uma

procura, justamente. Como procura, podemos seguir vários

caminhos = métodos. A arte de procurar os caminhos certos =

verdadeiros é a arte da pesquisa. Qual o caminho mais verdadeiro?

Aquele que casa o conhecimento produzido pelo homem ao longo

dos anos, aquele que você mesmo acredita com aquele que pretende

contribuir para o desenvolvimento do homem. Pesquisar é uma

forma nova de construir velhos mitos.

57. Quanto mais a pesquisa for extensa, menos possibilidade de

profundidade. Quanto mais curta, maior possibilidade de

superficialidade.

58. Não é fácil brincar de fazer-saberes. Corremos alguns perigos.

Mas, como diz Holderlin, ―onde está o perigo, cresce também o que

salva‖.

59. A ciência é o reflexo do homem no espelho da natureza

(Pauli)

60. Para ser cientista, ser artista. Para ser artista, aninhar-se de

abismos.79

61. Não se faz pesquisa sem um problema. Resolver este problema

é o objetivo do cientista. Mas o objetivo do artista muitas vezes não

coincide com o do cientista. O artista muitas vezes quer multiplicar

os problemas. Daí que vem o cientista para tentar resolvê-los.

Enquanto o artista trabalha com a metáfora, o cientista lida com a

metonímia. Artista e cientista partilham porém um caminho

comum: preferem andar na margem, onde a razão gosta de estar em

perigo. Ambos gostam dos limites: dos limites do possível e do

impossível.

62. Mesmo sendo totalmente dependente das interações entre os

espíritos humanos, o conhecimento escapa-lhes e constitui uma

potência que se torna estranha e ameaçadora. Hoje, o edifício do

saber contemporâneo ergue-se como uma Torre de Babel que nos

domina mais do que a dominamos.

(Edgar Morin)

63. O conhecimento é mesmo uma Torre de Babel. Há uma crise

nos seus fundamentos, nas suas relações. O conhecimento é sempre

múltiplo. É um ―fundamento sem fundo‖, disse Heidegger. Saber

que o conhecimento não possui um fundamento é adquirir um saber

fundamental. Seu fundamento é móvel, aéreo, flutuante, profundo.

Como diz Fernando Pessoa: ―Somos dois abismos: um poço

olhando um céu‖. Ou como diz Roberto Juarroz: ―Entre altas torres

vou cavando fundos poços‖.80

64.Precisamos trocar a metáfora arquitetônica de ―fundamento‖,

uma metáfora musical de ―construção em movimento‖.81

65. Eu creio que toda forma de conhecimento pode ser procurada

no receptáculo da multiplicidade potencial. O espírito do poeta,

como o espírito do sábio, funciona por associações de imagens (e

saberes) seguindo um processo que constitui um processo mais

rápido de associação e de escolha entre as formas infinitas do

possível e do impossível.

(Italo Calvino)

66. Conhecimento do conhecimento: outro nome para

epistemologia. Palavra pesada. É difícil para ela voar. Quem a

incitou a ficar mais leve foi Gaston, o velho Bachelard.

67. No conhecimento da comunicação, remeto desde já a Demócrito

de Abdera, que via uma diferença entre a comunicação mediata e a

imediata. A mediata é sempre mediada por mecanismo que exigem

um canal, um fluxo entre emissor e receptor, já a imediata não, não

exige nada. Ocorre nos átomos, no interior do homem. De dentro do

homem para dentro do homem. Não exige meio.

68. No conhecimento do conhecimento comunicacional deveríamos

nos preocupar mais com o que Niels Bohr chamou de ―Unidade do

Conhecimento‖, aquela dimensão do saber que une filosofia,

ciência, técnica, magia, religião, arte numa só unitas multiplex. A

comunicação é a liga natural que faz a ponte entre os

conhecimentos. Pena ela ter se transformado (ou desejado) isolar-se,

encastelando-se ora num campo ora numa técnica ou num mercado

que não a torne verdadeiramente episteme filo-pluri-conceitual.

69. ―Eu tenho um sonho!‖, disse um pensador da paz. Era também

um poeta da vida. O sonho motiva o homem e a ciência. Para se

tornar um cientista, todo homem precisa ser poeta e ter um sonho.

Todo cientista precisa de um sonho capaz de fazê-lo voar e motivar

seu desejo de paz e de conhecimento. Por isso, na era da

comunicação social tecnicista e do fechamento do homem ao

diálogo, ousamos dizer: é preciso recriar a idéia de Comunicação!

Urge, como diz Edgar Morin, reformar o pensamento e a ciência.

Nessa perspectiva, necessário também se faz reformar o conceito de

comunicação, devolvendo-lhe o que a disciplinaridade e a hiper-

especialização lhe roubaram: a sua capacidade de ser, por

excelência, a ciência da religação dos saberes e, mais do que isso, a

ciência do diálogo.82

70. Existe a sensação global, diz David Bohm, de que a

comunicação está progressivamente se deteriorando. Para ele, é

preciso recriar a comunicação porque nossa forma de pensá-la e de

falar sobre ela constitui um dos fatores que nos impedem de tomar

consciência da sua real importância em nosso sistema de

conhecimento. Muito cedo, a Comunicação tornou-se ―social‖,

aportou no cais desencantado do jornalismo; navegou os mares de

plástico da publicidade; vendeu pela mão do marketing produtos

que apitam e acendem, e causam sensações de bem-estar; facilitou o

acesso às bibliotecas tornando a técnica da catalogação algo

louvável; fez e desfez da informação como bem quis, prostituindo-a

ao máximo, entregando-a sem meditação a todos. Todos então se

sentiram mais informados e, ao se sentirem mais informados, se

acharam mais sábios, alguns até, gênios individuais. De maneira

nenhuma, ninguém se achou idiota coletivo, muito pelo contrário.83

71. A comunicação ―social‖ pretendeu ser analítica e seguiu o

caminho natural por onde trafegou o conhecimento humano com o

advento do cartesianismo. Mas os seus servos esqueceram que ela

era Comunicação, não somente ―social‖, mas também ―humana‖,

―ecológica‖, ―psíquica‖, ―mitológica‖ e principalmente ―filosófica‖.

Quiseram que ela não fosse mais Comunicação, mas jornalismo,

publicidade, marketing, biblioteconomia, gestão de informação e

uma infinidade de outras disciplinas. Foi quando a Comunicação

tornou-se uma entidade fantasmática. Um campo sem campo, um

mero guarda-chuva para outras áreas. Isso provocou ao longo do

tempo um efeito drástico: ela deixou de ser estudada como tal e

passou a ser tautologia, signo-sinônimo de ideologia, dominação,

negação, alienação, técnica. Por mais que esses componentes

estejam presentes, diga-se, na dimensão social (mas não só) da

comunicação, perguntamo-nos por que foram eles os fatores

privilegiados. Isso é fácil de responder: foram privilegiados porque

os estudos avançaram em direção à compreensão da técnica como

meio e suporte máximo a ser racionalizado. E talvez porque, além

da tecnicização da sociedade, a informação é o escudo que os

homens usam para se proteger e justificar a ausência do verdadeiro

diálogo.

72. Quem já conseguiu dar uma definição satisfatória do que seja a

comunicação? E a cultura, que teoria é capaz de abarcá-la? As

tentativas de definir essas duas noções foram inúmeras. Não foram

vãs porque contribuíram para a apreensão que hoje podemos ter das

relações humanas e sociais. Porém, nunca foram satisfatórias.

Talvez, ao invés de conceituá-las, melhor seria aceitar nossa

incapacidade de dar conta da totalidade dos conceitos que as

envolvem. Aceitando as implicações da lógica de Tarski e do

teorema de Kurt Gödel, segundo os quais um sistema semântico não

pode ser explicado a partir de si mesmo nem pode encontrar em si

mesmo a prova de sua validade, a cultura e a comunicação como

sistemas dinâmicos não podem validar-se nem se fazer conhecer

completamente simplesmente a partir de seus próprios instrumentos

de conhecimentos. São noções indomáveis que por isso necessitam

do diálogo, entendido como meio de enriquecer-se com o diverso e

o desconhecido, conhecendo-o, compreendendo-o, aceitando-o.

Hoje, temos informações demais e compreensão de menos.

73. Isso significa dizer que a primeira condição para a elaboração de

uma Teoria da Comunicação que se pretenda autoconsciente é

renunciar à completude e ao exaustivo processo de fechamento do

objeto em torno dos elementos que o compõem. Mas não devemos

para tanto abandonar ou minimizar os elementos que o

circunscrevem. A postura antes requer um misto de ousadia, rigor e

humildade. Nossa incapacidade de definir o sistema comunicação-

cultura, revelada pela vastidão de conceitos apresentados ao longo

dos anos, constitui uma prova da dimensão enigmática desse

campo. O século XX foi especialmente pródigo em formular

conceitos para essas áreas. Sabemos que mais de cem definições

foram enunciadas (Kluckhohn, 1945) para a cultura e que, para a

comunicação, são pelo menos quinze escolas clássicas e inúmeras

noções como: interação, informação, linguagem, diálogo, vínculo,

processo de significação, partilha, educação, relação, negociação,

manipulação, influência, persuasão, narração, retórica, comunidade,

atividade sensorial e nervosa, elemento desencadeador e

delimitador, instrumento formador, processo moderador,

compreensão, entendimento, interpretação, processo histórico,

troca, cooperação, coexistência, mensagem, meio, interlocução,

tautologia, expressão, socialização e ecologia.

74. Para questionar a razão de uma ciência da comunicação distinta

da ciência da cultura, perguntamo-nos: em quais dessas noções

comunicação e cultura não são o mesmo? A essência da

comunicação reside nos processos relacionais e interacionais tanto

quanto a cultura, e todo comportamento humano possui um valor

tanto cultural como comunicativo. Isso a Escola de Palo Alto nos

ensinou com maestria. Então, por que a ciência da cultura, a

Antropologia, não se valeria da noção de diálogo numa era em que,

como veremos, as civilizações produtoras e veiculadoras de cultura

são incapazes de compartilhar o espaço global, num espírito de

compreensão e aceitação mútua? Por que não pensar uma ciência

capaz de aproximar os seres humanos e seus saberes num espírito

de diálogo?

75. Assim, reformulamos o nosso próprio conhecimento dos

conhecimentos de modo que, para investigar os limites, os conceitos

e a fortuna crítica da cultura e da comunicação, devemos levar em

conta a possibilidade de uma culturanálise (Morin, 1999) que

queremos comandada pelo espírito do diálogo e por isso chamamos

de Comunicologia. O homo comunis ainda está por nascer. E ele

será engendrado a partir do paradigma da intercompreensão

(Habermas, 2003) e no universo da partilha, da capacidade de tornar

comuns saberes e condições materiais e espirituais da vida. Em

ambos os casos, devemos admitir pressupostos e aberturas

sistêmicas, incompletude teórica, decifração de seus caracteres e

contínua religação de suas partes.

76. Apesar da totalidade da natureza na qual o homem está inserido

ser algo inatingível, existe uma porta aberta para um universo real-

imaginário indomável do qual o homem tem por desafio se

aproximar, começando por aceitar a infinitude e a necessária

articulação dos saberes. Essa porta é a da lógica do sensível.

77. Uma das formas perenes e primeiras de produzir, perpetuar e

regenerar o diálogo intercultural é o mito. Por si só, ele estabelece a

relação entre o universal e a diversidade, sendo o mediador da

passagem da natureza à cultura. Permite construir modelos

explicativos estabelecidos de acordo com o imaginário e as relações

sociais (Lévi-Strauss, 1970). E mais, o mito consegue realizar a

tarefa de respeitar a relação harmoniosa entre o natural e o cultural,

o material e o espiritual, o físico e o imaginário, o visível e o

invisível. Algo que pode nutrir e complementar o espírito científico.

78. Como o mito, a arte e a religião são mediadores ideais entre as

dimensões do visível e do invisível, entre as ordens natural e

artificial. Olhar a vida como uma obra de arte, levando em conta as

duas dimensões e as duas ordens, é uma premissa inclusive para a

ciência. Tais manifestações do imaginário sempre foram necessários

supridores da relação do material com o espiritual, do visível com o

invisível e do empírico com o intangível. Os objetos sagrados, entre

os quais se deve incluir os mitos, as artes, as ciências e as

espiritualidades, enquanto patrimônios da humanidade, podem

cumprir funções de solidariedade e de resistência aos sistemas

desiguais e unidimensionais das trocas, conduzindo a uma

humanidade mais aberta, uma ecologia das culturas, promotora de

paz.

79. A lógica da igualdade também constitui uma porta para o

necessário diálogo intercultural planetário tanto quanto para o

diálogo da dimensão racional humana com as da sensibilidade e do

imaginário. Assim como as relações interculturais não podem ser

pautadas pelo poder e a dominação, as relações interdisciplinares e

os vários domínios do conhecimento não podem continuar

alimentando relações de exclusividade. É necessário instituir entre

os domínios fragmentados novos caminhos de volta para a união,

reunir o que foi desunido pela necessidade de classificar, separar e

ordenar para melhor apreender, distinguir e conhecer. Vaidades,

ânsias de poder e individualismos foram capazes de corromper os

idealismos e sonhos de certos homens e transformá-los em déspotas

da categorização, da hierarquização e da exclusão, fazendo-os

esquecer que havia um caminho de volta a percorrer. Hoje, a lógica

da concorrência, profundamente ancorada em todos os domínios da

vida, serve de justificativa para corridas desenfreadas entre espíritos

científicos desprovidos de premissas humanitárias universais.

80. Assim, uma ciência do diálogo só é possível se formos capazes

de instaurar um espírito de igualdade tanto no âmbito das relações

sociais e interculturais, como no âmbito das relações entre os

diversos domínios do conhecimento e da apreensão do real: um

espírito científico que inclua o pensamento racional e técnico, o

pensamento poético e o pensamento mítico-religioso. Enriquecer-se

com o diverso e aceitar o desconhecido é uma necessidade cuja

ambição reside na humildade requerida, porém raramente

encontrada, no meio científico.

81. O diálogo implica um fluxo em sentido duplo e simultâneo

possibilitando que uns cedam espaço aos outros, que todos,

qualquer que seja a diversidade de seus pontos de vista, possam ir e

vir nos caminhos das inter-relações e possam assim interagir melhor

através de uma rede de modos de compreensão da realidade com

vistas à completude da apreensão do mundo. A imagem da rede de

interações remete à idéia de interdependências e inter-

responsabilidade presente na noção de ecologia do espírito. Se as

ciências físicas e biológicas não desdenharem a importância das

ciências humanas e sociais e essas, por sua vez, não menosprezarem

os domínios da criação artística, estaremos mais próximos da idéia

de Comunicologia. A linguagem transdisciplinar da arte e da poesia

auxilia a compreensão do homem enquanto ser que se constrói a

partir da necessidade de compartilhamento e comunhão para

enfrentar o meio natural no qual se insere.

82. Há ainda que se falar na importância dos saberes das dimensões

verticais, presentes na arte, na poesia e na espiritualidade Ao

estender os limites da linguagem, o artista e o poeta alargam os

horizontes do real e tornam o homem mais sábio, mais satisfeito,

mais próximo da completude almejada. Essa busca de

conhecimento de si para melhor situar-se no mundo, para melhor

relacionar-se com ele, permite aceder a mistérios inerentes a todos

os seres e que, se não forem rechaçados ou abafados pela

racionalidade científica, podem ser pressentidos num estado latente

ou manifestos e até exaltados. Entramos no domínio sagrado das

religiões que a ciência tanto teme abordar. No entanto, são muitos

conflitos, paixões e desafios para o homem se conhecer e se situar

no cosmo que uma ciência do diálogo não pode desconhecer.

83. Perguntamo-nos qual é a verdade científica que, assim como as

religiões, não se baseia em crenças, premissas, postulados ou

enunciados tomados como princípios e elaborados sobre bases

emocionais, ao ponto de serem capazes de se sobrepor ao

conhecimento proporcionado pela espiritualidade, suprimindo-o do

domínio da ciência. Propor para a ciência os caminhos do diálogo,

portanto, implica também em religar o conhecimento científico com

o conhecimento dos mistérios da natureza, o sobrenatural. Vítima

do preconceito gerado pela soberania da racionalidade científica,

esse conhecimento foi relegado a zonas obscuras da vida social,

porém nunca deixou de ser amplamente desenvolvido em todas as

culturas porque o homem não vive sem uma forma de apreensão

dos mistérios, de qualquer ordem que seja. Ignorá-lo é um

procedimento que carece de rigor para a ciência da comunicação.

84. Agora respondamos às inquietações daqueles que se perguntam

que lugar a Comunicologia reserva à comunicação social que até

hoje domina as reflexões no espaço comumente atribuído à ciência

da comunicação. O mesmo espaço que ela sempre ocupou, só que

com uma diferença fundamental: com a Comunicologia, a

comunicação social ganha uma força a mais. Jornalistas,

publicitários, assessores de imprensa, relações públicas e todo o

contingente de formadores de opinião produzido pela sociedade da

informação e da comunicação de massa, imbuídos da sua própria

capacidade de sonhar, imaginar, aprofundar-se, e conhecer o

mundo, dotados do fabuloso aparato técnico dos meios de

comunicação de massa, podem se tornar os principais mensageiros

de uma ciência do diálogo proporcionada por um espírito de

igualdade e um sonho para a humanidade. Concretamente, nenhum

indivíduo pode dar conta da idéia de Totalidade compreendida na

perspectiva da Comunicologia, porém, todo indivíduo pode

encontrar na comunicação um caminho para o diálogo

transdisciplinar com as outras formas de conhecimento que a vida,

inevitavelmente, se encarrega de lhe oferecer. De fato, como pode,

quem nunca sonhou em voar, querer se abrigar sob os auspícios de

um deus que tem asas nos pés e na cabeça?

85. Voar sem sair do real. Alimentar a imaginação no dia-a-dia.

Quando se olha para o cotidiano se olha para as partes e para o todo

ao mesmo tempo. O que fomos no passado, ainda somos um pouco

no presente. Somos o conjunto dos restos que fomos. Restos e

restos de cotidianos vindos no conjunto dialetizado que somos. A

vida cotidiana exige sempre uma anamnese; quase uma súmula de

cada jogo vivido. Os cotidianos passados nos ensinam tanto quanto

queiramos aprender com eles. A exigência da anamnese é também

uma exigência pedagógica, formadora do corpo físico histórico,

corpo espiritual, intelectual e material. O efêmero conquistado é

logo perdido, vivido, torna-se passado aprendido no presente.

Agatha Cristie estava correta ao assinalar que a invenção, a criação,

deriva de um certo ócio, acrescido a uma certa preguiça. É um

movimento aparentemente de contradição mas que tem sentido. O

importante é observar que não deriva apenas daí; mas também do

trabalho. Como eram os filósofos? Que criaram? Que pesquisaram?

A ―invenção do cotidiano‖ é a criação perene e constante da vida

cotidiana.84

86. O homem é uma metáfora de si mesmo.

(Octavio Paz)

87. O novo paradigma tem como referência ―o homo creans‖ e não

apenas o homo faber. Trata-se de reconhecer – implicitamente – que

a atividade de fabricar é apenas utilitária, extensor, mercantilista;

mas define-se por um ―dentro‖ autônomo, de uma inventividade

imanente.

88. Entender o novo paradigma que tenta se estabelecer dentro da

comunicação é entendê-la como rede comunicacional, como um

todo. Essa nova concepção permite tratar as redes como várias

circulações sem começo e nem fim, na medida em que suas junções

são múltiplas e seus cursos complexos. Há nesta concepção uma

visão circularista. A comunicação é um corpo cujas ramificações

estão em todas as direções e sob todas as manifestações no campo

da sociedade. A rede é a nova ―tecnologia do espírito‖.

89. Que um sistema possa ser visto nos termos da rede, isto é, sem

começo nem fim fixado e sem linhas que podem se acavalar

circularmente, tornando toda circulação possível da mesma

maneira, e estamos não somente num sistema aberto, como também

num sistema que se define pelo tempo passado para percorrê-lo em

todos os sentidos como o sistema geral de todos os sistemas

possíveis.

90. O que Morin chamou de dupla consciência, a saber: ― a ilusão

da realidade é inseparável da consciência de que ela é realmente

uma ilusão, sem que essa consciência destrua o sentimento da

realidade‖. Uma em associação com outra ou somente

manifestações diferentes de uma concretude cotidiana. A vida

cotidiana é a ―vida vivida no presente e da qual não conseguimos

esgotar as riquezas‖ por que as ―riquezas‖ estão sempre a se repor, a

se recompor na ―louca‖ intensidade da vida diária.

91. A realidade da vida cotidiana está organizada em torno do

―aqui‖ do meu corpo e do ―agora‖ do meu presente. Este ―aqui‖ e

―agora‖ é o foco da minha atenção à realidade da vida cotidiana.

Aquilo que é ―aqui e agora‖ apresentado na vida cotidiana é o

realissimum de minha consciencia. A realidade da vida diária,

porém, não se esgota nessas presenças imediatas, mas abraça

fenômenos que não estão presentes no ―aqui e agora‖. Isto quer

dizer que experimento a vida cotidiana em diferentes graus de

aproximação e distância, espacial e temporalmente. O conceito

contemporâneo de comunicação se caracteriza pela dualidade:

sentido e movimento.

93. O cotidiano é assim: na hora do almoço a gente almoça, na hora

de dormir, dorme. E vive o dia, todo dia. Ele ao mesmo tempo é

porto e morte. Emergência, convergência e mediação. Mas o

cotidiano é um concreto perpassado de sonhos, pedras de espuma. O

cotidiano é sempre mediador. É a situação concreta que relaciona

todas as partes. Afinal de contas o que vivemos? Como vivemos?

Vivemos sempre o instante, interligados em redes, em redes que se

interligam constantemente, ampliam-se, complexificam. Tudo se

liga a tudo. O melhor dos cotidianos é aquele no qual a gente não

vive.85

parte IV – terra

o leitor de polens

1. Leio no ar o cântico da terra. Polens ventos flores pingos caem

por cá. Chão de nossas convivências, a terra ensina à comunicação

a ser o chão de nossas relações.

2. Gostaria de ter sempre um livro ante os olhos. Fosse o livro do

mundo, não-escrito, fosse um livro de papel, mundo escrito. Mas

não, o que tenho é quase sempre uma página em branco, a espera de

uma palavra-ação que venha confortar o meu silêncio de papel.

Gostaria de entender que energia é essa que nos prende ao livro.

Que objeto é esse que faz com que os homens sejam homens

melhores?

3. O mitólogo Joseph Campbell dizia que uma das suas formas de

prazer preferida era sublinhar frases nos livros que lia. Alguns não

sabem ler sem algo por perto com que possam riscar, intervir,

escrever à margem, apontar, fazer referência adicional, criticar...

Para outros, como Jorge Luis Borges, a melhor companhia para o

livro não é nem o café nem o lápis, mas o próprio leitor. Borges diz

que o maior de todos os momentos é quando o leitor encontra o seu

livro.86

4. Conheci em São Paulo, nos arredores da PUC, um jovem

alagoano que por muito tempo viveu no lixo, literalmente pelas

ruas, sobrevivendo a catar restos, numa condição degradante: era

migrante, mendigo e marginal, mas não analfabeto. Seu nome era

Chaparral, pelo menos era assim que ele se apresentava a todos.

Certo dia, procurando no lixo restos de comida, Chaparral

encontrou um livro todo despedaçado. Leu alguns trechos e logo se

interessou pelos assuntos ali tratados. Ficou fascinado, como disse,

enfeitiçado por aquelas palavras, por aquela energia gráfica, aquilo,

dizia dele, era ele, aquele autor desconhecido empregava a força

que ele esperava encontrar nas palavras. Mesmo sem ter lido

linearmente o livro, ele fora atingido pelos fragmentos, seus

estômago doía, sua cabeça fervilhava, quis saber quem era aquele

autor e que livro era aquele. No dia seguinte descobriu. O autor era

Nietzsche e o livro, Assim Falou Zaratustra.

5. Livros mudam o homem. Um exemplo foi Chaparral que largou a

mendicância, se casou, constituiu família, teve uma filha, e passou a

escrever livros só por ter encontrado o ‗seu‘ livro. Hoje vive da

venda de porta em porta de seus próprio volumes, que lhe permite a

educação de sua filha e o alimento à sua mesa. Longe do mercado e

das grandes editoras, o livro foi o objeto que revolucionou a sua

história. O livro foi o sentido existencial que lhe propiciou alcançar

a dignidade, um trabalho, mesmo que autônomo, e o amor à

palavra.

6. As razões do fascínio do livro e dos seus poderes de sedução são

feitas de vários elementos, alguns deles imponderáveis. Não

erramos em dizer que boa parte da cultura contemporânea estrutura-

se em torno do livro. Por isso mesmo talvez caiba aqui, neste

momento, uma pergunta um tanto óbvia: o que é o livro? Que tipo

de comunicação ele é?

7. Às vezes, o livro é definido como uma porção de cadernos

manuscritos ou impressos cosidos ordenadamente. Do mesmo

modo, poderíamos dizer também que o livro é um suporte que

permite a difusão do conhecimento em seus vários matizes. É tão

múltiplo quanto a vida. Pode ser brochado, encadernado, de bolso,

ilustrado, raro, usado, infantil, científico, literário, didático, antigo,

novo, desaparecido, no prelo, estar na alma ou na lembrança...

8. O ano do nascimento do livro é incerto. De sua vida pouco se

sabe pois são raros os registros que contam sua história, apesar de

uma literatura específica começar a ser produzida neste sentido.

Conta-se que o Livro de Bambu que originou o I Ching foi o

primeiro livro da história e que ele já conta com quase cinco mil

anos de história. Um extenso registro escrito sobre os livros da

idade média, por exemplo, não são fáceis de encontrar, visto que ler

e escrever naquela época era privilégio de poucos. Ainda que o livro

tenha sido desde cedo o responsável pela divulgação da palavra

escrita, e por torná-la acessível a todos, sua principal contribuição

talvez seja a de ditar os caminhos por onde passa a cultura humana.

9. Depois que Johannes Gutenberg inventou a prensa tipográfica,

em 1408, as informações e o conhecimento começaram a ser

divulgados de forma sistemática. Seu invento permaneceu o mesmo

praticamente por quatrocentos anos. Hoje, ainda que ultrapassado

tecnologicamente, sobrevive enquanto idéia, onde houver palavras

impressas sobre o papel. A história da impressão sobre o papel

começara na China no final do século II da era cristã. Os chineses

sabiam fabricar papel, tinta e usar placas de mármore com o texto

entalhado como matriz. Quatro séculos depois, o mármore foi

trocado por um material mais fácil de ser trabalhado, o bloco de

madeira. Os mais antigos textos impressos que se conhecem são

orações budistas. Foram feitos no Japão entre 764 e 770 a C. O

primeiro livro propriamente dito que se tem notícia apareceu na

China em 868 a C. O desenvolvimento da escrita deu um novo salto

no século XI graças a um alquimista chinês, Pi Cheng, que inventou

algo parecido com tipos móveis, letras reutilizáveis, agrupadas para

formar textos. No final do século XV, a China produzia mais livros

que o resto do mundo.

10. No início do século XXI, a cultura contemporânea produz mais

livros do que o homem tem condições de ler. Há livros para todos

os gostos e, nesse caso, a quantidade nem sempre indica qualidade.

No entanto, ler é sempre fundamental. Cada livro escrito é um

microcosmos que se adensa no índex sócio-histórico do

conhecimento, é um fragmento que se insere no catálogo da

biblioteca do espírito humano. Cada livro que lemos se insere no

livro complexo, unitário, que forma o livro geral que é a soma de

nossa leituras, de modo que para compor esse livro pessoal

devemos nos transportar, entrar em contato com os livros lidos

anteriormente, deixá-los tornarem-se o corolário, o

desenvolvimento, a refutação, a glosa ou o texto de referência. Na

atualidade, esse livro geral, unitário, tem amplas oportunidades de

se complexificar. No Brasil, nunca se editou tanto. Textos antigos,

medievais, modernos, futuristas, em todos os gêneros... Lemos

autores de países distantes e dos rincões mais isolados do interior do

país. Livros são feitos em casa, são produzidos sob encomendas,

são objetos de veneração de algumas confrarias, disponibilizados na

internet, xerocados continuamente, procurados como tesouros,

motivo de leilões. Se o Paraíso for mesmo semelhante a uma

biblioteca, como disse Borges, cada livro será então um canto órfico

pronto a servir à celestial razão.

11. Borges diz que as bibliotecas são ―templos‖, mas outros as

vêem como locais ultrapassados, empoeirados, devido ao imenso

índice oferecido hoje pelos aparatos multimidiáticos das redes

telemáticas. Não devemos de forma alguma descartar tais suportes,

mas basta que a natureza oscile um pouco para que tanto

conhecimento corra o risco de ficar às escuras. Talvez um dia o

homem necessite de uma fogueira para contemplar uma lâmpada

elétrica. Mas para ele bastará sempre a luz do sol para que o

conhecimento presente num livro salte aos olhos, iluminando a

razão. É difícil ser vela num mundo eletrificado. E é isso o que o

livro é: uma chama lançada sobre a ignorância humana.

12. Signo da ciência e da sabedoria, o livro é sobretudo o símbolo

da totalidade do universo. No Apocalipse, o apóstolo João diz que

no centro do Paraíso existe o Livro da Vida de onde nasce uma

árvore: a Árvore da Vida. As folhas dessa árvore, como os

caracteres de um livro, representam a totalidade dos seres, toda a

humanidade, todas os vegetais, minerais, animais, o cosmo inteiro

em sua abrangência máxima. A idéia de fazer do livro o receptáculo

de todo o universo esteve sempre presente no espírito humano.

13. Galileu Galilei foi um dos que pensou poder concentrar a

totalidade do mundo num livro. Só não sabia como fazê-lo. Pensava

que o livro total poderia ser escrito em linguagem matemática,

geométrica, na língua da racionalidade e da exatidão. O infindável

dificilmente pode ser retido num livro, e é por isso que o ato de ler e

escrever não tem fim. Um livro jamais termina de dizer o que tem

para dizer. Galileu certamente sabia disso. Por isso quis encontrar

uma fórmula matemática que exprimisse a totalidade do cosmo. Ele

sabia que a natureza é como um livro, uma narrativa que não se

esgota em sim mesmo.

14. Quem acreditou poder registrar a totalidade das histórias num

livro foi Italo Calvino. Calvino, inspirado em Galileu, apresentou

um seminário em 1980, na Sorbonne, no curso de Algirdas Julien

Greimas, em que mostrava que o livro é um tipo particular de

comunicação e a leitura um modo singular de realizar-se como ser

humano. O livro propiciou ao homem um senso de integração com

o mundo, conquistado a partir da leitura. A partir do seu

aparecimento, o livro levou o homem à prática de um exercício

ótico que envolvia a mente e os olhos, um processo de abstração

que resultava na extração dos caracteres a partir de operações

abstratas, no reconhecimento de marcas distintas, decompondo o

que ele via em elementos mínimos, reunindo-os em segmentos

significativos, para descobrir em volta da leitura regularidades,

diferenças, repetições, exceções, substitutições, redundâncias... 15. O papel do livro na civilização humana, especialmente no desenvolvimento do pensamento técnico, científico e filosófico, é extremamente relevante. Desde cedo, a imagem de comunicação e de civilidade para Italo

Calvino foi a simbiose humano-vegetal. Trata-se aqui de um modo

único de perceber a civilização e a cultura: o homem está também

unido ao vegetal através do livro. Dito de outro modo, o homem

comunica-se à natureza através da cultura. E mesmo quando o

homem lê e investiga cognitivamente o universo ainda assim a

natureza não se desconecta dele.

16. Talvez a universalidade humana já esteja presente em livros

escritos pelos nossos mestres literários. Penso que foi isso que o

humanista italiano Aldus Manutius pensou quando, em 1494,

empreendeu um ambiocioso programa de publicações que

produziria alguns dos volumes mais belos da história da imprensa.

Pela primeira vez, antes em grego e depois em latim, foram

impressos Sófocles, Aristóteles, Platão, Tucídides, Virgílio,

Horácio, Ovídio e os seus quase contemporâneos Dante e Petrarca.

Gosto de pensar naqueles vendedores ambulantes de livretos que

percorriam a Europa medieval ou nos trovadores nordestinos que,

de cidade em cidade, vendiam seus cordéis, liam em praça pública e

declamavam seus versos ao sabor do vento.

17. O livro alivia a existência. Facilita o viver. Nos leva a mundos

maravilhosos, reais, cruéis, fascinantes; nos ensina a compreender

as possibilidades e as impossibilidades da vida, nos alfabetiza e até

nos ensina a morrer. Enquanto nos ensina sobre a palavra, o livro

nos ensina também sobre o silêncio. O advento da leitura silenciosa

vem, segundo Alberto Manguel, após a popularização dos volumes,

mas desde a sua gênese, voz e letras andam uníssonas sendo

proclamadas em alto e bom som. Já haviam registros de leitura

silenciosa no século V a C. Em Hipólito, de Eurípedes e em Os

Cavaleiros, de Aristófanes, aparecem referências a uma leitura

silenciosa. Nos mosteiros, ela foi incentivada em diversas ocasiões,

mas também o seu contrário permanece até hoje. É comum vermos

nos mosteiros beneditinos e cistercienses, durante as refeições, um

monge lendo em voz alta enquanto os demais ceiam.

18. Alberto Manguel, que escreveu o imperdível Uma história da

leitura, em 1996, foi leitor durante anos de Jorge Luis Borges que,

cego, adorava ouvir as diversas narrativas. Manguel leu de tudo

para o velho Borges, dos clássicos aos modernos, de poetas a

romancistas, dos argentinos aos universais. Ao completar cinqüenta

anos, Borges foi nomeado diretor geral da Biblioteca Nacional de

Buenos Aires, que contava com mais de oitenta mil volumes. Neste

mesmo ano, ele ficou cego. Conta-se que o velho argentino

costumava passear sozinho pelo prédio, entre as prateleiras,

deixando-se perder nos labirintos de papel do seu Paraíso terrestre.

19. Que tipo de comunicação é o livro? Que realidade é a palavra?

No Eclesiastes diz: ―Toda palavra é enfadonha, e ninguém é capaz

de explicá-la‖. Será que a comunicação não passa de balbuceios,

pedaços de diálogos em busca de encaixe? Visto assim, será

possível mesmo a comunicação? A comunicação não será apenas

fragmentos de linguagem soltos no ar, como polens de flor?... 87

20. Falar então com fragmentos,

falar com pedaços de palavras,

já que pouco ou nada serviu

falar com palavras inteiras.

(Roberto Juarroz)88

21. Como é possível comunicar-se? Como se pode ser escutado?

Quando saio do inferno para o espaço aberto? Sou o mais

escondido dos escondidos.

(Nietzsche)89

22. Saber ler o livro do mundo é uma arte tão difícil quanto saber o

livro das letras. Alguns não sabem ler a própria vida, mas sabem

reconhecer os caminhos como nenhum outro. Mas como é possível

saber reconhecer caminhos e não ir pela estrada certa?

23. Um mestre barqueiro vivia bêbado. Mas ninguém na velha

aldeia sabia melhor do que ele a arte da navegação. Como vivia

bêbado, ele não saía de terra. Estava sempre nos botecos, enchendo

a cara. No entanto, só ele na aldeia era quem sabia fazer

determinada travessia mar afora, de dia ou de noite, sem se perder.

A travessia era perigosa, muitas embarcações já haviam afundado,

muitos marinheiros deixados filhos órfãos, várias naus perdido o

rumo da costa. O mestre barqueiro era por isso um homem

necessário. Quem necessitava fazer a travessia tinha de pagar a ele

antecipado, colocá-lo no barco, bem sentado – porque ele não

aceitava manipular o leme – com algumas garrafas de cana do lado.

E ele entornava todas. Para reconhecer onde estava, os outros

marinheiros apanhavam no oceano uma bacia d‘água, recolhiam

um pouco dela, e mostravam para o mestre barqueiro. Olhando a

água posta na bacia ele era capaz de dizer a direção, o tempo de

chegada e de partida, a distância e as condições de navegação.

Ninguém nunca entendeu que técnica aquele velho homem utilizava

para fazer a perigosa travessia. Homem do mar, ele parecia jamais

perder o fio que o ligava à terra. Ao chegar em terra, feliz, parava

no primeiro bar do cais e contava história de marinheiro.

24. Que fazer para decifrar caminhos? Quais os códigos, as formas

corretas de leitura, os modos adequados de interpretação? A ciência

é a linguagem da interpretação da natureza mas, e a ciência da alma

de cada um de nós, quem poderá decifrar?

25. Um signo somos, indecifrado,

Sem dor somos, e em terra estranha

Quase perdemos a fala.

(Holderlin)

26. Como fazer para decifrar uma flor? Na linguagem das coisas

sublimes, existe uma mensagem posta ―no ar‖. Em cada pólen solto

ao vento há uma carta, escrita em papel-pétala, mas que (quase)

ninguém sabe interpretar. Quantas são as pétalas de uma flor? Acho

que uma flor é como um livro. Tem mais pétalas do que leitores.

Nunca pára de dizer o que tem para dizer. Quem escreveu a pétala?

Um copista perfumado.

27. Diálogo na Montanha

Perguntais por que moro na verde montanha.

Intimamente sorrio, mas não posso responder.

As flores do pessegueiro são levadas pela

água do rio...

Há outro céu e outra terra, para além

do mundo dos homens.

(Li Po)

28. Não é fácil ler a flor, a montanha, os diálogos. Não é fácil

entender a vida, a morte, a terra, a água, o céu e o que está para

além do mundo dos homens. Quem quer entender a comunicação

deve primeiro aprender a ler, e ler muito... Talvez necessite depois

aprender a escrever; a escrever na alma com as tintas da experiência

e a pena do coração.

29. Quem pensa o mais fundo, ama o mais vivo.

(Sócrates)

30. Para as almas, a morte é tornar-se água, para a água a morte é

tornar-se terra; todavia, da terra provém a água e da água, a alma.

(Heráclito)

31. Ler espaços interiores.

Há quem saiba ler íntimos

como quem olha uma página de jornal.

Outros, como se lê uma folha em branco,

alguns, mesmo analfabetos, sabem mais,

decifram os códigos da intimidade

como quem soletra a voz do nada.

Assim,

acompanham-se de nuvens sem chuva.

emprenham-se de vazios aureolados.

32. O pior de todos os cegos é o que não quer se iluminar.

33. Há alguns anos, pergunto a todos os jornalistas e publicitários

que conheço: ―em que a comunicação tornou você mais sábio?‖

Quando posso, peço a resposta por escrito. E assim venho ao longo

do tempo juntando comigo um conjunto de respostas que apontam

senão para uma sabedoria da comunicação, para alguns saberes que

parecem às vezes nada ter com o jornalismo ou a publicidade. É

inegável a importância dos saberes técnicos nesse meio, mas, no

momento, não é esse o foco a me interessar aqui. Este texto não se

dirige, portanto, àqueles profissionais do mercado nem aos da

academia, mas a todos os que escolheram a comunicação (seja ela

em que nível for) como meditação em suas vidas.90

34. O primeiro desafio a que me colocava era responder a pergunta:

o que é se tornar mais sábio? Escolhia para os que me indagavam

um caminho poético, proposto por Roberto Juarroz e Ítalo Calvino

em suas obras, dizia simplesmente: ―o desafio do auto-

conhecimento‖. E aí completava: ―em que o jornalismo, a

publicidade, o marketing, as relações públicas tornou você mais

sábio, fez com que despertasse em você a necessidade da busca

pelo auto-conhecimento, já que me parece que essa busca é própria

do humano?‖ A grande maioria a quem perguntava não sabia

responder ou não havia se colocado tal questão ou não se

interessava pelo assunto. Isso me levou a pensar que o auto-

conhecimento e a sabedoria não tinham mais o mesmo status de

outrora quando, para os antigos, era a única busca e o único desafio

para o qual importava viver. Não posso desconsiderar tais questões

simplesmente porque muitos por elas não se interessavam. A meu

ver, o auto-conhecimento é um valor fundamental seja em que

época for.

35. A minha pergunta inicial, acho, não se restringe à comunicação

e vale para todos os campos do saber: letras, contabilidade, direito,

administração, medicina, farmácia, engenharia, veterinária, turismo,

ciências sociais, etc. Até parece – ironia das ironias – que o

conhecimento nos afastou do conhecimento de nós mesmos.

Tornamo-nos objetivos e utilitaristas demais: mercado, mercado,

mercado... Esquecemos, no universo do conhecimento e da

informação, da dimensão do auto-conhecimento. Ironia das ironias!

36. Para os que encontravam na comunicação dimensões de

sabedoria, as respostas à minha questão apontavam invariavelmente

para longe do conhecimento técnico, caindo ou resvalando nos

saberes primeiros que fundamentam o campo. A partir dessas

respostas, fui alinhavando as minhas conclusões que ora apresento

aqui sob a noção de uma Comunicosofia. Como essa pesquisa não

foi quantitativa, não esperem definição de público, nem estatísticas

ou coisa que o valha. Sou daqueles que acreditam que dados – mais

do que diagnosticar parcialmente – servem para pensar globalmente

outras questões além daquelas apontadas na pesquisa. Por isso,

pergunte você mesmo a quem você conhece em que o jornalismo ou

a publicidade o tornou mais sábio. Talvez você encontre uma ou

outra idéia aqui explorada. As questões a seguir, não representam

nenhuma novidade revolucionária, querem apenas meditar um

pouco sobre a real importância do conhecimento comunicacional

em nossas vidas.

37. Gostaria primeiro de rejuntar cacos de cultura e de história para

montar aqui uma arqueologia da partilha como estrutura dialógica

fundamental da humanidade. Mas isso é tarefa para uma vida

inteira. Talvez possa dispor de uma vida inteira para a tarefa de

rejuntar cacos, tendo a comunicação como cola, grude, amálgama a

fundir e ajustar as partes desconexas do mundo e do homem. A

capacidade de partilha da comunicação foi o primeiro dos saberes

elencados a partir da pergunta inicial. E, ao pensar mais

detidamente neste aspecto, entendo que o homem não pode ser

mesmo definido sem esta dimensão básica que é a partilha ou, mais

precisamente, o com-partilhamento. Um dos fundamentos eco-

existenciais da comunicação está no duplo caminho: aceitar a

partilha ou recusar a partilha. Talvez pudéssemos até contar a

história humana a partir desses caminhos e associar à ausência de

partilhas, guerras, fomes, pestes, toda a sorte de egoísmos,

totalitarismos, corrupções, crashs financeiros, etc, e, por outro lado,

solidariedades, comunicações libertadoras, manifestações artísticas,

etc, como entrega, aceitação e promoção de uma boa vontade

convivial. É possível uma convivência ou um diálogo sem partilha?

O diálogo é um dos fundamentos da cultura e torna-se alicerce de

tudo isso por ser, por excelência, a práxis constituidora de vínculos

os mais diversos: intelectuais, morais, sígnicos, espirituais... É por

ver o homem impossibilitado de dissociar-se da dimensão do

compartilhamento que entendo que a antropologia deveria ir além

da idéia de um homo symbolicus, reconfigurando a identidade

humana a partir de um homo comunis.

38. O homo comunis é um ajuntador de cacos. Sincrético por

natureza, faz do diálogo o meio para tudo interligar, tecendo

objetos, assumindo os vínculos e os nós eco-existenciais. É um

complexeur, isto é, um tecelão, um costureiro, um cozinheiro. Um

bricoleur, nos dizeres levistrausianos. O homo comunis desenha-se,

como dissemos, a partir da prática do que lhe foi sempre inerente: a

aceitação da partilha ou a recusa dela. Grande costureiro de

sentidos, o homem borda continuamente palavras dentro de si,

caseia imagens, descostura e recostura realidades. Mas, às vezes, o

que costura de manhã, descostura à noite, como Penélope.

39. Por todos os lados, ouvi que a comunicação é uma

epistemologia da abertura sistemática. Como metodologia, acabei

entendendo-a – depois de muito meditar – como uma atitude de

religação sistemática. Posso dizer isso costurando alguns fios das

histórias que li e ouvi que apontavam nessa direção. O homem é

uma reunião de mundos, diz Boris Cyrulnik, pois reúne em si os

genes da mãe e do pai, partilha, depois, por nove meses, do

alimento ingerido pela mãe, está unido a ela de tal modo que um e

outro estabelecem uma comunicação amorosa essencial ao

desenvolvimento de ambos, para, em seguida, ao nascer, ter início

uma outra história de partilha. Agora se dá a partilha do pão na

mesa, do leite, da educação, dos saberes ancestrais. Com o tempo, o

homem descobre a duras penas que é um ser só no mundo, mas

também aprende que não está só. Aprende a dividir espaços, a

trocar palavras, a negociar companhias, a permutar idéias, a

estender o seu afeto a outros, a acolher o coração alheio, a abraçar o

tempo que, mais cedo ou mais tarde, o destruirá. Mas o homem não

partilha a vida e a morte apenas com outros seres humanos, há

também o si-mesmo a quem ele deve acompanhar

irremediavelmente por toda a vida (e talvez na morte também) de

modo que existe a possibilidade de nunca se livrar dele mesmo, o

que é ao mesmo tempo trágico, cômico e reconfortante. Mas a

partilha não termina aí. Ele comunga também com a pedra, o

plástico, o figo, o papel, o moinho, o sapato, a traça, a lamparina, o

vidro, divide o espaço do mundo, o seu calor e atenção, com todos

os objetos e seres que o envolve, porque o mundo é uma grande e

louca feira. O homem partilha assim simbioticamente com todas as

dimensões da vida, mas não costuma se ver como um ser de

partilha, mas como um ser de posses, de poder, arraigado em si

mesmo, egoísta e mesquinho. Esse é o outro lado do homo comunis;

o lado que não põe em comum.

40. Ainda na mesma costura, medito o significado do fato de que,

em certas tribos indígenas, as crianças mastigam o alimento para os

velhos que não possuem dentes na boca. Além da generosidade em

sorver o alimento para que o outro permaneça nutrido, aqui há uma

oferta ainda mais humana: a saliva. A troca de salivas, mas também

de cheiros, sussurros e secreções, dentre outras viscosidades

afetivas, fazem parte da partilha do amor sexual. O amor aqui é a

dimensão primeira e essencial para isso que poderíamos chamar de

uma epistemologia do compartilhamento e da abertura. Ninguém

ama se não se abrir. Em outras tribos, todos os parentes tocam as

crianças até uma certa idade, como forma de lhes ofertar um pouco

de pele, assim, o toque constitui-se num alimento essencial ao

desenvolvimento afetivo e psicológico delas. Ainda hoje, no oriente

e na África, é comum que, nas refeições, os alimentos sejam

servidos em um prato comum, assim como se praticava no medievo

europeu. Nesse caso, havia na Europa certas regras básicas como a

obrigação de servir-se do primeiro pedaço que encontrasse, de não

ficar escolhendo partes, a necessidade de limpar a colher antes de

passar ao outro – isso quando os alimentos não eram comidos com

as próprias mãos. Partilhar um prato comum é mais do que partilhar

o alimento comum, é estar frente a frente com aqueles que

convivemos, assim, a abertura ao diálogo ganha novamente a cena.

Após a ceia ou durante ela, partilhavam-se vidas e histórias. A arte

de contar histórias após ou durante o jantar é tão antiga quanto o

próprio homem. Remonta aos primórdios quando o meio-homem-

meio-simiano reunia-se em volta do fogo, vislumbrando ali diante

dele a caça, mas também as estrelas e os raios do céu. Neste

cenário, nasceram as primeiras narrativas. Na África, ainda hoje, é

comum observar nas vilas velhos e jovens reunirem-se após o jantar

para contar histórias. Lá, existem os contadores oficiais de histórias,

geralmente anciões ou iniciados. Contudo, nada impede que alguém

possa pedir licença e contar a sua própria história. A história como

partilha e a narração ou contação como testemunho da saga humana

sobre a terra foi um dos elementos mais tocados nas entrevistas que

realizei. Boa parte dos entrevistados apontavam ―a narração‖ como

um elemento da sabedoria da comunicação. De fato, a comunicação

humana, em seus vários matizes, técnicos ou não, desenvolveu

sobremaneira a capacidade de contar histórias: novelas, filmes,

peças publicitárias, peças teatrais, livros, sites, diários virtuais,

programas de rádios, músicas, tudo parece nos contar, por todos os

lados, histórias. Contudo, esse aumento da capacidade de contar

histórias não quer dizer que tenha fomentado o auto-conhecimento.

Afinal, como bem disse Walter Benjamin nos ensaios Experiência e

Pobreza e O Narrador, a cultura de massa parece ter diminuído

nossa capacidade de imaginar e viver experiências fundamentais, já

que temos tudo pronto e enlatado.

41. Não é segredo para ninguém que a palavra comunicação deriva

da palavra comunis que, acrescida do sufixo ie, fazer, tornar, dá-lhe

o sentido de um ―fazer comum‖. Também não é segredo para

ninguém que comunidade e comunicação têm o mesmo radical. O

que não parece claro, no entanto, é que tenhamos explorado

suficientemente, seja na cosmontologia, seja na antropologia, a

possibilidade do homo comunis, aquele gênero engendrado em

torno da convivialidade das trocas e compartilhamentos, e que

podemos definir também como um sujeito-aberto-propenso-à-

partilha. Mas, como sabemos, a história do homem como sujeito

voltado para o diálogo não é nova nem recente. Martin Buber, Paulo

Freire, Jurgen Habermas, David Bohn e Edgar Morin, entre outros,

já insistiram nisso. Sobre o problema da participação, da igualdade,

das trocas lingüísticas, do poder, etc, já sabemos de suas derivas e

necessidades. Talvez o que precisamos ter em mente agora é a

necessidade de uma volta à sabedoria dentro das sete dimensões

básicas do indivíduo: intelectual, emocional, espiritual, físico,

social, comunicacional e criativo. Tanto o diálogo como a ausência

dele foram apontados também como relevantes no desafio da

comunicação que busca a sabedoria. Muitos comentavam: ―A

comunicação tem de voltar a investir no diálogo‖. Novamente, que

ironia, pensava, como pode haver comunicação sem diálogo?

42. Dia = através de, dois, e logos = palavra, conhecimento, é a raiz

etimológica que principia a busca da sabedoria através dos saberes

da comunicação. Mas que saberes, além da prática do diálogo

podemos aqui vislumbrar? São muitas as formas de diálogo:

consigo, com o outro, com as materialidades (os objetos presentes

na natureza) e com as imaterialidades (seres, entidades, forças

invisíveis e divindades). Em algumas dessas dimensões, o homem

apenas engatinha no seu conhecimento. É certo que já sabemos

muito de nós mesmos, das sociedades, da cultura, do nosso

organismo físico.... Mas muito ainda temos a aprender. Para não nos

estendermos em todos esses campos, gostaria de citar aqui apenas

uma única dimensão esquecida pela formalidade acadêmico-

científica da comunicação: trata-se da transcomunicação.

Considero que o acesso direto ao outro pela palavra falada faz com

que o diálogo frente a frente com um Guia espiritual, por exemplo,

numa seção de Umbanda seja uma das maiores revoluções

comunicacionais do século XXI. O homem e os espíritos dialogam

não mais em sentido figurado, mas agora em sentido físico. Assim,

o homem tem acesso a si mesmo através de um Guia espiritual e,

com ele, pode chorar, rir, conversar, pedir auxílio, ouvir. A

conversação aqui diversifica-se porque o homem lida com o

universo ordinário do cotidiano e com o cosmo extraordinário dos

deuses, presentes em Terra através de seus representantes. Em todas

as escolas psicológicas sabemos da importância da palavra e do

diálogo no tratamento de qualquer sintoma. A própria medicina já

aponta como solução de muitos males orgânicos, a atenção, o

carinho, o toque e a capacidade de ceder a palavra ao outro. Essa

forma de gerenciar artisticamente a vida (que a biologia moderna

chama de Bionomia) utilizada pela Umbanda, faz com que o outro

se sinta sujeito de sua própria história. Tudo isso sem contar outros

níveis artísticos como a contemplação da natureza, base mesmo do

próprio princípio Theos, de abstração, elevação e ideação presentes

nos conceitos de teoria, teologia, teosofia, teogonia, etc. Em todos

esses níveis, a sensibilidade para a absorção, aprendizado e troca

com o outro figura como manifestações de fundo.

43. Se por um lado a comunicação facilita o entendimento e a

compreensão, por outro provoca ruídos e ignorâncias de toda

ordem. O número de informações disponíveis em nossa sociedade

não ampliou o entendimento mútuo. Elevou-se o número de

informações, mas o mesmo não ocorreu com a compreensão. O

problema da comunicação não é só a mensagem, a emissão ou a

recepção, mas o entendimento. Por isso, em certo sentido, a

comunicação deve valorizar a tradução como parte facilitadora ao

entendimento. Ela pode ser uma via magnífica de acesso a si mesmo

e ao mundo. Costumo dizer, para descontentamento de muitos, que

o jornalismo e a publicidade poderiam ser estudados dentro dos

cursos de Letras, num departamento de Tradução. Pois a

comunicação exige sempre tradução. Em todas as suas vertentes, ela

é social e humana, além do que, como a tradução, trai o sentido

sempre, aproxima, diz quase a mesma coisa, como observou

Umberto Eco recentemente. Os tradutores são agentes da

compreensão, pontes e canais de acesso ao sentido e à mensagem,

devem, por um lado, obediência (ob audiare, saber ouvir) ao

conteúdo, por outro, vivem o ‗inferno das formas‘ possíveis do

dizer e do expressar. Assim como o jornalismo e a publicidade, a

tradução necessita de técnica, de dom e de criatividade. Hugo

Zemelman ao escrever Los horizontes de la razón, insinuou que

toda comunicação é tradução por exigir sempre decodificação, em

todos os níveis. Para ele, são quatro as racionalidades humanas: o

pensamento em si, a oralidade, a escritura e a imagem. Do pensar

para o falar ou para o escrever exige-se um processo de tradução,

ordem e compreensão; da imagem para a fala, a escrita ou o

pensamento, o mesmo; da fala à escrita e ao pensamento, a mesma

coisa e assim por diante. De um pólo a outro, vivemos traduzindo.

Poderia acrescentar aqui uma outra racionalidade um tanto

esquecida pelo filósofo mexicano, e que exige, da mesma forma,

tradução: a sensibilidade. Inclua-se aí o nível da experiência. Talvez

nada seja mais difícil do que traduzir sensibilidades. Se isso já é

complexo do ponto de vista subjetivo, que dizer da vida social?

Assim como a leitura de um texto, do mundo e de si, a fala, a

imagem, o pensamento, a experiência e a sensibilidade exigem um

processo contínuo, ordenativo e sistemático de agrupar níveis de

compreensão dentro de níveis de compreensão. Talvez seja por isso

que é tão difícil ao homem o entendimento. É certo que a técnica da

tradução é um dos saberes necessários ao entendimento humano,

um saber de fundo, que subsidia outros saberes, o problema é que

torná-la o centro das atenções (e dos projetos pedagógicos) é um

equívoco. Até mesmo a técnica necessita ser compreendida, re-

situada, precisamos por isso compreender o papel da técnica e não

sermos dominados por ela. Compreender ao outro, ao mundo e a si

mesmo exige portanto esse saber ouvir os reclames da palavra e do

silêncio, sem medo de enfrentá-los.91

44. Devemos ter esperança no homem? Os horrores que ele provoca

parecem não ter fim nunca. Esse estado de coisas nos deixa um

tanto perplexos e divididos. A dimensão política é uma arte de

difícil acesso e prática, mas inevitável. Definitivamente, acho que

viver em comunidade/sociedade é um saber que não aprendemos

ainda. Joel de Rosnay, no ensaio O homem: gênio individual, idiota

coletivo salienta que os insetos sociais (formigas, cupins, abelhas e

outros) sabem viver socialmente porque renunciam à sua

individualidade, enquanto nós, por não renunciarmos a ela, não

sabemos viver assim. Mas temos mesmo de renunciar para aprender

a viver em comunidade? A poesia e o imaginário parecem ter

perdido total espaço na política, que se tornou sinônimo de

negociação (quisera fosse uma negociação a la Habermas) e de

poder (como definiu Foucault e Bourdieu, entre outros). Talvez, se

Platão pudesse reformular a sua República, expulsasse desta vez os

políticos profissionais e não os artistas. Talvez até sugerisse os

poetas no poder. Talvez seja isso, a política se tornou sinônimo de

poder e não de relação em prol da convivialidade, da integração e

das necessidades humanas. A política de comunicação virou estudo

de leis e normas legais, nem sequer se lida mais com a dimensão

primeira, a dos relacionamentos, nem com a dimensão comunitária,

a sua teleologia.92

45. Em que pese o fato de comunicação e comunidade terem o

mesmo radical, o comunis, e visarem o mesmo homo, ambas

parecem não mais dialogar. Até parece que a noção de relações

sociais, tão cara a todas as ciências sociais, se perdeu no seio do

pensamento comunicacional, relega-se ela à sociologia e depois não

se fala mais nisso. Talvez por não saber onde ela está ou por não

saber o que significa isso. Não, a comunicação sabe bem o que

significa e lida com isso restringindo-a a grife ―mídia‖ eletrônica,

impressa, digital, etc, apresentando-se, por sua vez, como uma

especialidade, o ramo de compreensão midio-tecnológico às

ciências sociais. O problema é que a questão comunitária ultrapassa

essa redução que o pensamento comunicacional lhe agrega. Se a

comunidade apareceu nas respostas das minhas entrevistas como

um valor e um saber a ser destacado, é porque a comunicação não

perdeu de todo o seu sentido político-relacional. Não é só lazer,

informação, coesão social, democratização de temas, crítica, o que

ela deve nos oferecer através da mídia, mas formas de partilha

radical para o desenvolvimento comunitário. Mas essas formas de

partilha buscamos não é de hoje e não é de hoje que nos

atrapalhamos todos em interesses, necessidades e contradições tão

presentes e inerentes a qualquer processo político-comunicativo.

46. Vivemos na sociedade da palavra vulgarizada. Nem nos damos

conta mais do valor e do cultivo do silêncio. O silêncio envolve a

palavra e a palavra, uma única que seja, diz o poeta Roberto

Juarroz, é uma ―casa de espelhos‖, um mistério com muitas faces e

perspectivas. Talvez o essencial de toda a palavra e de toda relação

seja o seu silêncio, já que é bem possível que uma palavra nada

explique.Silêncio e palavra: muitas vozes no corpo do texto da vida,

dois fios distintos cosendo a mesma tessitura: a da vida e suas

relações. Muitos diálogos são um itinerário rumo ao silêncio que,

por sua vez, não é só um passivo inexpugnável, encena um valor

precioso, absoluto, já que no fundo de toda dificuldade de

comunicação habita uma zona de silêncio. Quem, no diálogo, não

está preocupado em fazer afirmações, mas em colocar demandas,

perguntas e possibilidades, ganha em abertura. O problema é que

nesse caminho reflexivo a ruminação nos leva a um território

desconhecido, distante dos percursos seguros.93

47. A arte de calar, certamente, é mais difícil do que a arte de falar,

mas a dificuldade de falar amplia-se para quem, no diálogo,

impossibilita a diversificação dos pontos em comum, base para o

entendimento. O ponto em comum reside no fato de que a

continuidade entre uma conversação e outra (ou entre um silêncio e

outro) depende da possibilidade ou impossibilidade de comunicar

algo a alguém, assim como depende da distância dos elementos

comuns, como a herança biológica, dos elementos cíclicos, dos

elementos irreversíveis e dos elementos de diversidade, que cada

época traz consigo, a depender da herança histórica. A continuidade

acontece sempre de um modo ou de outro (seja por mímese ou por

rupturas), mas a distância (entre as gerações, por exemplo,

permanece). Mesmo assim, a comunicação possibilita sempre

pontos em comum, identificados tanto na herança biológica quanto

na herança histórica, tanto nos elementos cíclicos quanto nos de

diversidade. Assim, meio discurso e meio silêncio complementam-

se como formas de garantir o fluxo e a coerência dos sentidos e são,

ambos, necessários para a emergência da comunicação.

48. O silêncio não aparece apenas como fonte de onde brota a

linguagem, mas como algo que pode expressar para além da

linguagem, apresenta-se como o pano de fundo de toda a

comunicação humana, como uma arte difícil de exercitar, porque

urge perscrutar nela os reclamos da própria linguagem. Com a

palavra, podemos influir positivamente nos acontecimentos, mas

também aumentar o trânsito, o ruído e a confusão. Com o silêncio,

podemos pecar também pelo excesso (o excesso de reserva) de tal

modo que meio a meio, silêncio e discurso parecem desemparelhar

e reaparelhar o sentido da comunicação. É ao silêncio ou à palavra

que tende toda a linguagem? ―É o silêncio a pontuação da voz ou a

voz a pontuação do silêncio?‖, diz Juarroz. Se todas as relações

tendem a se desemparelhar e reaparelhar no silêncio e nas palavras,

uma pontuando a outra, ambas responsáveis pela manutenção do

fluxo comunicativo, deveríamos dar mais atenção aos ensinamentos

advindos dessa relação: contemplação, auto-reflexão, meditação,

desejo de invisibilidade, conhecimento e auto-conhecimento.94

49. A dimensão holística e espiritual apareceu de forma

surpreendente em várias das respostas dadas. Uma delas dizia: ―Há

uma dimensão/saber pouco ou nada explorada, é a dimensão

espiritual, a dimensão dos mediadores ou médiuns como dizem.

Não serão eles também formas de mídias?‖, dizia uma resposta que

recebi por escrito. Outras se manifestaram na mesma direção,

destacando que cabe à comunicação investir na heterodoxia.

50. A espiritualidade é um processo de vitalização, internalização e

externalização de forças e energias no seio da humanidade; é um ir-

além-comunicativo que é meramente terreno e que em si seria

destinado à caducidade. A concepção moderna de mundo, elaborada

a partir da física quântica de Niels Bohr e da teoria da relatividade

de Albert Einstein em combinação com o princípio da

indeterminação de Werner Heisenberg, sugere representar o mundo

como uma complexa combinação de energias. Tudo, no fundo, é

energia, dizem essas concepções. A própria matéria é um momento

da energia que se cristaliza e o universo das energias é constituído

por um tecido de relações. Emerge assim uma espiritualidade

segundo a qual o que é humano só pode ser definido a partir de uma

integração do homem com as plantas, as águas, o ar, os animais, os

outros homens e as condições saudáveis de vida material. Tudo

interage, e se tudo interage, tudo possui um vínculo de

comunicação. Até as pedras possuem sua lógica de interação. Elas

são mais do que simples composição físico-química, estão em

contato com a atmosfera e influenciam a hidrosfera, interagem com

o clima e se relacionam com a biosfera. Sem contar que as pedras

podem falar ao imaginário do poeta e ao coração do místico, podem

passar mensagens de fortaleza, força, majestade, grandeza,

solenidade e paciência. Por volta dos anos 30 do século XX,

Theilhard de Chardin havia intuído que, quanto mais avança o

processo evolucionário, mais ele se complexifica, mais se

interioriza; quanto mais se interioriza, mais consciência possui e

quanto mais consciência possui mais se torna autoconsciente. Por

isso a espiritualidade tem também como característica a autopoiesis.

A capacidade e a força da auto-organização. A autopoiesis é

fundamental para entender a comunicação pois há uma sinfonia

secreta acontecendo a todo momento em todos os corpos com vistas

ao equilíbrio, como se o universo inteiro fosse regente de uma

melodia de encontro que o une o ínfimo com o máximo, o dentro

com o fora, o visível com o invisível.

51. Como tudo evolui, a comunicação também evolui. Pode ser que

parte da sua evolução no século XXI aponte a dimensão espiritual.

Nesse sentido, os médiuns ou mediadores são um vasto campo de

estudo porque são senão mais sensíveis, mais abertos a esses

contatos. Têm a capacidade de pôr em relação o mundo visível com

o invisível. Esses mediadores são canais pelos quais passam os

fluídos energéticos, eles podem, por conseguinte, sofrer com o

ruído, falhas, confusões e estão sujeitos à segunda lei da

Termodinâmica: a entropia. A entropia é o grau de desagregação de

um sistema, enquanto que, na primeira lei da termodinâmica, todo

sistema tende ao equilíbrio, na segunda, ele tende sempre a se

desestabilizar. Os mediadores são canais que podem estar sujeitos

também à redundância. A redundância é o grau de recorrência de

uma mesma informação sobre o sistema, assim, quanto mais

retroação da informação (energia) sobre o canal (mediador), tanto

mais inteligibilidade. Caso haja ruído, esse entendimento é

prejudicado. As formas de ruído são as mais diversas e podem

ocorrer sob diversas circunstâncias, desde a interferência do canal

até a ininteligibilidade da informação.

52. O amor talvez seja a forma mais elevada de comunicação, por

não prescindir da experiência sensível. É um mover-se rumo a si

mesmo e ao outro; construção de vínculos e ligações valiosas que

infundem na vida o desejo de mais vida. Amamos de muitas formas

diferentes e, mesmo aquelas mais complexas, implicam um certo

grau de interação-integração. Integração consigo e com o outro é

algo que exige tempo e paciência, dois valores que parecem ter se

perdido no turbilhão da sensibilidade humana. O encontro amoroso

não é apenas um mero encontro, mas uma trama secreta do destino,

do tempo e do próprio coração. Quando duas pessoas começam a se

aproximar movidas por um magnetismo qualquer, que nome, rótulo

ou classificação poderíamos dar ao que move esse encontro, senão

comunicação? Talvez, no amor, devamos deixar um espaço

reservado para o que excede os limites da lógica. E a comunicação

quer ser lógica demais, quando nem sempre tem condições de sê-lo!

Talvez o amor devesse ser explicado a partir dos limites da

comunicação de corpos, sensibilidades, racionalidades, e do que

excede esses limites. Assim, deixaríamos um espaço para um saber

menos pretensioso e arrogante. A verdadeira comunicação amorosa

é sempre partilha. Inerente ao homo comunis, implica na aceitação

do outro sem exigências pois é inimigo da tirania e do abuso, abre

um espaço para a cooperação e não à apropriação. Sem o amor não

somos seres sociais, diz Humberto Maturana. Como fundamento do

tecido social, trata-se de um domínio qualquer nas interações que o

faz durar somente enquanto persistir, encerrando em si o que ele

tem de mais pontual a ensinar à comunicação: as virtudes da

cooperação.

53. Todos esses tópicos suscitados aqui apontam para velhas - mas

sempre atuais - questões da comunicação: partilha, abertura,

diálogo, compreensão, comunidade, silêncio, espiritualidade, amor

são temas recorrentes, uns mais outros menos, que, por vezes,

vemos serem abordados e novamente tematizados. Outra não foi a

intenção desta meditação reflexiva. Se penso uma contribuição

conceitual e existencial da comunicação em nossos dias, ela parte

de uma retificação de caminhos. Uma epistemologia fundamental

requer que se reconheçam as bases onde se assentam os

conhecimentos comunicacionais. É certo por isso que poderíamos

ter ampliado o leque de temas a partir das respostas dadas: as

questões da técnica, do uso da palavra, da contação de histórias

(minimamente abordada aqui), das organizações, da informação

propriamente dita, etc. Sem dúvida, poderíamos destacar aqui

muitas outras formas de busca da sabedoria através dos elementos

presentes na comunicação, mas preferimos destacar apenas esses

oito como pontos de partida para novas explorações. É certo que os

campos profissionais não estão hoje associados ao desenvolvimento

da sabedoria humana, muito embora não exista conhecimento que

não possa ser trabalhado em seus conteúdos eco-existenciais. O que

chamamos de comunicosofia portanto não é nada mais do que uma

busca, um desafio e uma tentativa de reformar o pensamento

comunicacional, repensando-o noutro patamar, menos técnico, mais

humano e relacional, mais aberto, integrador das diversas faces da

nossa existência comunis.

54. Talvez por termos uma existência comum é que a política seja

algo tão importante em nossas vidas. Cegas para a poesia e a arte

tem sido, sem dúvida, a política. Há quem diga, como Juarroz, que

política e poesia não se misturam. Mas eu quero duvidar. Há quem

aposte numa Poe-política, uma dimensão artística da vida prosaica

ou uma dimensão lúdico-artística da vida social. Quem viu uma

dimensão peculiar à política foi Huizinga ao resgatar um sentido

medieval, perdido (e talvez até falso) do termo. Ele via em poli a

tradução para multiplicidade e em icos a idéia de guardião. Nesse

sentido, político seria o guardião da multiplicidade entre os homens,

o protetor da diversidade.

55. polis = cidade; icos = guardião também explica o termo.

Invertendo Platão, poderíamos dizer que os políticos é que deveriam

ser expulsos da polis pois corrompem a alma da cidade.

56. O homem inventou mil formas de governança. Conselho de

sábios, anciãos, tiranias, autocracias, aristocracias, cosmocracia,

teocracia, democracia. Mas nem sempre essas formas relacionaram-

se com a sabedoria. Poder e política quase sempre confundem os

homens e quase nunca se dissociam. Poder, política e sabedoria,

contudo, quase nunca, infelizmente, se relacionam. Os antigos

egípcios tinham, em matéria de política, uma máxima: ―tudo pelo

povo, nada com o povo‖.

57. Dois vocábulos gregos são empregados para compor as palavras

de que designam os regimes políticos: arché: o que está a frente, o

que tem comando; e kratos (cracia). Assim, podemos desenhar:

monarquia: governo de um só; oligarquia: governo de alguns;

poliarquia: governo de muitos; anarquia: governo de ninguém;

autocracia: poder de uma pessoa reconhecida como rei; aristocracia:

poder dos melhores; democracia: poder do povo.

58. É político o regime no qual os governantes estão submetidos às

leis. Quando a lei não coincide com a vontade pessoal e arbitrária

do governante, não há política, mas despotismo e tirania. Quando

não há lei de espécie alguma, não há política, mas anarquia. Um

regime é legítimo quando, além de legal, é justo (as leis são feitas

segundo a justiça). Os regimes se transformam de acordo com as

mudanças econômicas e as guerras: aumento do número de ricos ou

de pobres, conquista de territórios, etc.

59. A política é também gestão de informações, ações e homens.

Arte dos riscos, para muitos a política não passa de administração

pública. Administração é ação coordenada, por vezes técnica,

enquanto a política é coordenação da coordenação, simultaneamente

arte e técnica, administração e para-administração, gestão de ordem

e caos, relação e negociação, sonho e ação, ética e estética.

60. Política e circo sempre se relacionam. Do ―pão e circo‖ dos

gregos até o circo da mídia das campanhas eleitorais, até a intenção,

velada ou não, de fazer do povo palhaço, passando pelo jogo de

cena, ilusionismo, adestramento de mentes, etc. Política não é circo,

mas exercício ético, exercício de táticas e estratégias, meios e fins.

Deve ser por isso que alguém uma vez perguntou ao professor:

―Mestre, se teocracia é o governo de deus, democracia é o governo

do demônio?‖

61. Quem dera os políticos soubessem ler os polens. Perceberiam as

sutilezas que existem nas coisas antigas. Isto porque os polens têm a

idade da terra, registram os lugares, depositam-se sobre o mundo

para nunca mais sair. Quem dera o mundo fosse governado por

artistas e médicos de alma. Filósofos espirituais são os poetas.

Embaixadores doutras dimensões.

Sobre o autor:

Gustavo de Castro e Silva nasceu em Natal, Rio Grande do Norte,

em 1968. Formou-se em Jornalismo pela UFRN e, após concluir a

graduação, virou monge franciscano. No seminário, estudou

filosofia, teologia e mística espiritual. Após alguns anos, deixou o

mosteiro e dedicou-se à vida acadêmica. Fez mestrado em Educação

e Comunicação, também pela UFRN, e doutorado em Antropologia

pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com uma tese

sobre o escritor Italo Calvino. Vive atualmente em Brasília, onde

leciona na Univerisdade Católica de Brasília (UCB) e na

Universidade de Brasília (UnB). É coordenador de pesquisa do

Instituto Hermeum de Ciências Filosóficas e Antropológicas onde

desenvolve uma pesquisa sobre Poesia e Pensamento. Organizou,

em parceria com Maria da Conceição de Almeida e Edgard de Assis

Carvalho, Ensaios de Complexidade (Sulina, 1997); em parceria

com Alex Galeno, organizou Jornalismo e Literatura - A Sedução

da Palavra (Escrituras, 2002) e Complexidade àFlor da Pele

(Cortez, 2003), este, com a contribuição de Josimey Costa. Publicou

com Florence Dravet os livros Sob o Céu da Cultura (2004) e

Arvorescendo - Livro para Espíritos Sensíveis (2005), ambos pela

editora Casa das Musas.

NOTAS

1 Cf. Edgar Morin / Heterologia, segundo Michel Maffesoli, ou

o saber do múltiplo. 2 Cf. Donaldo Schuler. 3 “Rio sem discurso”, de João Cabral de Melo Neto. 4 “Perdemos a noção com-um quando permitimos que o saber se

parta em poços”, Donaldo Schuler.

5 Interação, informação, diálogo, vínculo, linguagem,

processo, partilha, comunidade, discurso, educação, relação,

manipulação, influência, persuasão, narração, retórica,

farmácia, atividade sensorial e nervosa, lementos

desencadeador e delimitador, modelo, formação, compreensão,

entendimento, interpretação, história, mito, cooperação.,

socialização, expressão, tautologia, ecologia, política,

jornalismo, cinema, publicidade, marketing, RP, literatura,

artes... 6 Silêncio 7 “Para lavar velhas mágoas, é preciso beber mil frascos”. Li Po. 8 “O silêncio foi a primeira coisa que existiu...” Arnaldo

Antunes. 9 Roland Barthes, “O Neutro”. 10 Sephirot: substantivo plural, termo da Cabala. Nome dado

às dez perfeições da divindidade, cujo conhecimento é o mais

alto grau da vida contemplativa. Elas eram: coroa.

Sabedoria, inteligência, força, misericórdia, beleza,

vitória, glória, fundamento e realeza. 11 Francis Bacon, “Ensaios morais”

12 Para os Donatistas, cristãos cismáticos do Norte da

África, no séc. IV d. C., Agostinho é o modelo de

intolerância. 13 Bacon, “Dignité des sciences”.

14 “Os Silêncios” In: Porta Giratória [livro de Mário

Quintana). 15 Corpo

16 “O corpo e seus símbolos”, de Jean Yves Leloup. “O Corpo

Fala”, de Pierre Weil. 17 In: O corpo e seus símbolos. Prefácio.

18 Emil Cioran, “Livro de las Quimeras”.

19 Filosofia e estética do abraço, de Maria da Conceição de

Almeida. Comunicação como abraço. Complexere (latim) = tecer

/ Complexus (grego) = abraçar. 20 Será isto auto-ajuda? A comunicação serve para auxiliar o

eu e a sociedade a encontrar a paz? 21 O comunicador

22 Fragmentos do Espólio, Brasília: UnB, 2004.

23 Goethe

24 “Synapsis (conjunção), significa contato físico,

organização de idéias, elaboração de planos, conversa,

entendimento amoroso e, em sentido hostil, colisão de

exércitos”. Donaldo Schuler. 25 Comunicador e tradutor.

26 Do evangelho de São Jerônimo. In: Socráticas.

27 Comunicador-tradutor-criador.

28 Comunicação: a brecha.

29 Henri Bergson, 1888. Ensaio sobre os dados imediatos da

consciência, PUF, 1946. pp. 123-124. 30 “Considero como sagrada a desordem de meu espírito”. A

Rimbaud / “Desarmonia sinfônica das almas” Carlos de Sousa.

/ Mia Couto, “Cronicando”, Lisboa: Ed. Teorema. 31 Daimon, palavra grega que significa gênio criador,

instigador. O pensamento católico a traduziu como demônio. 32 Jean Chevalier e Alain Ghreebrant

33 “Quando Deus entendeu a si mesLmo, ele gerou a si mesmo e

à sua antítese”. Nietzsche. 34 “Os nomes não designam as coisas: as envolvem, as

sufocam”. Roberto Juarroz. 35 Michel Maffesoli, Comunidade Localizada, In: Sob o Céu da

Cultura. 36 O nome

37 Homem-anúncio

38 Marca

39 Coisa

40 In: Ontologia da Realidade.

41 Walter Benjamim valoriza a figura do narrador, num texto

homônimo. / Theodor Adorno / Pierre Bourdieu. 42 Retrato Natural/ Mar abosluto. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1993. 43 Juremir Machado da Silva, A Miséria do Jornalismo

Brasileiro. Petrópolis, Vozes, 2000. 44 Poesia Vertical, Buenos Aires, Emecé, 1997.

45 O Vendedor de Passados. Rio de Janeiro: Gryphus, 2004.

46 “O ser humano deve ser o meio entre a planta e o

fantasma”. F. Nietzsche. 47 Nouveaux essais sur l’entendement humain

48 Roberto Juarroz Poesia e ealidade.

49 Platão, por volta de 386 a.C.

50 Crátilo. 433d. a 435c. Les Belles Lettres, 1969.

51 Friedrich NIETZSCHE, 1873. O livro do filósofo, III,

Flammarion, 1969, p. 179. / (1) Chladni (Ernst Florens

Friedrich), 1756-1824. Físico alemão que estudou as

vibrações acústicas por meio de figuras de areia. 52 Lewis Caroll, 1871. Do outro lado do espelho, Aubier,

1976. 53 Denis Diderot, por volta de 1765. Pensamentos soltos sobre

a pintura. Garnier Frères, 1877, XII, p. 77. 54 Wilhelm von Humboldt, 1829. Da diversidade das estruturas

da palavra humana e sua influência no desenvolvimento

espiritual da espécie humana, §20. 55 Tractatus Lógico-Philosoficus

56 Decimocuarta Poesia Vertical

57 Ver A Chama de uma Vela, de Gaston Bachelard.

58 Nos vedas, Agni (em sânscrito) é o deus do fogo. o mais

antigo e venerado dos deuses da India. Agni, Voyu e Surya

eram a trindade do fogo. Agni é o fogo na na terra, Voyu é

o fogo na atmosfera como o raio, e Surya é o fogo no céu.

como o sol. 59 Convite à Filosofia. SP: Ática, 1996.

60 Remédio = a palavra cura. Veneno = a palavra mata.

Cosmético = a palavra embeleza e mascara. 61 “A televisão é um chiclete para os olhos”. Frank Lloyd

Wright, arquiteto americano (1867-1959). 62 Poema “Jornal, Longe”. In: Mar Absoluto/Retrato Natural.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. 63 Ver sobre isso o texto “Pobreze e experiência”, de Walter

Benjamin. 64 Conferir Marilena Chauí, Convite à filosofia. Para ela, as

hipóteses para a origem da linguagem são quatro: 1. a

linguagem nasce por imitação. Os humanos imitam pela voz os

sons da natureza e, dessas onomatopéias ou imitações, nasce

a linguagem. 2. a linguagem nasce da imitação dos gestos,

pela pantomima ou encenação na qual cada gesto indica um

sentido. Pouco a pouco, cada gesto passa a ser acompanhado

de um som e estes se tornaram gradualmente palavras. 3. a

linguagem nasce da necessidade, a fome, a sede, o abrigo,

necessidade de reunir-se em grupo, formar comunidades. A

necessidade fez nascer palavras que exprimiam essas

necessidades. Formaram, a princípio, um vocabulário

elementar, rudimentar, gradativamente, tornou-se mais

complexo e transformou-se numa língua. 4. a linguagem nasce

das emoções, particularmente do grito, do medo, surpresa e

alegria. Nasce das paixões e, nascendo assim, é primeiro

linguagem figurada e por isso, surgiu como poesia e canto,

tornando-se prosa depois. As vogais nasceram antes das

consoantes, como a imagem nasceu antes da escrita. Primeiro

os homens cantaram seus sentimentos, depois exprimiram seus

pensamentos. Marilena Chauí, op cit, p. 140. 65 “A maior dor do vento é não ser colorido”. Mário Quintana.

66 Prigogine, Ilya. Ciência, razão e paixão. Belém: EdUFPA,

2001. 67 Morin, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 1998. 68 Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

1996. 69 Gusdorf, Georges. Mito e metafísica. São Paulo: Convívio,

1980. 70 Kolakowski, Leszek. A revanche do sagrado na cultura

profana. In: Rev. Religião e Sociedade. Maio/1977, N. 1. 71 Moraes, Regis de. As razões do mito. Campinas: Papirus,

1988.

72 Seis propostas para o próximo milênio. SP: Cia das Letras,

1990. 73 “A única pessoa que gostaria de conhecer profundamente sou

eu mesmo”. Oscar Wilde. 74 Edgar Morin, O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre:

Sulina, 2004. 75 Dístico do livro História das Ciências, Michel Serres

(Org.). Lisboa: Teorema, 1994. 76 Livro de Ítalo Calvino, Palomar (1996)

77 H. von Foerster, Epistemology of communication, IN:

Woordward, K. (org.) The Myths of information, Londres,

Routledge and Kegan Paul, 1980. 78 Altos e baixos, poesia de José Paulo Paes In: Socráticas.

SP: Cia das Letras, 2001. 79 “Onde os cientistas chegaram os artistas já tinham

chegado”. S. Freud. 80 Crise = krisis = acrisolar. krino (grego) = crítico =

critério 81 Idéia de Edgar Morin

82 Do fragmento 69 até o 85 foi publicado originalmente como

prefácio do livro Sob o céu da cultura, Ed. Casa das Musas –

Ed. Thesaurus, 2004. 83 Bohm, David. Sobre el diálogo. Barcelona: Kairos, 1997. /

Rosnay, Joel. O homem: gênio individual, idiota coletivo.

In: Castro, Gustavo de. et alli. Ensaios de Complexidade.

Porto Alegre: Sulina, 1997. 84 O alienado é uma espécie que silencia diante do mundo. As

emergências ao humano são tratadas como contigências. /

Segundo Lins a Silva “as fontes interpessoais e as

instituições mais próximas dos indivíduos são mais

influentes” 85 Certau diz: “ o cotidiano se inventa com mil maneiras de

caçar não autorizada”. / Os homens se odeiam uns aos outros.

(Freud) 86 “A vida não é fácil: é a arte do encontro, apesar de ser

feita de desencontros”. Vinícius de Morais. 87 Eclesiastes 1,8. O que seriam das religiões fundadas sobre

textos, ditos sagrados, se não fosse a palavra escrita? (Ex:

Bíblia, Alcorão, Livro dos Espíritos...) 88 Poesia Vertical, XI,4.

89 Fragmentos do Espólio. Brasília: UnB, 2004.

90 Do fragmento 33 ao 55 foi originalmente publicado In:

Dravet, Florence; Castro, Gustavo de. Sob o céu da cultura,

Brasília, Ed. Casa das Musas – Ed. Thesaurus, 2004. 91 Zemelman, Hugo. Los horizontes de la razón: uso crítico de

la teoria. Vol. I e II. Barcelona: Anthropos; México: El

Colégio de México, 1992.

92 Castro, Gustavo de. et alli. Ensaios de complexidade.

Porto Alegre: Sulina, 1997. 93 Juarroz, Roberto. Decimocuarta poesia vertical/Fragmentos

Verticales. Buenos Aires: Emecé, 1997,p.128. / Macherey, P.

In: Pimenta, Alberto. O silêncio dos poetas. Lisboa: A regra

do jogo, 1978, p. 98 / Nietzsche, F. Vontade de potência.

Trad. Mário F. Santos. Rio de Janeiro: Ediouro, p. 288 94 Calvino, I. O contraste entre o mundo e a palavra. In: O

Estado de S. Paulo, 18/3/84. P.2 e 3. Originalmente uma

conferência preparada para o “James Lecture” (1983) no New

York Institute for the Humanities.