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26/12/2017 Guerra Colonial. Ernestina e “os lutos inacabados do império” https://www.publico.pt/2017/12/24/sociedade/noticia/ernestina-e-os-lutos-inacabados-do-imperio-1796650?page=/&pos=2&b=latest_news_a_v2 1/17 GUERRA COLONIAL Ernestina e “os lutos inacabados do império” Durante os primeiros seis anos da guerra colonial, o Estado só pagava o regresso de militares vivos. Permanecem até hoje enterrados em África cerca de 1500 corpos. Muitas famílias já os esqueceram, algumas ainda não. A arqueóloga Conceição Vitoriano Maia foi à Guiné desenterrar o irmão. Otília Gonçalves só quer trazer “o mano” de Angola. CATARINA GOMES 24 de Dezembro de 2017, 8:45 “Pedia a V.ª Ex.ª, pela sua saúde, já que não tive a sorte de trazerem o meu filho vivo, peço-lhe que mo mandem mesmo morto. Para eu o adorar e rezar ao pé

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GUERRA COLONIAL

Ernestina e “oslutosinacabados doimpério”Durante os primeiros seis anos da guerra colonial,

o Estado só pagava o regresso de militares vivos.

Permanecem até hoje enterrados em África cerca

de 1500 corpos. Muitas famílias já os esqueceram,

algumas ainda não. A arqueóloga Conceição

Vitoriano Maia foi à Guiné desenterrar o irmão.

Otília Gonçalves só quer trazer “o mano” de

Angola.

CATARINA GOMES 24 de Dezembro de 2017, 8:45

“Pedia a V.ª Ex.ª, pela sua saúde, já quenão tive a sorte de trazerem o meu filhovivo, peço-lhe que mo mandem mesmomorto. Para eu o adorar e rezar ao pé

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daquele bom querido filho. Peço imensadesculpa a V.ª Ex.ª destas minhas tristespalavras, mas a dor é tão grande que nãosei onde hei-de respirar. O nome do meufilho é Francisco da Luz Carloto.”

Sem querer, a carta de uma camponesaalentejana que não sabia escrever ajudou amudar um pormenor da história.

Maria Florinda da Luz tinha sidoinformada por telegrama que o filho tinhamorrido na guerra em Moçambique a 19 deJaneiro de 1967. Se o quisesse trazer, teriade pagar 12 mil escudos, o que equivaleria,aos preços de hoje (de acordo com oconversor da Pordata), a cerca de 4 mileuros. Era impossível, mas a mãe dosoldado sentiu que, à sua maneira, tinha defazer alguma coisa.

“A minha sogra era uma mulher semestudos, mas bem resolvida”, lembra ao P2a nora, Brígida Leitão. Partiu dela a ideiade ir ter com quem sabia, “o senhorpresidente da junta”: “Ela a chorar disse-lhe tudo o que sentia, o que tinha nocoração” e ele lá organizou e arrumou asfrases à sua maneira, que assim seguiram,em tom submisso, para o ministro daDefesa, uma ousadia nos tempos quecorriam.

Desde que a guerra tinha começado, emAngola em 1961, que o Estado português sópagava a ida e o regresso aos militares

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vivos, não o dos mortos. Quem queriatrazer os seus tinha de pagar e quanto maislonge morria o militar mais caro: trazer umcorpo de Moçambique era o mais caro; daGuiné, por ser mais próximo, ficava umpouco mais barato, 7500 escudos (cerca de2500 euros), lembra o livro de AnicetoAfonso e Carlos Matos Gomes, Os Anos daGuerra Colonial 1961.1975 (QuidNovi), quecita a carta da mãe e explica as suasrepercussões.

“A transladação era incomportável para amaioria das famílias, era uma sociedaderuralizada, com hierarquias, com umadesigualdade mais nítida e aceite do que éhoje”, explica Carlos Matos Gomes. O que,na prática, acontecia é que eram as famíliasdos oficiais quem mais meios tinha parapagar pelo regresso dos seus mortos. “Atransladação era para uma elite social”,constata o autor e coronel na reserva.

A grande maioria dos mais de cerca 1500militares portugueses (de acordo com olevantamento mais recente feito pela Ligados Combatentes) que permanecem atéhoje enterrados em Angola, Guiné-Bissau eMoçambique “são soldados e cabos, háalguns sargentos e muito, muito poucosoficiais”, constata Carlos Matos Gomes.

1500 militares portuguesespermanecem até hoje enterrados em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique

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A não vinda dos corpos era uma das formasque assumia a pouca visibilidade da mortena guerra. Carlos Matos Gomes lembra,por exemplo, que, se morriam várioshomens numa operação, os jornais tinhaminstruções para diluírem as mortes porvários dias, em pequenas notícias a umacoluna, de um a dois mortos de cada vez,publicadas em páginas interiores. Alémdisso, nota, os mortos que chegavamvinham em navios de transporte dentro devulgares caixotes de madeira e as urnaseram desembarcadas longe da vista edesencaixotadas no depósito de adidos daAjuda. Mesmo os feridos chegavamdurante a noite.

A política de transladações permaneceuinalterada e sem grande polémica até à talcarta vinda da aldeia alentejana doconcelho de Nisa, Tolosa. Brígida Leitãosabia da carta, mas desconhecia que oEstado tinha passado a assegurar astransladações depois da iniciativa da sogra.O que sabem é que Francisco da LuzCarloto veio de Moçambique e estáenterrado no cemitério de Tolosa.

Foi pouco depois da carta, em Março de1967, que as Forças Armadas passaram aassegurar os custos da transladação doscorpos de África, mas a família tinha, àmesma, algumas despesas, por exemplo,pagar o caixão de chumbo e o transporte dohospital militar até ao cemitério da terranatal.

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Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomesconstatam na sua obra que, das 2238baixas ocorridas entre 1961 e 1966, naaltura, só foram trazidos para Portugal 326corpos, o que representava apenas cerca de15% do total de mortos desse período. Eravisível que os custos eram o grandeobstáculo porque de Moçambique, onde adespesa era maior, só vieram 5,5% doscorpos, de Angola 12,9% e da Guiné, porser um pouco menos oneroso, um poucomais, 27,2%.

Ernestina da Silva — que só este mês, 54anos depois da morte do pai em Angola, em1963, conseguiu transladá-lo para Portugal— não sabe se, na altura, foi sequer dada apossibilidade à mãe de pagar os 10 milescudos que eram exigidos à família, o queequivaleria a cerca de 4000 euros aospreços de hoje. Teria sido indiferente. Era

António Lopes da Silva, morto em Angola, em 1963. Só 54 anos depois conseguiu transladá-lo paraPortugal NUNO FERREIRA SANTOS

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impossível angariar essa quantia. A mãevivia da agricultura, plantava batatas,tomates, faziam azeite e vinho. Teve aliásde emigrar para a Alemanha, deixando afilha com oito anos a ser criada pelos avós.Os pais do soldado morto também poucopodiam fazer, eram agricultores, novefilhos. Nunca houve campa.

Ainda devolveram à família a aliança e omostrador do relógio Sigma que o soldadoAntónio Lopes da Silva usava quando foimorto, “que veio cheio de sangue”, e queErnestina conserva até hoje dentro de umacaixinha de veludo. Nunca ninguém da suafamília se lembrou de reclamar, nemsaberiam como o fazer. Era assim.Aceitava-se.

E não era só a impossibilidade de trazer ocorpo. À família nada foi dito sobre comotinha ocorrido a morte. Ernestina Silvasabia o dia em que o pai tinha morrido, 3de Outubro de 1963, que tinha morrido emcombate. Mais nada.

E esse não saber era “um nó” dentro deErnestina, mesmo com 56 anos. Emigradanos Estados Unidos, tornou o Facebook asua ferramenta de busca, fez-se amiga detodos os que a pudessem ajudar, sobretudopára-quedistas, como o pai era, e todas assemanas, ritualmente, ia “bisbilhotar” àssuas páginas. “Encontrei o meu pai”, disseà filha um dia, que não acreditou, “tu ésdoida”. Pediu logo o contacto ao sargentopára-quedista, Isidro Moreira Esteves, que

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tinha posto na sua página daquela redesocial uma fotografia de homenagem aosoldado António Lopes da Silva e queaceitou atender o telefone àqueladesconhecida já madrugada dentro. Estavatão feliz que nem deve ter pensado nadiferença horária, lembra o sargento nareserva. “Chorou, chorou uns bonsminutos” e Isidro deixou-a chorar.

"Foi como se ele me estivesse a dizer ‘obrigado, estouaqui’”Ernestina Silva

Isidro Esteves não tinha só posto afotografia do pai de Ernestina, como fazcom muitos outros pára-quedistas, eletinha-o visto morrer cinco metros à suafrente. Na aldeia de onde António Lopes daSilva era natural, Lobão da Beira (concelhode Tondela), circulou a certa altura orumor de que o soldado não tinha morridoem combate, que tinha sido morto numabriga com um colega militar, contaErnestina. Agora, aquele sargento nareserva vinha contar-lhe que o pai sevoluntariou nesse dia, estava de folga, eque era o homem que seguia à frente dacoluna com o seu cão de guerra, que nãoteve tempo para cheirar o inimigo que omatou com um tiro nas costas, à entrada deuma pequena clareira com capim. Tinhafeito 22 anos dias antes. “Durante todo otempo, o seu cão esteve sempre ao lado,sentado nas patas traseiras, recusandoafastar-se do tratador, e sempre a uivar”,

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contou o major José Calheiros nacerimónia fúnebre de 6 de Dezembro.Durante todos estes anos, tinha estadoenterrado num cemitério de Luanda, com oseu nome perfeitamente identificado.

Ter o pai num sítio onde pode Ernestina irvisitá-lo e saber como foi a sua morte,limpa de rumores, ajudaram a produzirdentro dela uma “paz incrível”, umamistura “de alívio e alegria”. No funeral,“foi como se ele me estivesse a dizer‘obrigado, estou aqui’”. Na lápide emgranito, que ainda está por fazer, vaicolocar as suas datas de nascimento, demorte e de “regresso a casa”.

“Mãe, o pai voltou para casa.” A filha disse-lhe a frase ao ouvido, como se sussurrada aessa proximidade a mensagem tivesse maispossibilidade de lhe chegar ao cérebro.Claro que a mãe não reagiu, só abre e fechaos olhos, está em coma há três anos, masera a pessoa para quem aquela mensagem,aquele funeral fora de tempo, mais teriatido importância. Ficou viúva aos 22 anos,sozinha a criar uma menina de dois anosque era Ernestina. Foi, por isso, a primeirapessoa a quem foi contar, mesmo sabendoque “a mãe já não está cá”.

António Victoriano, pára-quedista morto aos 21 anos, ficou enterrado no mato em Guidaje, Guiné-Bissau RUI GAUDÊNCIO

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Mas o problema dos militares mortos queficaram em África não teve só que ver comos custos. Muitos militares não foramtransladados para Portugal porquepermanecem até hoje em lugar incerto(200) ou continuam desaparecidos (267),informa o presidente da Liga dosCombatentes, o general Chito Rodrigues.Estes casos incluem, por exemplo,militares enterrados em situação decombate no local da morte, afogamentos,corpos enterrados em cemitériosimprovisados das próprias unidades, quese encontram dispersos pelos territóriosem lugares que hoje são mato e capim.

O irmão de Conceição Vitoriano Maia foi,até dada altura, um desses corpos semparadeiro. Morto a 23 de Maio de 1973(quando o Estado já custeava atransladação), a notícia que lhes chegou acasa já não veio por telegrama. “Não eranormal ter a GNR à porta, eram dois,vinham a pé…” Tinha dez anos, não ouviu oque disseram à mãe. “Não precisei.”Quando saíram, a mãe chorava. O filhotinha “desaparecido em combate”. É pior

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do que “morto em combate”, afirma.Embora a mãe sentisse durante longosanos a necessidade de repetir, mesmo adesconhecidos, “eu tinha um filho, morreuna Guiné”, manteve durante muitos anos aesperança no regresso do filho: “Ele iachegar um dia. Sempre que batiam à portafora de horas…” Mas era um problema semsolução e os anos passaram.

Até que um sargento pára-quedista,Manuel Rebocho, descobriu em 2006 quetinha havido três soldados pára-quedistasque tinham ficado enterrados no mato emGuidaje (Guiné-Bissau) e que nuncaninguém tinha voltado para ir buscar,embora a divisa dos pára-quedistas fosseprecisamente “Ninguém fica para trás”.Inconformado, começou a contactarentidades e famílias. Conceição VitorianoMaia já estava pacificada em relação aoassunto do irmão, não havia corpo mas asua morte era incontroversa. O sargentoveio informá-la de que existia um mapa daaltura desenhado pelos militares daunidade com a localização das sepulturas.E Conceição sentiu que, sabendo-se ondeestava, não podia deixá-lo lá. Começoutudo em 2006, as cartas, os requerimentos,os pedidos de reuniões, à qual se juntou aAssociação de Pára-Quedistas.

“Como é que alguém consegue ser duas: a arqueóloga e airmã? Foi muito difícil de gerir”Conceição Vitoriano Maia

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Conceição Vitoriano Maia diz que, noinício, o que encontrou junto de entidadesoficiais militares foi obstáculos.Respondiam-lhe que era um assuntoencerrado, que era demasiado tarde. Faceàs resistências, decidiu então que, em vezde ser uma operação militar, organizariaela própria uma missão civil para trazer ocorpo do irmão e dos dois outros pára-quedistas que estavam no mesmo local. Elaera arqueóloga, mais habituada aescavações do período romano, é certo,mas estava disposta a fazer este trabalho.

O presidente da Liga dos Combatentesafirma que uma missão deste tipo estava aser planeada há dois anos e que a ligaacabou por aceitar incorporar na equipa daprimeira missão a União de Pára-Quedistas.

Certo é que a ida à Guiné decorreu emMarço de 2008 e acabou por ser o início dachamada Operação Conservação deMemórias, levada a cabo pela liga com oobjectivo de “dignificar” os restos mortaisde militares dispersos por vários locais etransferi-los para cemitérios centrais. Oobjectivo nunca foi assegurar atransladação para Portugal mas,localizados os militares, podiam ajudar asfamílias que o quisessem fazer, explicaChito Rodrigues. A Liga dos Combatentestem um protocolo com a TAP que asseguragratuitamente às famílias a viagem docemitério da capital do país africano para

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Lisboa, mas as restantes despesas são acargo da família, e ainda podem serbastantes.

“Nós não percebemos porque é que essaspessoas não foram todas trazidas”, afirma oresponsável, mas lembra que “a liga nãosubstitui o Estado, actuamos onde o Estadonão actua, como complemento, nos mortose nos vivos”.

Conceição Vitoriano Maia lembra essesdias da missão na Guiné como de grandeintensidade emocional. À noite, depois dosdias em escavações, conseguia dormir sócom ajuda de calmantes. “Como é quealguém consegue ser duas: a arqueóloga e airmã? Foi muito difícil de gerir.” Tinhacomo função destapar a área ondesupostamente tinham sido enterradosvários militares, um deles o seu irmão, paradepois deixar as colegas antropólogastrabalharem na identificação das ossadas.Como arqueóloga, está mais do quehabituada a destapar esqueletos, sãoobjectos arqueológicos como quaisqueroutros, “como pedras”, mas aqui sabia quenum daqueles rectângulos de terra maisclara jazia o irmão. Encontraram muitosobjectos por aqueles dias, um cachimbo,garrafas de cerveja, pentes, pulseiras,anéis, objectos religiosos. E um pequeninocoração de pedra cor-de-rosa para usarnum fio. Pertencia ao esqueleto E, a letracorrespondente à sua ordem deaparecimento.

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O esqueleto E era António Vitoriano, mortoaos 21 anos, o seu irmão. O pequenopendente pertencia-lhe mas nem ela nem amãe lhe conheciam o objecto. Não foi porcausa dele que o identificaram. Cadaossada é uma história. A de AntónioVitoriano estava na clavícula. Quando oirmão tinha oito anos tinha caído debicicleta e partido esse osso e lá estava ele,remendado. “Nem sei como é que fui capazemocionalmente. Foi muito pesado.”

43 corpos na Guinée outros 73 corpos em Moçambique, recuperados com aOperação Conservação de Memórias. Desde 2018 apenas13 famílias decidiram pagar pela vinda dos corpos

A Operação Conservação de Memóriashaveria de ir mais quatro vezes à Guiné esete a Moçambique. Em Angola, váriosproblemas burocráticos impediram, atéagora, a realização de uma operação, refereChito Rodrigues. Recuperaram 43 corposna Guiné e outros 73 corpos emMoçambique, que estão em dois ossários,um em Bissau e outro em Nampula. Desde2008, apenas 13 famílias decidiram pagarpela vinda dos corpos: nove da Guiné, doisde Moçambique e dois de Angola, constatao responsável da Liga dos Combatentes.

Chito Rodrigues diz que há várias razõespara terem sido tão poucas famílias a pedira transladação. Uma delas podem ser oscustos envolvidos, depois, quase 99% dosmilitares não tinham filhos, os familiares

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que ficam são irmãos, sobrinhos oufamiliares mais distantes e, claro, há otempo, já passaram 40, 50 anos sobre estasmortes.

A seguir ao funeral do irmão, a mãe deConceição Vitoriano Maia, que tinhaparado de falar do filho, voltou a falar deleuns tempos e depois calou-se. “Ficouguardadinho lá na gaveta.” Finalmentearrumado.

Para Conceição Vitoriano, “há imensasfamílias com isso por resolver, a prova éessa senhora”. Fala de Ernestina Silva, cujocaso conheceu pela televisão.

Fotografia da guerra colonial exposta no Museu Militar do Porto DR

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O historiador Miguel Bandeira Jerónimo,do Centro de Estudos Sociais daUniversidade de Coimbra, diz que estarecente transladação de um pai “ajuda-nosa perceber o que foi o império colonialportuguês, a perceber a natureza doregime, a escassez de informação, odesrespeito que o regime tinha pela vidahumana”. “São legados que nãoterminaram de todo.” “Há um ser humano,há uma família, há uma filha que nãoconheceu o pai.”

“A transladação é uma questão do foroprivado, mas o Estado devia assegurá-las,se as famílias o desejarem. Devia ter sidofeito pelo regime que conduziu a estasituação, mas esta, entre as muitas coisasque a democracia portuguesa tem parafazer, é uma obrigação moral do Estadodemocrático em relação ao seu passado.”“O grande problema é enterrar estaquestão” e deixar que seja enredada “emdiscursos nacionalistas”.

“Quero trazer o meu irmão, quero que os meus paisdescansem”Otília Gonçalves

“Estes são retornos por fazer. Há umafamília que tem o direito a estereencontro.” “Foi uma guerra de classes,por que é que deve continuar a assentar emdesigualdade social?” A transladação do paide Ernestina de Angola custou 7500 euros,a filha avançou com 2500, o restante foi

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angariado pelos pára-quedistas. Ohistoriador chama a estes casos “os lutosinacabados do império”.

“Eu revi-me na pele da Tina. Tenho muitoorgulho de ela ter conseguido.” OtíliaGonçalves, 54 anos, conheceu pela Interneta filha que trouxe o pai de Angola, foi depropósito de Braga a Lobão da Beira para ofuneral. Anda há cerca de dez anos a tentartrazer “o mano” de Angola. O irmão, o maisvelho de 11 filhos, morreu no início daguerra, a 15 de Outubro de 1961, junto auma fazenda chamada “Tentativa”. Emboranunca o tenha conhecido sem ser de foto, apresença da sua ausência marcou-lhe ainfância na aldeia de Ponte de São Vicente,distrito de Braga. “Eu, pequenina, ia darcom a minha mãe a chorar sentada nochão, atrás do milho. ‘Sai daqui’”, ordenavaà filha. Não queria que a sua dor fossevista. Foi assim durante anos. No Verão, naaltura de arejarem as roupas, do fundo deuma arca de madeira saía também o livroda primária “do mano”. É a única dosirmãos que não desiste. “Os meus irmãosacham que já não há nada para trazer.”Para Otília, há algo inacabado. Sóreceberam um telegrama a dizer que tinhamorrido de acidente, perto deNambuangongo, “muito simples e frio,ponto final. Se quisessem o filho, tinhamde pagar. Era impossível. Tinham devender a casa e as terras, claro que nãodava”. Chamava-se Aquilino da SilvaGonçalves, era segundo cabo do Exército,ia fazer 21 anos.

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Escreveu cartas e emails ao Presidente daRepública, ao primeiro-ministro, “a todosos órgãos”. “‘Acusamos a recepção, com osmelhores cumprimentos.’ Mais nada.Tenho tudo arquivado.” “Quero trazer omeu irmão, quero que os meus paisdescansem.” “Há muita gente que já nãotem família mas há muita gente que aindaos quer trazer. Eu preciso.”

Este artigo encontra-se publicado no P2,caderno de domingo do PÚBLICO

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