Gozo da palavra, gozo do corpo - AMP-2016 · Um analisante muito apaixonado por ... mas tem mais...

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Gozo da palavra, gozo do corpo Ricardo D. Seldes O encontro contingente do corpo com o significante No ensino de Lacan e mesmo na prática da psicanálise, há uma dialética que vai do sujeito ao falasser, quer dizer, do sujeito morto na cadeia significante a um ser que fala, a um ser vivo que depende de que haja um corpo. Fala e é falado. Partimos geralmente de uma demanda de urgência que torna necessária a palavra, para, em momentos posteriores, deparar-se com os restos, com os resíduos que a extração do sentido deixa. É nossa preocupação, quando destacamos com Freud, uma das primeiras verdades psicanalíticas, que falamos sem saber. O enunciado não coincide nunca com a enunciação, falamos com o corpo e sem o saber. Com Lacan, incluímos a dimensão do real onde se verifica uma impossibilidade, a de inscrever a relação, principalmente a relação sexual entre dois corpos de diferentes sexos. Com Freud e com Lacan, advertimos que quando desembocamos na indagação sobre o corpo, chegamos à noção de satisfação. O homem tem um corpo afetado pelo significante que encontra diferentes formas de satisfação, conhecidas ou desconhecidas. O gozo é o produto do encontro contingente do corpo com o significante, encontro que mortifica o corpo, mas ao mesmo tempo recorta na carne o vivo que anima o mundo do psiquismo. A satisfação está sempre em jogo, causa e busca ao mesmo tempo, na experiência da análise. Temos seguido as indicações precisas de J-A. Miller no curso ‘Sutilezas analíticas’, para situar os acontecimentos do corpo como não sendo meros fatos de corpo. São aqueles produzem momentos memoráveis, traços inesquecíveis, um advento de gozo, fixações que

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Gozo da palavra, gozo do corpo

Ricardo D. Seldes

O encontro contingente do corpo com o significante

No ensino de Lacan e mesmo na prática da psicanálise, há uma dialética que vai do sujeitoao falasser, quer dizer, do sujeito morto na cadeia significante a um ser que fala, a um servivo que depende de que haja um corpo. Fala e é falado.

Partimos geralmente de uma demanda de urgência que torna necessária a palavra, para,em momentos posteriores, deparar-se com os restos, com os resíduos que a extração dosentido deixa. É nossa preocupação, quando destacamos com Freud, uma das primeirasverdades psicanalíticas, que falamos sem saber. O enunciado não coincide nunca com aenunciação, falamos com o corpo e sem o saber. Com Lacan, incluímos a dimensão do realonde se verifica uma impossibilidade, a de inscrever a relação, principalmente a relaçãosexual entre dois corpos de diferentes sexos.

Com Freud e com Lacan, advertimos que quando desembocamos na indagação sobre ocorpo, chegamos à noção de satisfação. O homem tem um corpo afetado pelo significanteque encontra diferentes formas de satisfação, conhecidas ou desconhecidas. O gozo é oproduto do encontro contingente do corpo com o significante, encontro que mortifica ocorpo, mas ao mesmo tempo recorta na carne o vivo que anima o mundo do psiquismo. Asatisfação está sempre em jogo, causa e busca ao mesmo tempo, na experiência da análise.

Temos seguido as indicações precisas de J-A. Miller no curso ‘Sutilezas analíticas’, parasituar os acontecimentos do corpo como não sendo meros fatos de corpo. São aquelesproduzem momentos memoráveis, traços inesquecíveis, um advento de gozo, fixações que

não cessam de exigir o cifrado simbólico do inconsciente. Assim como há um corpo quefala, temos um corpo que não fala, que goza no silêncio pulsional. É com esse corpo que sefala, que ao mesmo tempo, se usa para falar e para produzir o sintoma analítico. Apartirdestas premissas e com um exemplo clínico, acentuaremos de que maneira, a práticaanalítica é um curto-circuito que passa pelo sentido, uma copulação da linguagem (acentodo inconsciente) com o próprio corpo[i].

As mulheres e as palavras

O gozo sexual feminino permite captar que o corpo mesmo se transforma em um “fora docorpo”. É interessante a apreciação de Jacques-Alain Miller quando assinala que nela, ogozo está contido no corpo próprio, salvo que esse corpo próprio é outro para o sujeito.[ii]Um corpo fora de si sujeito a um certo número de fenômenos de abertura e de fora delimite.

A questão da alteridade da mulher implica ser outra, inclusive para ela mesma. Se asmulheres encarnam a diferença enquanto tal, isso lhes deixa um vazio essencial que podefazê-las muito dependentes do fantasma do homem. É um vazio que precisa do amor e oamor precisa das palavras, ainda que não se saiba o que se quer. Mas, sim, que se desejampalavras.

As mulheres, em geral, gostam de falar e de serem escutadas, certamente. Muitas mulheressão muito hábeis para detectar no rosto de seu partenaire, a cara de “estou pensando emoutra coisa”, algo bastante masculino, certamente. Os homens preenchem seus vazios compensamentos, mais ainda se são um pouco obsessivos.

Às mulheres, lhes encanta que os homens lhes falem. Um analisante muito apaixonado porsua mulher se queixava de que antes de ir para o quarto, tinha que passar pelo living. Paraconversar. Até que um dia advertiu que podi aagarrá-la de surpresa (flagrá-la) no caminhopara o living. Um modo de living que durou apenas um tempo. Dizemos que o homem, olado esquerdo das fórmulas da sexuação, busca seu objeto fetichista, silencioso e constante,inerte, um elemento capaz de se encontrar como Um nos diferentes parteienaires. O objetona mulher é Outro, o objeto da mulher é o Outro que não é Um e que é fundamentalmentefalante. Pode ser uma carta, um chat, whatsapp, to go… Do lado mulher, o que diz o Outroé tanto uma exigência que concerne ao objeto quanto uma queixa a respeito do que o Outrodiz. Ou não diz.

O fantasma vale para os dois sexos, mas tem mais peso para o homem enquanto se parecea si mesmo e, como já dissemos, mudo. Para a mulher, o Outro do desejo tem que falarpara que o sujeito possa reconhecer seu objeto.

Contos pornô

Tomaremos uma vinheta para situar, à nossa maneira, como o real do vínculo social é ainexistência da relação, da sexual, e como tratar de ir até o fato de que o real doinconsciente é o corpo falante. Assinalar que não há relação quer dizer que a economia dogozo é sempre substitutiva, que não há original no fato de que não há pulsão total, mas queo gozo do qual o falasser é capaz, é sempre aquele que não faz falta[iii]. Assim como ateoria freudiana das pulsões é edípica, a teoria lacaniana do gozo responde ao regime donão-todo. Daí, a sexualidade feminina é a que abre caminho que vai da verdade ao gozo. Seseguimos a orientação de que nada é sem gozo, logo não propomos seu abandono, mas oseu deslocamento, sua mutação, que se reparta de outra maneira.[iv]

Uma mulher de certa idade, casada há mais de 35 anos, reencontra seu primeironamorado, Francis, e com ele, estabelece uma relação erótica. Diferentemente de seumarido, o amante é impotente por causa de uma cirurgia de câncer de próstata. Apesardisso, ou talvez em parte, por isso mesmo, obtém seu primeiro orgasmo com ele. E osseguintes. Num primeiro tempo, a ignorância e a surpresa por este dom caído do céu,impediam-lhe de formular em análise, algo sobre o gozo alcançado. Se as carícias, beijos ebrinquedos tinham sua importância, o que exacerbava sua libido eram as palavras de seuamante. Ele lhe relata histórias, uma espécie de contador de contos imundos e, nessashistórias faladas, muito faladas, ela encarna personagens degradadas, em geralprostituídas. O relato dos sonhos diurnos adolescentes tem a forma de filmespornográficos, de relatos sadeanos: homens e mulheres nus, sem idade. Os homensobrigam as mulheres a fornicar várias vezes, as violentam, tocam seus seios, lhesespremem o leite. Seios fálicos e maternos, ao mesmo tempo. Depois de cada encontro comele, se sente mais bela, sobe em um pedestal e o mundo anuncia sua mudança. Bella setorna a Belle de Jour. Um fenômeno inconsciente, uma confusão irrompe na associaçãolivre na sessão desta mulher da cultura, nesta mãe e avó dedicada, que se sente a Belle deJour. Esquece o nome de Catherine Deneuve e o confunde com Jeanne Moreau. O analistaintervém: “Ya enamoró”[v]. “Francis me deseja”, fala isso, meio ao convencimento quehaviam lhe dado as palavras maternas durante toda a sua vida, de que ela era feia e queninguém ia amá-la. Jamais. Seu casamento lhe fez ver, durante décadas, como um homempode desejá-la e amá-la, ainda que os afetos não tivessem sido completamente recíprocos esomente a “salvava” das injúrias maternas. Uma vida de pragas e injúrias desde a infância,provocadas ou não, por ela. “Meu marido tem muitos defeitos, mas apostou em mim, porisso casei com ele”. Não é um grande esforço para ela, uma mulher analisada, captar que oscontos pornô que a excitam no fantasma masculino, contém as mesmas palavras dosinsultos maternos. O corpo penetrado pelas palavras.

O orgasmo entre a injúria e a palavra de amor

As fantasias histéricas, escrevia Freud a Fliess na carta de 06.04.1897, remontam ao que ascrianças ouviram em épocas precoces e só posteriormente entenderam. Em Delia, foi asignificação do primeiro amor, o que não havia sido consumado, o do amante castrado, o

que lhe permitiu esvaziar o valor injuriante dadevastação materna e permiti-la entregar-sea um homem que vale pelo Outro. É por essa via que essas palavras provocaram uma novasatisfação com um acontecimento de corpo surpreendente para ela. Tem o primeiroorgasmo de sua vida. O primeiro orgasmo sentido depois de 60 anos é descrito como “euestava em outro mundo, ele me acariciou a vagina e eu desapareci. Suas palavras foram‘me dá, me dá’, e eu desapareci”. E aí, quando as palavras injuriosas da mãe sãoequivocadas no gozosentido do fantasma, o corpo desaparece. É verdade que o gozo maiseficaz se dá pela via do mal entendido nesse corpo pesado, feio e rechaçado de quando amãe lhe atirava objetos, comida na cara, resposta a alguma de suas rebeldias e/ouresistências ao excesso materno. É interessante captar que, tal como assinala Lacan noseminário 3, a injúria aniquilante é um dos cumes do ato da palavra, é uma ruptura dosistema da linguagem, mas também é uma palavra amorosa[vi]. Uma velha demandainsatisfeita se faz ouvir nas pulsações arrítmicas, o que a leva a desejar concluirfreqüentemente a relação com o amante sob as formas sentidas de demandas de amor nãocorrespondidas. A queixa agora é que esse homem que a fez gozar até o orgasmo, não aama. E surge a angústia. Lacan assinala a estreita relação que existe entre ambos: tanto noorgasmo quanto na angústia, há uma espera do Outro[vii]. Os orgasmos continuam, aindaque não tão intensos quanto o primeiro, aquele que a pegou de surpresa. Estranhosdevaneios, cuja causa é o insuportável do gozo alcançado. Idas e vindas, cheios e vazios daconjunção-disjunção do amor e do gozo.

O outro, o que agora a leva a seu gozo porno-fantasmático, é e foi um covarde, não seresponsabiliza por seu desejo. O pedestal se desvanece.

A escolha da neurose indica que as palavras incidem para que o programa de gozo de cadaum comece. Somos falados, assinala Lacan e, devido a isso, fazemos das contingências quenos impulsionam, algo tramado. Achamos que dizemos o que queremos, mas é o quequiseram os outros, mais particularmente nossa família, que nos fala.[viii] Há uma trama ea chamamos nosso destino[ix]. Com a injúria materna, obtinha um gozo da palavra; comessas palavras deslocadas, orgasmos. Minha mãe podia passar meses sem falar comigo, damesma forma que faz Francis. É nesse silêncio que ressoam as injúrias.

Na adolescência, quando Delia não pôde aceder à relação sexual pela via do amor comFrancis, por impedimento da mãe, atuou uma parte de sua fantasia. Perdeu a virgindadecom 17 anos, com um homem mais velho, um quase Marquês, a quem não conhecia,apresentado por sua colega de escola, uma moça mais velha, muito habituada ao terrenosexual, que lhe contava detalhes e delícias do sexo. “Fiz papel de puta para mover meu pai”,um fato em que a justiça acaba intervindo e é o início da anestesia sexual permanente.Surge a cena traumática de ver o pai algemado[x] por ir bater no Marquês e seutestemunho sobre trair ou não o pai, com suas declarações. Opta por não traí-lo, esse pai“algemado” pela mãe, que permanecia horas fechado no banheiro, enquanto sua mulherenlouquecia.

Um gozo mudo, opaco, se vislumbrava no mais além desta experiência e é o analistatrauma que deve fazê-lo falar. O corpo que dá consistência ao parlêtre, fala em algumasocasiões de maneira muito silenciosa. Esse gozo admite mudanças, modificações,mutações? Sempre nos perguntamos quanto há de mortificação e de vivificação no trauma.Da mesma forma que os insultos maternos, uma vez equivocados e desdramatizados de seucomponente masoquista, dão a base de um fantasma que dá prazer. A voz se condensa naextração do objeto. Além disso, está a relação com a falta do Outro, com esse lugar doilimitado, do partenaire devastação.Quando se descobre o affair por um “erro de cálculo”, omarido sai para bater no amante, com palavras e, deste modo, o “salvador moribundo” sevivificatal qual o pai. Por ela. Revela-se que seu sintoma se situa em consonância com osintoma do pai mortificado por seus próprios prejuízos, aqueles que enlouqueciam a mãe.Tal como traz Miller na apresentação do próximo Congresso do Rio, há histeria quando hásintoma de sintoma, quando se faz sintoma do sintoma de outro.

Temos, assim, como o corpo falante aloja, é constituído por dois gozos: da palavra e docorpo. O corpo falante goza de si mesmo, se goza e também fala em termos de pulsões.

Para concluir

O que começa como um jogo de gozos e fantasias perversas não pode se concluir senão emuma demanda de amor, talvez pelo mesmo lugar onde havia começado, só que em um loopque marcou o corpo de uma nova maneira. A experiência do orgasmo como acontecimentode corpo muda as coisas para sempre. Uma revelação no fantasma, a glória da marca podefazer dissipar o partenaire imaginário do fantasma, fazê-lo apagar-se para liberar o acessoao gozo como impossível de negativizar, que o sujeito não esteja obrigado a roubar o gozoàs escondidas e que possa fazer uma nova aliança[xi].

Tentamos nos aproximar, com a prática, ao fato de que o gozo não está antes dosignificante, ainda que seja do corpo. Para se conjugar o corpo e a linguagem para fazergozar, temos a dimensão do sinthoma.

Trata-se da prova viva de que assim quando as coisas não funcionam, sempre fica osignificante mestre para se recorrer a ele. Quando as coisas falham na vida, e cedo ou tardeisso ocorre, o sintoma surge como substituição para alcançar a satisfação. A experiênciaanalítica aponta a que se possa alcançá-la sem tanto sofrimento.

Tradução: Mª Cristina Maia de O. FernandesRevisão: Paola Salinas

[i]Lacan, J. Seminário 23 - O sinthoma - pág 120 – Jorge Zahar Editor

[ii]Miller, J.A. El partenairesíntoma – pág. 413 - Editorial Paidós. Tradução Livre.

[iii]Miller, J-A. Sutilezas Analíticas – pág. 288 – Editorial Paidós. Tradução Livre

[iv]Idem pág 289. Tradução Livre.

[v]NT: não foi traduzido para não perder a homofonia original com o nome da artista. Em

português seria algo como “já se apaixonou”.

[vi] Lacan, J. Seminário 3 – As psicoses – cap. 7 – Adissolução imaginaria, p. 122 – Jorge Zahar

Editor

[vii] Lacan J. Seminário 10 – A angústia, pág. 196 – Jorge Zahar Editor

[viii]Lacan J. Joyce, o sinthoma, emAnexos do Seminário 23 - pág 158 – Jorge Zahar Editor

[ix]Idem, pág 159

[x] NT. Algemas em espanhol é esposas, alguém “con esposas”, está algemado e alguém “con

esposa” está casado.

[xi]Miller, J-A. Sutilezas analíticas - pág. 232. Tradução Livre.