Glória Ao Pai e Ao Filho e Ao Espírito Santo

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GLÓRIA AO PAI E AO FILHO E AO ESPÍRITO SANTO 1. «Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, ao Deus que é e que era e que vem». Assim se cantará Hoje nas nossas Igrejas na aclamação ao Evangelho, fazendo ecoar e ressoar a doxologia trinitária mais conhecida e diariamente várias vezes repetida, porque amada, Hoje completada com as palavras do Apocalipse 1,8. Nos textos que Hoje a liturgia da Palavra nos oferece como alimento escolhido e abundante, Deus deixa-se entrever, desde diversos ângulos, de modo subtil, como que em contraluz ou filigrana, no seu mistério trinitário. Atravessa-os, pois, como que um fio de ouro trinitário, que nos deve atravessar e entrelaçar, por pura graça, a nós também. 2. O Evangelho do Dia, sempre proclamado e não apenas lido, constitui sempre o centro à volta do qual se organizam e ganham luz as demais páginas oferecidas da Escritura Santa. Mas constitui também para nós o principal fio de luz que deve alumiar a nossa vida. Comecemos então por ver o Evangelho de Hoje retirado de João 16,12-15. Vale a pena transcrever o texto, dada a finura das palavras de Jesus aos seus discípulos nesta última tarde da sua vida terrena: «Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas não podeis por agora carregar o seu peso. Mas quando vier ( érchomai) Ele (ekeînos ), o Espírito da Verdade (tò pneûma tês alêtheías), guiar-vos-á ( hodêgêsei hymãs) na Verdade toda (alêtheia pâsa); com efeito, não falará (laléô) de si mesmo (aph’ heautoû), mas falará (laléô) tudo quanto tiver escutado, e anunciar-vos-á as realidades que hão de vir. Ele ( ekeînos) glorificar-me-á, porque receberá ( lambánô ) do que é meu, e vo-lo anunciará. Tudo o que o Pai tem é meu; por isso eu disse que recebe do que é meu, e vo-lo anunciará» (João 16,12-15). 3. Trata-se da quinta vez, no Evangelho de João, que Jesus fala da Vinda do Espírito Santo. As outras quatro são 14,16; 14,26; 15,26 e 16,7. Note-se, desde já que, nestes cinco referidos dizeres de Jesus, a Vinda do Espírito Santo aparece sempre dita no futuro. Note-se também que o verbo «vir» ( érchomai) é, na Bíblia, um dos verbos próprios de Deus. No Antigo Testamento, bastas vezes se refere que o Deus Vivo «vem» ao encontro do seu povo. No Novo Testamento, um dos nomes que caracteriza Jesus é «Aquele-que-Vem» ( ho erchómenos ). O nosso texto e os demais falam do Espírito que «virá», com liberdade soberana, divina, pessoal, Deus de Deus. Note-se ainda que Jesus fala do Espírito, tò pneûma, neutro em grego, com o pronome masculino, ekeînos, para indicar que se trata de uma Pessoa, não de uma coisa ou de uma força, que requeriria o pronome no neutro. 4. É dito «Espírito da Verdade», entenda-se da «Verdade» de Deus aos homens dada, e que é também o Caminho e a Vida (cf. João 14,6). É, portanto, o próprio Jesus Cristo, com toda a sua vinda e vida, e com a sua palavra que o comunica. O Espírito está, portanto, particularmente vinculado a Jesus, Pessoa divina a Pessoa divina. E a sua ação consiste em «guiar» ( hodegéô ), isto é, conduzir, ao longo do íngreme Caminho ( hodós ), até à meta, que é a «Verdade toda». Portanto, conduzir a Cristo, na sua totalidade. A relação dos discípulos com Jesus, e a adesão a Jesus, é ainda parcial. 5. Releve-se ainda que o Espírito «vem» de maneira autónoma, soberana, divina, mas não fala (laléô), verbo de revelação, a partir de si mesmo. É autónomo em operar

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GLÓRIA AO PAI E AO FILHO E AOESPÍRITO SANTO

1. «Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, ao Deus que é e que era e que vem».

Assim se cantará Hoje nas nossas Igrejas na aclamação ao Evangelho, fazendo ecoar eressoar a doxologia trinitária mais conhecida e diariamente várias vezes repetida, porqueamada, Hoje completada com as palavras do Apocalipse 1,8. Nos textos que Hoje aliturgia da Palavra nos oferece como alimento escolhido e abundante, Deus deixa-seentrever, desde diversos ângulos, de modo subtil, como que em contraluz ou filigrana,no seu mistério trinitário. Atravessa-os, pois, como que um fio de ouro trinitário, quenos deve atravessar e entrelaçar, por pura graça, a nós também.

2. O Evangelho do Dia, sempre proclamado e não apenas lido, constitui sempre o centroà volta do qual se organizam e ganham luz as demais páginas oferecidas da EscrituraSanta. Mas constitui também para nós o principal fio de luz que deve alumiar a nossavida. Comecemos então por ver o Evangelho de Hoje retirado de João 16,12-15. Vale apena transcrever o texto, dada a finura das palavras de Jesus aos seus discípulos nestaúltima tarde da sua vida terrena:

«Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas não podeis por agora carregar o seupeso. Mas quando vier (érchomai ) Ele (ekeînos ), o Espírito da Verdade (tò pneûma têsalêtheías ), guiar-vos-á (hodêgêsei hymãs ) na Verdade toda (alêtheia pâsa ); com efeito,não falará (laléô ) de si mesmo (aph’ heautoû ), mas falará (laléô ) tudo quanto tiverescutado, e anunciar-vos-á as realidades que hão de vir. Ele (ekeînos ) glorificar-me-á,porque receberá (lambánô ) do que é meu, e vo-lo anunciará. Tudo o que o Pai tem émeu; por isso eu disse que recebe do que é meu, e vo-lo anunciará» (João 16,12-15).

3. Trata-se da quinta vez, no Evangelho de João, que Jesus fala da Vinda do EspíritoSanto. As outras quatro são 14,16; 14,26; 15,26 e 16,7. Note-se, desde já que, nestescinco referidos dizeres de Jesus, a Vinda do Espírito Santo aparece sempre dita nofuturo. Note-se também que o verbo «vir» (érchomai ) é, na Bíblia, um dos verbospróprios de Deus. No Antigo Testamento, bastas vezes se refere que o Deus Vivo«vem» ao encontro do seu povo. No Novo Testamento, um dos nomes que caracterizaJesus é «Aquele-que-Vem» (ho erchómenos ). O nosso texto e os demais falam doEspírito que «virá», com liberdade soberana, divina, pessoal, Deus de Deus. Note-seainda que Jesus fala do Espírito,tò pneûma , neutro em grego, com o pronome

masculino,ekeînos , para indicar que se trata de uma Pessoa, não de uma coisa ou deuma força, que requeriria o pronome no neutro.

4. É dito «Espírito da Verdade», entenda-se da «Verdade» de Deus aos homens dada, eque é também o Caminho e a Vida (cf. João 14,6). É, portanto, o próprio Jesus Cristo,com toda a sua vinda e vida, e com a sua palavra que o comunica. O Espírito está,portanto, particularmente vinculado a Jesus, Pessoa divina a Pessoa divina. E a sua açãoconsiste em «guiar» (hodegéô ), isto é, conduzir, ao longo do íngreme Caminho (hodós ),até à meta, que é a «Verdade toda». Portanto, conduzir a Cristo, na sua totalidade. Arelação dos discípulos com Jesus, e a adesão a Jesus, é ainda parcial.

5. Releve-se ainda que o Espírito «vem» de maneira autónoma, soberana, divina, masnão fala (laléô ), verbo de revelação, a partir de si mesmo. É autónomo em operar

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divinamente, mas não é autónomo quanto aos conteúdos da sua operação. Tal comoJesus, Deus, também o Espírito, Deus, é obediente em vista da «Verdade toda», que éuma Pessoa «falada», por assim dizer, pelo Pai, que é o Verbo, que o Espírito Santo«escuta» do Pai, divino, indizível, eterno Diálogo tripolar interpessoal, interrecíproco,interinfinito. E assim o Espírito fala apenas «quanto escuta». Em suma, Aquele que

escuta fala a nós Jesus Cristo, o Verbo de Deus, «a Verdade». Por isso, «receberá(lambánô ) do que é meu, e vo-lo anunciará». Mas o que é do Filho é também do Pai.Então, o Espírito receberá o que é do Filho, e, portanto, também do Pai, e é isso, e sóisso, que anunciará. Entre o Pai e o Filho tudo é comum: a Vida, a Divindade, a Glória.Três termos precisos e preciosos para indicar exatamente o Espírito Santo, que é a Vida,a Divindade, a Glória que une consubstancialmente o Pai e o Filho, sendo o EspíritoSanto a divina Comunhão entre os Três, o Único Deus.

6. Há mais. «Anunciará as realidades que hão de vir». Ora, quem determina e anuncia ofuturo é só Deus. Não há ídolo que saiba anunciar o futuro. Só Deus anunciaantes deacontecer, e explica-odepois de acontecido. Veja-se esta polémica sobretudo nochamado «Segundo Isaías (Is 40-55), em concreto Is 41,21-23; 44,7; 45,21; 46,10).Espírito Santo, Deus, que anuncia e explica. A partir de agora, os discípulos nãoesperam novidades. Os histerismos de revelações, aparições e visões que agitam hojetantos pobres iludidos, privados de verdadeiros conteúdos cristãos e bíblicos e daTradição, são uma verdadeira «blasfémia contra o Espírito Santo». Por isso, o PapaBento XVI, na Exortação ApostólicaVerbum Domini [2010], n.º 14, lembrou-nos aspalavras de S. João da Cruz, que escreveu, na suaSubida ao Monte Carmelo , II, 22, que«Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra, e não tem outra, Deusdisse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única, e já nada mais tempara dizer (…). Porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-ototalmente, dando-nos o Todo que é o seu Filho. E, por isso, quem agora quisesseconsultar a Deus ou pedir-lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria umdisparate, mas faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e buscarfora d’Ele outra realidade ou novidade». E advertiu-nos bem o Papa que é preciso«distinguir a Palavra de Deus das revelações privadas cujo papel não é completar aRevelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente, numadeterminada época histórica».

7. O Espírito recebe (lambánô ) do que é de Jesus (João 16,14 e 15), do mesmo modoque Jesus recebeu do Pai (Mateus 11,27; João 10,18; Apocalipse 2,28), que lhe deu tudoo que tem e é. Do mesmo modo, o ensinamento (didachê ) do Espírito é o mesmo que

Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (João 14,26), e processa-se,ao contrário do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãos da audição deum público determinado, mas na interioridade da inteligência da fé, avivando as brasasdo desejo da Palavra primeira e criadora no coração de cada homem, debaixo dequalquer céu. Este ensinamento interior do Espírito é comparado à unção de óleo(chrísma ) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: «Vós recebestes a unção(chrísma ) que vem do Santo e todos conheceis (oídate )» (1 João 2,20); ou então: «aunção (chrísma ) dele vos ensina (didáskei ) acerca de todas as coisas» (1 João 2,27).Cumpre-se assim a profecia de Jeremias 31,31-34 (38,31-34 LXX) que refere que«todos me conhecerão (eidêsousin )» com uma ciência que não resulta da instrução, masque é incutida por Deus no coração. Assim escreve Paulo aos Romanos 5,1-5, na lição

também Hoje a nós oferecida, que «o amor de Deus foi derramado nos nossos coraçõespelo Espírito Santo, que nos foi dado» (v. 5).

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8. Para chegar a estes espantosos dizeres de Jesus sobre o Espírito Santo, foi necessárioque aquele fio de ouro trinitário fosse atravessando a Escritura. É assim que também nosé dado escutar Hoje aquele hino, de extraordinária solenidade e beleza, que a própriaSabedoria entoa no Livro dos Provérbios 8,22-31. Nesse maravilhoso hino, Deus e aSabedoria entretecem um diálogo do qual brotam todas as maravilhas da criação, em

cujo cume estão «os filhos do homem». É com eles que a Sabedoria encontra as suasdelícias, entenda-se, a sua felicidade. E foi precisamente a partir deste encontro felizentre a divindade e a humanidade que a tradição cristã identificou na Sabedoria divinaaqui celebrada o retrato do próprio Cristo. Por isso, lemos no prólogo do Evangelho deS. João que «o Verbo estava no princípio junto de Deus, tudo foi feito por meio d’Ele, esem Ele nada foi feito de tudo quanto existe. N’Ele estava a vida, e a vida era a luz doshomens» (João 1,2-4). E, no hino que abre a Carta aos Colossenses, lê-se: «Ele é aimagem do Deus invisível, gerado antes de todas as criaturas; pois foi por meio d’Eleque foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, visíveis e invisíveis (…). Todasas coisas foram criadas por meio d’Ele e para Ele. Ele é antes de tudo, e tudo n’Elesubsiste» (Colossenses 1,15-17). A obra da criação é, como se vê, reconduzida a Cristo,Sabedoria de Deus.

9. A leitura cristã do hino de Provérbios 8, isto é, o fio de ouro ou de sentido que dele sedesprende foi, porém, levado mais longe, associando-lhe a melodia do Salmo 104,30,em que se canta: «Envia o teu Espírito, e eles são criados, e renovas a face da terra».Com esta aportação, no rosto da Sabedoria pode ver-se também o Espírito Santo emação na criação. E aí está a Trindade no alvor da criação. A Sabedoria é Deus, Pai, Filhoe Espírito Santo. Mas o Filho, o Verbo é revelado como a Sabedoria incarnada.

10. «Ó abismo de riqueza e sabedoria e conhecimento de Deus! Como são insondáveisos seus juízos e impenetráveis os seus caminhos! (…) Porque d’Ele, por Ele e para Elesão todas as coisas. A Ele a glória pelos séculos, ámen!» (Romanos 11,33 e 36).

António Couto