Gilberto Freire - Manifesto Regionalista

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    MANIFESTO REGIONALISTA

    Escrito por Gilberto FreireSeg, 11 de Maio de 2009 14:53 -

    H dois ou trs anos que se esboa nesta velha metrpole regional que o Recife ummovimento de reabilitao de valores regionais e tradicionais desta parte do Brasil: movimento

    de que mestres autnticos como o humanista Joo Ribeiro e o poeta Manuel Bandeira votomando conhecimento e a que agora se juntam pela simpatia, quando no pela solidariedadeativa e at militante, no s norte-americanos como Francis Butler Simkins - que anuncia devera um brasileiro do Recife seu critrio regional de estudar a histria do Sul dos Estados Unidos-, franceses como Regis de Beaulieu e alemes como Ruediger Bilden como alguns dos maisadiantados arquitetos, urbanistas e homens de letras do Rio. Concorrem eles ao Congresso deRegionalismo do Recife com trabalhos e teses acrescentando suas contribuies s dehomens do prprio Nordeste ou aqui radicados: homens pblicos ou de cincia, preocupadoscom problemas urbanos e rurais da regio como Amaury de Medeiros, Gouveia de Barros eUlysses Pernambucano; homens de letras empenhados na defesa dos nossos valores

    histricos como Carlos Lyra Filho, Luiz Cedro, Samuel Camplo, Anbal Fernandes, JoaquimCardoso, Mrio Melo, Mario Sette, Manuel Caetano de Albuquerque e seu filho Jos Maria - topichoso na arte da fotografia quanto na da tipografia -; homens de saber interessados em darsentido regional ao ensino, organizao universitria e cultura intelectual entre ns, comoOdilon Nestor e Morais Coutinho, Alfredo Freyre e Antnio Incio; velhos lavradores ou homensde campo voltados inteligentemente para os problemas de defesa e valorizao da paisagemou da vida nos seus aspectos rurais ou folclricos, como Jlio Bello, Samuel Hardman, GasparPeres, Pedro Paranhos e Leite Oiticica. Homens, todos esses, com o sentido de regionalidadeacima do de pernambucanidade - to intenso ou absorvente num Mrio Sette - do deparaibanidade - to vivo em Jos Amrico de Almeida - ou do de alagoanidade - to intenso em

    Otvio Brando - de cada um; e esse sentido por assim dizer eterno em sua forma - o modoregional e no apenas provincial de ser algum de sua terra - manifestado numa realidade ouexpresso numa substncia talvez mais lrica que geogrfica e certamente mais social do quepoltica. Realidade que a expresso "Nordeste" define sem que a pesquisa cientfica a tenhaexplorado at hoje, sob o critrio regional da paisagem, a no ser em raras obras como a deum Von Luetzelburg, admirvel ecologista alemo ainda mais identificado conosco do queKonrad Guenther, o sbio fitopatogista, que h pouco visitou esta parte do Brasil a convite deum de ns - Samuel Hardman - enquanto, a meu convite, aqui j estiveram, tomando contatocom tradies e problemas da regio, meus antigos colegas na Universidade de Columbia,Ruediger Bilden e senhora Francis Butler Simkins, o mesmo prometendo fazer ainda este ano

    meu companheiro francs de aventuras intelectuais em Paris, Regis de Beaulieu: aquele quetendo me levado a conhecer seu mestre, Charles Maurras, no hesitou em mais de uma vezsentar-se comigo numa La Rotonde ainda quente da presena de Lenine.Toda tera-feira, um grupo apoltico de "Regionalistas" vem se reunindo na casa do ProfessorOdilon Nestor, em volta da mesa de ch com sequilhos e doces tradicionais da regio -inclusive sorvete de corao-da-ndia - preparados por mos de sinhs. Discutem-se ento, emvoz mais de conversa que de discurso, problemas do Nordeste. Assim tem sido o MovimentoRegionalista que hoje se afirma neste Congresso: inacadmico mas constante. Animado porhomens prticos como Samuel Hardman e no apenas por poetas como Odilon Nestor; porhomens politicamente da "esquerda" como Alfredo Morais Coutinho e da extrema "direita"

    como Carlos Lyra Filho.Seu fim no desenvolver a mstica de que, no Brasil, s o Nordeste tenha valor, s os

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    sequilhos feitos por mos pernambucanas ou paraibanas de sinhs sejam gostosos, s asrendas e redes feitas por cearense ou alagoano tenham graa, s os problemas da regio dacana ou da rea das secas ou da do algodo apresentem importncia. Os animadores destanova espcie de regionalismo desejam ver se desenvolverem no Pas outros regionalismos que

    se juntem ao do Nordeste, dando ao movimento o sentido organicamente brasileiro e, at,americano, quando no mais amplo, que ele deve ter.A maior injustia que se poderia fazer a um regionalismo como o nosso seria confundi-lo comseparatismo ou com bairrismo. Com anti-internacionalismo, anti-universalismo ouanti-nacionalismo. Ele to contrrio a qualquer espcie de separatismo que, mais unionistaque o atual e precrio unionismo brasileiro, visa a superao do estadualismo,lamentavelmente desenvolvido aqui pela Repblica - este sim, separatista - para substitu-lopor novo e flexvel sistema em que as regies, mais importantes que os Estados, se completeme se integrem ativa e criadoramente numa verdadeira organizao nacional. Pois so modosde ser - os caracterizados no brasileiro por suas formas regionais de expresso - que pedem

    estudos ou indagaes dentro de um critrio de inter-relao que ao mesmo tempo que amplie,no nosso caso, o que pernambucano, paraibano, norte-riograndense, piauiense e atmaranhense, ou alagoano ou cearense em nordestino, articule o que nordestino em conjuntocom o que geral e difusamente brasileiro ou vagamente americano.Dizendo sistema no sei se emprego a expresso exata. Nosso movimento no pretendeseno inspirar uma nova organizao do Brasil. Uma nova organizao em que as vestes emque anda metida a Repblica - roupas feitas, roupagens exticas, veludos para frios, pelespara gelos que no existem por aqui - sejam substitudas no por outras roupas feitas pormodista estrangeira mas por vestido ou simplesmente tnica costurada pachorrentamente emcasa: aos poucos e toda sob medida.

    Da ser perigoso falar-se precipitadamente num novo "sistema" quando o caminho indicadopelo bom senso para a reorganizao nacional parece ser o de dar-se, antes de tudo, atenoao corpo do Brasil, vtima, desde que nao, das estrangeirices que lhe tm sido impostas,sem nenhum respeito pelas peculiaridades e desigualdades da sua configurao fsica e social;e com uma outra pena de ndio ou um ou outro papo de tucano a disfarar o exotismonorte-europeu do trajo. Primeiro, sacrificaram-se as Provncias ao imperialismo da Corte: umaCorte afrancesada ou anglicizada. Com a Repblica - esta ianquizada - as Provncias foramsubstitudas por Estados grandes e ricos, nem policiar as turbulncias balcnicas de algunsdos pequenos em populao e que deviam ser ainda Territrios e no, prematuramente,Estados.

    Essa desorganizao constante parece resultar principalmente do fato de que as regies vmsendo esquecidas pelos estadistas e legisladores brasileiros, uns preocupados com os "direitosdos Estados", outros, com as "necessidades de unio nacional", quando a preocupaomxima de todos deveria ser a de articulao inter-regional. Pois de regies que o Brasil,sociologicamente, feto, desde os seus primeiros dias. Regies naturais a que sesobrepuseram regies sociais.De modo que, sendo essa a sua configurao, o que se impe aos estadistas e legisladoresnacionais pensarem e agirem inter-regionalmente. E lembrarem-se sempre de que governamregies e de que legislam para regies interdependentes, cuja realidade no deve seresquecida nunca pelas fices necessrias, dentro dos seus limites, de "Unio" e de "Estado".

    O conjunto de regies que forma verdadeiramente o Brasil. Somos um conjunto de regiesantes de sermos uma coleo arbitrria de "Estados", uns grandes, outros pequenos, a se

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    guerrearem economicamente como outras tantas Bulgrias, Srvias e Montenegros e afazerem as vezes de partidos polticos - So Paulo contra Minas, Minas contra o Rio Grande doSul - num jogo perigosssimo para a unidade nacional.Regionalmente que deve o Brasil ser administrado. claro que administrado sob uma s

    bandeira e um s governo, pois regionalismo no quer dizer separatismo, ao contrrio do quedisseram ao Presidente Artur Bernardes. Regionalmente deve ser estudada, sem sacrifcio dosentido de sua unidade, a cultura brasileira, do mesmo modo que a natureza; o homem damesma forma que a paisagem. Regionalmente devem ser considerados os problemas deeconomia nacional e os de trabalho. Como me aventuro a dizer num arremedo de poema queacabo de entregar ao pintor Lus Jardim, para que ele o ilustre com seu trao admirvel:"O mapa do Brasil em vez das cores dos Estados ter as cores das produes e dostrabalhos."Procurando reabilitar valores e tradies do Nordeste, repito que no julgamos estas terras, emgrande parte ridas e heroicamente pobres, devastadas pelo cangao, pela malria e at pela

    fome, as Terras Santas ou a Cocagne do Brasil. Procuramos defender esses valores e essastradies, isto sim, do perigo de serem de todo abandonadas, tal o furor nefilo de dirigentesque, entre ns, passam por adiantados e "progressistas" pelo fato de imitarem cega edesbragadamente a novidade estrangeira. A novidade estrangeira de modo geral. De modoparticular, nos Estados ou nas Provncias, o que o Rio ou So Paulo consagram como"elegante" e como "moderno": inclusive esse carnavalesco Papai Noel que, esmagando comsuas botas de andar em tren e pisar em neve as velhas lapinhas brasileiras, verdes,cheirosas, de tempo de vero, est dando uma nota de ridculo aos nossos natais de famlia,tambm enfeitados agora com arvorezinhas estrangeiras mandadas vir da Europa ou dosEstados Unidos pelos burgueses mais cheios de requififes e de dinheiro.

    Talvez no haja regio no Brasil que exceda o Nordeste em riqueza de tradies ilustres e emnitidez de carter. Vrios dos seus valores regionais tornaram-se nacionais depois de impostosaos outros brasileiros menos pela superioridade econmica que o acar deu ao Nordestedurante mais de um sculo do que pela seduo moral e pela fascinao esttica dos mesmosvalores. Alguns at ganharam renome internacional, como o mascavo dos velhos engenhos, apau-brasil das velhas matas, a faca de ponta de Pasmado ou de Olinda, a rede do Cear, overmelho conhecido entre pintores europeus antigos por "Pernambuco", a goiabada dePesqueira, o fervor catlico de Dom Vital, o algodo de Serid, os cavalos de corrida dePaulista, os abacaxis de Goiana, o balo de Augusto Severo, as telas de Rosalvo Ribeiro, otalento diplomtico do Baro de Penedo - doutor honoris causa de Oxford - e o literrio de

    Joaquim Nabuco - doutor honoris causa de universidades anglo-americanas. Como seexplicaria, ento, que ns, filhos de regio to criadora, que fssemos agora abandonar asfontes ou as razes de valores e tradies de que o Brasil inteiro se orgulha ou de que se vembeneficiando como de valores basicamente nacionais?Sem se julgar estultamente o sal do Brasil, mas apenas o seu maior e melhor produtor deacar nos tempos coloniais - acar que est base de uma doaria rica como nenhuma, dolmprio, e base, tambm, de uma doce aristocracia de maneiras de gostos, de modos deviver e de sentir, tornada possvel pela produo e exportao de um mascavo tointernacionalmente famoso como, depois, o caf de So Paulo -, o Nordeste tem o direito deconsiderar-se uma regio que j grandemente contribuiu para dar cultura ou civilizao

    brasileira autenticidade e originalidade e no apenas doura ou tempero. Com Duarte Coelhomadrugaram na Nova Lusitnia valores europeus, asiticos, africanos que s depois se

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    estenderam a outras regies da Amrica portuguesa. Durante a ocupao holandesa, outrosvalores aqui surgiram ou foram aqui recriados para benefcio do Brasil inteiro. Apenas nosltimos decnios que o Nordeste vem perdendo a tradio de criador ou recriador de valorespara tornar-se uma populao quase parasitria ou uma terra apenas de relquias: o paraso

    brasileiro de antiqurios e de arquelogos. Ou o refgio daqueles patriotas meio necrfilos cujopatriotismo se comenta em poder evocar, nos dias de festas nacionais, glrias remotas eantecipaes gloriosas, exagerando-as, nos discursos, dourando-as nos elogios histricos combrilhos falsos, revestindo-as nas composies genealgicas de azuis tambm excessivamenteherldicos.Lembro-me - e recordei o fato num dos primeiros artigos que aqui publiquei ao regressar daEuropa em 1923 - do interesse com que, h trs ou quatro anos, em Versailles, entre fidalgosfranceses e aristocratas russos que me deram o gosto ou a impresso de uma Europa j maishistrica do que atual, o velho Clement de Grandprey - ilustre tropicalista e talvez o nicoesprito moo naquele meio de condes arcaicos e viscondessas velhas - me interrogava: e os

    mucambos de Pernambuco? No o maravilhara aqui, nos fins do sculo XIX, a Igreja da Penhaou o palcio da Estrada de Ferro Central: dois dos primeiros lamentveis arremedos dacivilizao que Geddes chamaria paleotcnica com que foi mais ostensivamente perturbada,em sua autenticidade e em seu processo de adaptao ao meio, a arquitetura tradicionalmenteportuguesa do Recife: honesta arquitetura cheia de boas reminiscncias orientais e africanas,inclusive a da cor, a dos verdes, azuis, roxos, amarelos e vermelhos vivos dos sobrados altos,das casas de stio, das prprias igrejas. A maior impresso de Clement de Grandprey, emPernambuco, fora a do simples mucambo, a da "casa do caboclo", a da casa de palha dospescadores das praias. que o mucambo se harmoniza com o clima, com as guas, com as cores, com a natureza,

    com os coqueiros e as mangueiras, com os verdes e os azuis da regio como nenhuma outraconstruo. Percebeu-o o orientalista francs em sua rpida passagem por Pernambuco domesmo modo que o perceberia depois o cientista alemo, tambm pintor, Ph.Von Luetzelburg.Percebem-no os que, sendo da terra, tm olhos para ver e admirar o que caracterstico daregio e para saber separ-lo do simplesmente pitoresco ou curioso. Os que tm olhos paraver a sua Provncia ou a sua regio como Lafcadio Hearn viu a Lousiana e as ndias OcidentaisFrancesas.Com toda a sua primitividade, o mucambo um valor regional e por extenso, um valorbrasileiro, e, mais do que isso, um valor dos trpicos: estes caluniados trpicos que s agora oeuropeu e o norte-americano vm redescobrindo e encontrando neles valores e no apenas

    curiosidades etnogrficas ou motivos patolgicos para alarmes. O mucambo um dessesvalores. Valor pelo que representa de harmonizao esttica: a da construo humana com anatureza. Valor pelo que representa de adaptao higinica: a do abrigo humano adaptado natureza tropical. Valor pelo que representa como soluo econmica do problema da casapobre: a mxima utilizao, pelo homem, na natureza regional, representada pela madeira,pela palha, pelo cip, pelo capim fcil e ao alcance dos pobres.O mal dos mucambos no Recife, como noutras cidades brasileiras, no est propriamente nosmucambos, mas na sua situao em reas desprezveis e hostis sade do homem: alagados,pntanos, mangues, lama podre. Bem situado, o mucambo - e a casa rural coberta de palha oude vegetal seco no nos esqueamos que se encontra tambm na Irlanda e na prpria

    Inglaterra - habitao superior a esses tristes sepulcros nem sempre bem caiados que so,entre ns, tantas das casas de pedra e cal, sem oites livres e iluminadas apenas por

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    tristonhas clarabias que apenas disfaram a falta de luz e a pobreza de ar, dentro das quaisvive vida breve ou morre aos poucos - quando no s pressas, arrastada pela tsica galopante -a maior parte da gente mdia da regio, nas cidades e at nos povoados.No foi contra os mucambos que se voltou a maior indignao de sanitarista de Saturnino de

    Brito quando estudou o problema da casa no Recife: foi contra aquelas casas verdadeiramentesepulcrais. Elas, sim, que pecam contra a natureza regional: e no os mucambos. No oscaluniados mucambos. No as casas que os "caboclos", os negros, os pardos, os pescadores,os pobres da regio levantam eles prprios, s vezes por meio do esforo comum do mutiro,revestindo-as e cobrindo-as de palha, folhas e capins secos que franciscanamente defendemos moradores das chuvas e das ventanias fortes sem os privarem do sol, do ar e da luztropicais.O mesmo poderia algum dizer das velhas ruas estreitas do Nordeste. Bem situadas, so entrens, superiores no s em pitoresco como em higiene s largas. As ruas largas sonecessrias - ningum diz que no, desde que exigidas pelo trfego moderno; mas no devem

    excluir as estreitas.Ainda h pouco um estrangeiro viajadssimo era com que se encantava no Rio de Janeiro: comas velhas ruas estreitas. E no com as largas. No com avenidas incaractersticas. No com asnossas imitaes s vezes ridculas de boulevards e de broadways, por onde a gente que andaa p s falta derreter-se sob o sol forte com que o bom Deus ora nos favorece, ora nos castiga.Entretanto, quando eu primeiro elogiei aqui as ruas estreitas e lamentei o desaparecimento dosvelhos arcos que se harmonizavam com elas e das casas e sobrados pintados de vermelho, deverde, de azul ou revestidos de azulejos - azulejos que chegaram a ser condenadosestupidamente, no Recife, por lei municipal - foi como se tivesse escrito heresia em porta deigreja ou obscenidade ou safadeza em muro de colgio de moa. O mesmo quando louvei na

    cidade do Recife o seu resto de recato mouro: outro absurdo para os modernistas da terra, poisas cidades deviam ser todas abertas ao sol e aos olhos dos turistas e nunca fechadas dentrode paredes, muros e rtulas, aqui mais protetoras do homem do que o vidro nos pases depouca luz e de sol parecido com lua.Reconheamos a necessidade das ruas largas numa cidade moderna, seja qual for suasituao geogrfica ou o sol que a ilumine; mas no nos esqueamos de que a uma cidade dotrpico, por mais comercial ou industrial que se torne, convm certo nmero de ruasacolhedoramente estreitas nas quais se conserve a sabedoria dos rabes, antigos donos dostrpicos: a sabedoria de ruas como a Estreita do Rosrio ou de becos como o do Cirigado, quedefendam os homens dos excessos de luz, de sol e de calor ou que os protejam com a doura

    das suas sombras. A sabedoria das ruas com arcadas, de que o Recife devia estar cheio. Asabedoria das casas com rtulas ou janelas em xadrez, que ainda se surpreendem em ruasvelhas daqui e de Olinda.Ao velho Recife o gnio dos mouros, mestres, em tanta cousa, dos portugueses - aos quaisentretanto deram o mau exemplo, to seguido pelos brasileiros, do horror rvore - transmitiua lio preciosa das ruas estreitas; e, sempre que possvel, devemos conserv-las ao lado dasavenidas americanamente largas - ou como afluentes desses boulevards amaznicos - em vezde nos deixarmos desorientar por certo antilusismo que v em tudo que herana portuguesaum mal a ser desprezado; ou por certo modernismo ou ocidentalismo que v em tudo o que antigo ou oriental um arcasmo a ser abandonado.

    Modernismo responsvel por outra inovao contra a qual se levanta nosso regionalismo: ahorrvel mania que hoje nos persegue de mudarmos os mais saborosamente regionais nomes

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    de ruas e de lugares velhos - Rua do Sol, Beco do Peixe Frito, Rua da Saudade, ChoraMenino, Sete Pecados Mortais, Encanta Moa - para nomes novos: quase sempre nomesinexpressivos de poderosos do dia. Ou datas insignificantemente polticas. outro ponto em que venho insistindo nos meus artigos desde que aqui cheguei; e, como no

    caso dos mucambos, tal atitude me tem valido no s o soberano desprezo dos engenheirosmais simplistas - msticos do cimento armado e mistagogos das avenidas largas, gente que hanos domina esta como outras cidades do Brasil e, ao contrrio dos engenheiros maisesclarecidos, s sabe derrubar igrejas, sobrados de azulejos, arcos como o da Conceio,palmeiras antigas, gameleiras velhas, jardins ou hortos coloniais, contanto que os velhosburgos de fundao portuguesa se assemelhem s mais modernas cidades norte-americanasou francesas - como a pecha de blagueur. Ou de literato metido a superior que, farto deviagens pela Amrica do Norte e pela Europa, desejasse, como um novo e barato Fradique desubrbio, divertir-se custa da ingenuidade da gente mais simples de sua Provncia: dalouvar-lhe os atrasos em vez de glorificar-lhe os progressos. Querer museus com panelas de

    barro, facas de ponta, cachimbo de matutos, sandlias de sertanejos, miniaturas dealmanjarras, figuras de cermica, bonecas de pano, carros de boi, e no apenas com relquiasde heris de guerras e mrtires de revolues gloriosas. Exaltar bumbas-meu-boi, maracatus,mamulengos, pastoris e clubes populares de carnaval, em vez de trabalhar pelodesenvolvimento do "Rdio Clube" ou concorrer para o brilho dos bailes do "ClubeInternacional". Levantar-se contra o loteamento de stios velhos alegando que as cidadesprecisam de rvores, de hortas, de mato tanto quanto de casas e ruas. Querer os grandesedifcios pblicos e as praas decoradas com figuras de homens de trabalho, mestios,homens de cor em pleno movimento de trabalho, cambiteiros, negros de fornalha de engenho,cabras de trapiches e de almanjarras, pretos carregadores de acar, carros de boi cheios de

    cana, jangadeiros, vaqueiros, mulheres fazendo renda - e no com as imagens convencionaise cor-de-rosa de deusas europias da Fortuna e da Liberdade, de deuses romanos disto edaquilo, de figuras simblicas das Quatro Estaes. Desejar um museu regional cheio derecordaes das produes e dos trabalhos da regio e no apenas de antiguidadesociosamente burguesas como jias de baronesas e bengalas de gamenhos do tempo doImprio.Ainda h pouco fui acusado de estar levando satanicamente ao ridculo alguns dos homensmais respeitveis da regio, j envolvidos por mim - dizem os crticos - no que chamam o"carnaval regionalista". Isto porque consegui do velho Leite Oiticica que, do seu engenho dasAlagoas, escrevesse para o livro comemorativo do primeiro centenrio do Dirio de

    Pernambuco, no um ensaio retoricamente patritico sobre Deodoro ou Floriano, mas umestudo minucioso e objetivo da arte da renda no Nordeste que, ilustrado, base de amostrasde rendas vindas de Alagoas, por desenhista digno da melhor admirao brasileira - ManoelBandeira -, enriquece aquele livro com pginas verdadeiramente originais de documentao einterpretao da vida regional; de Odilon Nestor, que recordasse a vida do estudante no Recifedo Sculo XIX e no as doutrinas alems aqui divulgadas um tanto pedantescamente porTobias; de Jlio Bello, que contribusse para a mesma obra comemorativa, no evocando emtom de discurso de Instituto Histrico os heris de Guararapes ou os Patriotas de 17, mas osbumbas-meu-boi, as cheganas, os pastoris, os mamulengos dos engenhos da regio.Este prprio Congresso - o Primeiro Congresso de Regionalismo que se realiza no Brasil e,

    talvez, na Amrica e, dentro do seu programa, diferente de quantos tm sido realizados noutrospases onde j floresce, com outros aspectos, a idia regionalista, animada na Frana pelo

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    esprito potico de Mistral e pela inteligncia realista de Maurras - est sendo criticado pelosmesmos aristarcos por se afastar rasgada e afoitamente dos estilos convencionais doscongressos; e juntar as vozes de sbios higienistas como a de Gouveia de Barros, s depoetas folcloristas como Ascenso Ferreira; a comemoraes ou a cultos como o da palmeira, o

    de plantas humildemente provincianas ou regionais como o jasmim-de-banha ou a erva-cidreiraou mesmo o pega-pinto, de que a medicina caseira prepara chs to teis; evocao develhas modinhas dos sales do tempo de Pedro II a revivescncia de divertimentos da gentemais plebeiamente do povo que os requintados desprezam como "cousas de negros":maracatus, bumba-meu-boi, mamulengo, coco, fandango, xang, nau-catarineta.Mas o pecado maior contra a Civilizao e o Progresso, contra o Bom Senso e o Bom Gosto eat os Bons Costumes que estaria sendo cometido pelo grupo de regionalistas a quem se devea idia ou a organizao deste Congresso, estaria em procurar reanimar no s a arte arcaicados quitutes finos e caros em que se esmeraram, nas velhas casas patriarcais, algumassenhoras das mais ilustres famlias da regio e que est sendo esquecida pelos doces dos

    confeiteiros franceses e italianos, como a arte - popular como a do barro, a do cesto, a dapalha de Ouricuri, a de piaava, a dos cachimbos e dos santos de pau, a das esteiras, a dosex-votos, a das redes, a das rendas e bicos, a dos brinquedos de meninos feitos de sabugo demilho, de canudo de mamo, de lata de doce de goiaba, de quenga de coco, de cabaa - que, no Nordeste, o preparado do doce, do bolo, do quitute de tabuleiro, feito por mos negras epardas com uma percia que iguala, e s vezes excede, a das sinhs brancas.Pois h comidas que no so as mesmas compradas nos tabuleiros que feitas em casa.Arroz-doce, por exemplo, quase sempre mais gostoso feito por mo de negra de tabuleiroque em casa. E o mesmo certo de outros doces e de outros quitutes. Do peixe frito, porexemplo, que s tem graa feito por preta de tabuleiro. Da tapioca molhada, que "de rua" e

    servida em folha de bananeira que mais gostosa. Do sarapatel: outro prato que emmercado ou quitanda mais saboroso do que em casa finamente burguesa - opinio que no s minha, mas do meu amigo e companheiro de ceias nos mercados e no Dudu, o grande juize grande jornalista Manuel Caetano de Albuquerque e Melo.As negras de tabuleiro e de quitanda como que guardam maonicamente segredos que notransmitem s sinhs brancas do mesmo modo que entre as casas ilustres, umas famlias vmescondendo das outras receitas de velhos bolos e doces que se conservam h anosespecialidade ou segredo ou singularidade de famlia. Da o fato de se sucederem geraes dequituteiras quase como geraes de artistas da Idade Mdia: donas de segredos que notransmitem aos estranhos.

    Feitos estes reparos, estou inteiramente dentro de um dos assuntos que me pareceu dever serversado por algum neste Congresso: os valores culinrios do Nordeste. A significao social ecultural desses valores. A importncia deles: quer dos quitutes finos, quer dos populares. Anecessidade de serem todos defendidos pela gente do Nordeste contra a crescentedescaracterizao da cozinha regional.S na falta de voz que versasse autorizadamente o assunto, de ponto de vista ao mesmotempo regionalista e tcnico, que me animo a faz-lo. Ousadia que os competentes ho dedesculpar ao intruso.A verdade que no s de esprito vive o homem: vive tambm do po - inclusive dopo-de-l, do po-doce, do bolo que ainda po. No s com os problemas de belas artes, de

    urbanismo, de arquitetura, de higiene, de engenharia, de administrao deve preocupar-se oregionalista: tambm com os problemas de culinria, de alimentao, de nutrio.

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    Trs regies culinrias destacam-se hoje no Brasil: a Baiana, a Nordestina e a Mineira. ABaiana decerto a mais poderosamente imperial das trs. Mas talvez no seja a maisimportante do ponto de vista sociologicamente brasileiro.Outras tradies culinrias menos importantes poderiam ser acrescentadas, com suas cores

    prprias, ao mapa que se organizasse das variaes de mesa. Sobremesa e tabuleiro emnosso pas: a regio do extremo Norte, com a predominncia de influncia indgena e doscomplexos culinrios da tartaruga - da qual se prepara ali uma rica variedade de quitutes - e dacastanha, que se salienta no s na confeitaria como nas prprias sopas regionais - tudorefrescado com o aa clebre: "chegou ao Par, parou, tomou aa, ficou"; a regio fluminensee norte-paulista, irm da nordestina em muita coisa, pois se apresenta condicionada poridnticas tradies agrrio-patriarcais a mais de uma sub-regio fluminense, pelo mesmo usofarto do acar; a regio gacha, em que a mesa um tanto rstica, embora mais farta que asoutras em boa carne, caracteristicamente comida como churrasco quase cru e a faca de ponta.O mais poderia ser descrito, do ponto de vista culinrio, como serto: reas caracterizadas por

    uma cozinha ainda agreste; pelo uso da carne seca, de sol ou do Cear com farinha: do leite,da umbuzada e do requeijo; pelo uso, tambm, do quibebe, franciscanamente simples, e darapadura; e, nas florestas do centro do Pas, pela utilizao da caa e do peixe de rio - tudoasctica e rusticamente preparado.A influncia portuguesa onde parece manifestar-se ainda hoje mais forte no litoral, doMaranho ao Rio de Janeiro. Ao Rio de Janeiro ou a Santos. No Rio os melhores restaurantescontinuam os portugueses com suas peixadas e suas iscas moda do Porto ou do Minho. Ainfluncia africana sobressai na Bahia. A influncia amerndia - repita-se - particularmentenotvel no extremo Norte. E no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina encontram-se traosconsiderveis de influncia espanhola e de influncia alem, a darem novos sabores aos

    pratos e novas aparncias aos velhos hbitos lusitanos, aorianos ou paulistas de alimentao;em So Paulo e no Paran, sinais de influncia italiana e alguma influncia sria ou rabe, almda israelita, presente tambm no Rio de Janeiro, embora no revele o poder de expanso dasoutras. Mas como noutras artes, as trs grandes influncias de cultura que se encontram base das principais cozinhas regionais brasileiras e de sua esttica so a portuguesa, aafricana e a amerndia, com as predominncias regionais j assinaladas.Onde parece que essas trs influncias melhor se equilibraram ou harmonizaram foi nacozinha do Nordeste agrrio, onde no h nem excesso portugus como na capital do Brasilnem excesso africano como na Bahia nem quase exclusividade amerndia como no extremoNorte, porm o equilbrio. O equilbrio que Joaquim Nabuco atribua prpria natureza

    pernambucana. claro que a dvida da cozinha brasileira, em geral, e do Nordeste agrrio, em particular, stradies de forno e de fogo de Portugal, uma dvida intensa. Sem esse lastro, de toucinho ede paio, de gro-de-bico e de couve, bem diversa seria a situao culinria do Brasil. Nohaveria unidade nacional sob a variedade regional.No nos esqueamos de que a colonizao do Brasil se iniciou na poca em que a mesa dePortugal se aprimorara na "primeira da Europa": opinio um tanto jornalstica de RamalhoOrtigo que os estudos de histria social parecem de certo modo confirmar. O portugus comseu gnio de assimilao trouxera para sua mesa alimentos, temperos, doces, aromas, cores,adornos de pratos, costumes e ritos de alimentao das mais requintadas civilizaes do

    Oriente e do Norte da frica. Esses valores e esses ritos se juntaram a combinaes j antigasde pratos cristos com quitutes mouros e israelitas, entre os quais, segundo parece, se deve

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    Escrito por Gilberto FreireSeg, 11 de Maio de 2009 14:53 -

    situar o famoso cozido portuguesa, parente do "puchero". O costume da feijoada "dormida"parece ter sido assimilado, pelo luso-brasileiro, do israelita, amigo desses mistrios por gosto epela necessidade de esconder certos quitutes como que de ritual ou liturgia, dos olhos deCristos Velhos e segundo seus dias de preceito.

    Desenvolveram-se aquelas combinaes nos palcios, nas casas nobres, nas casasburguesas, nas tavernas plebias dos portos ou das cidades martimas, mas, de modo todoparticular, nos mosteiros. Nas vastas cozinhas dos mosteiros que, em Portugal,conservaram-se at a decadncia das ordens monsticas e at mesmo depois dela,verdadeiros laboratrios onde novos sabores ou gostos de carne, de peixe, de acar, dearroz, de canela, de verdura, foram descobertos ou inventados por monges voluptuosos epacientes, peritos no preparo de molhos e temperos capazes de despertar os paladares maislnguidos como outros afrodisacos, do sexo, j quase moribundo, dos homens velhos ougastos. s freiras devem-se doces, bolos, pastis, sobremesas, gulodices, tambmcaracteristicamente luso-monsticos. Nos seus conventos, especializaram-se na arte de

    tambm adquirirem, com relao ao paladar, carter um tanto afrodisaco. Que o digam osnomes de alguns desses pastis de freiras - j notados pelo erudito Afrnio Peixoto - e tambm- acrescentamos ns - os de vrios doces da doaria popular ou plebia de Portugal. At"testculos de So Gonalo" se intitula um, mais pag e grosseiramente plebeu.Todas essas tradies de mesa e sobremesa de Portugal - a crist, a pag, a moura, aisraelita, a palaciana, a burguesa, a camponesa, a monstica ou fradesca, a freirtica -transmitiu-as de algum modo Portugal ao Brasil, onde as matronas portuguesas - ainformao de Gabriel Soares de Souza - no tardaram a aventurar-se a combinaes novascom as carnes, os frutos, as ervas e os temperos da terra americana. Aventuras deexperimentao continuadas pelas brasileiras, senhoras de engenho, pelas sinhs das

    casas-grandes, umas, grandes quituteiras, outras, doceiras, quase todas peritas no fabrico dovinho de caju, do licor de maracuj, da garapa de tamarindo: smbolos da hospitalidadepatriarcal, nesta parte do Brasil, antes de o "cafezinho" ter se generalizado como sinal decortesia ou boas-vindas.Por outro lado, onde se foi levantando um mosteiro ou um recolhimento de religiosos ou umconvento de freiras quase certo que foi tambm se erguendo no Brasil um novo reduto devalores culinrios. Um novo laboratrio em que frades ou freiras se especializaram em inventarnovas combinaes culinrias, dentro das boas tradies portuguesas, como "o eclesisticopaio" e o "gtico presunto fumeiro", a que se refere Ortigo.A tais mestres se juntaram cunhs e negras Minas com seu saber tambm considervel de

    ervas, de temperos, de razes, de frutos, de animais dos trpicos: ervas, frutos e animais bonspara o forno e para o fogo. E esse saber no seria o portugus, sempre amigo das aventurase dos descobrimentos, sempre franciscanamente disposto a confraternizar com os irmospardos e negros, que o desprezasse. O que explica a crescente influncia amerndia e africanasobre a mesa e a sobremesa do colonizador, por intermdio no s de cunhs e negras Minascomo de cozinheiros ou mestres-cucas: em geral pretalhes efeminados ou amaricados.E sempre muito lrico, o portugus foi dando aos seus doces e quitutes, no Brasil, nomes todelicados como os de alguns de seus poemas ou de seus madrigais: Pudim de Iai, Arrufos deSinh, Bolo de Noiva, Pudim de Veludo. Nomes macios como os prprios doces. E no apenasnomes de um cru realismo, s vezes lbrico, como "barriga-de-freira".

    Enquanto isto, foi se mantendo a tradio, vinda de Portugal, de muito quitute mourisco ouafricano: o alfenim, o alfloa, o cuscuz, por exemplo. Foram eles se conservando nos tabuleiros

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    ao lado dos brasileirismos: as cocadas - talvez adaptao de doce indiano, as castanhas decaju confeitadas, as rapaduras, os doces secos de caju, o bolo de goma, o mungunz, apamonha servida em palha de milho, a tapioca seca e molhada, vendida em folha debananeira, a farinha de castanha em cartucho, o manu. E o tabuleiro foi se tornando, nas

    principais cidades do Brasil, e no apenas do Nordeste, expresso de uma arte, uma cincia,uma especialidade das "baianas" ou das negras: mulheres, quase sempre imensas de gordasque, sentadas esquina de uma rua ou sombra de uma igreja, pareciam tornar-se, de tocorpulentas, o centro da rua ou do ptio da igreja. Sua majestade em s vezes a demonumentos. Esttuas gigantescas de carne. E no simples mulheres iguais s outras.Muitas envelheceram como que eternas, como os monumentos - as fontes, os chafarizes, asrvores matriarcais -, vendendo, no mesmo ptio ou na mesma esquina, doce ou bolo a trsgeraes de meninos e at homens gulosos. Algumas ficaram famosas pelo asseio dos seustrajos de cor e das mos pretas ou pardas; pela alvura dos panos quase de altar de igreja dosseus tabuleiros; pelo primor dos enfeites de papel azul, vermelho, verde, amarelo, dentro dos

    quais arrumavam seus doces ou seus quitutes; papis caprichosamente recortados. Outras,pelos seus preges. Outras, ainda, pelos seus cabees picados de rendas, pelos seus panosda Costa, pelas suas chinelas, pelos seus balagands, pelos seus turbantes, pelas suastetias, pelo seu ar de princesas ou de rainhas no de maracatus, mas de verdade; pelosangus que s elas sabiam fazer to gostosos. Rara a meninice, raro o passado debrasileiro, hoje pessoa grande ou grave, a que falte a imagem de uma negra dessas,vendedora quase mstica de angu, de tapioca ou de bolo ou alfenim recortado em forma degente, de cachimbo, de bicho, de rvore, de estrela. Ou a figura de uma me, av, tia,madrinha, senhora de engenho, que o tenha iniciado nos segredos da glutoneria dascasas-grandes.

    Dos velhos engenhos da regio raro o que no tenha tido sua especialidade culinria mesmomodesta: um quibebe ou um piro ou uma farofa mais gostosa que as outras. Alguns foramfamosos por seus senhores, grandes quituteiros ou simples regales e at gules. Que o digao nome de Jundi do Guloso. E de vrios engenhos mais ricos se sabe que, para regalo dospapa-pires, conservaram at h pouco tempo a tradio da mesa larga e sempre pronta areceber hspedes, como se todo dia fosse neles dia santo ou dia de festa: sbado de Aleluiaalegrado pelas fritadas de siris; So Joo colorido pelo amarelo das canjicas salpicadas decanela e pelas pamonhas envolvidas em palha de milho-verde; ou Carnaval adoado pelosfilhs com mel de engenho. Tradio, essa de casa de engenho de mesa farta, vinda de pocaremota. O Padre Cardim, que esteve no Brasil no sculo XVI, refere-se aos jantares festivos

    com que os senhores de engenhos mais opulentos - e s vezes endividados - de Pernambucose regalavam com vinhos e comidas raras. E as crnicas do domnio holands no Nordesteregistram igualmente jantares e at banquetes suntuosos, alguns dados pelo prprio CondeMaurcio de Nassau, a homens importantes da terra, naturalmente para amaciar neles o dio invaso nrdica que alis deixou na lngua do Nordeste um nome holands de comida: brote.Tambm alguns sobrados do Recife, para os quais, nos fins do sculo XVIII foram setransferindo das casas-grandes do interior e dos sobrados decadentes de Olinda os requintesculinrios da civilizao regional, ficaram famosos pela fartura e pelo primor de suas mesas.Entre esses sobrados ou essas casas de stios, a de Bento Jos da Costa e depois a da famliaSiqueira, em Ponte d'Uchoa; a do velho Maciel Monteiro; os sobrados da Madalena e, no

    centro da cidade, os do Cais do Colgio, os da Rua da Praia, os do Ptio do Carmo, os doAterro da Boa Vista.

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    Eram casas onde se comia principescamente bem, as dos prncipes recifenses do comrcio, damagistratura, da poltica, das letras, das armas. Onde desde a meninice iois e iais dengosastomavam ch da ndia com sequilhos - como os que se saboreavam na casa da famlia LopesGama. E tudo isso, em porcelana da melhor, da mais fina, da mais bela. Comido com talher de

    prata, mexido com colher da melhor prata portuguesa. Gabo-me de possuir hoje, entre outrasrelquias pernambucanas menos de guerra que de paz, um prato do Oriente, h quaseduzentos anos no Brasil, que foi do velho Morais, do Dicionrio: presente do meu amigoEduardo de Morais Gomes Ferreira, descendente daquele ilustre homem do Sul que ocasamento com moa pernambucana transformou em senhor de engenho do Nordeste. Alis,em seu sobrado do Ptio de So Pedro, em Olinda, Eduardo e Alfredo de Morais guardamoutra relquia preciosa: vasto prato do Oriente onde se servia outrora o arroz-doce tradicional,hoje raro como sobremesa nas casas ou como gulodice nos tabuleiros de rua.No s o arroz-doce: todos os pratos tradicionais e regionais do Nordeste esto sob aameaa de desaparecer, vencidos pelos estrangeiros e pelos do Rio. O prprio coco verde

    aqui considerado to vergonhoso como a gameleira, que os estetas municipais vmsubstituindo pelo ficus benjamim, quando a arborizao que as nossas ruas, parques e jardinspedem a das boas rvores matriarcais da terra ou aqui j inteiramente aclimadas: pau d'arco,mangueira, jambeiro, palmeira, gameleira, jaqueira, jacarand.Ao voltar da Europa h trs anos, um dos meus primeiros desapontamentos foi o de saber quea gua de coco verde era refresco que no se servia nos cafs elegantes do Recife ondeningum se devia lembrar de pedir uma tigela de arroz-doce ou um prato de mungunz ou umatapioca molhada. Isto para os "frejes" do Ptio do Mercado. Os cafs elegantes do Recife noservem seno doces e doces e pastis afrancesados e bebidas engarrafadas. E nas casas?Nas velhas casas do Recife? Nas casas-grandes dos engenhos? Quase a mesma vergonha de

    servirem as senhoras pratos regionais que nos cafs e hotis elegantes da capital.Nem ao menos por ocasio da Quaresma voltam essas casas aos seus antigos dias deesplendor. J quase no h casa, neste decadente Nordeste de usineiros e de novos-ricos,onde aos dias de jejum se sucedam, como antigamente, vastas ceias de peixe de coco, defritada de guaiamum, de pitu ou de camaro, de cascos de caranguejo e empadas de siripreparadas com pimenta. J quase no h casa em que dia de aniversrio na famlia os docese bolos sejam todos feitos em casa pelas sinhs e pelas negras: cada doce mais gostoso que ooutro.Quase no se v conto ou romance em que apaream doces e bolos tradicionais como emromances de Alencar. Os romancistas, contistas e escritores atuais tm medo de parecer

    regionais, esquecidos de que regional o romance de Hardy, regional a poesia de Mistral,regional o melhor ensaio espanhol: o de Gavinet, o de Unamuno, o de Azorin. claro que a poca j no permite os bolos de outrora, com dzias e dzias de ovos. Mas aarte da mulher de hoje est na adaptao das tradies da doaria ou da cozinha patriarcal satuais condies de vida e de economia domstica. Nunca repudiar tradies to preciosaspara substitu-las por comidas incaractersticas de conserva e de lata, como as que j imperamnas casas das cidades e comeam a dominar nas do interior.Raras so, hoje, as casas do Nordeste onde ainda se encontrem mesa e sobremesaortodoxamente regionais: forno e fogo onde se cozinhem os quitutes tradicionais boa modaantiga. O doce de lata domina. A conserva impera. O pastel afrancesado reina. Raro um Pedro

    Faranhos Ferreira, fiel; em sua velha casa de engenho - infelizmente remodelada sem nenhumsentido regional - aos pitus do Rio Una. Raro um Gerncio Dias de Arruda Falco que dirija ele

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    prprio de sua cadeira de balano de patriarca antigo o preparo dos quitutes mais finos para amesa imensa da casa-grande - quase um convento - que herdou do Capito Manuel Tom deJesus, lembrando cozinheira um tempero a no ser esquecido no peixe, insistindo por ummolho mais espesso no cozido ou por um arroz mais solto para acompanhar a galinha,

    recordando s senhoras da casa as lies de ortodoxia culinria guardadas nos velhos livrosde receitas da famlia. Rara uma Dona Magina Pontual que se esmere ela prpria no fabrico demanteiga que aparece mesa da sua casa-grande: a do Bosque. Rara uma Dona Rosalina deMelo que faa ela prpria os alfenins de que no se esquecem nunca os meninos que jpassaram algum fim de ano no Engenho de So Severino dos Ramos. E o professor JoaquimAmazonas me recorda o famoso mingau-pitinga do Engenho Trapiche: delicioso mingau doqual parece ter se perdido a receita.Toda essa tradio est em declnio ou, pelo menos, em crise, no Nordeste. E uma cozinha emcrise significa uma civilizao inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se.As novas geraes de moas j no sabem, entre ns, a no ser entre a gente mais modesta,

    fazer um doce ou guisado tradicional e regional. J no tm gosto nem tempo para ler osvelhos livros de receitas de famlia. Quando a verdade que, depois dos livros de missas, soos livros de receitas de doces e de guisados os que devem receber das mulheres leitura maisatenta. O senso de devoo e o de obrigao devem completar-se nas mulheres do Brasil,tornando-as boas crists, e, ao mesmo tempo, boas quituteiras, para assim criarem melhor osfilhos e concorrerem para a felicidade nacional. No h povo feliz quando s suas mulheresfalta a arte culinria. uma falta quase to grave como a da f religiosa.Quando aos domingos saio de manh pelo Recife - pelo velho Recife mais fiel ao seu passado- e em So Jos, na Torre, em Casa Amarela, no Poo, sinto vir ainda de dentro de muita casao cheiro de mungunz e das igrejas o cheiro de incenso, vou almoar tranqilo o meu cozido

    ou o meu peixe de coco com piro. Mais cheio de confiana no futuro do Brasil do que depoisde ter ouvido o Hino Nacional executado ruidosamente por banda de msica ou o "Porque meufano do meu pas", evocado por orador convencionalmente patritico.Creio que no haveria exagero nenhum em que este Congresso, pondo no mesmo plano deimportncia da casa, a mesa ou a cozinha regional, fizesse seus os seguintes votos:1o Que algum tome a iniciativa de estabelecer no Recife um caf ou restaurante a que nofalte cor local - umas palmeiras, umas gaiolas de papagaios, um carit de guaiamum porta euma preta de fogareiro, fazendo grude ou tapioca - caf ou restaurante especializado nas boastradies da cozinha nordestina;2o Que os colgios de meninas estabeleam cursos de cozinha em que sejam cultivadas as

    mesmas tradies;3 Que todos quantos possurem em casa cadernos ou Mss. antigos de receitas de doces,bolos, guisados, assados, etc., cooperem para a reunio dessa riqueza, hoje dispersa emmanuscritos de famlia, esforo de que o Primeiro Congresso Regionalista do Nordeste tomara iniciativa, nomeando uma comisso para a colheita de material to precioso e digno depublicao.Alis o ideal seria que o Recife tivesse o seu restaurante regional, onde se cultivassem adoaria e a culinria antigas, no meio de um resto de mata tambm antiga e regional como ade Dois-Irmos, onde a pessoa da terra ou de fora se regalasse comendo tranqilamente suapaca assada ou sua fritada de guaiamum com piro e molho de pimenta sombra de

    paus-d'arco, de visgueiros, de mangueiras; onde as crianas se deliciassem com castanhaconfeitada, garapa de tamarindo, bolo de goma, brincando, ao mesmo tempo, de empinar

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    balde, gamelo, bizarrona ou tapioca, de jogar carrapeta ou castanha, de apostar carreira emquenga de coco, num parque atapetado de cheiroso capim da terra; onde meninos e pessoasgrandes tivessem ao alcance dos olhos e dos ouvidos, to naturalmente quanto possvel -como se faz hoje nos jardins zoolgicos da Alemanha - os bichos, os animais, as aves, as

    borboletas da regio, animais que tantos de ns s conhecemos de nome ou das ilustraesde livros: em geral livros estrangeiros.E perto do restaurante no haveria mal nenhum em se instalar, alm de uma botica onde s sevendesse remdio da flora regional ou brasileira - inclusive a tintura da preciosa, melhor paracorrigir qualquer indigesto que o sal de fruta dos ingleses -, uma loja de brinquedos e objetosde arte regional e popular: bonecas de pano, renda do Cear, farinheiras e colheres de pau,chapus de palha de Ouricuri, alpercatas sertanejas, cabaos de mel de engenho, cachimbosde barro, mans-gostosos, figuras de mamulengo, carrapetas, panos da Costa, balaios, cestos,bonecos de barro, potes, panelas, quartinhas, bilhas. Nem mal nenhum haveria em quefuncionassem perto do restaurante um mamulengo e, nos dias de festa, um bumba-meu-boi ou

    um pastoril. Nem mesmo em que houvesse uma "casa de horrores", onde os horrores em vezde ser os europeus, como nos parques de diverso comum, fossem o Cabeleira, a CabraCabriola, o Bicho Carrapatu, apresentados de tal modo que no perturbassem a digesto deningum mas divertissem grandes e pequenos.E pelo Natal, nada de Papai Noel descido de chamins que as casas no tm entre ns a noser nas cozinhas, mas o velho prespio ou a velha lapinha armada para pequenos e grandesao lado do restaurante: centro de toda uma reabilitao regional.Este Congresso de Regionalismo vem pr em relevo o fato de que ser algum regionalista nosignifica apenas, nesta parte do Brasil, gostar de moblia de jacarand ou de casa colonial, deigreja antiga e de azulejo velho. H quem tenha gosto e at paixo por esses valores

    aristocrticos - alguns, hoje, relquias para serem conservadas em museus - mas despreze osque considera rstico e, que, entretanto, esto base da estrutura mesma da nossa culturaregional. H quem se suponha mais devotado que os demais s tradies da regio, mas sejaincapaz de descer cozinha para provar o ponto de um doce de goiaba ou experimentar otempero de um aferventado de peru; ou ao mercado para comer um sarapatel da marca dosque fazem a fama do Bacurau; ou a Dudu para saborear uma peixada moda da casa, compiro e pimenta; ou ao fundo de um velho stio cheio de mangueiras e jaqueiras para chuparmanga e comer jaca com as mos, lambuzando-se; ou a uma boa queda-d'gua de engenho,para um regalado banho, fazendo antes de entrar n'gua o sinal da cruz e chupando um oudois cajus entre goles de cachaa que guardem a alma e o corpo dos perigos que povoam

    todas as guas. H quem no queira nem olhar para um mucambo quando o mucambo temlies preciosas a ensinar aos arquitetos, aos higienistas, aos artistas. H quem evite passarpor toda rua estreita ou por todo beco antigo, quando a rua estreita ou o beco antigo outromestre de urbanismo e de higiene.Mestras de higiene tropical so tambm as mulheres do povo que andam pelas ruas e estradasao sol do meio dia protegidas contra esse sol excessivo por xales, mantilhas, panos da Costaatirados elegante e liturgicamente sobre a cabea e os ombros de dez ou vinte formas diversasque merecem um estudo, tanto o que podem revelar sobre as culturas orientais e africanasque se transferiram para o Brasil com esses xales, mantilhas e panos e os diferentes modos,maometanos ou no, das mulheres o usarem. Mestras de arte de decorao so as negras de

    tabuleiro que enfeitam seus doces com papel recortado: outro assunto popular, plebeu, rasteiroque est a merecer um bom estudo regional. Mestras da arte de promover o que o sbio

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    Branner chamou "o bem-estar humano" so as muitas cozinheiras boas, pretas, pardas,morenas, brancas, que ainda existem por este Nordeste; que no se deixam corromper pelacozinha francesa nem pela indstria norte-americana das conservas. Mestres de msica soalguns dos cantadores de modinha e dos tocadores de violo deste velho trecho do Brasil.

    Mestres de dana so alguns dos babalorixs e algumas das ialorixs dos xangs. Mestres demedicina so alguns dos curandeiros da regio, doutores em ervas e plantas regionais.Mestres de higiene regional do trajo so os sertanejos e os matutos que andam com camisasleves por fora das calas tambm leves, chapus de palha, alpercatas. Mestras de adornopessoal de acordo com o clima e a paisagem da regio so as morenas, as mulatas ecaboclas, cujo cabelo brilha luz da lua amaciado pelo mais puro leo de coco, perfumadopelos mais cheirosos jasmins. Mestras so, ainda, algumas delas, pelas lies que do sbrancas - escravas dos figurinos franceses - vestindo-se segundo sbias tradies rabes:turbante, cabeo picado de rendas, pano largo e de cores vistosas que as protege sbia egraciosamente do sol. Mestres da arte nutica so os jangadeiros das praias do Nordeste.

    Mestres de educao fsica so alguns sobreviventes de capoeiras entre simplestrabalhadores, negros e pardos, de engenhos e trapiches, cujas formas de rijos homens detrabalho esto a pedir pintores que pintem tambm mulatas e caboclas meio-nuas e noapenas brancas finas; nossas senhoras morenas e no apenas louras.De modo que, no Nordeste, quem se aproxima do povo desce a razes e a fontes de vida, decultura e de arte regionais. Quem se chega ao povo est entre mestres e se torna aprendiz, pormais bacharel em artes que seja ou por mais doutor em medicina. A fora de Joaquim Nabuco,de Slvio Romero, de Jos de Alencar, de Floriano, do Padre Ibiapina, de Telles Jnior, deCapistrano, de Augusto dos Anjos, de Rosalvo Ribeiro, de Augusto Severo, de Auta de Sousa,de outras grandes expresses nordestinas da cultura ou do esprito brasileiro, veio

    principalmente do contato que tiveram, quando meninos de engenho ou de cidade, ou j depoisde homens feitos, com a gente do povo, com as tradies populares, com a plebe regional eno apenas com as guas, as rvores, os animais da regio. um contato que no deve ser perdido em nenhuma atividade de cultura regional. E dessasatividades no deve ser excluda nunca a arte do quitute, do doce, do bolo que, no Nordeste, um equilbrio de tradies africanas e indgenas com europias; de sobrevivncias portuguesascom a arte das negras de tabuleiro e das pretas e pardas do fogareiro. Por conseguinte,brasileirssima.Pois o Brasil isto: combinao, fuso, mistura. E o Nordeste, talvez a principal bacia em quese vm processando essas combinaes, essa fuso, essa mistura de sangue e valores que

    ainda fervem: portugueses, indgenas, espanhis, franceses, africanos, holandeses, judeus,ingleses, alemes, italianos. Da a riqueza de sabores ainda contraditrios de sua cozinha noextremo Nordeste talvez mais complexa e mais compreensiva que a chamada "baiana", isto ,a de Salvador, da Bahia, sua parenta em tanta coisa. Por isso mesmo, so as duas dignas - etambm a paraense ou amaznica - da melhor ateno brasileira.Saliente-se, em concluso, que h no Nordeste - neste Nordeste em que vm setransformando em valores brasileiros, valores por algum tempo apenas subnacionais oumesmo exticos - uma espcie de franciscanismo, herdado dos portugueses, que aproximados homens, rvores e animais. No s os da regio como os importados. Todos se tornamaqui irmos, tios, compadres das pessoas. Conheci uma negra velha que toda tarde

    conversava com uma jaqueira como se conversasse com uma pessoa ntima: "minha nega","meu bem", "meu benzinho". Por que os poetas no surpreendem esses idlios?

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    H no Nordeste de hoje rvores e plantas vindas da Europa, do Oriente, da frica que crescemnos stios ou nos quintais, no s como se fossem naturais da regio porm como se fossemgente: gente de casa. Que no s do de comer s pessoas ss como servem de remdio sdoentes. Que no s cobrem as casas pobres como lhes refrescam e perfumam o ar. E tanto

    quanto as velhas rvores da terra como o cajueiro, ainda servem de brinquedo - carrossel,gangorra, cavalo - aos meninos, deixando-os trepar pelos seus galhos como se fossem pernasde avs ou de tios; e no restos brutos e insensveis de mata ou de floresta. Sempre mepareceu que Dois-Irmos devia ser no Recife um parque que reunisse todas essas rvoresregionais, importadas ou nativas, mais camaradas dos homens; e no apenas as mais agrestese raras. Tambm todos os animais mais ligados vista regional e no apenas os mais ariscose curiosos.Augusto dos Anjos afeioou-se tanto, nos seus dias de menino de engenho, a um p detamarindo grande do quintal da casa dos seus pais, que dele guardou a lembrana que seguarda de uma pessoa particularmente amiga. A velha rvore foi para ele um confidente bom

    dos primeiros amores ou dos primeiros sonhos da meninice. Que menino do Nordeste no tevea sua mangueira ou o seu cajueiro de estimao, parecido ao p de tamarindo dos versos deAugusto? Ou um visgueiro ou coqueiro dos que esto sempre repontando dos quadros deTelles Jnior como se fossem mais do que rvores ou mais do que paisagem? Uma rvoremais amiga que as outras. Uma rvore quase pessoa de casa. Quase pessoa da famlia.Quase irm dos meninos ou desses meninos eternos que so os poetas, os pintores, oscompositores que sabem ouvir no somente estrelas mas rvores, como souberam Jos deAlencar e Augusto dos Anjos.E o mesmo certo daqueles animais da regio mais presos vida dos homens e dos meninos.Mais prximos de suas alegrias. Mais camaradas deles nos dias difceis ou de dor. No digo

    que o cavalo seja na vida do homem ou do menino do Nordeste o mesmo personagemimportante que na vida ou no drama do homem do Rio Grande do Sul. Mas em certos trechosdo Nordeste o apreo do homem ao cavalo vai quase ao mesmo extremo:"... cavalo bom e mulher''.E raro o menino desta parte do Brasil que, mesmo sem ter sido rico, no chegou a ser donode um carneirinho manso que fosse seu primeiro cavalo. Que fosse para ele no s o que para os meninos de hoje o velocpede ou a bicicleta, porm mais alguma coisa: quase pessoa,quase gente, quase malungo. Uma quase pessoa digna de aparecer em romances, empoemas, em contos, em teatro, em que se dramatizasse a vida da regio, em que seevocassem as aventuras da infncia regional.

    E a vaca? o boi? a comadre-cabra dos sertes? a comadre-cabra cujo leite tem criado tantosertanejo rijo? o cachorro? o gato? o papagaio? a arara? o canrio? o pombo? o sagim? Sotodos animais ligados de tal modo vida, economia, ao cotidiano da regio que vrios delestm sido chorados depois de mortos tanto quanto os bois dos bumbas-meu-boi nos dramaspopulares da regio. Chorados como se fossem gente: gente amiga, gente de casa. Tlio Bello,no seu Engenho de Queimadas, levantou no alto de um morro um quase monumento aocachorro leal de que ainda hoje se lembra com saudade: seu amigo, seu companheiro, seucamarada. E no ptio do engenho do bom pernambucano que Jlio de Queimadas, d gostoao visitante ver as rvores alegradas pelos vermelhos e azuis das penas das araras que elecria: araras que dariam brilho a um bom jardim zoolgico regional. Araras que como os

    papagaios de gaiola, os galos, os canrios, os carneiros cheios de fitas, deveriam ser maispintadas pelos pintores, mais retratadas pelos fotgrafos, mais cantadas pelos poetas, mais

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    MANIFESTO REGIONALISTA

    Escrito por Gilberto FreireSeg, 11 de Maio de 2009 14:53 -

    consideradas pelos ensastas, romancistas, contistas capazes de associar o animal aohumano, o regional ao universal.Pedro Paranhos, senhor de Japaranduba, este ainda se recorda do carneirinho gordo querecebeu de presente quando fez sete anos. Em sua companhia fui ver um dia os gatos de briga

    do Coronel Frederico Lundgren; e ouvi os dois coronis conversarem sobre galos e cavalos,carneiros e aves regionais, como se conversassem sobre gente. Onde o O. Henry queencontre a a matria ideal - que h - para contos?A boa Dona Maroquinha Tasso outra que na sua casa de Dois-Irmos d de comer todos osdias a quanto bicho de rua ou do mato lhe aparece com olhos de fome no quintal que vizinhodo mato: acolhe-os numa constante prtica dos melhores princpios franciscanos. Sua ternurase estende a tudo que bicho pobre: a passarinho, a cabra e at a gavio. Ningum maiscapaz do que ela de reunir animais para um jardim regional em que os bichos vivessem quasetodos vontade e comendo na mo das pessoas como se todos fossem amigos. Noutro pasuma figura como Dona Maroquinha j estaria nos romances, nos contos, nos poemas.

    Menino, ainda, conheci o velho Joo Ramos, vizinho de meu pai na rua chamada hoje de JooRamos. Depois de ter se batido, ao lado de Nabuco, na campanha da Abolio, tornou-se umdos paladinos brasileiros na luta pela proteo aos animais. E uma das minhas recordaes demenino a da figura do velho ardente, no meio da rua, a gritar para um carroceiro - talvezantigo escravo que se vingasse nos bichos das chibatadas sofridas dos brancos na prpriacarne - que se arrependeria - "veja bem: voc se arrepende"! - se continuasse a maltratar ocavalo da carroa. Eu ia pela calada, montado no meu carneiro - um carneiro branco, alvo,lavado como se fosse gente, enfeitado de guizos de fitas como se fosse mulher; e puxado pelamo de um tio. Mas cheguei a ter medo do velho Ramos, cuja voz de indignao encheunaquela tarde a rua inteira, espalhando-se pela Rua Amlia e chegando at esquina da

    Estrada dos Aflitos. Uma voz de Dia de Juzo contra os carroceiros que maltratavam cavalos ebois, os meninos que judiavam de carneiros, os moleques que matavam passarinhos, ositalianos que exploravam macacas, os ingleses que estavam acabando com as borboletas, oscaadores que estavam dando fim aos marrecos, aos tatus, s pacas.Que dos poetas do Nordeste que no cantam figuras do vigor ao mesmo tempo regional ehumano da de Joo Ramos, como meu amigo Vachel Lindsay cantou a figura do GeneralBooth: o general Booth, do Exrcto da Salvao, "entrando no Cu"? Que dos romancistasque no descobrem tais figuras de Dons Quixotes regionais? Dos bigrafos que no asrevelam? Dos ensastas que no as interpretam?Hoje precisamos de Joes Ramos, continuadores de Joaquins Nabucos e cujas vozes se

    ergam no s a favor dos homens ainda cativos de homens ou dos animais ainda maltratadose explorados pelos donos ou das matas roubadas de seus bichos mais preciosos porcaadores a servio de comerciantes gulosos de dinheiro fcil, mas a favor das rvores, dasplantas, dos frutos da regio, dos seus doces e dos seus quitutes, que tanto quanto as artespopulares e os estilos tradicionais de casa e de mvel, vm sendo desprezados, abandonadose substitudos pelas conservas estrangeiras, por drogas suas, remdios europeus e pelasnovidades norte-americanas. Donde a necessidade deste Congresso de Regionalismodefinir-se a favor de valores assim negligenciados e no apenas em prol das igrejasmaltratadas e dos jacarands e vinhticos, das pratas e ouros de famlia e de igreja vendidosaos estrangeiros, por brasileiros em quem a conscincia regional e o sentido tradicional do

    Brasil vem desaparecendo sob uma onda de mau cosmopolitismo e de falso modernismo. todo o conjunto da cultura regional que precisa de ser defendido e desenvolvido.

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    MANIFESTO REGIONALISTA

    Escrito por Gilberto FreireSeg, 11 de Maio de 2009 14:53 -

    Gilberto Freire, 1926

    Texto retirado do site: www.ufrgs.br