Geraldo Ferraz. Warchavchik e a introdução da nova arquitetura no Brasil - 1929 a 1949 (pp7-10)

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Quando da realização do Congresso de Atenas, em 1932, do qual participei como membro da representação italiana juntamente com Terragni, Pollini e Bottoni, numa das primeiras reuniões realizadas a bordo do navio “Patria II” que nos levava de Marselha à se os de renda vício esse povo , foi elaborada uma lista dos arquitetos que já tinham aderido aos "C.I.A.M.” (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna) e também daqueles que poderiam ser convidados para deles fazerem parte. Como naquele mesmo ano eu planejara uma viagem pela América Latina, a fim de apresentar uma exposição de arquitetura italiana contemporânea a ser realizada logo depois no Museu de Belas Artes de Buenos Aires, o Comitê pediu-me que estudasse a situação nos países que seriam por mim visitados e que, posteriormente, apresentasse em relatório de minhas observações ao secretário geral. Em grandes e importantes países como o Brasil, a Argentina e a Venezuela, não havia indícios de movimentos histórico- artísticos de renovação, ou então eram estes tão circunscritos que poderiam ser ignorados. Deve-se levar em conta, também, a falta de informação na Europa em relação à América Latina, ignorância que ainda perdura no mais popular tratado de Teoria da Arquitetura, o de Lurçat, no qual se podem ler as mais incríveis confusões geográficas quando se menciona, o Brasil ou a Argentina. Um dos raros nomes que foram então lembrados por Le Corbusier, foi o do arquiteto Gregori Warchavchik, de cujas obras já tinha conhecimento, e que foram depois reproduzidas na monografia de Alberto Sartoris. "Gli Elementi dell’Architettura Funzionale” (Milão, Ulrico Hoephi ed. 1931) prefaciada por Le Corbusier; e na segunda edição prefaciada por ele mesmo e por mim próprio. Le Corbusier havia visto e apreciado alguns trabalhos do arquiteto que, embora nascido na Rússia, tinha escolhido o Brasil como sua segunda pátria, adquirindo a cidadania brasileira, casando-se com brasileira e considerado por todos como brasileiro. Anteriormente è sua chegada ao Brasil, o que se deu em 1923, ele havia terminado o curso de arquitetura da Universidade de Odessa, na Rússia, e depois estudara no

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Quando da realização do Congresso de Atenas, em 1932, do qual participei como membro da representação italiana juntamente com Terragni, Pollini e Bottoni, numa das primeiras reuniões realizadas a bordo do navio “Patria II” que nos levava de Marselha à se os de renda vício esse povo , foi elaborada uma lista dos arquitetos que já tinham aderido aos "C.I.A.M.” (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna) e também daqueles que poderiam ser convidados para deles fazerem parte. Como naquele mesmo ano eu planejara uma viagem pela América Latina, a fim de apresentar uma exposição de arquitetura italiana contemporânea a ser realizada logo depois no Museu de Belas Artes de Buenos Aires, o Comitê pediu-me que estudasse a situação nos países que seriam por mim visitados e que, posteriormente, apresentasse em relatório de minhas observações ao secretário geral. Em grandes e importantes países como o Brasil, a Argentina e a Venezuela, não havia indícios de movimentos histórico-artísticos de renovação, ou então eram estes tão circunscritos que poderiam ser ignorados. Deve-se levar em conta, também, a falta de informação na Europa em relação à América Latina, ignorância que ainda perdura no mais popular tratado de Teoria da Arquitetura, o de Lurçat, no qual se podem ler as mais incríveis confusões geográficas quando se menciona, o Brasil ou a Argentina.

Um dos raros nomes que foram então lembrados por Le Corbusier, foi o do arquiteto Gregori Warchavchik, de cujas obras já tinha conhecimento, e que foram depois reproduzidas na monografia de Alberto Sartoris. "Gli Elementi dell’Architettura Funzionale” (Milão, Ulrico Hoephi ed. 1931) prefaciada por Le Corbusier; e na segunda edição prefaciada por ele mesmo e por mim próprio.

Le Corbusier havia visto e apreciado alguns trabalhos do arquiteto que, embora nascido na Rússia, tinha escolhido o Brasil como sua segunda pátria, adquirindo a cidadania brasileira, casando-se com brasileira e considerado por todos como brasileiro.

Anteriormente è sua chegada ao Brasil, o que se deu em 1923, ele havia terminado o curso de arquitetura da Universidade de Odessa, na Rússia, e depois estudara no "Régio instituto Superiore di Belle Arti” de Roma, onde seus mestres principais foram Guazzaroni e Manfredo Manfredi, do qual chegou a ser assinante e até substituto, aproximadamente pelo período de um ano.

A oportunidade de saber algo mais a seu respeito deu-se por ocasião de minha viagem para a América do Sul, pois o navio em que viajava escalava no Rio de Janeiro. Desembarquei, tornei um táxi e dirigi-me ao endereço que me havia sido fornecido por Alberto Sartoris, a fim de encontrar-me com Warchavchik; lembro-me de um prédio novo, ainda em construção, e da desilusão por não tê-to encontrado. Dirigi-me à embaixada italiana e lá tive a informação de que Warchavchik era considerado um inovador, o único no morro dona fim de que na arquitetura brasileira; mas o informante era um funcionário repleto de saudades acadêmicas, e concluiu dizendo que devia ser um extravagante. Nas minhas notas de viagem, encontro o seguinte: “Un San Giovanni che predica al deserto”. De fato, a cidade do Rio de Janeiro era um deserto, do ponto de vista da arquitetura, tal como era pregada por um grupo de sonhadores. Excluindo a avenida Rio Branco que, em minhas impressões de viagem comparei a uma espécie de “via XX Settemhre di Genova con ogni tipo di facciate eclettiche, con stili d’ogni genere, ma che soffrono la mancanza di copia da buoni originali”. Pareceu-me que a cidade deveria ser reconstruída, pois o seu aspecto arquitetônico dava a impressão de ter sido improvisado dentro de um ritmo de tremendo crescimento, com a ausência de um plano urbanístico adequado. Em São Paulo aconteceu o mesmo; levaram-me a ver o prédio Martinelli como sendo obra prima.

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Naquela hora compreendi, que Warchavchik faria um trabalho de pioneiro, mas que suas boas e sensatas idéias iriam ter o mesmo destino de uma gota d'água no oceano. Mas, coisa parecida não acontecia também do outro lado do Atlântico? Em muitos países da Europa, onde a renovação arquitetônica demorou a vencer, como o leitor poderá verificar no texto de Geraldo Ferraz, e situação não apresentava os mesmos sintomas? Sem falar na França, na própria Itália onde Warchavchik tinha estudado, por volta de 1930 a situação era mais ou menos de estagnação. O “Movimento pela Arquitetura italiana Racional’, (M.I.A.R) que agrupava elementos ativos, era composto de poucas pessoas; era um grupo reduzido, cujo número podia ser contado nos dedos das mãos, e não tinha sequer a presença durma ação firme e ideologicamente segura. Reunia heterogeneamente profissionais com uma vaga idéia do racionalismo que então se identificava com a “machine à habiter” de Le Corbusier. Apesar das Bienais e Trienais e de alguns contatos com os centros mais atuais do norte da Europa, especialmente com a Holanda e a Alemanha pré-nazista, a arquitetura italiana era dominada pelo ecletismo, utilizando-se dos estilo de qualquer época e de qualquer região, e tinha até urna certa tintura de ridículo em algumas produções dos mais celebrados artistas, como Brasini, Coppede e companhia, e inúmeros outros, em paralelo ao mau gosto artístico de d’Annunzio e de “Cabiriá”. Até Piacentini, vindo do ensino rigorosamente oitocentista do pai, autor do Palácio das Exposições na via Nazionale em Roma, após ter-se equilibrado nas elegâncias do Rococó, tentando estilizá-lo, assim como o ruminante remastiga o seu alimento, mudou suas preferências (adequando-se aos novos tempos políticos), para a majestade da arquitetura de Roma dos tempos do Império, filtrando-a, – todavia, através das experiências de Hoffmann e da Escola vienense. Warchavchik, antes de tudo, teve de defender-se destes ensinos negativos. Não tinha tido a possibilidade de

estabelecer contatos proveitosos com os iniciadores das polêmicas sobre a arquitetura que então era chamada também de funcional! Se alguma reação se verificou na Itália, isto foi somente em Milão com o “Grupo dos Sete”, com a construção, na “Bienal das Artes Decorativas” de Monza em 1927, de “La Casa Elettrica”, definida por Bruno Zevi como "una polemica giornalistica, precisa, ma non violenta”. Poder-se-ia dizer melhor, como o título da “Casa Elettrica” indicava claramente, um ato do após-futurismo que, naqueles tempos ainda tentava a sua sobrevivência, apesar de ter o seu chefe F. T. Marinetti se acomodado numa cadeira da Academia Real Italiana.

Naquela situação, pensando bem, deve-se deduzir que o jovem estudante russo, vindo de uma cidade como Odessa, na qual o estilo neoclássico dos arquitetos de Catharina II, a grande, tinha deixado os seus sinais; e transplantado para Roma, que era o mostruário dos estilos dos tempos passados, estilos esses todos presentes no incrível bolo do “Altare della Pátria” de Giuseppe Sacconi, já devia ter passado por um processo ideológico a respeito da atualidade da arquitetura e dos problemas de sua adequação ao progresso dos tempos. Se ainda hoje, numa época de audácias espaciais, existem arquitetozinhos que enchem cidades de mansõezinhas em estilos gregos, renascença, colonial ou “Beaux-Arts 1889”, podemos imaginar qual seria a posição dum estudante que saíra da Escola de Roma, Meca dos professores do “Ornato architettonico”. O drama destes institutos, que durante muito tempo eram chamados de “Escolas de desenho arquitetônico”, foi justamente a separação havida entre a organização estrutural, reservada aos engenheiros e o setor da ornamentação das fachadas, tarefa esta do artista decorador, chamado arquiteto. Os estudiosos que pesquisam a respeito da origem das novas linhas na arquitetura deste século,

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não nos parecem suficientemente interessados na .origem de uma praxe que faz urna distinção entre o trabalho dos engenheiros e o dos arquitetos, determinando verdadeiro conflito que, na minha opinião, é até responsável pelo fato das obras de arquitetura raramente serem o resultado dum conceito único de "inspiração e de execução. Sem a reforma das Faculdades de Arquitetura, que deveriam incluir no ensino as matérias técnicas e construtivas nos moldes parecidos àquelas que constam do currículo das escolas politécnicas, o arquiteto continuará sendo um profissional pela metade, já que a sua ação se resume na decoração e no estilo a ser dado ao prédio.

Insisto um pouco mais sobre a situação realmente na Itália, e isto por duas boas razões; uma delas é que fui, eu mesmo, o iniciador da polêmica sobre arquitetura contemporânea na Itália, com o "Tavolo degli Orrori” (vide: Bruno Zevi “Storia dell’architectura moderna”, Turim Einaudi ed. 1050, pág. 234 e segg., e tav. 34) e com a publicação do meu livro "Repporto sull’Archittetura”, Roma, “Polemiche di Critica Fascista” ed. 1931); e a segunda é que considero Warchavchik uma expressão positiva no mundo da arquitetura nova, apesar de oriundo de um ambiente totalmente negativo do ponto de vista da formação didática, o que representa um mérito incomum. Se ele tivesse permanecido na Itália, não tenho dúvidas em afirmar que teria sido um dos líderes de minha polêmica, ao lado de um dos mais notáveis arquitetos da época: Giuseppe Terragni. Devo acrescentar que, anos depois de sua chegada ao Brasil, Warchavchik construía em São Paulo a casa da rua Santa Cruz, com liberdade e autonomia de conceitos estéticos que, apesar dos contatos com a ação de mestres como Le Corbusier e Gropius, O próprio Terragni somente conseguiria mais tarde.

Atribuo o rompimento total de Warchavchik com tudo o que lhe foi ensinado em Roma e seu anseio de renovação ao fato de ter ele decidido se fixar no Brasil, uma terra nova, possivelmente receptiva à idéias novas. Warchavchik teve os mesmos impactos e os mesmos estímulos que sempre encorajaram e sugestionaram muitos emigrantes, não importando a que camada social, profissão ou arte pertencessem. Seja com o prazer de superar as dificuldades que surgem com a possibilidade de empreendimentos libertos dos grilhões tradicionais, e com a quase certeza de encontrar outros espíritos capazes de compreensão, com o aguilhão que representa a luta, pela vida devendo ser conquista.da dia a dia, e até com o prazer de superar as dificuldades que surgem com o trabalho prático e com as polêmicas de tom levemente à Far-West que, aliás, aos intelectuais, acabou agradando. E, com toda a sua energia moça, entregou-se à tarefa que se propunha: colaborar para o desenvolvimento do país acolhedor.

Bem antes de embarcar para o país que seria a sua segunda pátria, Warchavchik, que durante e depois do término de seus estudos trabalhara durante cerca de dois anos como assistente de Marcello Piacentini, um dos responsáveis pelo dúbio estilo romano-mussoliniano, ainda fora incumbido de um trabalho a ser realizado em Florença, o Cinema Savoia. Nesta, cidade, naquele tempo, a “Commissione d’Ornato” do Município estava incumbida de manter o culto do antigo e do falso antigo, o que fez daquela pseudo Atenas o berço bem conhecido das lúgubres repetições das formas neo-renascentistas; nosso Gregori, trabalhando naquela construção com outros colaboradores, creio que recebeu decisão ensinamento daquilo que um arquiteto não deveria jamais fazer, ou seja utilizar-se de moldes de estética que já foram história e que já serviram a outras épocas. A reação de Warchavchik foi a de deixar para trás, junto com a fumaça do navio que o transportara através do Oceano, a bagagem de sua cultura escolástica: trouxe consigo somente alguns

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projetos que o leitor verá nas páginas deste livro. São desenhos que obedecem às linhas italianas então em voga, mas que, todavia, já revelam o desejo de libertar-se das cadeias estilísticas para se inspirarem até em reminiscências de sua Criméia. Tais desenhos, vistos à distância de uns quarenta anos ou mais, têm um sabor de ternura para com as suas origens. Ao mesmo tempo os projetos revelam uma observação aguda da arquitetura singela da “Campegna Romana” e a preocupação e uma solução racional, sem exageros decorativos e sem desperdícios. A primeira fase da polêmica que eu lançara nas colunas do diário “L’Ambrosiano” em 1980 era barbeada no slogan: "Acabemos com o desperdício decorativo, para atingir a pureza linear, o volume certo e o proporção harmoniosa”. Em São Paulo, Warchavchik, depois do seu casamento com Mina Klabín, que se adornará a sua companheira de ação e colaboradora preciosa como paisana, em 1927 começa a construir sem reminiscências italianas ou russas; e depois de abrir o seu próprio atelier, consegue realizar um ciclo de trabalhos de feitura totalmente dele, integrando e observando o ambiente e, ao mesmo tempo, lutando paro conseguir a aprovação dos seus projetos. O leitor verá, mais adiante, como Warchavchik se viu obrigado a camuflar as fachadas dos seus primeiras projetos para obter a aprovação da Prefeitura, porque se aqui havia muita liberdade, esta não existia quanto ao estilo e à liberdade de projetar. Repetindo uma praxe em uso

em vários países, uma espécie de "Commissione d’Ornato” dava crisma de “beleza” e conveniência aos prédios: a serem construídos. A pregação do jovem arquiteto era completamente nova e naturalmente era incompreensível para a maioria das pessoas. O mesmo fato se dera quando da chegada ao Brasil, em 1818, da Missão Artística Francesa, chefiada por Lebreton. Sempre houve e haverá a mesma dificuldade para poder superar hábitos e idéias arraigadas e o “vade retro” é inevitável para qualquer inovação que se tente introduzir.

Lembremo-nos que, naquela época, os artistas bonapartistas já tinham passado pelo Neo-Classicismo ao passo que o Aleijadinho continuaria nas formas do Gótico e Mestre Valentim nas do Barroco. O panfleto do arquiteto Dácio de Moraes, que Geraldo cita neste livro, poderia ser comparado com. A gritaria dos artesãos portugueses que, junto à Corte, continuavam a produzir prédios e mais prédios na rotina mais provinciana, tornando impossível à Missão Francesa a tarefa de civilizar as artes com os progressos da atualidade de então.

Cada vez que na história, do passado se propôs a introdução de um movimento novo para uma modificação de conceitos ou de coisas, a primeira conseqüência foi que se fez necessário um grande esforço para esclarecer e convencer, tarefa, aliás, que faz parte de toda e qualquer revolução. Eis a explicação da atitude de Gregori, no seu espírito pioneiro que teve o propósito de contribuir para a renovação da arquitetura brasileira, renovação e estímulo também para os demais países da América Latina. Hoje, quando em todas as partes do mundo, Brasília se tornou o cartaz do Brasil, e que muita gente já se esqueceu dos fetos que precederam à sua construção, de propósito ou por ignorância, é justo que seja lembrado que o ponto de partida da nova arquitetura brasileira foi a atuação destemida e desinteressada de Warchavchik.

Ninguém discute, hoje em dia, a capacidade criadora de Oscar Niemeyer; isto não impede que muitas restrições possam ser feitas à sua obra, especialmente do ponto de vista funcional. Quero lembrar, ainda mais, que, trabalhando no atelier da firma “Warchavchik e Lúcio Costa”, fundada no Rio, em 1933, lá teve boa parte de sua aprendizagem e a

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oportunidade de praticar; e depois disso teve o seu ponto de partia na profissão e na fama junto com a equipe organizada por Lúcio Costa; com o Ministério da Educação, sob a égide de Le Corbusier; isto em 1937. O encontro entre Warchavchik e Lúcio Costa, em 1931, foi portanto um dos fatos que possibilitaram a tomada de posição da arquitetura contemporânea brasileira, com o convite aos professores de tendências modernas para a Escola de Belas Artes, entre os quais se encontrava Warchavchik, e com os acontecimentos que se seguiram. Mas até aquela época, Lúcio Costa, hoje consagrado arquiteto e urbanista, não tinha tido a oportunidade nem de fazer arquitetura contemporânea nem de provar que a arquitetura não existia apenas para a satisfaço de uma clientela ignorante das exigências da coletividade, de acordo com os progressos técnicos e científicos. Será o encontro com Warchavchik que lhe possibilitará tornar parte ativa e definir sua posição no mundo da nova arquitetura.

Não tenho uma idéia clara de quais foram as repercussões, no Brasil, do Congresso de La Sarraz, do Manifesto de Sant’Elia, da obra de um Frank Lloyd Wright e de outros acontecimentos internacionais; mas conforme consta, o Manifesto de Sant’Elia passou completamente desapercebido, como o teria

sido o de La Sarraz, se Warchavchik que já pertencia ao C.I.A.M. mão o tivesse recebido, traduzido e distribuído aos profissionais, Isto quando já tinha construído a sua primeira casa modernista em Vila Mariana e mais algumas outras. No que se refere a Frank Lloyd Wright, poucos, no Brasil, naquele tempo, sabiam de sua existência e de sua obra. Ele, aqui, se tornaria mais conhecido, e sua influência se processaria na “Exposição da primeira Casa Modernista do Rio de Janeiro”, em 1931, quando se encontrava naquela cidade, como delegado dos Estados Unidos, no Júri Internacional, que devia escolher o projeto para o Farol de Cristóvão Colombo a ser construído em São Domingos. Isto pode ser lido no texto de Geraldo Ferraz. Aliás, poucos, no Brasil, estavam ao par ao movimento pela arquitetura contemporânea, a não ser Paulo Prado e pouquíssimos outros. Entre os profissionais, talvez somente Flávio de Carvalho que, por: ter estudado na Inglaterra e ter acompanhado os movimentos europeus, tinha tido maior conhecimento e mantinha uma posição, aliás, excepcional, de polemista. Ele, com o arrojo do revoltado, une uma autêntica sensibilidade de artista à vocação do inovador. No campo da arquitetura ele teve uma atuação paralela a de Warchavchik; mas, ao passo que este realizaria sem parar os seus projetos, infelizmente os de Flávio quase não saíram do papel.

Warchavchik, jovem ainda, possuindo uma vontade firme e o dom das relações públicas, conseguiu, apesar de sua falta de experiência naquele inicio de carreira, idealizar e realizar dois acontecimentos que ultrapassam os confins do Brasil, participando da vasta ação internacional da renovação arquitetônica: foram as exposições das “Casas Modernistas” de São Paulo e do Rio de Janeiro. A iniciativa de apresentar a exposição de São Paulo com uma mostra arte moderna deve também ser ressaltada, pois esclarece que Warchavchik ia mesmo polemizar com a plena convicção de uma ação de conseqüências renovadoras. Não se tem notícia de um empreendimento dessa natureza na historia da arquitetura moderna mundial, como seja, o de lançar um desafio a toda uma cidade como porta-bandeira da integração da arquitetura nova à vida contemporânea, Podemos lembrar aqui a “Casa Elettrica” que foi apresentada numa exposição; mas não foi a “Exposição de ema Casa", mobiliada e pronta para ser habitada, com uma exposição de arte moderna no

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seu interior, sem falar dos móveis e da situação da casa num dos novos bairros da cidade. Insistiremos, ainda, em ressaltar a “Exposição de uma Casa Modernista” no ano de 1930, como uma das iniciativas que devem ser marcadas na história das artes deste século; e, em certo sentido, com as devidas diferenças de ambiente e de época, como acontecimento comparável somente àquele dos dias nos quais o sr. Stoclet abria a casa, que na primeira década deste século, em Bruxelas, havia, terminado de lhe construir o arquiteto Josef Hoffmann, a maior expressão da Secessão Vienense.

Várias são as relações entre esses dois empreendimentos, tão afastados no tempo e apesar da distância, ou melhor dizendo, da difícil comunicabilidade dos continentes naquela época no campo cultural: Warchavchik teve o incontestável mérito de ter concebido a arquitetura como um todo, que inclui no planejamento e na construção propriamente dita, a arquitetura doa interiores; o que muita gente denomina erroneamente de “decoração”. Nas ilustrações deste Livro encontrará um capítulo dedicado aos móveis, que documenta a finura e o zêlo empregado pelo arquiteto na realização dos seus projetos, até os mínimos detalhes, tudo cuidado

samente estudado. A harmonia entre as diversas artes plásticas sempre foi preconizada pela arquitetura, que Vitrúvio, com justiça, apelidava de “princesa das artes”. Esta compreensão do sentimento de unidade e de harmonia perdeu-se na época do Romantismo que acabou favorecendo uma atitude mais individualista e, por conseqüente, eclética; e foi somente no início do século que a atenção dos arquitetos se dirigiu para este assunto e começou a reconsiderar a importância da unidade entre todas as partes que integram uma obra de arquitetura. Em São Paulo tivemos alguns exemplos de obras de arte de acordo com a idéia da unidade entre as diversas artes plásticas: muito se deve pela divulgação da idéia da unidade e da introdução da arte contemporânea em geral, a Lasar Segall, o pintor, escultor e gravador de alto gabarito, cuja consciência se recusou a “priori" a qualquer compromisso; a Warchavchik, não menos obstinado e convencido de sua missão, a Mário de Andrade, o papa do modernismo no Brasil, a Osvald de Andrade com a sua verve endiabrada, a Carlos Pinto Alves e Paulo Mendes de Almeida, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e outros, com as suas penas a serviço das artes: a Tarsila do Amaral, .Anita Malfatti, Moussia Pinto Alves, Paulo Osir Rossi, Regina e John Graz, Jenny Segall, Mina Warchavchik, Chinita Uhlmann e outros mais que, através da Sociedade S.P.A.M. (Sociedade Pró Arte Moderna), por este grupo fundada em 1933 com o apoio e patrocínio de Dona Olívia Guedes Penteado, incentivaram, poderosamente a renovação das artes e abriram novos horizontes. E também muito se deve a Flávio de Carvalho e seu grupo, que fundaram o C.A.M. (Clube dos Artistas Modernos), que resultou de uma cisão entre os componentes do grupo de fundadores da S.P.A.M., durante a sua organização e que funcionou e morreu mais ou menos na mesma época. Era muito mais radical do que o S.P.A.M., e quando foi encenada uma peça de Flávio de Carvalho, "O Bailado do Deus Morto”, a polícia fechou a sede da entidade.

Devem-se, também, lembrar fatos que antecederam tais acontecimentos, como a tão falada “Semana de Arte Moderna” em 1922, na qual tornaram parte Paulo Prado, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Renato de Almeida, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Plínio Salgado, Victor Brecheret, Emiliano Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Heitor Villa-Lobos e outros. Na verdade, foi talvez o primeiro, mas apenas

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um protesto contra uma literatura e uma arte já superadas, protesto este vindo do ponto de vista do Futurismo e talvez bastante eclético apesar de tudo e cuja ação mais pronunciada se registrou na literatura. Mas o resultado principal foi o de levantar a celeuma em torno destes assuntos. Assim também se deu com a visita de Marinetti ao Brasil em 1926, o que, numa conferência, recebeu em vez de aplausos tomates podres.

Depois desta digressão e voltando ao assunto da arquitetura contemporânea e à destacada atuação de Warchavchik, veremos como Geraldo Ferraz, neste livro, a situa no meio e na atmosfera na qual os fatos se desenrolaram, do ponto de vista do crítico, mas também e principalmente por via de documentos que tornam conhecidos, através dos prós e contras. as diversas posições dos intelectuais e dos colegas de profissão, naquela, época, em relação à arquitetura nova e à arte contemporânea em geral. Do ponto de vista positivo destacam-se nomes que mais tarde continuaram a esclarecer e convencer a opinião pública da irreversível vitória dos novos rumos das artes no Brasil e no mundo.

O mérito deste livro, todavia, é de ter fixado fatos históricos, e a sua finalidade será de servir de documentário e de ponto de partida para o historiador que, algum dia, escreverá, a história da arquitetura nova no Brasil no período de 1925 a 1940. Porque este período, realmente, abriu a trilha que depois se alargou em estrada para a arquitetura contemporânea brasileira, hoje tão falada no mundo inteiro; e, certamente, lembrará quem foi que plantou a primeira estaca no marco zero: Warchavchik.

P. M. BARDI