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    Imperativos de conduta juvenil no sculo XXI: a Gerao Digital na mdia impressa brasileira

    Joo Freire Filho1Joo Francisco de Lemos2

    RESUMO

    Neste artigo, examinamos o uso de um dos emblemas geracionais mais adotados pela imprensa brasileira: Gerao Digital (nomeada, alter-nativamente, de Gerao On-Line, Gerao Internet, Gerao Conectada, Gerao Z ou Gerao Pontocom). Nosso objetivo demonstrar como os retratos miditicos da Gerao Digital exaltam discursivamente posturas e prticas juvenis que prefigurariam ou sinteti-zariam um padro exemplar de subjetividade, afinado com premissas e interesses do atual estgio do capitalismo.Palavras-chave: Juventude; gerao; imprensa; subjetividade; tecnolo-gias digitais; capitalismo flexvel.

    AbStRAct

    This article examines the use of one of the generational labels most ad-opted by the Brazilian press: Digital Generation (alternatively named On-line Generation, Internet Generation, Connected Generation, Z Generation or Dotcom Generation). Our objective is to demonstrate

    1 Doutor em Literatura Brasileira pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professor da Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde coordena a Linha de Mdia e Mediaes Socioculturais do Programa de Ps-Graduao. Pesquisador do CNPq. Autor, entre outros trabalhos, do livro Reinvenes da resistncia juvenil: os estudos culturais e as micropolticas do cotidiano (Rio de Janeiro: Mauad, 2007) e co-editor da coletnea Novos rumos da cultura da mdia: indstrias, produtos, audincias (Rio de Janeiro: Mauad, 2007). 2 Mestre em Cincias Humanas e Sade pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestrando em Comunicao pela Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Candido Mendes (CESAP-UCAM).

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    how media portrayals of the Digital Generation discursively celebrate youth stances and practices, which would prefigure or synthesize an ex-emplarily subjective pattern tuned with assumptions and interests of the present stage of capitalism.Keywords: Youth; generation; press; subjectivity; digital technologies; flex-ible capitalism.

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    No se pode subestimar a importncia histrica das velhas e no-vas mdias nos processos de configurao de modelos ideais de subje-tividade juvenil e de seus contrapontos negativos (a instaurao da lei produz, necessariamente, os fora-da-lei...), desde a virada do sculo XX, quando a linha entre a juventude e a maturidade se tornou mais refinada, vigiada e democraticamente aplicada dentro dos pases industrializados.

    Onipresentes, os artefatos miditicos referendam conhecimentos e verdades categricas sobre o que constitui a essncia, as potencialida-des e os dilemas dos adultos de amanh, demonstrando ou instruindo como devemos compreend-los, capacit-los, supervision-los, proteg-los e corrigi-los hoje, no interior de configuraes historicamente deter-minadas de saber, poder e subjetivao.

    A participao da mdia na construo das formas e das normas da adolescncia e da juventude se consubstancia, em regra, por meio de enunciados que proclamam apenas e to-somente desvelar a nature-za dessas etapas qualitativamente distintas do desenvolvimento humano. Encaradas, amide, como fenmenos biolgicos universais, a adolescn-cia e a juventude devem ser compreendidas, ao contrrio, como artefatos de governamentalidade, construdos e operacionalizados na interseco de discursos polticos, acadmicos e mercadolgicos que estabelecem como aceitveis, desejveis ou temerrias determinadas caractersticas, configuraes, associaes e atitudes das populaes denominadas jo-vens (Freire Filho 2006). Os paradigmas de normalidade e xito que vi-sam regulao e capacitao das condutas esto atrelados de modo menos ou mais ostensivo a pressupostos, concepes e preconceitos acerca de questes como sexualidade, educao, disciplina, cidadania, prazer, risco, consumo, liberdade, segurana pblica, felicidade pessoal, eficcia social e desenvolvimento nacional.

    Em contraste com a representao relativamente escassa da adoles-cncia e da juventude no cinema brasileiro, a abordagem do tema pela nossa mdia impressa profusa e instigante, multiplicando-se pelas mais variadas sees. Nas matrias com inclinao mais expressamente es-sencialista ou ontolgica, o foco investigativo so as razes biolgicas, psquicas e/ou neurolgicas do (naturalmente conturbado) modo de ser

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    de rapazes e moas. Retratos da adolescncia Grandes revolues ce-rebrais e psicossociais marcam a passagem da infncia para a vida adulta. Acompanhe as vrias facetas desse processo e as mais importantes pes-quisas nesse campo nas quatro edies de O Olhar Adolescente, convida o editorial de lanamento da srie especial da revista Mente & Crebro, publicada pela Ediouro, em 2007. Uma pretenso anloga tambm mo-tivou a confeco de reportagens como Ela est desabrochando: corpo de mulher, cabea de menina a puberdade um marco na vida da ado-lescente que necessita de boas orientaes para atravessar essa fase numa boa (Guia para Pais de Adolescentes, edio especial da revista feminina UMA, jun./2006, p. 12-15), Os primeiros passos de um homem O garoto cresce de repente, a barba comea a surgir e os hormnios a (sic) flor da pele so um convite masturbao (idem, p. 19-21) e Em busca do prprio vo Deixar de ser criana e passar para a idade adulta acar-reta um turbilho qumico e emocional no qual o jovem procura criar uma viso autntica de mundo e pilotar a prpria vida (Psique Cincia & Vida, no 27, 2008, p. 20-26), alm do editorial So os hormnios que falam por eles (Veja Edio Jovens, set./2001, p. 75).

    Conforme antecipam ttulos e subttulos mencionados acima, a maior parte dos relatos jornalsticos tende a acompanhar a conceitua-o psicossocial da adolescncia, continuamente reelaborada por psi-clogos e psiquiatras, desde as teorizaes pioneiras de G. Stanley Hall no incio do sculo XX (mais amparadas nos escritos romnticos de Rousseau, Goethe e Schiller do que em evidncias empricas). Esta-ramos alegadamente diante de uma etapa natural (ainda que tumul-tuosa) de transio da infncia para a maturidade, notabilizada por alteraes e atribulaes biolgicas, psicolgicas e sociais (Freire Fi-lho 2006). Como no ficar intrigado (ou mesmo temeroso) perante as profundas mudanas na compleio corporal e na personalidade do adolescente? Os pais no o reconhecem mais e com freqncia tm a impresso de se encontrar diante de um estranho, ressalta a especia-lista em psiquiatra juvenil Stphane Clerget (2004 14). De acordo com a tradicional concepo desenvolvimentista endossada pela mdia, os principais culpados pelas agruras da adolescncia seriam os potentes

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    hormnios que impulsionam o crescimento e a maturao sexual, le-vando o indivduo em acelerada mutao a ter de lidar psicolgica e socialmente com pensamentos, sentimentos, desejos, obrigaes e competncias inditas.

    Pode-se detectar, entretanto, a difuso de um novo modelo expla-natrio para as inconstncias e rebeldias juvenis, ancorado em proposies do campo da neurocincia. o que indicam, por exemplo, as reportagens A cincia explica o aborrescente A moada briga, chuta a porta, bate boca com os pais e grita sem motivo? Tudo bem. A culpa do crebro de-les, que ainda est em fase de formao (Veja Edio Jovens, ago./2003, p. 76-77), Crebro de adolescente Novas pesquisas provam que nem s os hormnios so culpados pelo comportamento explosivo da garotada (Ve-ja Edio Jovens, jun./2004, p. 34-35) e Por dentro da mente adolescente (Isto, 8/4/2008, p. 68-73). Somos informados, por essas matrias, de que um intenso processo de rearranjo dos neurnios (principalmente no crtex pr-frontal, rea ligada ao discernimento e ao autocontrole) constituiria, na verdade, o maior responsvel pela angstia existencial e pelo comportamento impulsivo e temperamental tpicos da moci-dade da resposta malcriada escapulida para uma festa; do sexo sem preservativo imprudncia na direo. Tal guinada interpretativa se coa-duna com uma reformulao mais ampla na maneira de pensar e agir sobre desordens de pensamento, humor e conduta, em que concepes neuroqumicas do self passam a ter primazia sobre noes psicolgicas e internalistas de identidade individual (Ehrenberg 2004; Ortega & Vidal 2007; Rose 2006; Vidal 2008).

    Sem desprezar por completo os processos biodesenvolvimentistas e psicossociais tradicionalmente vinculados adolescncia, os assduos retratos da nova gerao produzidos pela mdia buscam outros parme-tros para descrever e explicar as peculiaridades da juventude hodierna. Sua inteno captar caractersticas e experincias distintivas comparti-lhadas pela maioria das pessoas jovens, dentro de uma combinao par-ticular de condies sociais, culturais, econmicas e polticas.

    J fortemente inserido no patrimnio da sociologia funcionalista es-trutural, o tema da gerao tem experimentado um renascimento em

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    diferentes esferas acadmicas, desde o comeo da dcada de 1990. Se-gundo Corsten (1999), a razo preponderante para o renovado inte-resse pelo assunto a crise das identidades coletivas tradicionais. O esvaziamento heurstico de categorias como classe social, no bojo da modernidade reflexiva, teria aberto espao para que idade e gerao se fortalecessem como marcadores de diferenciao e conflito.

    Movida por sua ndole novidadeira, a mdia comercial no s abraa, com entusiasmo, o conceito de gerao, como ajuda enormemente a vulgariz-lo (Freire Filho 2008). No restante deste artigo, abordaremos especificamente o uso de um dos emblemas geracionais mais adotados pela imprensa brasileira: Gerao Digital (alternativamente, nomea-da de Gerao On-Line, Gerao Internet, Gerao Conectada, Gerao Z (de zapping) ou Gerao Pontocom). Nosso objetivo demonstrar como os retratos miditicos da Gerao Digital exaltam discursivamente posturas e prticas juvenis que prefiguram ou sinteti-zam um padro exemplar de subjetividade, afinado com premissas e in-teresses do atual estgio do capitalismo.

    O nascimento da Gerao Digital

    Desde o final do sculo passado, uma srie de discursos acadmicos, miditicos e mercadolgicos (amide, inter-relacionados) tem procurado realar a cotidiana, produtiva e socialmente revolucionria relao entre os jovens e as novas tecnologias da comunicao e da informao. Mui-tos desses textos no hesitam em assinalar a emergncia de uma distin-ta Gerao Digital (Buckingham & Willett 2006; Nicollaci-Da-Costa 2006; Tapscott 1999). O rtulo geracional pretende enfatizar a curio-sidade, a confiana e a destreza mpar com que os indivduos nascidos depois de meados dos anos 1980 utilizam microcomputadores, internet e telefones celulares para as mais diversas finalidades (entretenimento; in-formao; aprendizagem; comunicao; consumo; construo de perso-nalidade e de identidade social; consolidao de redes de sociabilidade). Apesar do predomnio de textos centralizados no grupo tradicionalmen-te entendido como jovem, considervel a existncia de narrativas sobre

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    a infncia high-tech, enfocando os chamados babynautas ou cyber-kids (Halloway & Valentine 2003). Em todos os casos, porm, a tentativa de radiografar uma gerao em todo seu ineditismo parece estimulada mais pela profuso das prprias tecnologias em um admirvel mundo novo do que pelo pertencimento a um grupo etrio fixo.

    As reportagens que compem o nosso corpus analtico no se can-sam de frisar que a Gerao Digital estabeleceu, desde muito cedo, o convvio com os aparatos tecnolgicos e que estes tm contribudo na produo de uma vida inteiramente diferenciada daquela de represen-tantes das geraes anteriores. O tom, em regra, de euforia diante de uma enxurrada de novidades, acerca das quais preciso tomar partido, atualizar-se para no ficar pra trs.

    Garotos e garotas da Gerao Z, em sua maioria, nunca conceberam o planeta sem computador, chats, telefone celular. Sua maneira de pensar foi influenciada desde o bero pelo mundo complexo e veloz que a tec-nologia engendrou. Diferentemente de seus pais, sentem-se vontade quando ligam ao mesmo tempo televiso, o rdio, o telefone, msica e internet (Gerao Z, Veja Especial Jovens, set./2001, p. 15).

    Para esse pblico, o celular passou a representar um acessrio definidor da personalidade (Eles no vivem sem celular, Veja Especial Jovens, jun./2004, p. 79).

    Para seus pais, a tecnologia apenas um complemento de sua vida. [...] Para os adolescentes, essa separao entre o real e o virtual impercep-tvel. Eles nasceram e cresceram na rede e, mais importante, em rede. [...] Para a gerao digital, sem celular, comunidades online ou blogs no h vida (Gerao Digital, Exame, 24/8/2006, p. 22).

    Os jovens navegadores somam hoje 30% da populao mundial, contra 29% dos boomers. Vem o computador como extenso natural de suas vidas e so mais bem informados do que qualquer gerao anterior (Ge-rao Virtual, Isto, 12/4/2000, p. 54).

    Invariavelmente, as matrias destacam as fascinantes transformaes no campo do consumo, do lazer e da interao social, capitaneadas por crianas e adolescentes; s vezes, a dificuldade de acesso s benesses tec-nolgicas reconhecida e lastimada. Neste caso, a relao fundamental

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    entre juventude e tecnologia acionada mais uma vez, agora para rati-ficar a necessidade de polticas em prol da incluso digital, tema que ganhou notoriedade no Brasil nos ltimos anos.

    O prodgio tecnolgico

    As matrias que se debruam sobre os legtimos representantes da Ge-rao Digital conjeturam acerca dos impactos da tecnologia sobre a cognio dos jovens (constantemente insinuam um acrscimo na capa-cidade de aprendizado), sendo freqente a meno a uma expertise qua-se natural para a informtica. A matria de capa, Futuros gurus, do primeiro nmero do suplemento Digital, encartado no jornal O Globo, destacou a notvel percia do prodgio tecnolgico, que auxilia os pais na rotina do lar informatizado:

    Eles baixam e instalam programas, cuidam da segurana do computa-dor, ajudam os adultos da casa a navegar na internet e a realizar tarefas, fazem sem estresse a transio entre suas mquinas e seus tocadores de MP3 e alguns at ajudam a construir pequenos robs (O Globo, 8/6/2008, p. 16).

    Representaes da juventude como adepta preferencial de novos apa-ratos tecnolgicos ou atrelada a discursos sobre transformao social no tiveram incio, obviamente, com a Gerao Digital. Existe uma galeria de tipos que participaram, ao longo do sculo XX, da formao de uma cultura de consumo que atravessa, entre outras dimenses, a msica po-pular massiva, o mercado fonogrfico, as rdios e as guitarras eltricas, por exemplo. Interessa-nos, aqui, demarcar as especificidades de um cor-pus discursivo mais contemporneo, que vem construindo o imaginrio sobre uma juventude ao mesmo tempo fomentadora das novas tecnolo-gias e necessariamente interpelada por elas.

    A identificao da cultura tecnolgica como uma cultura ju-venil remonta dcada de 1980, quando surgiram os computadores pessoais, os videogames e a internet. Alguns dos principais criadores dessas tecnologias eram estudantes geniais que ainda no haviam

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    terminado seus cursos de graduao nas reas mais promissoras da in-formtica. Tornaram-se famosos por descobertas que influenciariam toda a indstria tecnolgica mundial, passaram a administrar grandes corporaes que levam seus nomes ou que se tornaram intimamente relacionadas a eles. A histria da cultura tecnolgica deste sculo entronizou suas biografias. Ao faturar seus primeiros milhes antes dos 30 anos, Bill Gates (que fundou a Microsoft com 19 anos) e Steve Jobs (que fundou a Apple com 21 anos) se transformaram em emblemas internacionalmente reconhecidos por catalisarem (ou mesmo inaugu-rarem) um vasto campo de expectativas (as oportunidades de um novo mercado, novas especializaes profissionais) que despontaram com as tecnologias lanadas naquela dcada.

    Ainda hoje, passada a fase inicial da revoluo dos computadores pessoais, a imagem do jovem que detm uma espcie de talento natural para o computador prevalece, e novos mitos alimentam este imagin-rio. Outros exemplos mais recentes sucederam esses criadores, repetindo faanhas econmicas ao criarem sites que participam da atual renova-o da web Google, YouTube e Orkut foram inventados por jovens convertidos em microempresrios da noite para o dia. Tais personagens passaram a preconizar um novo modelo de relao com o trabalho, no qual o despojamento e a autonomizao da rotina substituem qualquer tipo de sedentarismo laboral fato que vem despertando a curiosidade do nicho de publicaes voltadas para o desempenho corporativo. So inmeras as reportagens nas quais explcita a eleio dos jovens Mi-das high-tech como exemplos de um novo modelo de performance no mercado de trabalho. Por terem transformado suas criaes em negcios extremamente lucrativos, no raro servem para ilustrar uma onda pr-empreendedora, tendncia endossada pela crise econmica que afuni-la oportunidades tradicionais de trajetria profissional ensejando novas modalidades de gerao de renda.

    2006 foi o ano dos garotos do YouTube. Eles so o smbolo de uma nova era cujo protagonista voc, assegurou a revista poca (Parti-cipe, 15/1/2007, p. 35). Na sua retrospectiva dos fatos marcantes de 2006, o semanrio traou paralelos entre o surgimento da web colabo-

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    rativa (caracterizada pelos sites que permitem aos usurios despejarem contedo na rede) e a expectativa de que uma atitude empreendedo-ra pudesse, enfim, consolidar-se no pas. Participam do inventrio de um mesmo esprito dos novos tempos as recentes experincias nas comunicaes e as mudanas no mercado de trabalho e na economia global: Salve o planeta! Fiscalize o governo! Faa o bem! Arrisque! Empreenda! Em uma palavra: participe! Bem-vindo a 2007, o ano em que voc vai fazer a diferena (Arrisque, 15/1/2007, p. 45). A matria relata a diminuio de vagas no mercado de trabalho e o aumento da cobrana pela realizao de metas. As empresas enxutas, com menos nveis hierrquicos, estariam mais aptas a prosperar neste cenrio e, por conseguinte, a atrair os jovens, conforme ressaltou um professor da ctedra de empreendedorismo: Para um jovem talentoso, a possibili-dade de passar vrios anos de sua vida num ambiente que parece uma panela de presso um pesadelo (idem). Socializados com a veloci-dade proporcionada pelas tecnologias, os jovens abraariam arranjos de trabalho mais flexveis; o empreendedorismo, centrado na idia de montar o prprio negcio, figuraria como uma opo ainda mais esti-mulante para os integrantes da Gerao Digital.

    Os discursos miditicos sobre os jovens empresrios da tecnologia compem, portanto, um novo perfil de juventude que utiliza o know-how apreendido com seus principais companheiros de infncia os ga-mes e os microcomputadores para fechar vultosos negcios de gente adulta.

    Velozes, simultneos e competentes

    Enviar e receber e-mails, fazer pesquisas de colgio ou faculdade, partici-par de chats, visitar pginas de notcias, humor e astrologia, baixar msi-cas, vdeos e games, conversar com amigos em programas de mensagens e, ufa, ainda visitar ou atualizar os prprios blogs e fotologs. Tudo em uma tarde, quase ao mesmo tempo e com a TV ou o som ligado e o telefone celular tocando. (Folha de S.Paulo, Cabea a mil, Folhateen, abr./2004, p. 12).

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    O texto anterior publicado em um dos principais suplementos en-dereados aos jovens do pas pretende descrever um tpico dia na vida de um adolescente de classe mdia. Na matria, a facilidade para atender simultaneamente diferentes estmulos remeteria a uma nova sensibilida-de diante da informao. Os jovens retratados experimentariam hbi-tos inditos de comunicao, dispondo de aparatos tecnolgicos com os quais lidam em meio a outras atividades (cursos, lazer etc.). Esses hbitos so anunciados como sinais de uma mudana de comportamento mais geral que se estende s formas de aprender e relacionar-se com as tarefas dirias. A simultaneidade de atividades descrita na tentativa de acom-panhar a voltagem acelerada do jovem cercado por tecnologias. A pos-svel patologizao desses comportamentos recua diante do diagnstico aprobativo dos especialistas:

    Muitos podem pensar em vcio, mas a prtica no necessariamente ruim. De acordo com especialistas no uso das tecnologias da educao, o com-putador liberta o crebro para que ele funcione como deveria, ou seja, em rede (Folha de S.Paulo, Cabea a mil, Folhateen, abr./2004, p. 12).

    Os novos comportamentos surgidos na interao entre jovens e bens tecnolgicos despertam a ateno tambm de outros segmentos da mdia. A revista Exame, em sua edio de agosto de 2006, almejava desvendar O poder da Gerao Digital que estaria transformando radicalmente o mercado e o mundo dos negcios. Aqui, os jovens di-gitais suscitam interesse porque protagonizam novas posturas de con-sumo e relaes com as marcas. H urgncia em decifr-los, para no sucumbir acirrada disputa por este segmento de mercado Para as empresas uma escolha: seguir o caminho dessa gerao ou permane-cer margem deles (O poder da Gerao Digital, ago./2006, p. 30). Como criar estratgias de comunicao que capturem, de modo eficaz, a ateno de indivduos que navegam simultaneamente em diferentes mdias? O texto recorre a diversas fontes (depoimentos de executivos, pesquisas de mercado e dados estatsticos sobre o consumo techie) com o intuito de registrar as transformaes em andamento. Mais uma vez, a noo de simultaneidade identificada como o cerne da postura do

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    novo consumidor; sua agilidade para navegar no flou (Pelbart 2003) garante a aquiescncia dos autores da matria e a recusa da patologiza-o da conduta juvenil:

    A tecnologia digital permite que o mundo seja fatiado em pedaos cada vez menores, que representam somente o interesse individual de cada consumidor. E no se iluda: ningum organiza o caos de informao da Era da Internet como os jovens. Um adulto pode chamar esse compor-tamento de sndrome de dficit de ateno. Um adolescente vai dizer que apenas seu estilo de vida (Exame, O poder da Gerao Digital, ago./2006, p. 25).

    Com o semelhante propsito de entender quem so os jovens de hoje, a reportagem Gerao Zapping (Isto, 18/7/2001) traou um extenso painel de questes que distinguiriam os jovens atuais, desta-cando, como sugere o ttulo, o papel preponderante das novas tecno-logias. Segundo o texto, a internet funcionaria para a juventude como metfora de seu estar no mundo No consigo fazer uma coisa de cada vez, explica uma das entrevistadas, estabelecendo, em seguida, uma comparao do seu dia-a-dia com a navegao na internet: A gente vai abrindo novas janelas sem fechar outras. Acompanhando o contedo de vrias pginas simultaneamente (Isto, Gerao Zap-ping, 18/7/2001, p. 83).

    Reunindo dados de abrangentes pesquisas quantitativas encomenda-das por emissoras de televiso e agncias de publicidade vidas por cap-tar as preferncias do consumidor jovem, a matria supracitada acentua a incomparvel quantidade de informao presente no mundo de hoje e a facilidade para acess-la por meio das telas de televiso e dos computa-dores. A legenda da foto da entrevistada esclarece didaticamente: Joana liga a tev, o rdio e o computador e ainda fala ao telefone enquanto estuda (idem). O comportamento polivalente recebe o sugestivo quali-ficativo de antenado: Condies no faltam para que os adolescentes tenham mais informaes do que os pais quando tinham a mesma ida-de. Tm disposio revistas, canais e sites que falam de tudo (idem: 87). Na concluso da matria, o saldo da avaliao da conduta dos jo-vens da era da informao positivo. Com aval de uma sociloga que

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    prev o destino do trabalho na sociedade contempornea, a reportagem assevera:

    Num mundo em que as escolas tendem a preparar os adolescentes para a faculdade e esta faz o mesmo para o mercado de trabalho, a gerao zap-ping tambm leva vantagem pela velocidade com que reage a estmulos e assimila novidades tecnolgicas (idem: ibidem).

    As novas prticas comunicacionais em regime de simultaneidade e convergncia como as j descritas nas quais o jovem aparece frenetica-mente conectado a diferentes telas, redes e fluxos de informao po-dem ser entendidas, sob esta tica, como um saudvel treinamento para a realidade em veloz mutao que o aguarda. Conforme arremata a es-pecialista consultada pela revista: Saber mudar o tempo todo timo, porque o emprego para a vida toda no existe mais (idem: 83).

    consideraes finais: capitalismo flexvel e conduta juvenil

    A princpio, as matrias analisadas nos pargrafos anteriores questionam at que ponto os recentes hbitos de comunicao e consumo de in-formao podem ser prejudiciais para os jovens; aps consultarem os especialistas, entretanto, os jornalistas passam a realar os benefcios das novas prticas. Diante das percepes sociais concatenadas nos textos de acordo com evidncias coletadas em diferentes fontes (incluindo pesqui-sas acadmicas), depreende-se que os jovens precisam estar preparados para um novo arranjo social, no qual a fragmentao e a instabilidade ocupam papel central no modo de gerir a vida. Ao indicarem os aspec-tos sociais que afetam a condio juvenil no contexto contemporneo, as reportagens que traam o perfil da Gerao Digital enfatizam os desafios a serem contornados, preferindo enaltecer potencialidades e ap-tides em vez de discutir as origens e as implicaes sociais e polticas destas mudanas.

    As matrias jornalsticas cumprem, desta forma, uma funo norma-tiva, na medida em que colaboram para a difuso de um modelo de

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    comportamento juvenil adequado s transformaes sociais de larga es-cala, como a sedimentao da racionalidade econmica e poltica neo-liberal que define a configurao contempornea do capitalismo. Esta caracterizada, segundo muitos autores, pela flexibilizao de seus proce-dimentos, pela instalao de imperativos de volatilidade, rapidez e des-territorializao, predicados atribudos s tecnologias digitais (Bauman 2001; Harvey 1989; Sennet 2006).

    As representaes da Gerao Digital construdas pela mdia po-dem ser compreendidas, pois, como formas de regulao que exercem um controle das populaes jovens por meio de discursos e imagens que condicionam e modelam subjetividades (Freire Filho 2008). Os novos hbitos de consumo e as novas prticas de sociabilidade e comunica-o da juventude so descritos, freqentemente, como modelos ideais de conduta, por indicarem uma flexibilizao que garante a efetividade dos novos processos de capilarizao da ordem econmica mundial.

    Como vimos, a imprensa tende a celebrar a aptido extraordinria dos cyberkids perante as mquinas e a festejar as mudanas desenca-deadas nos processos cognitivos, sem questionar a favor de qu sero utilizados tais saberes e expertises excetuando-se, claro, a insero na disputa pelo competitivo e instigante mercado de trabalho.

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