GEORGENOR DE SOUSA FRANCO FILHO - Livraria Cultura

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GEORGENOR DE SOUSA FRANCO FILHO Coordenador TEMAS ATUAIS DE DIREITO AUTORES Alexandre Manuel Lopes Rodrigues Antônio José Mattos Neto Georgenor de Sousa Franco Filho Ivanilson Paulo Correa Rayol José Claudio Monteiro de Brito Filho José Henrique Mouta Araújo Luzia do Socorro Silva dos Santos Marcelo Freire Sampaio Costa Marcos Alberto Pereira Santos Pastora do Socorro Teixeira Leal Rio de Janeiro 2013 Z EDITORA G

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GEORGENOR DE SOUSA FRANCO FILHOCoordenador

TEMAS ATUAIS

DE DIREITO

AUTORES

Alexandre Manuel Lopes Rodrigues

Antônio José Mattos Neto

Georgenor de Sousa Franco Filho

Ivanilson Paulo Correa Rayol

José Claudio Monteiro de Brito Filho

José Henrique Mouta Araújo

Luzia do Socorro Silva dos Santos

Marcelo Freire Sampaio Costa

Marcos Alberto Pereira Santos

Pastora do Socorro Teixeira Leal

Rio de Janeiro 2013

ZEDITOR A

G

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1ª edição – 2013

© CopyrightAlexandre Manuel L. Rodrigues, Antônio José M. Neto, Georgenor de Sousa F. Filho,

Ivanilson Paulo C. Rayol, José Claudio M. B. Filho, José Henrique M. Araújo, Luzia do Socorro S. Santos, Marcelo Freire S. Costa, Marcos Alberto P. Santos, Pastora do Socorro T. Leal

CIP – Brasil. Catalogação-na-fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

P495d2. ed.

ISBN 978-85-62490-49-1O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada po-

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Reservados os direitos de propriedade desta edição pelaEDITORA GZ

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Impresso no BrasilPrinted in Brazil

T278

Temas Atuais de Direito / Georgenor de Sousa Franco Filho, coordenador; autores: Alexandre Manuel Lopes Rodrigues... [et al.] – 1ª ed. – Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2013.

216 p. ; 25 cm.

ISBN 978-85-62027-21-5

1. Direito – Coletâneas. I. Franco Filho, Georgenor de Sousa, 1952 –. II. Rodrigues, Alexandre Manuel Lopes.

13-00484 CDU: 34

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APRESENTAÇÃO

Constitui-se esta obra da primeira coletânea que reúne estudos jurídicos dos professores do Programa de Mestrado em Direito da Universidade da Amazônia (UNAMA). Os temas são variados, todos dentro da área do Direito em geral, escritos dentro do domínio de conhecimento de cada um de seus autores. Demonstram, sobretudo, a atualização do conhecimento dos juristas do Norte do Brasil em relação aos temas jurídicos contemporâneos, em estudos elaborados com afinco e denodo.

A variedade temática dos quatorze estudos constantes desta obra, no entanto, não tira seu caráter de importância e indispensabilidade do estudo do Direito em geral. São cuidados de assuntos importantes para a efetivação dos direitos fundamentais em nosso país, desde abordagens das modificações no direito adjetivo, como o exame de delicadas questões ambientais e de psicologia forense, ou de responsabilidade civil, deslocalização, arbitragem e direito à saúde.

A Universidade da Amazônia – UNAMA, que é a primeira universidade privada do Norte do Brasil, pretende, com esta obra, dar aos estudiosos brasileiros possibilidade de acesso à produção doutrinária de seus professores de Direito. A educação para o desenvolvimento da Amazônia é a sua missão, para o que tem se dedicado a ser centro de referência da vasta região.

Agradeço à Magnífica Reitora, Profª Ana Célia Bahia Silva, o incentivo para a publicação desta obra, e à Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão, Profª Núbia Maria Vasconcelos Maciel, incondicional no incentivo ao Mestrado em Direito, da mesma forma como consigno minha gratidão aos professores colaboradores e, especialmente, ao Prof. José Claudio Monteiro de Brito Filho, sempre pronto a ajudar a UNAMA a cumprir sua missão.

Belém, abril 2013.

GEORGENOR DE SOUSA FRANCO FILHOCoordenador do Programa de Mestrado

em Direito da UNAMA

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SOBRE OS AUTORES

ALEXANDRE MANUEL LOPES RODRIGUES – Promotor de Justiça do Estado do Pará, Mestre em Direito Penal e Doutor em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará, Professor de Direito Penal e Processo Penal da Unama – Universidade da Amazônia, Professor de Direito Penal e Processo Penal da FACI – Faculdade Ideal.

ANTÔNIO JOSÉ MATTOS NETO – Advogado. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Privado pela Universidade Federal do Pará. Professor de Pós-Graduação na Universidade Federal do Pará e na Universidade da Amazônia (UNAMA). Membro da Academia Paraense de Letras. Membro Fundador da Academia Paraense de Letras Jurídicas. Procurador da Fazenda Nacional.

GEORGENOR DE SOUSA FRANCO FILHO – Desembargador do Trabalho de carreira do TRT da 8ª Região, Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Professor de Direito Internacional e do Trabalho da Universidade da Amazônia, Presidente Honorário da Academia Nacional de Direito do Trabalho, Membro da Academia Paraense de Letras, da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, da International Law Association e do Centro per la Cooperazione Giuridica Internazionale.

IVANILSON PAULO CORREA RAYOL – Doutor em Direito, Professor da Universidade da Amazônia – Unama, Membro do Ministério Público do Estado do Pará.

JOSE CLAUDIO MONTEIRO DE BRITO FILHO – Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Titular da Universidade da Amazônia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará. [email protected].

JOSÉ HENRIQUE MOUTA ARAÚJO – Pós-doutor (Universidade de Lisboa), doutor e mestre em direito (UFPA), professor da Universidade da Amazônia – UNAMA, do Centro Universitário do Estado do Pará – CESUPA e da Faculdade Ideal – FACI, Procurador do Estado do Pará e advogado. www.henri-quemouta.com.br.

LUZIA DO SOCORRO SILVA DOS SANTOS – Mestre e doutora em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Juíza de Direito do Poder Judiciário do Estado do Pará e Professora da Universidade da Amazônia.

MARCELO FREIRE SAMPAIO COSTA – Doutor em Direito pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UFPA. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela UNAMA/PA. Professor-convidado de Pós-Graduação em diversas instituições. Membro do Ministério Público do Trabalho.

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VIII temas atuais de direito

MARCOS ALBERTO PEREIRA SANTOS – Mestre em Direito pela Universidade da Amazônia e Tabelião e Oficial do Cartório do Único ofício da Comarca de Pacajá – PA

PASTORA DO SOCORRO TEIXEIRA LEAL – Especialista em Direito Civil pela Universidade da Amazônia, Mestra em Direito Público pela Universidade Federal do Pará (1998). Doutora em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (2001) e Pós-Doutora pela Universidade Carlos III, de Madrid, Espanha (2006). Desembargadora do Trabalho do TRT da 8ª Região, Professora da Universidade Federal do Pará/UFPa e da Universidade da Amazônia/UNAMA, nos cursos de graduação e de pós-graduação em Direito.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................................................. VSOBRE OS AUTORES ........................................................................................................... VII

1. O PSICOPATA FRENTE AO DIREITO PENAL Alexandre Manuel Lopes Rodrigues ...................................................................................... 1

2. A PROTEÇÃO JURÍDICA DO MEIO AMBIENTE CULTURAL AMAZÔNICO Luzia do Socorro Silva dos Santos ......................................................................................... 17

3. DESLOCALIZAÇÃO INTERNACIONAL E INTERNA Georgenor de Sousa Franco Filho ......................................................................................... 29

4. A RESPONSABILIDADE CIVIL COMO CATEGORIA DE CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: UMA PERSPECTIVA JURISPRUDENCIAL Pastora do Socorro Teixeira Leal .......................................................................................... 39

5. DIREITOS PATRIMONIAIS DISPONÍVEIS E INDISPONÍVEIS À LUZ DA LEI DA ARBITRAGEM Antonio José de Mattos Neto ............................................................................................... 49

6. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: PROPONDO UMA CONCEPÇÃO QUE RECONHEÇA O INDIVÍDUO COMO SEU DESTINATÁRIO José Claudio Monteiro de Brito Filho .................................................................................... 63

7. ASPECTOS RELATIVOS À FASE INICIAL DO CUMPRIMENTO DA DECISÃO DE QUANTIA NO PROJETO DO NCPC José Henrique Mouta Araújo ................................................................................................ 75

8. TÓPICOS TEMÁTICOS EM DIREITOS FUNDAMENTAIS Alexandre Manuel Lopes Rodrigues ....................................................................................... 83

9. A EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS Ivanilson Paulo Corrêa Raiol ................................................................................................ 121

10. LINEAMENTOS DA TÉCNICA DA PONDERAÇÃO NO PROCESSO DO TRABALHO Marcelo Freire Sampaio Costa .............................................................................................. 137

11. A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS LABORAIS À SAÚDE E À SEGURANÇA DO TRABALHADOR PELA VIA DA ATRIBUIÇÃO DO ÔNUS DINÂMICO DA PROVA PERICIAL AO EMPREGADOR Pastora do Socorro Teixeira Leal .......................................................................................... 151

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X temas atuais de direito

12. LEITURA SISTEMÁTICA, MENOR ONEROSIDADE E PENHORA DE PECÚNIA EM EXECUÇÃO PROVISÓRIA Marcelo Freire Sampaio Costa .............................................................................................. 161

13. FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA E A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO ÂMBITO DA AMAZÔNIA LEGA Luzia do Socorro Silva dos Santos / Marcos Alberto Pereira Santos ...................................... 173

14. A EFICÁCIA DIRETA E IMEDIATA DOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS ÀS RELAÇÕES PRIVADAS Ivanilson Paulo Corrêa Raiol ................................................................................................ 191

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2 temas atuais de direito

cionadas com a utilização dos meios em consonância com o fim a ser atingido (conse-quências da relação meio e fim). Assim, o agente põe em movimento, segundo o plano estabelecido, o processo causal, com o fito de alcançar o objetivo proposto. Segundo a concepção finalística, a vontade de realização apenas ocorre quando todas as etapas acima estão cumpridas.

Para o Direito Penal somente comete crime quem pratica uma conduta (ação ou omissão) típica, ilícita e culpável (Teoria Finalista da Ação). O primeiro elemen-to da definição refere-se ao fato típico, que é aquele previsto na legislação penal como proibido (exemplo: “matar alguém” – Art. 121 do Código Penal). Na verda-de, não basta, apenas, que o fato esteja previsto na lei penal, há, ainda, a necessida-de de que o agente pratique uma conduta (ação ou omissão), que haja um resultado, que este resultado esteja ligado à conduta do agente (relação de causalidade) e, por fim deve existir a tipicidade (adequação da conduta ao tipo – modelo – previsto na legislação penal).

O segundo elemento da definição de crime é a ilicitude, também chamada de anti-juridicidade. Essa nada mais é do que a contrariedade do comportamento do agente ao ordenamento jurídico e se faz por exclusão. Isto é, caso o agente não esteja protegido por uma causa que exclua a ilicitude de seu comportamento ele responderá pelo fato delituoso. Assim, se alguém dispara um tiro na cabeça de outra pessoa e a mata, prima facie, tem-se um crime de homicídio (art. 121 do CP), mas se o autor agiu em legítima defesa (causa de exclusão da ilicitude), não há crime. As causas que afastam a ilicitude são: legitima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exer-cício regular de direito.

Por fim, a culpabilidade é o terceiro elemento da definição de crime e deve ser en-tendida como o juízo de reprovação pessoal que recai sobre o agente de um fato típico e antijurídico ou ilícito, por ter agido de forma contrária ao Direito, quando podia ter atuado em conformidade com a vontade do ordenamento jurídico. O que se deve apurar é se o ser humano de acordo com as circunstâncias concretas podia e devia agir de modo diverso, direcionando a sua vontade conforme o direito, e não infringindo a norma penal, pois, dessa forma, nasce a possibilidade de reprovação (censurabilidade) que recairá sobre o autor do fato punível (por estar ligado a um fato típico e antijurídico), concluindo-se pela existência ou não da culpabilidade.

Hans Welzel já afirmava que a culpabilidade é uma qualidade negativa da ação do agente e não está localizada na cabeça das pessoas que julgam a ação.2 Não se deve confundir “juízo de censura” com “censura” propriamente dita. Censurável é a conduta do agente (característica negativa intrínseca à conduta do agente). Juízo de censura é a avaliação que se faz da conduta do agente, que poderá ser tida como censurável ou não. Essa é a avaliação que é realizada pelo aplicador da lei (assim, está localizada na cabeça da sociedade, aqui representada pelo Estado-juiz). Logo, a censura está dentro do conceito de crime também, assim como a tipicidade e a antijuridicidade, pois a ação

2 WELZEL, 1964, p. 81.

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o psicopata frente ao direito penal.... • alexandre manuel lopes rodrigues 3

é reprovável em si mesma, apenas o seu juízo é que se desloca, como ocorre também nos juízos de antijuridicidade e tipicidade.3

Como se pode verificar, somente se pode reprovar o sujeito como culpável quando ele tem a possibilidade de realizar algo voluntariamente (em relação ao sentido e ao va-lor da ação). A reprovação recai sobre a possibilidade de autodeterminação do agente, no sentido de atender ao dever jurídico imposto pela norma (possibilidade de conhecer o caráter ilícito do fato e de determinar-se segundo esse entendimento – elementos in-telectuais e voluntários). Para o finalismo, o conceito de ação baseia-se no fato de que o agente pode prever, dentro de certos limites, os possíveis desdobramentos de seu agir, sendo capaz, assim, de atuar de forma diversa e moldar sua atividade na busca de alcan-çar os fins a que se destina. A culpabilidade é a reprovação da formação da vontade do sujeito, mas o juízo de desvalor só pode ser positivo quando existe a possibilidade real e fática (no caso concreto, no momento do fato que se está estudando, com todas as nuan-ces e situações daquele determinado caso) de o autor atuar de outra maneira, na forma prevista e esperada pela sociedade, na forma expressa pelo ordenamento jurídico.4

Para que uma conduta seja considerada reprovável, ou seja, para que exista a culpabilidade, é necessário que o autor da ação tivesse podido agir de acordo com a norma, de acordo com o direito. Assim, temos os seguintes elementos da culpabilidade: a) imputabilidade, b) possibilidade de conhecimento da antijuridicidade do fato e c) exigibilidade de conduta diversa.

Para que haja imputabilidade, é preciso estabelecer se o sujeito tem certo grau de capacidade psíquica que lhe permita ter consciência e vontade dentro do que se deno-mina de autodeterminação, isto é, se ele tem a capacidade de entender, diante de suas condições psíquicas, a antijuridicidade de sua conduta e de adequar essa conduta à sua compreensão. Desse modo, essa é a condição pessoal de maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar--se segundo esse entendimento.

Não se deve olvidar que a capacidade de culpabilidade possui dois momentos diferentes bem definidos: um cognoscitivo ou intelectual (capacidade de compreensão do injusto) e outro volitivo (determinação da vontade). Somente os dois momentos atuando em conjunto representam a capacidade de culpabilidade.

É indispensável, também, para o juízo de reprovação, que haja a possibilidade de conhecimento da antijuridicidade do fato ou da ilicitude do fato: o sujeito deve conhecer, mediante algum esforço de consciência, a antijuridicidade de sua conduta. Em outras palavras, o agente deve conhecer ou ter a possibilidade de conhecer as circunstâncias que são integrantes do tipo e da ilicitude (consciência da antijuridicidade).

Além da imputabilidade e da possibilidade de conhecimento da antijuridicidade, para que a conduta seja reprovável, torna-se necessário, também, que, nas circunstân-cias do fato, fosse possível exigir-se do sujeito um comportamento diverso daquele que

3 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 410.4 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal. 4ª ed. Granada: Comares, 1993, p. 560.

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tomou ao praticar o fato típico e antijurídico, pois há circunstâncias ou motivos pes-soais que tornam inexigível a conduta diversa do agente. É a exigibilidade de conduta diversa.

Uma das causas que excluem a culpabilidade é a inimputabilidade. Existe inim-putabilidade quando houver pelo menos um dos seguintes elementos: a) doença men-tal (patologia mental de qualquer ordem – epilepsia, psicose, neurose, esquizofrenia, paranoia, etc.). A dependência patológica de substâncias psicotrópicas (álcool, entor-pecentes, estimulantes, etc.) também configura doença mental, sempre que retirar a capacidade de entender ou querer. Enfermidades físicas que atingem o psiquismo tam-bém podem retirar esse entendimento (por ex.: febre decorrente de tifo, pneumonia, etc.); b) desenvolvimento mental incompleto, devido à idade cronológica ou à falta de convivência na sociedade (por ex.: menor de 18 anos, indígenas). Aqui a plena capaci-dade poderá ser atingida; c) desenvolvimento mental retardado: é o incompatível com o estado de vida em que se encontra o agente, que está abaixo do desenvolvimento nor-mal para aquela idade (oligofrênicos: débeis mentais, imbecis e idiotas). Nesse caso, a plena capacidade jamais será atingida; d) embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior (intoxicação aguda, por álcool ou qualquer substância de efeito psicotrópico).5

Existe ainda a semi-imputabilidade, que é a perda de parte da capacidade de en-tendimento e autodeterminação em razão de perturbação de saúde mental ou por desen-volvimento mental incompleto ou retardado. Consequência: não exclui a culpabilidade. O agente será condenado, mas o juiz terá duas opções: a) reduzir a pena de um a dois terços; b) substituir por medida de segurança.

Com relação à sanidade mental, o agente, para que seja declarado inimputável, além de não ser mentalmente sadio ou não apresentar desenvolvimento mental com-pleto, por motivo de doença ou de perturbação mental, deve manifestar, também, a consequência desse distúrbio, qual seja a ausência de capacidade de discernir ou de aquilatar seus próprios atos e de compará-los com a ordem normal (normativa) e de autodeterminar-se (agir) no momento do fato.

2. O PSICOPATA

A psicopatia, como se sabe, não é considerada, tradicionalmente, uma doença mental, mas é, sem dúvida, uma perturbação da capacidade mental, pois não é o normal da população. A maioria dos homens, pelo menos é o que parece, não possui essa mo-dalidade de perturbação. É notório, por outro lado, que o conceito penal de saúde ou de perturbação mental não necessariamente deve coincidir com o conceito médico. Basta notar que, na concepção do Direito Penal, pode-se dar para os conceitos uma abrangên-cia até maior do que lhes daria a medicina tradicional. Aníbal Bruno leciona que, por doença mental, devem-se entender as psicoses, mas aí devem ser incluídos os estados

5 MAURACH, Reinhart. Tratado de Derecho Penal. Barcelona: Ariel, 1962, p. 433.

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o psicopata frente ao direito penal.... • alexandre manuel lopes rodrigues 5

de alienação mental por desintegração da personalidade ou por evolução deformada de seus componentes, os distúrbios mentais nos quais o sujeito reage a problemas emba-raçosos de seu mundo circunvizinho e as perturbações por processos toxicológicos ou infecciosos.6

A doença mental abrange todas as demências, compreendendo ainda todas as psi-coses, como psicose maníaco-depressiva, psicose epilética, psicose puerperal, esquizo-frenia, psicose senil, psicose por traumatismo do crânio, e ainda o alcoolismo crônico e a toxicomania grave.7

Ortodoxamente, a psicopatia, como dito, não é considerada como uma doença mental, podendo ser considerada, em alguns casos, uma perturbação da saúde mental, o que pode levar o perito a classificar o agente como semi-imputável. Entretanto, nem todo psicopata pratica crimes, calcula-se que apenas 47% deles descambam para a pra-tica de delitos, mas existem os psicopatas que praticam crimes violentos e até repetiti-vos, sempre realizados com extrema frieza e sem denotar nenhum grau de remorso ou arrependimento.

No início do século XIX, o médico francês Philippe Pinel (1745-1826), considera-do o fundador da Psiquiatria, descreveu assim o seu entendimento sobre os psicopatas:

no fue poca sorpresa encontrar muchos maníacos que en ningún momento dieron evidencias alguna de tener una lesión en su capacidad de comprensión, pero que esta-ban bajo el dominio de una furia instintiva y abstracta, como si fueran solo las faculta-des del afecto las que hubieran sido dañadas.8

Os psicopatas apresentam deficiência, não em sua capacidade de compreender, mas apenas em suas emoções sociais. Seriam acometidos de uma “loucura sem delírio” ou “loucura moral”.

Em 1835 o psiquiatra inglês J. C. Pritchard assim se manifestou sobre eles: Hay una forma de perturbación mental en la que no parece que exista lesión algu-

na en el funcionamiento intelectual, y cuya patología se manifiesta principal o exclu-sivamente en el ámbito de los sentimientos, temperamento o hábitos. En casos de esta naturaleza los principios morales o activos de la mente están extrañamente pervertidos o depravados; el poder de autogobierno se halla perdido o muy deteriorado, y el indivi-duo es incapaz, no de hablar o de razonar, sino de conducirse con decencia y propiedad en los diferentes asuntos de la vida.9

Alguns profissionais utilizam o termo sociopatia para nomear esse problema, no lugar de psicopatia. Essa denominação era muito empregada em torno de 1960 e 1970, pois pretendia-se destacar a origem social da situação. A partir de 1968, a Sociedade

6 BRUNO, Aníbal. Direito Penal. São Paulo: Forense, 1978, p. 133.7 PALOMBA, Guido Arturo, Tratado de psiquiatria forense civil e penal. São Paulo: Atheneu, 2003,

p. 29.8 PRITCHARD, 1835 apud GARRIDO GENOVÉS, Vicente. Cara a cara con el psicópata. Barcelona:

Ariel, 2004, p. 16.9 Ibid., p. 17.

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6 temas atuais de direito

Americana de Psiquiatria adotou o conceito de “personalidade antissocial” para defi-nir a psicopatia dentro dos transtornos de personalidade. Nas edições posteriores do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM, 1980, 1987 e 1994), tratado ao qual recorrem profissionais de todo o mundo, para diagnosticar trans-tornos psíquicos e comportamentais, o termo psicopatia foi substituído por “transtorno de personalidade antissocial”.

Por outro lado, em 1903, o psiquiatra alemão Emil Kraepelin cunhou a expressão “personalidade psicopática”, que até hoje é muito usada para descrever o problema.

2.1. Características do Psicopata

Os psicopatas são pessoas que não se importam com a vida ou a felicidade daque-les que são afetados por seus atos. Eles se opõem às normas morais básicas da socieda-de, não possuindo a capacidade real de sentir afeto.

Os psicopatas podem camuflar-se de maneira perfeita. Existem os psicopatas que não praticam fatos delituosos de grande monta, como homicídios, estupros, etc., mas vivem nas sombras e nos lares, nas organizações públicas, nas escolas e igualmente destroem a vida daqueles que, infelizmente, cruzam o seu caminho.

Eles simulam sentimentos que realmente não possuem, fazem crer que acreditam nas leis e as cumprem, que gostam de seus amigos, que amam as suas esposas e filhos, mas, na verdade, querem apenas dominar e subjugar o outro. A maior capacidade que possui o psicopata é a de ocultar e simular propósitos e emoções que não possui. Pode ser descrito como um camaleão humano. Ele sempre utiliza essas armas para dominar e controlar o ambiente ao seu redor. Não sente as emoções humanas básicas, como amor, compaixão, amizade e solidariedade, mas simula que as sente, com o objetivo de controlar e dominar as pessoas.

Alguns psicopatas podem ser prejudiciais apenas para determinadas pessoas, em determinados ambientes, mas em outras situações podem agir de forma aparentemente normal. Por exemplo, em casa não manifestam problemas com a família ou com os vizinhos ou agem de forma aparentemente normal no trabalho, cumprindo suas obriga-ções; mas, em situações que despertam o seu lado agressivo, revelam-se.10

Fica claro que esse tipo de indivíduo também pode ser o psicopata assassino, o chamado “criminoso” antissocial ou delinquente, mas sua forma de agir continua a mesma. Em casa pode ser um pai amável e um esposo carinhoso, mas, quando sai à noite, pode transformar-se em um matador serial de prostitutas, por exemplo. A violência não é uma condição necessária para o psicopata, mas existe uma parte deles que se manifesta nessa forma, são os que precisam exercer sua necessidade de domínio, mediante atos de crueldade e violência, como os violadores, os assassinos em série, etc.

10 GARRIDO GENOVÉS, 2004, p. 20.

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o psicopata frente ao direito penal.... • alexandre manuel lopes rodrigues 7

2.2. Neuorociência e psicopatia

Qual o motivo de ser assim? Há uma carência muito grande na vida afetiva do psicopata. As emoções que nós sentimos e que nos fazem sentir parte da espécie huma-na, como amor, carinho, piedade, não se desenvolveram nesse indivíduo. O resultado é que, na hora de reflexionar e tomar uma decisão, ele não conta com a informação emocional, agindo de forma equivocada e prejudicial.11

Renato M. E. Sabbatini, neurocientista, especialista em Informática Biomédica, doutor pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado no Instituto de Psiquiatria Max Planck em Munique, na Alemanha, afirma que em torno de 25% dos das pessoas encar-ceradas em nosso País demonstram muitas características do que a psiquiatria chama “sociopatia”, termo que ele considera melhor e mais preciso do que “psicopatia”. O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), importante manual de diagnóstico usado por psicólogos e psiquiatras – que sofreu a maior revisão em 1994 (DSM-IV) –, define um distúrbio mais geral, denominado, mais apropriadamente, “dis-túrbio da personalidade antissocial” (DPA) e lista suas principais características, que podem ser facilmente reconhecidas em indivíduos afetados. A Organização Mundial de Saúde (OMS) também definiu sociopatia em sua classificação de doenças CID-10, usando a expressão “distúrbio da personalidade dissocial”.12

Diz Sabbatini que os sociopatas são incapazes de aprender com a punição e de modificar seus comportamentos. Ressalta o estudioso que entre 1 e 4% da população é sociopata em maior ou menor escala. De qualquer sorte, a maioria das pessoas com DPA não é criminosa e é capaz de controlar-se dentro dos limites da tolerabilidade so-cial. São consideradas somente como “socialmente perniciosas” ou têm personalidade odiosa. Aponta o estudioso que somente 47% daqueles que eram caracterizados como tendo DPA tinham uma história de processo criminal significativo.

Os sociopatas não têm o tipo mais comum de comportamento agressivo, que é a violência acompanhada de descarga emocional (geralmente raiva ou medo); seu sis-tema nervoso simpático (dilatação das pupilas, aumento dos batimentos cardíacos e respiração, descarga de adrenalina, etc) não é ativado. Seu tipo de violência é similar à agressão predatória, que é acompanhada de excitação simpática mínima ou é caracteri-zada pela falta dela, pela falta de emoção (“a sangue-frio”).13

António e Hanna Damásio, neurologistas e pesquisadores da Universidade de Iowa, investigaram nos últimos anos as bases neurológicas da psicopatia. Eles mostra-ram em 1990, por exemplo, que indivíduos que tinham sofrido danos do córtex fron-tal ventromedial (e que anteriormente tinham personalidades normais) desenvolveram conduta social anormal, o que provocou consequências pessoais negativas. Entre outras

11 GARRIDO GENOVÉS, 2004, p. 28.12 SABBATINI, Renato Marcos Endrizzi. O cérebro do psicopata. Cérebro & Mente: Revista

Eletrônica de Divulgação Científica em Neurociência, nº 7, set./nov. 1998. Disponível em: <http://www.cerebromente.org.br/n07/doencas/index_p.html>. Acesso em: 11 ago. 2007.

13 SABBATINI, 1998.

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8 temas atuais de direito

coisas, esses indivíduos tomaram decisões inadequadas e tiveram habilidades de plane-jamento prejudicadas, as quais são conhecidas por serem processadas pelo lobo frontal do cérebro.14

Uma hipótese provável é que, quando não existe punição ou quando a pessoa é in-capaz de ser condicionada pelo medo, devido a uma lesão no córtex órbito-frontal, por exemplo, ou devido à baixa atividade neural nessa área, ela desenvolve uma personali-dade antissocial. Pesquisas com animais têm mostrado que o córtex órbito-frontal direi-to está relacionado com o medo condicionado. Por exemplo, quando um rato é punido com um choque elétrico cada vez que uma luz pisca em sua gaiola, ele sente medo, por associar aquele estímulo à punição. Seres humanos normais aprendem muito cedo na vida a evitar comportamentos antissociais, porque eles são punidos por isso e também porque eles possuem circuitos cerebrais para associar o medo da punição (sentimento da emoção) à supressão do comportamento. Esse parece ser um elemento-chave no desenvolvimento da personalidade, que os sociopatas não possuem.15

Em outro experimento, os cientistas registraram respostas fisiológicas de agresso-res criminosos sociopatas quando viam imagens estressantes ou quando processavam palavras com alto conteúdo emocional. Os parâmetros fisiológicos registrados são os mesmos avaliados nos aparelhos “detectores de mentiras”: frequência cardíaca, reação galvânica da pele e frequência respiratória.

A frequência cardíaca, isto é, o número de batidas por minuto, registradas na for-ma de curva em função do tempo, sofre um aumento, em indivíduos normais, quando há estímulos que provocam medo ou stress.

A resistência elétrica da pele de certas regiões do corpo (por exemplo, a palma da mão) é afetada por sudorese emocional. A reação galvânica da pele ocorre somente quando a pessoa está nervosa; não é observada quando se está com calor, como no suor normal. Por isso, dizemos que uma pessoa fica com as “mãos suadas” quando ela está mentindo.

A frequência respiratória também é afetada pelo estímulo emocional, tornando-se mais rápida e mais superficial.

Os psicopatas não mostram alteração nesses parâmetros quando são submetidos ao stress ou a imagens desagradáveis. Essas alterações também não aparecem quando os sujeitos são avisados antecipadamente por um flash de luz quando vão receber um estímulo estressante. Isso explica por que os sociopatas mentem tão bem e por que eles não são descobertos pelos equipamentos de detecção de mentiras.

O neurologista português António Damásio elaborou uma teoria que poderia explicar por que pacientes com distúrbios provocados por lesões no cérebro frontal ventromedial (e também os psicopatas) têm esses problemas emocionais. Chamou-a “hipótese do marcador somático”, abaixo apresentada.

14 DAMÁSIO, Hanna et al. The return of Phineas Gage: clues about the brain from the skull of a fa-mous patient. Science, v. 264, nº 5162, pp. 1102-1105, maio 1994.

15 SABBATINI, 1998.

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o psicopata frente ao direito penal.... • alexandre manuel lopes rodrigues 9

Indivíduos normais ativam os chamados “estados somáticos” (alterações na frequ-ência cardíaca e respiração, dilatação das pupilas, sudorese, expressão facial, etc.) em resposta à punição associada às situações sociais. Por exemplo, se uma criança quebra alguma coisa valiosa e é punida severamente por seus pais, esses estados somáticos instalam-se. Quando ocorrer uma situação similar, os marcadores somáticos serão ati-vados e a mesma emoção associada à punição será sentida. Para evitar isso, a criança suprime o comportamento indesejado.

De acordo com o Dr. Damásio, pessoas com danos no lobo frontal são incapa-zes de ativar esses marcadores somáticos: “isto privaria o indivíduo de um dispositivo automático para sinalizar consequências deletérias relativas a respostas que poderiam trazer a recompensa imediata”.16 Isso explica também por que os sociopatas e pacientes com danos no lobo pré-frontal dão poucas respostas autonômicas a palavras condicio-nadas socialmente e a imagens com conteúdo emocional, mas têm respostas normais a estímulos incondicionados.

Analisando o comportamento sociopático e suas causas, Damásio sugeriu, em seu best-seller, que a razão e a emoção não são coisas separadas e antagonistas em nosso cérebro (como teria erroneamente pensado o filósofo francês René Descartes – daí o tí-tulo do livro), mas uma é importante para a outra na construção da nossa personalidade sadia. Indivíduos que são inteligentes e que são capazes de raciocinar bem se tornam monstros quando não sentem a “emoção social”, que é a base da moral, do sentimento do que está certo ou errado, etc.17

Por ser incapaz de experimentar sentimentos de sofrimento ou de alegria, o psi-copata não aprende com suas experiências e não pode, assim, modificar e dirigir seus atos como fazem as pessoas normais. Não possui os impulsos motivacionais que nos impelem a alcançar metas distintas. Não consegue modificar suas condutas pois não pode integrar os componentes afetivos que nos ligam aos assuntos pessoais e sociais.18

Cleckley afirmou que a ação é o que delata o psicopata, porque ele poderá até fingir as emoções que um ser humano normal sente, mas, como, em verdade, não as sente, na hora de tomar uma decisão e agir, seu racionamento, que seria a faculdade que temos de interpretar a realidade e de selecionar um curso de ação, não possui um componente importantíssimo, que é o significado emocional. Assim, o psicopata toma decisões absurdas e danosas e, por isso, essas decisões o delatam.19

O que a Neuropsicologia demonstra hoje em dia é que a razão não prescinde dos sentimentos para realizar sua função, isto é, para ser racional – em termos jurídicos penais, para ser imputável. Os sentimentos dão cor e sentido real aos acontecimentos, quando são vividos por um sujeito. Há sempre um centro de emoções que interpreta a

16 DAMÁSIO, Antônio Rosa. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 38.

17 Ibid., p. 39.18 Ibid., p. 65.19 GARRIDO GENOVÉS, 2004, p. 65.

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10 temas atuais de direito

realidade. Essa interpretação não pode ser feita apenas com a memória, a capacidade linguística ou a percepção. O agente deve ter uma base emocional, que foi formada e está sendo formada, por meio de suas experiências diárias.20

A incapacidade para reunir razão e sentimento impede que a pessoa tenha a pos-sibilidade de traçar um projeto de vida, pois se desinteressa das consequências de seus atos, em relação a si mesma e aos demais. Mesmo quando pode compreender o que lhe dizem, o psicopata não estabelece um vínculo entre o sentido do que ouviu e seu com-portamento, pois, na verdade, o argumento não importa, não afeta, de forma alguma, a sua pessoa e seu modo de agir.

2.3. Causas possíveis da psicopatia

Existem, dois fatores que podem ser apontados como causas fundamentais da psi-copatia: uma alteração psicofisiológica e o conjunto de influências educativas e sociais que a pessoa recebe durante a vida.

Para a Neurologia, os circuitos do cérebro de um psicopata são fisicamente dife-rentes dos de uma pessoa normal. Sabe-se, por outro lado, que boa parte das estrutu-ras cerebrais forma-se na infância. De qualquer sorte, afirma Hilda Morana (médica psiquiatra e Doutora pela USP. Especializada no tema da psicopatia), nascem tantos psicopatas no Brasil quanto na Suécia, e estudos realizados com famílias equilibradas mostram que há irmãos psicopatas entre todos os outros normais, o que aponta para o fator biológico do distúrbio. Não obstante, o meio ambiente parece influenciar o tipo de psicopatia que a pessoa pode desenvolver, isto é, o modo como o problema vai expres-sar-se. Assim, psicopatas que sofrem ou presenciam cenas de violência na infância têm maiores chances de serem psicopatas violentos quando adultos. Diferentemente, os que vêm de uma família equilibrada apresentam grande probabilidade de se transformarem em psicopatas não violentos – os chamados adaptados (aqueles que metem, enganam as pessoas, deixam filhos ao abandono, subtraem o dinheiro público ou de empresas, sobem na escala social pisando nos outros, etc.).21

O indivíduo que sofre de psicopatia possui uma deficiência em seu lobo frontal (mais especificamente nos córtices pré-frontais), provocada por um desequilíbrio hor-monal, químico ou fisiológico do cérebro. Podem existir diferenças em termos de grau de prejuízos, que influem no comportamento do psicopata e podem levá-lo a ser mais agressivo ou mais adaptado ao meio social. Isso se deve a fatores socioculturais, a uma personalidade ou tendência mórbida ou até mesmo à faixa etária.

Doentes com profundas anomalias em termos de comportamento social podem ter excelente desempenho em testes de inteligência. Os testes de laboratório neuropsicoló-gicos, na maioria das vezes, falham na medição de limitações emocionais. O paciente

20 Ibid., p. 62.21 NARLOCH, Leandro. Seu amigo psicopata. Superinteressante, São Paulo, nº 228, p. 22, jul. 2006,

p. 50.

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o psicopata frente ao direito penal.... • alexandre manuel lopes rodrigues 11

é aprovado com tranquilidade em testes como: escala de inteligência de Wechsler para adultos, memória defasada de lista de palavras de Rey, exame de afasia multilinguísti-ca, percepção visual e construção para a discriminação facial e juízo de orientação de Benton, cópia de figura complexa de Rey-Osterrieth, inventário multifásico de perso-nalidade de Minnesota.22

Esses exames, como já foi dito, focam o estado de inteligência e os instrumentos de racionalidade do paciente, mas negligenciam seu aspecto emocional.

Até 1993, Damásio estudou doze pacientes com lesões no córtex pré-frontal e, em nenhum caso, deixou de encontrar uma associação entre deficiência na tomada de deci-sões e perda de emoções e sentimentos. A capacidade de razão e a experiência de emoções estão reduzidas em conjunto, e suas limitações funcionam em um quadro neuropsicoló-gico em que a atenção, a memória, a inteligência e a linguagem permanecem intactas.23

Damásio concluiu, em mais de treze anos de estudos e pesquisas nessa área, que existe uma região do cérebro (córtices pré-frontais ventromedianos), cuja danificação compromete sobremaneira tanto o raciocínio e a tomada de decisões, como as emoções e os sentimentos, em especial no domínio pessoal e social. Pode-se dizer que a razão e a emoção “cruzam-se” nos córtices pré-frontais ventromedianos.24

Por outro lado, as estruturas antigas do cérebro, que estão em funcionamento desde o nascimento, como o tronco cerebral, o hipotálamo, e o prosencéfalo basal, possuem a função de regular os processos vitais básicos do organismo, sem que seja necessário recorrer à mente ou à razão. Sem elas, não seríamos capazes de respirar ou de regular o ritmo cardíaco, de equilibrar o metabolismo ou de nos reproduzirmos. Mas existe outro papel para esses órgãos e circuitos inatos que tem relação com a mente e com o comportamento: eles interferem também no desenvolvimento e na atividade adulta das estruturas modernas do cérebro. Durante o desenvolvimento do indivíduo, na infância e na adolescência, e à medida que ele interage com o meio ambiente, essas influências estimulam esses mesmos circuitos, pois isso tem a ver com a nossa sobrevivência e com a regulação biológica.25

Assim, os registros das experiências adquiridas e das respostas que foram dadas a elas, devem ser avaliados e modulados pelo conjunto fundamental de referências do organismo, tendo em vista a constante adaptação do organismo ao meio ambiente atual, em busca da sobrevivência. Esses mecanismos disseminam neurotransmissores (dopa-mina, norepinefrina, serotonina e acetilcolina) por várias regiões do córtex cerebral, percebem se a influência do meio é boa ou má e passam a influenciar a forma como o cérebro é modelado, para que ele possa apoiar a sobrevivência da forma mais eficaz possível. Quando nascemos, já possuímos uma carga inata de mecanismos cerebrais de regulação, que nos permitem sobreviver nos primeiros momentos ou anos de vida.

22 DAMÁSIO, 2006, p. 65.23 bid., p. 79.24 Ibid., p. 95.25 Ibid., p. 138.

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12 temas atuais de direito

Contudo, a sombra genética inata tem seu alcance, mas não é completa. Existe uma estrutura que está a ser determinada, a partir da atividade individual e das circunstân-cias do meio. Esses estímulos de retorno ou feedback reprogramam constantemente e modelam nosso cérebro para que melhor se adapte à realidade e possa sobreviver de forma mais eficaz.26

3. EMOÇÃO E SENTIMENTO

A emoção pode ser traduzida como um conjunto de mudanças no estado do corpo que são induzidas numa infinidade de órgãos por meio das terminações das células nervosas, o qual responde ao conteúdo dos pensamentos relativos a uma determinada entidade ou acontecimento. É o resultado da combinação de um processo avaliatório mental, com respostas dispositivas a esse processo, em sua maioria dirigidas ao corpo, o que provoca um estado emocional do corpo, mas também tem reflexo no cérebro (ge-rado por núcleos neurotransmissores no tronco cerebral), causando alterações mentais adicionais. Existem, ainda, os sentimentos, que são a percepção do conjunto de todas as mudanças que constituem a resposta emocional, em outras palavras, a experiência dessas mudanças.27

Os sentimentos permitem que mentalizemos o corpo e cuidemos dele, como acon-tece durante um estado emocional. Eles permitem que percebamos o que ocorre em nossa volta e inserem-nos na situação real que estamos vivendo (tanto física como emocionalmente). Permitem que tenhamos consciência do corpo e da emoção e saiba-mos o sentido que isso faz para o cérebro, se bom ou ruim. Assim, os sentimentos estão em primeiro lugar em nosso desenvolvimento individual e permanecem assim durante toda a nossa vida. Por virem em primeiro lugar, constituem um quadro de referência para o que vem a seguir, sempre tendo uma palavra a dizer sobre o modo de funciona-mento do cérebro e da cognição.28

A maior parte dos marcadores somáticos que utilizamos para a tomada de decisões foi criada em nosso cérebro durante o longo processo de educação e de socialização, cujas emoções marcaram-nos de forma positiva ou negativa. A constituição de mar-cadores adaptativos normais requer que tanto o cérebro como o meio cultural sejam normais. Quando um dos dois é deficiente, o marcador absorve informações deturpadas e passa a reproduzir em ações esse descontrole. É o caso dos psicopatas, eles repetem seus atos ilícitos com clara desvantagem para eles e para os outros. Trata-se de um estado patológico em que uma redução ou ausência de sentimentos faz-se acompanhar de uma redução da racionalidade. É sem dúvida possível que a psicopatia tenha origem em uma disfunção dentro do sistema geral, que foi afetado, a deterioração pode resultar de mau funcionamento em redes de circuitos anômalas e de sinais químicos registrados

26 DAMÁSIO, 2006, p. 141.27 Ibid., p. 169.28 Ibid., p. 191.

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o psicopata frente ao direito penal.... • alexandre manuel lopes rodrigues 13

no início do desenvolvimento individual, que dificultam a percepção das emoções e dos sentimentos. Daí uma ação também defeituosa.29

O sistema neural crítico para a aquisição da sinalização dos marcadores somá-ticos situa-se nos córtices pré-frontais, onde coexiste com o sistema das emoções secundárias. A posição neuroanatômica desses córtices é ideal para essa finalidade, porque os córtices pré-frontais recebem sinais de todas as regiões sensoriais onde se formam as imagens que constituem nosso pensamento, incluindo os córtices so-matos sensoriais (referentes aos estados do corpo). Quer os sinais sejam oriundos de percepções do mundo exterior ou sobre pensamentos acerca desse mundo, quer em acontecimentos do corpo, os córtices pré-frontais recebem esses sinais. Eles re-cebem sinais também de vários setores bioreguladores do cérebro, como núcleos neurotransmissores, situados no tronco cerebral (como os que distribuem dopamina e serotonina). Todos esses sistemas vão fazer parte do mecanismo do raciocínio e da tomada de decisões.30

A ação dos impulsos biológicos, dos estados do corpo e das emoções constitui uma base indispensável para a racionalidade. Os níveis inferiores do edifício neural da razão são os mesmos que regulam o processamento das emoções e dos sentimentos, juntamente com as funções globais do corpo, de modo que o organismo consiga sobre-viver. Esses níveis inferiores mantêm relação direta com o corpo, integrando-se na ca-deia de operações que permite os mais altos voos em termos da razão e da criatividade. É muito aceitável que a racionalidade seja configurada e modulada por sinais do corpo e por sentimentos que se transformam em emoções, mesmo quando executa distinções sublimes e age em conformidade com elas.31

4. CONCLUSÃO

Nossa legislação penal entende que a ideia de responsabilidade, ou seja, de com-prometer-se com a lei penal e assim responder perante ela, mediante a aplicação de uma pena, apenas faz referência à insuficiência ou à alteração das faculdades psíqui-cas de caráter intelectual (entender o caráter ilícito do fato e determinar-se segundo esse entendimento – compreensão e volição). Parece que não está compreendida na dicção da lei a faculdade ética de valorar, ou se está, ficou relacionada em segundo ou último plano.

Aparentemente, os sentimentos morais, que nascem das relações e da esfera afeti-va, não podem, em momento algum, ser descartados, pois são os reguladores supremos da conduta humana. Com efeito, a função de compreender não se reduz a uma simples operação intelectual; deve-se, sobretudo, a uma função afetiva, aquela que é captada e sentida, proveniente do mundo dos valores. Compreender é valorar. Somente é possível

29 DAMÁSIO, 2006, p. 210.30 Ibid., p. 213.31 Ibíd., p. 233.

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14 temas atuais de direito

compreender aquilo que se sente, consequentemente, o não sentir é um indício da falta de compreensão.32

O componente afetivo jamais deixa de fazer parte da manifestação de qualquer ato humano e assume, na maioria dos casos, o comando do psicológico do indivíduo (o afetivo é o efetivo). Assim, a razão intelectualizada apresenta-se, muitas vezes, como coadjuvante das ações humanas. As necessidades, os instintos, os sentimentos, as pai-xões e as emoções não podem, definitivamente, ficar de fora da etiologia dos com-portamentos delitivos e também devem estar sujeitos à valoração jurídica. Em outras palavras, a responsabilidade não se pensa, sente-se.33

Reduzir o conceito de mente (faculdades) somente à órbita intelectual e volitiva é o mesmo que amputar o fator mais importante da personalidade humana. O conceito de mente pode ser traduzido como o conjunto de todas as faculdades psíquicas do ho-mem, inatas ou adquiridas, desde a memória até a consciência, desde a inteligência até a vontade, passando pelo raciocínio e pelo sentido moral.34

A personalidade do ser humano está intimamente ligada à ideia e ao conceito psicológico do eu. O eu é a parte da psique humana em que o homem se identifica e se reconhece em si mesmo, em que ele consegue objetivar sua própria existência (sentimento de existir, sentimento profundo da vida). O homem, até onde se sabe, é o único animal que possui essa capacidade. O eu representa a conexão das três esferas psicológicas: a afetiva, a volitiva e a intelectual. Ele amarra uma complexa rede psico-lógica que interliga todos os elementos constitutivos do ser, configurando uma unidade anatômica e funcional que pensa, sente e atua, como um todo.35

Na personalidade psicopática, e também em outras enfermidades mentais, as es-feras intelectuais e volitivas estão preservadas, mas a afetividade está comprometida. O ser humano só atua de forma imputável quando as três esferas estão funcionando a contento. O eu também é o responsável por interligar o passado, o presente e o futuro, de forma que o homem se reconhece historicamente, identificando-se ao longo de sua trajetória vital. Para um psicopata, o tempo futuro é apenas cronológico; o psicopata não planeja propriamente o futuro, nem se preocupa com o porvir. Tampouco aprende com erros do passado, com sensações e sentimentos aprendidos que podem servir de base para o comportamento acertado no presente e no futuro.

Alcança-se a compreensão da realidade por meio de três hierarquias gnoseológicas, que constituem noções concêntricas, mas não idênticas: conhecer, entender e compreender.

Conhecer é um ato da natureza senso-perceptivo (relação direta com as coisas). É perceber mediante os sentidos (isto é uma mesa, um livro, uma pessoa), mas fica claro que se pode conhecer uma pessoa sem entendê-la, nem compreendê-la. O conhecer refere-se aos estados de inconsciência.

32 CABELLO, Vicente Ponciano. Psiquiatria Forense en el derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2005, p. 121.

33 Ibíd., p. 121.34 NUÑES, Ricardo. La culpabilidade penal en el Código Penal. Buenos Aires: Depalma, 1946, p. 52.35 Ibíd., p. 323.

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o psicopata frente ao direito penal.... • alexandre manuel lopes rodrigues 15

Entender, por sua vez, dirige-se, na escala mental, ao plano do intelecto, é o ra-cionamento formal. Entende-se o idioma, a equação matemática ou um fenômeno bio-lógico, tudo o que se resolve em uma relação lógica. Em outras palavras, o entender é neutro, quando se trata de valores.

Compreender vai mais além das operações perceptivas ou intelectuais, mas al-cança o sentido de interesses e estimativas. É a função mais hierarquizada da psique humana. É o ponto de vista valorativo, que emana da esfera afetiva, do mundo com sentimentos e emoções, que inclui a região do cérebro em que surge a moral, o amor ao próximo, a liberdade, a verdade, a beleza e a justiça.36 Essa é a função que o transtorno de personalidade psicopática afeta.

Nesse passo, a capacidade de compreender a criminalidade do fato abarca a apti-dão do sujeito para apreender o valor das coisas e das ações, como se elas adquirissem vida na intimidade do ser. Não se pode captar a essência dos valores pela via racional. Quando alguém não sente o valor estético de uma obra de arte ou o ético de uma con-duta humana, não existe meio racional para que isso se dê.

Jaspers, citado por Cabello, afirmou: Allí donde comprendemos valoramos. La valoración es constitutiva de toda comprensividade. Lo comprensible es valorable. Verdadera comprensión es valoración, las dos se realizan al mismo tiempo.37

Soler prelecionava o seguinte: Lo importante para la fórmula de la imputabilidad es la capacidad de compren-

der la criminalidad del acto o de dirigir las acciones. Claramente está dicho que se requiere capacidad de valoración, lo cual no es otra cosa que estimación jurídica per-fectamente semejante en tesis general a la estimación ética.38

Pode-se destacar, em resumo, que a personalidade psicopática é um tipo grave de alteração de conduta, que se reflete em gravíssimos transtornos das esferas afetivas e volitivas. Há, assim, uma dissonância entre soma e psique, que é desencadeada por uma estrutura cerebral que está afetada em seu equilíbrio, o que contamina a sintonia fina da personalidade no nível psicológico, atingindo a distinção entre o correto e o incorreto, o bem e o mal e o sentimento e a atitude que deveriam corresponder a esses sentimentos, o que propicia um descompasso entre as ideias, os sentimentos e as atitu-des consecutivas.

Assim, este artigo chega a este ponto, que não pode ser considerado um fim. Trata-se antes da abertura de uma nova possibilidade de estudo e de compreensão desse fe-nômeno tão controvertido que é a psicopatia e a sua repercussão no campo do Direito Penal. Acredita-se que se tenha lançado uma luz sobre o problema, com possíveis bases de sustentação doutrinárias, para que o futuro não seja tão incerto e a resposta penal seja a melhor possível para o agente e para a sociedade.

36 CABELLO, 2005, p. 476.37 Ibíd., p. 476.38 SOLER, Sebastian. Derecho Penal argentino, 1997, p. 232, apud CABELLO, 2005, p. 477.

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2A PROTEÇÃO JURÍDICA DO MEIO

AMBIENTE CULTURAL AMAZÔNICOLuzia do Socorro Silva dos Santos

SUMÁRIO: 1. Conteúdo essencial dos direitos culturais. 2. Definição da multiculturalidade am-biental brasileira e amazônica. 3. Instrumentos de tutela da multiculturalidade ambiental ama-zônica. 4. Diversidade cultural como bem da humanidade e condição para o desenvolvimento humano sustentável. 5. Bibliografia.

1. CONTEÚDO ESSENCIAL DOS DIREITOS CULTURAIS

Sabe-se que o termo cultura tem muitas significações, destacando-se aqui o senti-do subjetivo da formação individual da pessoa na busca de seu pleno desenvolvimento, bem como o sentido coletivo empregado pela antropologia como modos de vida e mo-delos de conduta, criados, adquiridos e transmitidos para outras gerações no âmbito de um determinado grupo social.1

Esses dois significados se entrelaçam, interagindo-se mutuamente, pois a cultura no sentido antropológico influencia na formação individual, sendo esta fator da dinâ-mica cultural num desenvolver constante.

Compreende-se que o texto constitucional brasileiro adota ambos os sentidos, ob-serváveis pela configuração do artigo 215,2 do qual se extrai o conteúdo essencial dos direitos culturais que o bem jurídico cultura disponibiliza a seus titulares.

1 Ver Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia, pp. 225-228. 2 Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da

cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. §1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

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18 temas atuais de direito

Tal conteúdo é preenchido primeiramente pela liberdade, que garante ao indivíduo buscar os meios que lhe aprouver para completa realização de sua personalidade, assim como viver segundo os valores de sua cultura, moldando-se ao direito fundamental à liberdade, classicamente inscrito nos sistemas constitucionais modernos, a exemplo dos incisos IV, VI, VIII, IX, XIII e XIV da Constituição da República,3 consagrador da abstenção do Poder Público na esfera privada, que encontra limite somente nos direitos fundamentais de outrem.

A essência dos direitos culturais também possui o viés da prestação estatal, den-sificada pela democracia participativa, a exigir do Poder Público iniciativas e ações destinadas a todos os grupos sociais, conduzindo políticas públicas de apoio e incentivo à valorização e à propagação das manifestações culturais de todos os quadrantes, sendo determinado normativamente, a partir do § 1º do artigo 215, CF, especial proteção à cultura brasileira, identificada com o patrimônio cultural definido no artigo 216.4

A democracia cultural é fonte do terceiro conteúdo essencial dos direitos culturais, qual seja, o pluralismo, propulsor da convivência e da comunicação entre realidades culturais dis-tintas, que engendra a aceitação de modos e projetos de vida diferenciados no seio social.

2. DEFINIÇÃO DA MULTICULTURALIDADE AMBIENTAL BRASILEIRA E AMAZÔNICA

Desse referencial sobre os direitos culturais extraído do texto da Constituição brasileira de 1988, advém a significância do patrimônio cultural nacional, entendido como uma das dimensões do multifacetado fenômeno jurídico ambiental, traduzido pelo meio ambiente humano e ecologicamente equilibrado,5 identificando-se na exe-gese dos artigos 215, 216 e 225 a disciplina constitucional pertinente a tal dimensão, denominada de meio ambiente cultural brasileiro.

Tem-se, então, que o entorno cultural pátrio é plural, caracterizados pela diversi-dade de culturas, constatando-se nesse domínio a pluralidade advinda das diversidades culturais regionais, oriundas das inúmeras formas de adaptação da espécie humana ao

3 Liberdade de manifestação do pensamento, de crença religiosa, de convicção política e filosófica, de expressão da atividade intelectual, artística, científica, de comunicação, do exercício de trabalho, ofício ou profissão e de se informar.

4 Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, toma-dos individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira ..”

5 O artigo 225 da Constitucional Federal ao tratar do equilíbrio ambiental (Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as pre-sentes e futuras gerações) recepcionou o conceito legal de meio ambiente previsto no artigo 3º, I, da Lei nº 6.938, de 31.8.1981 (meio ambiente é o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas), o que revela a natureza sistêmica do bem e sua concepção ampliada, por envolver o ambiente constru-ído pela pessoa humana nas suas relações sociais, econômicas e culturais como ser vivente da terra.

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a proteção jurídica do meio.... • luzia do socorro silva dos santos 19

meio ambiente natural brasileiro, marcado por seus distintos biomas, nos quais habitam as chamadas populações tradicionais.6

Essa afirmação se pauta em estudos antropológicos, históricos e sociológicos da nossa miscigenada nação, destacando-se os divulgados por Darcy Ribeiro,7 que diz que, embora o povo brasileiro seja único, com cultura própria, essa é formada pela con-tribuição de vários grupos advindos de etnias também variadas, que ocuparam diversi-ficadamente as regiões brasileiras, a partir das relações de convivência, aproveitamento e adaptação aos ecossistemas naturais existentes.

Disso resultou a conformação de cultura típica de cada região do país, que expres-sam diferentes modos de ser brasileiro, pelo que o autor citado classifica as variantes culturais regionais em Brasil caboclo, Brasil crioulo, Brasil sertanejo, Brasil caipira e Brasis sulinos.

A autora, então, cunhou o termo multiculturalidade ambiental brasileira,8 defini-da como “uma das dimensões caracterizadoras e integrantes da pluralidade existente no meio ambiente cultural, identificada pelas diversidades regionais, originárias dos distintos fatores ecológicos, econômicos e imigratórios da ocupação humana no terri-tório nacional, que plasmaram diferentes modos de ser brasileiro”.

É certo que cada uma dessas variantes culturais possui suas peculiaridades sujeitas a vicissitudes ao longo do tempo, considerando a contemporaneidade marcada por um mundo globalizado interconectado em rede informacional de sons e imagens, no qual o espaço é delimitado pelo tempo, entretanto, denota-se que as culturas regionais sobrevivem manifestadas notadamente pelas populações tradicionais que, ao se adaptarem as externalidades referidas, conseguiram manter a originalidade, revelando--se a glocalização.9

Pode-se afirmar a existência da variante cultural cabocla, tipicamente amazônica, que deita suas raízes nas tribos indígenas viventes no ambiente da floresta tropical que, ao serem aculturados pelos ocupantes brancos, notadamente os colonizadores por-tugueses, foram se miscigenando biológica e culturalmente, surgindo uma população nova, que, embora distante da ascendência indígena tribal, apresentava-se como her-deira do modo de vida adaptativo à floresta tropical e úmida, sendo conhecedora de sua biodiversidade, trafegando por seus rios com canoas e balsas, possuindo sua mitologia de duendes e visagens, auferindo sua subsistência por meio de roçados de mandioca e

6 O Decreto Federal nº 6.040, de 7.2.2007, que trata da Política Nacional de Desenvolvimento Susten-tável dos Povos e Comunidades Tradicionais define essas populações como “ grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.”

7 O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, passim. 8 Tutela das diversidades culturais regionais à luz do sistema jurídico-ambiental, p. 139. 9 Glocalização é um neologismo que reúne as palavras globalização e localização, referindo-se ao

fenômeno das consequências locais do fator da globalização.

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20 temas atuais de direito

milho, bem como da pesca, caça, coleta de frutos e tubérculos, enfim, viviam e sobre-viviam em mundo de florestas e águas.

Na atualidade, em meio de outras populações históricas e dos contingentes mi-gratórios mais recentes, compartilha-se da visão de João de Jesus Paes Loureiro,10 que observa no caboclo a configuração peculiar da cultura amazônica, em que predomina os elementos indígenas, misturados com caracteres europeus e negros, manifestando suas tradições especialmente pela oralidade e mantendo modo de vida interativo com a natureza.

Tal multiculturalidade amazônica, personificada pelos ribeirinhos, pescadores, extratores, seringueiro e outros, é retratada pelas manifestações culturais, que são as projeções, as exteriorizações, os símbolos, os códigos que representam os modos de vida de um povo, tais como o idioma e as expressões lingüísticas, a culinária, os rituais, as celebrações, as danças, o folclore, as religiões, as artes plásticas, a música, os meios de trabalho, produção e consumo, as relações familiares e interpessoais, que são perce-bidas na experiência da vida concreta, real, de um grupo social.

Portanto, selecionando-se o contexto amazônico, a Constituição Federal de 1988, além de reconhecer e proteger a cultura indígena (artigos 231 e 232) e a cultura afro--brasileira (artigos 215, § 1º, 216, § 5º, 68 ADCT), consagra a existência da cultura cabocla, integrante do patrimônio ambiental cultural brasileiro descrito no artigo 216.

Como dito, a cultura cabocla é vivenciada pelos povos e comunidades tradicionais da região, que merecem proteção como bem jurídico ambiental para que suas formas de vida sejam conhecidas das gerações futuras, dando-se assim cumprimento ao comando consti-tucional. Por isso, importante a edição do Decreto nº 6.040, de 7.2.2007, que ao instituir a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

3. INSTRUMENTOS DE TUTELA DA MULTICULTURALIDADE AMBIENTAL AMAZÔNICA

Passa-se a esta altura a demonstrar alguns instrumentos de tutela dessa peculiar cultura amazônica.

Entende-se que a base, o alicerce, de tal instrumentalidade é o federalismo, mo-delo de Estado constitucionalmente adotado pelo Brasil desde 1891, sendo decisão política importante para preservação das diversidades, inclusive cultural, diante de uma unidade política, defendendo-se que quanto maior o grau de descentralização maior é a possibilidade de preservar as expressões culturais locais e regionais em razão da proximidade espacial das esferas de poder, o que facilita a especial proteção do Poder Público, até mesmo pelo autorreconhecimento de pertença dos agentes públicos à cul-tura da localidade.

Considerando que o Brasil ainda adota práticas federativas centralizadoras, a exemplo do controle exercido pela União de bens ambientais estratégicos para o desen-

10 Cultura amazônica:uma poética do imaginário, pp. 55-68.

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volvimento humano sustentável,11 bem como da missão do Superior Tribunal de Justiça de uniformizar nacionalmente a legislação federal,12 observa-se, no âmbito da nossa Federação, importantes meios de defesa e preservação da multiculturalidade ambiental amazônica para as presentes e para as futuras gerações.

O primeiro é o manejo da competência material comum e legislativa concorrente por parte dos entes federados, que no tocante à temática se encontra notadamente trata-da nos artigos 23, I, III, IV, V, VI e X e 24, I, II, VII, VIII, IX e XI, 30, II, da Lei Maior, também presente em outros dispositivos constitucionais, como é o caso do § 1º do arti-go 216, que determina ao Poder Público, com a colaboração da comunidade, promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro.

Afirmado, então, o princípio da intervenção obrigatória estatal para tutela da multicul-turalidade ambiental amazônica, sendo que, na forma de Estado Federal, todas as pessoas políticas devem atuar – União, Estados-membros e Municípios – para se desincumbir dessa obrigação, considerando-se comportamento inconstitucional a omissão correspondente.

Ademais, o direito de viver conforme sua cultura é direito fundamental, sendo o respeito aos direitos da pessoa princípio sensível para o equilíbrio federativo brasileiro, na esteira do que dispõe o artigo 34, VII, “b”, da Carta Magna.

Por assim ser, as entidades federativas não podem se afastar do dever de proteger o meio ambiente cultural, fazendo uso da competência legislativa que lhe foi outorgada.

Pela competência legislativa concorrente não-cumulativa ou limitada à União cabe o estabelecimento de normas gerais, atribuindo-se aos Estados-membros e ao Distrito Federal suplementar essa normatividade generalista, de acordo com suas pe-culiaridades, e aos Municípios a suplementação da legislação federal e estadual, nos assuntos de interesse local.

É a inferência que se extrai dos parágrafos 1º e 2º do artigo 24 c/c o inciso II do ar-tigo 30, estando, dessa forma, demarcados os campos de ação legislativa dos integran-tes do sistema federal, resolvendo-se pela inconstitucionalidade a atuação fora desses limites, já que se estará diante do vício de invasão de competências, mácula essa que ocorre também se qualquer dos entes adentrar no âmbito das matérias de competência privativa de outro.

Por isso, sempre é bom registrar que não há hierarquia entre a normatividade fe-deral, estadual e municipal, o que há é a limitação de competências.

O Legislador Constituinte originariamente também positiva no § 3º do referido artigo 24 a espécie de competência concorrente legislativa cumulativa, ao facultar aos Estados o exercício da competência legislativa plena se inexistir normas gerais federais.

A subseqüente edição das normas gerais pela União pode resultar exclusivamente em suspensão da eficácia lei estadual se houver incompatibilidade. É o que prevê o § 4º do citado artigo 24, pelo que se infere que a revogação da lei geral federal implica a retomada da eficácia da lei estadual até então suspensa.

11 Ver artigos 20, II, VIII, IX, 21, IX, XII, ‘b”, Constituição Federal. 12 Ver artigo 105, III, Constituição Federal.

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22 temas atuais de direito

Afirma-se, então, que a matéria sobre a proteção do meio ambiente cultural é obje-to de legislação em que todas as entidades federadas concorrem na medida dos limites delineados constitucionalmente, sendo partícipes colaboradores do sistema normativo nacional de proteção ambiental, cujas normas editadas têm de ser compatíveis entre si, plasmando relações interativas e interdependentes para seu eficaz funcionamento protecionista.

Para a efetivação dessa harmonia, conhecida é a adoção do sedimentado critério da predominância do interesse para determinação da competência legislativa federal, peculiar e local, a orientar que os temas predominantemente de interesse geral, nacio-nal, estão na ordem jurídica da União, já os temas predominantemente regionais, pe-culiares ou específicos de cada Estado ou do Distrito Federal estão sob a competência dessa ordem normativa, e, por sua vez, os temas de predominante interesse local ficam sob a ordem jurídica do Município.

Por se entender que a degradação e a proteção da multiculturalidade ambiental ama-zônica, como parte integrante do meio ambiente global, afeta mais diretamente às co-munidades do entorno da fonte, levando em consideração também que se propagam em rede, defende-se que tal tutela é assunto primeiramente de predominante interesse local que, devido à indivisibilidade do bem jurídico, pela qual sua efetividade, sua ameaça e sua lesão atingem todos os titulares, interessa também aos outros níveis de competência.

Assim é que o poder central deve expedir normatividade geral de proteção do meio ambiente cultural incidente sobre o território nacional, enquanto aos poderes pe-riféricos fica assegurada a edição de normas mais restringentes de acordo com a ne-cessidade de preservar o equilíbrio ambiental em todos os seus aspectos, combatendo as causas de degradação identificadas nas áreas territoriais respectivas, estabelecendo atuação concentrada de conformidade com suas especificidades, compatíveis com o regime vertical de competências.

Defende-se ser essa a interpretação adequada atribuída aos parágrafos do artigo 24 em combinação com o artigo 225 e sua integração com outros dispositivos que confor-mam o meio ambiente sistêmico em seus diversos aspectos, aqui se destacando o meio ambiente cultural.

Embora se reconheça a dificuldade da determinação do conceito de normas gerais, há de se fazer um esforço hermenêutico para encaminhar a pacificação dos conflitos de competência legislativa em matéria ambiental, cabendo novamente confirmar a propos-ta da adoção do princípio pro dignidade humana como vetor interpretativo compatível com a axiologia da proteção ambiental fundada no antropocentrismo alargado, em que o sistema de tutela ambiental é unificado juridicamente pelo elemento teleológico de manutenção do equilíbrio capaz de manter a vida na face da terra e vida qualificada pela dignidade humana.

A adoção desse princípio interpretativo implica que na resolução dos conflitos de competência a respeito da generalidade e especificidade normativa, há de ser confor-me a Constituição a normatividade federal, estadual ou municipal que assegure mais completamente a existência humana digna, sendo que não há existência digna sem o reconhecimento da cultura como bem essencial à sadia qualidade de vida.

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A segunda instrumentalidade observada que pode socorrer a cultura peculiar da Amazônia se identifica com os meios de proteção dos bens materiais e imateriais, me-diados para proteção do patrimônio ambiental cultural brasileiro.

Logo, os bens materiais e imateriais portadores de valores referentes à identidade, à ação e/ou à memória da cultura cabocla devem ser defendidos e preservados como pa-trimônio difuso, de toda a coletividade, para serem usufruídos pelos titulares presentes na atualidade, bem como pelas gerações vindouras, significando um marco civilizató-rio, representado por seus símbolos.13

O § 1º do artigo 216 da Constituição Federal exemplifica alguns desses meios, como o inventário, o registro, o tombamento e a desapropriação.

O inventário e o registro podem ser usados para acautelamento de bens móveis, como livros, documentos e obras de arte, manejados por bibliotecas, arquivos, museus, pinacotecas etc, como também podem ser empregados para identificação e proteção de bens imateriais.

Aliás, o registro de bens culturais de natureza imaterial está sendo realizado pela União mediante o Decreto nº 3.551, de 4.8.2000, adotando como critério para seleção a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira.

Já o tombamento é um instrumento muito utilizado por todos os entes federados, compreendendo-se que possui natureza jurídica de ato declaratório, consistindo no re-conhecimento estatal de bens culturais materiais, móveis e imóveis, que exigem prote-ção oficial, podendo ser efetuado pela atividade legislativa, administrativa ou judiciária.

No âmbito federal, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) organiza esses bens observando as regras do Decreto-lei nº 25, de 30.11.1937, fonte de algumas normas gerais que fixam diretrizes para observância pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, a exemplo dos requisitos mínimos para a preservação dos bens culturais, destacando-se às limitações ao direito de propriedade quanto à fa-culdade de uso e disposição, a atingir inclusive a vizinhança do bem tombado, bem como previsão de um sistema mínimo de sanção.

No que respeita à desapropriação, verifica-se servir para a transferência do bem de significância cultural, seja móvel ou imóvel, do patrimônio privado para o patrimônio público, sendo efetivada após o tombamento.

Outro instrumento de identificação para proteção de bem ambiental cultural é o zoneamento, empregado geralmente para o reconhecimento do valor cultural de con-juntos urbanos de valor histórico, paisagístico ou artístico. Nesse sentido, é aclamado pela Lei nº 10.257, de 10.7.2001, o Estatuto da Cidade, como instrumento da política urbana, a ser executada pela municipalidade.

13 Exemplos de bens culturais do Estado do Pará: a festa do Sairé do município de Santarém; a dança do Carimbó do município de Marapanim; a dança da Marujada e a festa de São Benedito do mu-nicípio de Bragança; o folguedo do Boi de Máscaras do município de São Caetano de Odivelas; a celebração do Círio de Nossa Senhora de Nazaré na capital de Belém.

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24 temas atuais de direito

No Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), insti-tuído pela Lei nº 9.985, de 18.7.2000, extrai-se duas categorias importantes para a preservação da forma de vida cabocla e, portanto, do meio ambiente cultural amazô-nico, traduzidos na Reserva Extrativista (RESEX) e as Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS).

Segundo a disciplina legislativa, a Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrati-vismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de ani-mais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade.

Por sua vez, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de explorações dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica.

Assim é que as reservas mencionadas delimitam uma área cultural em que um determinado modo de fazer, criar e viver de um grupo social é identificado para fins de tutela, reconhecendo-se que a conservação da natureza, o aproveitamento econômico de seus recursos e a preservação cultural são elementos constitutivos do desenvolvimento sustentável, constando a reserva extrativista como instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, nos termos do artigo 9º, VI, da Lei nº 6.938, de 31.8.1981.

Vê-se, assim, que o modo de vida peculiar da região amazônica é reconhecido normativamente como sustentável, parecendo um paradoxo a necessidade de sua prote-ção especial, pois num mundo de riscos e perigos, também provocado pelo sucesso do desenvolvimento científico e tecnológico engendrado a partir da revolução industrial, no qual não se ameaça a própria sobrevivência do planeta na forma como se conhece hoje, tal modelo pode servir de referência de relação harmônica entre o ser humano e o seu meio.

Sem prejuízo da existência de outros instrumentos de defesa da multicultu-ralidade ambiental amazônica,14 por fim, pretende-se realçar os meios manejados jurisdicionalmente.

Traz-se à baila as condutas incriminadas pelo Direito Penal, que tutelam o bem jurídico meio ambiente cultural, citando-se os tipos descritos nos artigos 62 a 65 da Lei nº 9.605, de 12.2.1998.

No âmbito cível, importa consignar alguns meios processuais idôneos para a de-fesa dos bens culturais aqui retratados, pelo que sobrevém prontamente a ação cível

14 Nesse sentido, podem ser arroladas a vigilância, a fiscalização, a restauração, as avaliações ambien-tais, como é o caso do estudo de impacto ambiental etc.

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pública, mencionada constitucionalmente no artigo 129, III, e tratada na Lei nº 7.347, de 24.7.1985.

Também há de ser lembrada a ação popular, que, como a ação civil pública, possui assento constitucional, estando consagrada no artigo 5º, LXXIII, com disciplina infra-constitucional baseada na Lei nº 4.717, de 29.6.1965.

Prosseguindo-se no exame do texto da Lei Maior, vê-se ainda alguns outros ins-trumentos, tais como o mandado de injunção, previsto no inciso LXXI do artigo 5º, o mandado de segurança individual e coletivo, previstos nos incisos LXIX e LXX, além do controle de constitucionalidade dos atos normativos, de competência do Supremo Tribunal Federal, bem como a ordem de punição para os atos de improbidade adminis-trativa, estampada no § 4º do artigo 37 e disciplinada pela Lei nº 8.429, de 2.6.1992, pois pode o ato ímprobo ofender o patrimônio cultural, que pertence, como sabido, ao pa-trimônio público, no sentido de bem de uso comum do povo difusamente considerado.

O que se quer deixar assente é que, ao lado da importância da existência de nor-mas protetivas aptas à tutela da multiculturalidade ambiental amazônica, emerge de relevância essencial a atuação do intérprete e do aplicador do Direito, a se exigir que conheça e compreenda o contexto cultural amazônico para preservar esse aspecto do pluralismo cultural.

Portanto, cabe também aos Estados e Municípios, mediante ação do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, fazerem uso desses instrumentos para tutela do patrimô-nio ambiental caboclo, necessária à efetivação da dignidade humana na região.

4. DIVERSIDADE CULTURAL COMO BEM DA HUMANIDADE E CONDIÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO SUSTENTÁVEL

Para além disso, somente respeitando as suas multiculturalidades tradicionais o direito interno do país se ajustará aos compromissos assumidos no plano internacional expostos na Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, editada pela Unesco, em 2005, ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 485, de 20.12.2006 e promulgado mediante o Decreto nº 6.177, de 1.8.2007.

Tal documento internacional corrobora as assertivas aqui lançadas de que a diversidade cultural15 é uma característica essencial da humanidade e, como tal, constitui patrimônio comum de todos, reconhecendo os conhecimentos tradicionais

15 O artigo 4º da Convenção expressa a diversidade cultural como multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas varia-das formas pelas quais se expressa, se enrique e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologia empregados.

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26 temas atuais de direito

como fontes de riqueza de uma civilização, tanto considerando os bens materiais quanto imateriais.

A adoção pelo Brasil da referida Convenção implica na afirmação dos seus prin-cípios diretores, que encontram fundamento na Constituição Federal. São eles: prin-cípio do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; princípio da soberania; princípio da igual dignidade e do respeito por todas as culturas; princípio do acesso equitativo; princípio da abertura e do equilíbrio; princípio da complemen-taridade dos aspectos econômicos e culturais do desenvolvimento e o princípio do desenvolvimento sustentável.

Chega-se ao fim desta explanação com o propósito de chamar a atenção para a importância da cultura de cada um e de todos na concretização da sadia qualidade de vida, almejada pelo desenvolvimento sustentável.

A diversidade cultural é condição para tal desenvolvimento, lembrando-se que sua gênese remonta ao conceito de ecodesenvolvimento, empregado pioneiramente em 1973 por Maurice Strong, tendo a seguinte definição: “desenvolvimento que, em cada ecorregião, consiste nas soluções específicas de seus problemas particulares, levando em conta os dados ecológicos da mesma forma que os culturais, as necessidades ime-diatas, como também aquelas a longo prazo.16

Portanto, infere-se que hoje a nota conceitual de desenvolvimento sustentável, lançada pela Organização das Nações Unidas em 1987, de que sustentável é o desen-volvimento que satisfaz as necessidades das gerações presentes sem comprometer que as gerações futuras satisfaçam as suas necessidades, evoluiu para abrigar ele-mentos conceituais que melhor se conformam na nomenclatura de desenvolvimento humano sustentável.

Esses elementos conceituais estão na efetivação dos direitos fundamentais de li-berdade, de igualdade e de fraternidade da pessoa humana conjugada com o cresci-mento econômico, do que decorre o respeito aos direitos culturais e de todas as suas multiculturalidades.

5. BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

KRIEGER. Maria da Graça et al. (org.). Dicionário de direito ambiental: termino-logia das leis do meio ambiente. Porto Alegre – Brasília: Universidade UFRGS/Procuradoria Geral da República, 1998.

16 Maria da Graça et al (Org.), Dicionário de direito ambiental: terminologia das leis do meio ambiente, p. 146.

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a proteção jurídica do meio.... • luzia do socorro silva dos santos 27

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Belém: Cejup, 1995.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. Sâo Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SANTOS, Luzia do Socorro Silva dos. Tutela das diversidades culturais regionais à luz do sistema jurídico-ambiental. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005.

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3DESLOCALIZAÇÃO INTERNACIONAL E INTERNA

Georgenor de Sousa Franco Filho

SUMÁRIO: 1. A incidência internacional. 2. A deslocalização na União Europeia. 3. Possibilidade de deslocalização interna. 4. A realidade inegável e um norte a seguir.

1. A INCIDÊNCIA INTERNACIONAL

Fossemos voltar no tempo, à pré-história, nas idades da pedra ou dos metais, e encontraríamos o homem morando em cavernas e trocando de uma para outra confor-me suas necessidades da época. Mudaram os tempos, a escrita serviu de marco para assinalar as mudanças das idades.1 Em quaisquer dessas fases, um traço é comum: o homem é naturalmente nômade, não no sentido estritamente gramatical, mas signi-ficando que costuma mudar de lugar (residência, trabalho) com alguma frequência. Por isso mesmo, nas relações entre os Estados, é reconhecida a migração e o próprio passaporte existe como forma de limitar essa entrada-saída de pessoas entre os di-versos países.

Hodiernamente, pode-se falar não apenas na mobilidade de pessoas físicas, como também na de pessoas jurídicas e é justamente nesse aspecto que sobressai a figura da deslocalização, que é nova no Direito.

Chama-se deslocalização o fenômeno que ocorre quando uma empresa situada em determinado país resolve transferir-se total ou parcialmente para outro, geralmente buscando saída para barreiras comerciais e/ou para redução de custas (transportes mais fáceis, salários menores, redução de carga tributária, concessão de subsídios, encargos sociais mais reduzidos, etc.). É a deslocalizaçao internacional. Geralmente, são os paí-ses chamados emergentes os principais receptores dos deslocalizados.

Parece ser um tema novo, recém-saído do imaginário jurídico, mas não é assim. Trata-se de assunto recorrente, noticiado pelo cinema mudo, no final do século XIX, como pode ser facilmente verificado no sítio you tube, na internet.2

1 V., a respeito, o meu Novas tecnologias e uma parte do novo mundo do trabalho. In: Jornal Traba-lhista Consulex, Brasília, v. 38, pp. 12-14, 2011. LTr. Suplemento Trabalhista, São Paulo, v. 069, pp. 353-357, 2011; e Revista Sintese Trabalhista e Previdenciária, São Paulo, v. 23, pp. 55-61, 2011.

2 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=QYNg34rfcrA.Acesso a 2.11.2012.

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30 temas atuais de direito

São situações que tem ocorrido de diversas formas. A empresa Motorola, por exemplo, que é norte-americana, fabrica boa parte de seus produtos na Malásia e os reexporta para o resto do mundo. O desemprego aumenta nos países desenvolvidos, porque a mão-de-obra dos países periféricos tem um custo muito menor o que ocasiona a deslocalização das empresas.

Partidos políticos de esquerda, em Portugal, se movimentam para impedir que a deslocalização crie mais danos ao operariado local. Informam, por exemplo, que:

a unidade portuguesa do grupo inglês de calçado C & J Clarks (588 trabalhadores) – con-siderada, aliás, a mais produtiva do grupo – em Castelo de Paiva, em processo de deslo-calização para a Roménia, é somente o exemplo mais recente. O mesmo grupo actuou de idêntico modo em 2001 com a unidade de Arouca (368 trabalhadores). Mas recordemos os casos passados de deslocalização e reestruturação da Texas Instruments Samsung Electronic (TISE) – 740 trabalhadores – na Maia; a Longa Vida – Nestlé, em Matosinhos; a ERU, em Carcavelos; a Renault, de Setúbal e Cacia; a Grundig Auto-Rádios, em Braga (107 traba-lhadores); a Indelma (600 trabalhadores), no Seixal; a Goela Fashion, em Santo Tirso (137 trabalhadores), a Schoeller (200 trabalhadores), em Vila Real; a ERES (500 trabalhadores), no Fundão; a Bagir (283 trabalhadores), em Coimbra, a Melka (170 trabalhadores), em Palmela; a Schuh Union (440 trabalhadores), na Maia; a ARA (300 trabalhadores), em Seia; etc. Ou o caso em curso da Lear (Palmela) – empresa produtora de capas para bancos de automóvel – abrangendo cerca de 1.500 trabalhadores ou a Alcoa (1.000 trabalhadores), dedicada à produção de cablagens para a indústria automóvel.3

Por outro lado, com o crescimento do Ensino a Distância (EAD), o importante é o acesso à internet, e não mais a proximidade da residência do aluno, as dificuldades com seu deslocamento, o comparecimento do professor às salas de aula. Corolário, passam a se deslocalizar docentes e discentes. E as próprias escolas investem em tecnologia e não mais em grandes e monumentais edifícios.

Trata-se de um processo contínuo, que as empresas transnacionais (também cha-madas de multinacionais) adotam para atender suas estratégias. Resultado da deslo-calização é a relocalização, geralmente influenciada pela redução da intervenção dos Estados nacionais na economia interna, promovendo, em consequência, redução de direitos sociais.

Inegável, também, a influência do desenvolvimento tecnológico, que proporciona, em boa parte, um aumento de transferência das atividades produtivas sempre objetivan-do uma redução de custos do trabalho. Atividades desenvolvidas nos setores têxteis, de vestuário, mobiliário, calçados, bebidas e alimentos costumam ser as mais atingidas.

Nos países deslocalizados, ampliam-se as taxas de desemprego, e nos relocaliza-dos, degradam-se as relações de trabalho, no modelo de produção flexível, rápido e de baixo custo, aumentando a exploração da mão-de-obra humana, já que o único objeto é o aumento do lucro.

3 Cf. http://www.pcp.pt/projecto-de-lei-n%C2%BA-213ix-deslocaliza%C3%A7%C3%A3o-de-em-presas. Acesso a 20.11.2012

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deslocalização internacional... • georgenor de sousa franco filho 31

2. A DESLOCALIZAÇÃO NA UNIÃO EUROPÉIA

Na União Europeia, várias normas comunitárias visando minimizar os danos com a proteção do trabalho, de que são exemplo a Diretiva 98/59/CE, de 20.7.1998 relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes aos des-pedimentos coletivos, a Diretiva 2001/86/CE do Conselho de 8.10.2001,queregula o envolvimento dos trabalhadores nas atividades das sociedades anónimas europeias (Societas Europaea, a seguir designada por SE), a que se refere o Regulamento (CE) nº 2157/2001, a Diretiva 2002/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11.3.2002 queestabelece um quadro geral relativo à informação e à consulta dos tra-balhadores na Comunidade Europeia, o Regulamento (CE) nº 1260/1999 do Conselho de 21.6.1999, que estabelece disposições gerais sobre os Fundos Estruturais,o Livro Verdede 18.7.2007, visandopromover um quadro europeu para a responsabilidade so-cial das empresas.

O Regulamento nº 1260/1999 prevê, dentre outras iniciativas comunitárias, a co-operação transnacional para a promoção de novas práticas de luta contra as discrimi-nações e desigualdades de qualquer natureza relacionadas com o mercado do trabalho (EQUAL) (art. 20, 1, d).

A Diretiva 98/59/CE impõe seja a autoridade pública notificada pelo empregador que possua algum projeto visando a promover o despedimento coletivo (art. 3, 1), limi-tando a quantidade de empregados despedidos ao total do quadro de trabalhadores da emrpesa, em uma escala progressiva (art. 1, 1,a).

No que refere à Diretiva 2001/86/CE, deve ser dado realcea esse envolvimento dos trabalhadores, que objetiva a contar com a participação direta de seus representantes nas decisões a serem tomadas no ambito de uma sociedade (art. 2, h).

A Diretiva 2002/14/CE é aplicávelàsempresas com mais de cinquenta empregados ou aos estabelecimentos que possuam mais de vinte trabalhadores, deacordo com a op-ção do Estado-Membroda União Européia (art. 3, 1). Consignaessa diretiva o relevante aspecto de que o trabalhador sempre deve estar informado dos destinos da empresa, como se verifica no art. 4, 2:

2. A informação e a consulta incluem:a) A informação sobre a evolução recente e a evolução provável das atividades da empresa ou do estabelecimento e a sua situação econômica.b) A informação e a consulta sobre a situação, a estrutura e a evolução provável do emprego na empresa ou no estabelecimento e sobre as eventuais medidas de antecipação previstas, nomeadamente em caso de ameaça para o emprego;c) A informação e a consulta sobre as decisões susceptíveis de desencadear mudanças subs-tanciais a nível da(sic)organização do trabalho ou dos contratos de trabalho, incluindo as abrangidas pelas disposições comunitárias referidas no nº 1 do artigo 94.

4 Este dispositivo amplia ainda mais o direito à informação que detém o empregado. Texto disponí-vel em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:32002L0014:PT:HTML. Acesso a 20.11.2012.

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32 temas atuais de direito

Outro ponto relevante foi a adoção do Livro Verde de julho de 2001. Na Europa unificada, o primeiro Livro Verde surgiu em maio de 1984, criando um mercadoco-mumpara a radiodifusão, especialmente por satélite e por cabo.

No Livro Verde de 2001, inúmeros pontos são abordados, inclusive da inclusão de trabalhadores, assinalando: as práticas de recrutamento responsáveis, designadamen-te não-discriminatórias, poderão facilitar a contratação de pessoas provenientes de minorias étnicas,trabalhadores mais idosos, mulheres, desempregados de longa dura-ção e pessoas em situação de desvantagem no mercado de trabalho. Estas ações são fundamentais para a consecução dos objetivos fixados pela Estratégia Europeia de Emprego – a redução do desemprego, o aumento da taxa de emprego e a luta contra a exclusão social.5

A fim de evitar o aumento da mobilidade de mão-de-obra, pela via da deslocali-zação, embora sem enfrentar diretamente esse tema, o Livro Verde de 2001 acentua, adaptando as empresas às mudanças, que reestruturar uma empresa de forma social-mente responsável significa levar em consideração e equilibrar os interesses de to-das as partes interessadas que são afetadas pelas mudanças e decisões. Na prática, a forma como decorre o processo é,muitas vezes, tão importante como o fundo para o sucesso da reestruturação,implicando, nomeadamente, a participação e a associação de todos os elementos afetados através de uma informação e consultas abertas. Além disso, a reestruturação deverá ser cuidadosamente preparada através da identificação dos riscos mais significativos, de uma previsão de custos – diretos e indiretos -, a par de estratégias e políticas alternativas e da ponderação de todas as formas que permitam reduzir a necessidade de despedimentos.6

Anteriormente a essas manifestações, o Parlamento Europeu adotou a Resolução sobre as deslocalizações e os investimentos estrangeiros diretos nos países terceiros, de 1997.7 Os consideranda chamam a atenção para vários aspectos, devendo se desta-car cinco:

1. a deslocalização é um fenômeno que estritamente econômico e não ideológico;2. as relações entre investimentos estrangeiros diretos e deslocalizações são

complexas e podem levar a juízos e valor equivocados; 3. nem sempre o custo da mão-de-obra é essencial para levar às deslocalizações;4. existem deslocalizações que não observam estritamente problemas econô-

micos, mas também objetivam obter subvenções, incentivos fiscais ou sociais que influenciam a concorrência, que podem ter repercussões negativas em matéria de emprego; e,

5 Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/site/pt/com/2001/com2001_0366pt01.pdf. . Acesso a 21.11.2012.

6 Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/site/pt/com/2001/com2001_0366pt01.pdf. Acesso a 21.11.2012.

7 Texto integral disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:51997IP0392:PT:HTML. Acesso a 20.11.2012

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deslocalização internacional... • georgenor de sousa franco filho 33

5. na fase atual da globalização, as transnacionais devem também considerar a necessidade de promover o desenvolvimento social no mundo.

Após, elenca suas propostas, que vão desde a inserção de cláusulas sociais e am-bientais em acordos internacionais bi ou multilaterais e no âmbito da Organização Mundial de Comércio até a elaboração de um código de conduta para as transnacionais europeias, nos moldes de outros similares.8 Nessa proposta de código, devem ser des-tacados quatro pontos: 1) direito de organização sindical e de negociação coletiva; 2) proibição do trabalho forçado; 3) proibição do trabalho infantil; 4) eliminação da dis-criminação no emprego e na profissão e igualdade de salários entre homens e mulheres.

Como se constata, a Europa mantém-se na dianteira da preocupação com a efe-tivação das garantias dos direitos humanos. No Direito original da União Europeia, identifica-se essa preocupação, desde os primeiros tratados (Roma e Paris) chegando aos mais recentes (Maastricht e Lisboa), e o direito derivado bem demonstra essa sen-sibilidade, que vai para quase quinze anos (caso da Diretiva98/59/CE).

3. POSSIBILIDADE DE DESLOCALIZAÇÃO INTERNA

Até aqui, alinhei algumas considerações sobre o fenômeno em nível internacio-nal. Afinal, deslocalização no mesmo país pode parecer estranho, porquanto as regras tutelares são as mesmas em quaisquer regiões. No Brasil, por exemplo, a legislação tra-balhista é uma só. Horas extras são as mesmas sejam praticadas em São Paulo capital, ou nas mais longínquas paragens da Amazônia, ou nos mais desertos locais do sertão nordestino. As férias podem ser gozadas de forma semelhante, com o mesmo acréscimo de 1/3 e o mesmo abono também de 1/3. E assim outros tantos direitos trabalhistas.

Existem, porém, certos aspectos contingenciais que podem ensejar a que se ad-mita a deslocalização interna. A Constituição brasileira contempla o reconhecimento dos acordos e convenções coletivas de trabalho (art. 7º, nº XXVI). Com efeito, pela via da negociação coletiva, podemos ter direitos específicos em determinadas situações, e, nessas circunstâncias, pode ser constatada a ocorrência da deslocalização, ainda que de maneira bastante sutil, internamente.

Poderia se identificar a deslocalização com a adoção dos work centers, ou centros de trabalho, com capacidade para 300 a 500 pessoas, situados em diferentes locais de uma cidade ou de uma região metropolitana, permitindo com que existam vários seto-res da mesma empresa, de cerca de cinco mil empregados antes concentrados em um único endereço, espalhados pela mesma localidade, ficando suas residências próximas desses locais, com o que facilitam o deslocamento, economizando combustível e evi-tando poluição. No entanto, do ponto de vista dos efeitos sobre os contratos de trabalho,

8 A Resolução refere ao Código de Conduta que os Estados Unidos da América elaboraram para as empresas multinacionais americanas, mas existe, igualmente, a prestigiada Declaração tripartite de princípios sobre as empresas multinacionais e a política social, elaborada por Hans Güntere publicada pela OIT, em 1.janeiro.1982. Disponível em: http://www.ilo.org/empent/Publications/WCMS_125796/lang--es/index.htm. Acesso a 16.12.2012.

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34 temas atuais de direito

não há, de início, algum efeito mais significativo. Existem, sim, reflexos positivos no meio ambiente das cidades onde ocorre o surgimento desses centros. Por outro lado, com a multiplicidade dos work centers, as regras livremente negociadas por ser dife-rentes e poderia ser possível uma deslocalização interna a fim manter esses centros em locais onde existissem menos normas protetoras.

Pode ser encontrada, ademais, a ocorrência de deslocalização interna em situa-ções que envolvam os grandes empreendimentos que ocorrem no Brasil e em muitos países, quando grupos econômicos reúnem-se na modalidade consórcio, que são uma espécie de contrato de sociedade, para realizar grandes obras de engenharia.

As empresas que constituem esses consórcios para realizar determinada obra re-crutam e contratam trabalhadores, que são despedidos ao final dos trabalhos. Concluída aquela, outra é iniciada em local diferente, formando-se novo consórcio construtor, geralmente comas mesmas empresas do anterior.

Nesse momento, negociam coletivamente com os trabalhadores locais, e fixam-se as condições específicas de trabalho. Em seguida, trabalhadores dispensados da primei-ra obra são levados pelas empresas formadoras do novo consórcio, também integrantes do anterior, para trabalharem na nova obra.

Chegando, essas levas de trabalhadores se defrontam com as normas coletivas negociadas com os locais, que, apesar de atenderem à realidade destes, são diferentes e com menos direitos que às vigentes na outra obra.

A questão que se propõe é saber se as normas preexistentes subsistem também para aplicação aos empregados que, tendo trabalhado para as mesmas empresas em outro consórcio em obra similar, estão nessa nova obra e recebem uma norma que não foi por eles negociada, embora abranja todos os empregados?

A resposta, numa primeira visão, seria positiva, no sentido de que aos novos empre-gados se aplica a norma coletiva em vigor. Porém, devemos considerar esse moderno fenô-meno da deslocalização/relocalização, nesse caso de mobilidade interna de mão-de-obra.

A meu ver, numa hipótese como a descrita acima, estamos em um clássico caso de rebus sic stantibus. As circunstâncias mudaram. Houve uma alteração fundamental que inviabiliza a aplicação da norma pretérita.

O Código Civil em vigor, garantindo que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato (art. 421), adota a teoria da im-previsão e prevê a atuação do Judiciário para corrigir efeitos que possam ser criados, prejudicando uma das partes.

Nesse particular, duas regras do Código Civil, que podem ser aplicadas ao Direito do Trabalho, por força do art. 8º, parágrafo único, da CLT. São os artigos 3179 e 478,10 que transferem ao juiz a competência para modificar os contratos.

9 Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

10 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos

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deslocalização internacional... • georgenor de sousa franco filho 35

Com efeito, esses dispositivos permitem a revisão de uma norma coletiva em vigor. A primeira norma coletiva, negociada com trabalhadores moradores da localidade da obra, não pode ser aplicada aos que vieram de outra região, de outra obra, embora reali-zada por uma sociedade diferente, da qual apenas algumas empresas são componentes da nova. Devem ser feitas algumas avaliações conjunturais que, ao cabo, podem resultar na impossibilidade de validar, aos novos empregados, as regras negociadas anteriormente.

Constatada que a obra realizada é similar a anterior, que os trabalhos efetuados pelo grupo de obreiros é o mesmo de antes, que as condições de desenvolvimento das atividades são também idênticas, que o numero de trabalhadores relocalizados é su-perior àquele de quando a norma coletiva foi negociada, será correto rever a norma, e renegociá-la para atender à realidade presente das questões sociais. Se inexistir possi-bilidade de acordo, somente então é que deverá decidir a Justiça do Trabalho.

Não há, na CLT, fixação de prazo mínimo de vigência de norma coletiva para que ocorra revisão. A regra existente é a § 3º do art. 614 consolidado, que determina: não será permitido estipular duração de Convenção ou Acordo superior a 2 (dois) anos. Por corolário, é possível rever qualquer norma coletiva autônoma a qualquer tempo, desde que nunca inferior a dois anos.

Identificada a deslocalização interna, o negociado poderá ser revisado e, se a revi-são não for viável pela via negocial, deve ser admitida a possibilidade de ser feita pela Justiça do Trabalho, aplicando-se, por analogia, o disposto no art. 873 da CLT, verbis:

Art. 873. Decorrido mais de 1 (um) ano de sua vigência, caberá revisão das decisões que fixa-rem condições de trabalho, quando se tiverem modificado as circunstâncias que as ditaram, de modo que tais condições se hajam tornado injustas ou inaplicáveis.

Assim, sendo constatada que a norma existente não mais pode ser aplicada, em decorrência da deslocalização/relocaliação da maioria dos trabalhadores, que antes eram beneficiados por regras mais favoráveis, e, nessa nova obra, receberam direitos negociados anteriormente e inferiores àquela, quando a maioria dos empregados era da própria localidade.

4. A REALIDADE INEGÁVEL E UM NORTE A SEGUIR

As considerações ligeiras que foram feitas acima demonstram, a meu ver, duas coi-sas. Primeiro, a deslocalização é um fenômeno que preocupa as relações de trabalho e que está a merecer cuidadoso estudo para tentar encontrar pontos que visem a evitar prejuízos para a classe trabalhadora. Segundo, embora existente em grande escala dentro do processo de internacionalização da economia, é induvidoso que pode ser encontrado, com características diferentes, internamente em muitos países, oque, reforça ainda mais a necessidade de criação de regras que minimizem os prejuízos aos trabalhadores.

extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sen-tença que a decretar retroagirão à data da citação

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36 temas atuais de direito

Acredito que seria oportuno, antecipando-se à uma realidade próxima, que se ela-bore um código de conduta das empresas em caso de deslocalização interna, para apli-cação no Brasil. Esse código comportamental deveria indicar pontos que precisam ser preservados quando se constatar esse movimento migratória de trabalhadores.

Existem questões que permitem se identificar claramente a deslocalização interna, e, consequentemente, a necessidade de preservação dos direitos adquiridos pelos traba-lhadores em norma coletiva anterior vigente em outra local do mesmo país. Supondo que o acordo coletivo celebrado entre uma construtora e seus trabalhadores, que não são residentes das proximidades, fixe uma cláusula criando o direito de visitação à família para os que não são da localidade, de cinco dias a cada três meses de trabalho. Costuma-se chamar esse direito de baixada. Em outra obra distante daquela, a mesma empresa negocia com trabalhadores locais o período de baixada de cinco dias a cada seis meses de trabalho, considerando que os obreiros são residentes de local próximo.

No tempo de vigência da norma, os trabalhadores da primeira obra deslocalizaram--se, passando a trabalhar na nova obra, onde encontraram um período de baixada dife-rente. Ora, provado que estão em número superior aos negociadores primitivos, resulta evidente a necessidade de revisão da norma para adequá-la à nova realidade social posta.

Exemplo claro de deslocalização interna poderia ser encontrado no Proc. TRT-SE 1-DCG-0000268-90.2012.5.08.0000,11 acerca de atividades nas obras de construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira, no Pará.

Durante os debates na Seção Especializada I do TRT da 8ª Região, propus fosse diligenciado a fim de verificar se ocorrera acréscimo de trabalhadores com a vinda de obreiros que trabalhariam em obras similares nas UHEs de Jirau e de Santo Antônio, no Estado de Rondônia, para caracterizar a necessidade de preservação dos direitos que adquiriram naqueles empreendimentos. Por esse viés, poderia ser adequadamente aplicada a teoria da imprevisão. As diligências efetuadas, no entanto, não trouxeram elementos que, a meu ver, seriam necessários para caracterizar a rebus sic stantibus. Os argumentos que foram expendidos no acórdão, apesar da intenção de possuírem objetivo social relevante, como quando é ressaltado que a cláusula referente à baixada deveria ser deferida em homenagem aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho (artigo 1º, III, 6º e 7º da CR/88), e que houve um expressivo aumento do número de trabalhadores na obra, não apresen-tam base efetivamente sustentável porque ultrapassam os limites do poder normativo da Justiça do Trabalho, já tão atingido pelos que querem retirá-lo do mundo do direito.

Haveria, sob a minha ótica, necessidade de ficar comprovada a deslocalização de trabalhadores das UHEs de Jirau e de Santo Antônio, em Rondônia, para a UHE de Belo Monte, no Pará. O acórdão regional, inclusive, reporta-se em parte a esse ponto, embora não utilize, uma só vez, o termo deslocalização.

As relações de empregados que foram juntadas ao processo de Belo Monte, in-dicavam apenas a origem de cada um, mas não demonstravam se teriam ou não vindo das obras de Rondônia. Note-se que foram juntados vários acordos coletivos de traba-

11 Este processo foi julgado a 23.11.2012 (Rela.: Desembargadora Rosita de Nazaré Sidrim Nassar).

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deslocalização internacional... • georgenor de sousa franco filho 37

lho, negociados nas UHEs de Jirau e Santo Antônio (dos anos 2009/2010, 2010/2011, 2011/2012 e 2012/2013).12 Examinando-os, constata-se que as folgas de campo (baixa-das), eram, inicialmente, de cinco dias a cada seis meses (de 2009 a 2011), e passaram a ser de cinco dias a cada três meses (de 2011 a 2013).

Em Belo Monte, a norma vigente (2011/2012) fixava a baixada de cinco dias a cada seis meses. A decisão majoritária do TRT da 8ª Região modificou esse período para cinco dias a cada três meses, exatamente como nas normas mais recentes das UHEs de Jirau e Santo Antônio.

Como não foi identificada a ocorrência da deslocalização, manifestei-me contra-riamente às cláusulas propostas (aumento do valor da Cesta básica e modificação do período de Visita à família/Folga de campo, que é a baixada), considerando que sequer seria possível invocar, analogicamente, o art. 873 da CLT mencionado acima.

Relativamente a cláusula que cuidava de cesta básica/alimentação, as normas das UHEs de Jirau e de Santo Antônio previam, de 2009 a 2010, R$-80,00/mês; de 2010 a 2011, R$-110,00/mês; e, de 2011 a 2012, R$-170,00/mês. De 2012 a 2013, o acordo coletivo com uma empresa (Construções e Comércio Camargo Correa S/A) passou a ser escalonado (cláusula 8ª).

Em Belo Monte, a norma coletiva que se encontrava vigente previa idêntica ver-ba no valor de R$-95,00/mês, em acordo coletivo que vigorou entre 2011/2012. Era pretendido que o valor passasse a R$-300,00/mês. Fundando-se em dados do DIEESE, o reajuste foi deferido, mas o montante foi baseado nas normas vigentes nos acordos aplicáveis às UHEs de Jirau e de Santo Antônio, em Rondônia, para o mesmo período.13

12 Nos autos do processo encontram-se os seguintes acordos coletivos de trabalho negociados pelo Sindicato de trabalhadores:

PERIODO PARTE UHE2009/2010 Construções e Comércio Camargo Corrêa S/A Jirau2009/2010 Consorcio Santo Antônio Santo Antônio2010/2011 Construções e Comércio Camargo Corrêa S/A Jirau2010/2011 Consorcio Santo Antônio Santo Antônio2011/2012 Construções e Comércio Camargo Corrêa S/A Jirau2011/2012 Consorcio Santo Antônio Santo Antônio2011/2012 Consórcio Construtor Belo Monte Belo Monte2012/2013 Construções e Comercio Camargo Corrêa S/A Jirau

Fonte: Proc. TRT-SE 1-DCG-0000268-90.2012.5.08.0000

13 Consta da fundamentação do aresto: Considerando, porém, que nas Usinas Hidrelétricas de San-to Antônio e Jirau o valor de R$270,00 (duzentos e setenta reais) refere-se ao Acordo Coletivo 2012/2013 e no presente caso se está a revisar o ACT 2011/2012, cujavgência foi fixada para o pe-ríodo compreendido entre 1º.11.2011 a 31.10.2012, devendo as categorias profissional e econômica estar em via de negociarem o acordo coletivo para viger no período de 2012/2013, oportunidade em que os valores ali fixados deverão ser revistos, por equidade, fixo o valor da cesta básica na quantia de R$-210,00 (duzentos e dez reais). (Proc. TRT 8ª-SE 1-DCG-0000268-90.2012.5.08.0000)

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38 temas atuais de direito

Aqui, igualmente, fica constatada a aplicação da teoria da deslocalização, embora os fundamentos usados tenham sido diversos destes, razão pela qual, naquela hipótese, porque não efetivamente demonstrado, fui, enquanto integrante daquele colegiado jul-gador, vencido.

Com se verifica, o fenômeno da deslocalização está presente também internamen-te. O exemplo da UHE de Belo Monte, que tomei como estudo de caso, demonstra isto à exaustão. E desse caso, pelo menos duas conclusões podem ser tiradas. A primeira é que desconhecemos no Brasil o fenômeno da deslocalização como modalidade interna de possibilidade de rever direitos trabalhistas que garantam melhorias aos trabalhado-res. O segundo é que inexiste qualquer garantia para preservar os direitos conquistados em um local e que se possam garantir em caso de mudança de lugar de desenvolvimen-to de atividade.

Para acabar com esse grave problema, que certamente originou-se dos processos de internacionalização da economia, da mobilidade das pessoas e do desenvolvimento empresarial, é necessário adotar meios de regulamentação da deslocalização e da relo-calização e incrementar a responsabilidade social das empresas. Na Europa, como as-sinalado acima, as medidas estão sendo tomadas. No Brasil, ainda não existe nada, pelo que é recomendável realizar estudos minuciosos no sentido da elaboração pelo menos de um código de conduta que indique parâmetros mínimos de respeito ao trabalhador.

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4A RESPONSABILIDADE CIVIL COMO CATEGORIA DE

CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: UMA PERSPECTIVA JURISPRUDENCIAL

Pastora do Socorro Teixeira Leal

RESUMO: O presente estudo apresenta reflexões no sentido de demonstrar a relevância da análise de decisões judiciais que tenham por pauta questões inerentes à reparação de danos calcada na responsabilidade civil. O intento é o de ressaltar a importância de se problema-tizar se as referidas decisões judiciais são representativas de uma interpretação adequada dos direitos fundamentais. Por interpretação adequada entende-se aqui uma compreensão da responsabilidade civil enquanto elemento de concretização dos direitos fundamentais nas relações privadas, elemento que, destarte, apresenta uma postura zetética diante de tradicionais dogmas da teoria do direito, como a distinção Justiniana entre direito público e direito privado. Para tanto, propõe-se a necessidade de uma releitura teórica do instituto da responsabilidade civil. Releitura esta que necessariamente fica pautada em bases ético--valorativas da vinculação entre particulares nos termos das próprias normas de direito fundamentais, e que, buscando dar densidade semântica e efetividade para o conceito de responsabilidade, tem por plano de fundo uma concepção contratualista da ética da respon-sabilidade entre os civis.

PALAVRAS-CHAVE: direitos fundamentais; responsabilidade civil; concretização de direi-tos; interpretação judicial.

ABSTRACT: The article reflects on the importance of the analysis of court decisions that have cases for damages in civil sphere. The intention is to highlight the importance of ques-tioning whether those judgments are representative of a proper interpretation of fundamental rights. The proper interpretation is to understand the civil liability as an instrument of realiza-tion of fundamental rights in private relations, in view of the manifestation of a vision estátia dogmas of traditional legal theory, as Justinian the distinction between public law and private law. Therefore, it is important a new theoretical vision of the institute civil liability. This dis-cussion covers some techniques to ensure the use of fundamental rights in private relations. Seeking semantic density and efficiency to the concept of responsibility the present work uses a contractarian ethics on the concept of responsibility.

KEY-WORDS: fundamental rights; civil liability; realising the rights; judicial interpretation.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Contextualização da Problemática; 2. Bases Teóricas e Possibilidades de Concretização; 3. Bibliografia.

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40 temas atuais de direito

INTRODUÇÃO

O presente estudo contém reflexões que fazem parte de investigações desenvol-vidas em projeto de pesquisa.1 Parte de um pressuposto doutrinário dividido em cinco idéias, quais sejam: 1) uma das características gerais mais relevantes das sociedades contemporâneas, adquiridas com o movimento do constitucionalismo moderno, é o seu idiossincrático relacionamento com a concepção da responsabilidade ética que deve ser resguardada nas relações entre os particulares; 2) a Constituição de um Estado é o elemento político mais representativo da concepção de justiça existente neste Estado; 3) dentro do texto constitucional há uma classe normativa que, de modo mais signifi-cativo que as demais, condensa estas escolhas fundamentais, os direitos fundamentais, e, nesse ensejo, 4) para que os direitos fundamentais possam ser a marca de confiança que sustentará os pactos de justiça presentes em cada sociedade, é necessário que estes direitos fundamentais intercedam, precipuamente, nas relações travadas entre particu-lares, pois o conceito de justiça (política) não conhece a distinção entre o público e o privado; e, por fim, 5) que há no ordenamento jurídico pátrio norma de direito posi-tivo que condensa, de maneira emblemática, o debate aqui referido: o art. 927, e seu Parágrafo Único, do Codex Reale.

Importa, assim, perquirir qual é a relação existente entre a constituição, os direitos fundamentais a ela pertencentes, e concepção do que seja a responsabilidade civil apre-sentada pela constituição, tendo em vista a permanência e a eficácia do ideal de justiça categorizado.

A proposta se justifica, pois hodiernamente urge que pensemos a responsabilidade civil não apenas como uma categoria de vinculação de índole privada, mais sim como sendo um robusto contributo jurídico para a manutenção de um pacto social de justi-ça, elemento que, conforme preceituado no disposto parágrafo único, do art. 927 do Código Civil brasileiro, tem a relevante função de manter os ideais de justiça mesmo em face da contingência.

Para tanto, contudo, é necessário que se compreenda a responsabilidade civil como uma micrológica da teoria da justiça de uma determinada sociedade, e que, por isso, como sendo verdadeiro mecanismo de tutela de direitos fundamentais naquela sociedade, que no caso das sociedades funcionalmente diferenciadas, vem abarcada nas cartas constitucionais das quais são dotadas.

Tal compreensão, seguindo o pressuposto teórico aqui explicitado, precisa tomar concretude nas relações sociais, e, ante a função social que se outorga ao direito e às questões jurídicas, a mais eficaz forma de dar concretização a uma concepção valorativa do instituto da responsabilidade civil, nos moldes acima oferecidos, é mesmo através da decisão imperativa e impositiva que advém do serviço jurisdicional, daí porque é elemen-to central o manejo do teor das decisões judiciais que enfrentam a problemática em tela.

1 Projeto de pesquisa desenvolvido na UNAMA intitulado “A responsabilidade civil como categoria de concretização dos direitos fundamentais: uma perspectiva jurisprudencial”, sob a coordenação da autora e a participação do professor e mestre Adelvan Oliverio Silva.

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a responsabilidade civil como... • pastora do socrro teixeira leal 41

1. CONTEXTUALIZAÇÃO DA PROBLEMÁTICA

Obra antológica, que marcou o início das rediscussões sobre o tema no século XX, Jonh Rawls (2000) inicia com a assertiva, tão cabal quanto categórica, de que “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pen-samento”, e posteriormente explicita que [...] o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social.

Nesse sentido, importa ao jurista, envolvido que é com os problemas práticos do mundo da vida, buscar encontrar maneiras de cumprir com a ideia primária e concreta de justiça, isto é, alcançar um determinado modelo de distribuição de direitos funda-mentais e divisão de vantagens advindas da cooperação social.

A relação entre o direito civil e o direito constitucional – este sendo demarcação da ordem máxima das escolhas fundamentais de uma determinada comunidade, e aque-le da liberdade humana – neste sentido, e dentro de tais preocupações sobre uma teoria da justiça, é paradigmática.

O Código Civil Brasileiro, alberga norma que, nesse particular, é absolutamente representativa, como veremos, das duas questões centrais, quais sejam: 1) uma deter-minada compreensão da dimensão temporal do direito e dos direitos fundamentais, em particular; e, 2) da incidência destes direitos fundamentais nas relações inter-privadas, questionando-se, assim, a partir de uma percepção temporal do direito, a clássica distinção entre um âmbito público e outro privado da vida, e por isso, do estabelecimento de uma matriz institucional de “direito público” e outra de direito “privado”.

Trata-se, do disposto no art. 927, em especial em seu Parágrafo Único, que aventa a existência da obrigação de reparar o dano causado a outrem, independente de culpa, sempre que a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua própria natu-reza, risco para os direitos de outrem.

Não é dificultoso concluir, da simples leitura do dispositivo acima referido, a pre-ocupação do direito positivo com o risco, bem entendido este como uma ordem de refe-rencias à contingência, elemento incontornável de uma sociedade aberta para o futuro.

O dever de indenizar preconizado pela norma civil, assim, é tão somente um elemento mais restrito de uma sistemática, localizada no ordenamento jurídico, que pretende proteger um pacto social fundamental da inexorável imprevisão do futuro, pretensão esta que, repita-se, tem um de seus pontos fortes da na eficácia dos direitos fundamentais, e, especificamente, em sua projeção nas relações privadas.

Importa, então, compreender de maneira mais pontual qual a importância dos di-reitos fundamentais e sua incidência global no mundo da vida privada e pública, para a manutenção de um pacto social fundante, pacto este que ostenta, invariavelmente, uma teoria de justiça, e como o tempo – passado, presente e futuro – interagem, através das instituições sociais mais importantes, como o Poder Judiciário, nesta espécie de seguro social que se torna a responsabilidade civil.

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42 temas atuais de direito

2. BASES TEÓRICAS E POSSIBILIDADES DE CONCRETIZAÇÃO

Nessa linha de raciocínio, releva centrar o olhar em decisões judiciais brasileiras em matéria de responsabilidade civil, a fim de identificar a existência efetiva, ou não, de uma visão da responsabilidade civil considerada – dentro do aporte normativo es-tabelecido pela Constituição e pelo Código Civil brasileiro – como uma categoria que assegurará o cumprimento de princípios preceitos de justiça escolhidos por uma deter-minada sociedade, tendo por pressuposto que o tempo, e a contingência a ele inerente, tende a colocar em xeque aquele pacto inicial.

Um levantamento e inventário criterioso das decisões judiciais pátrias que abor-dem a temática multifacetária da responsabilidade civil, dentro da perspectiva genera-lista de uma análise hermenêutica dos principais topoi argumentativos de tais decisões poderá fornecer elementos que possam demonstrar se em tais decisões há um tratamen-to da responsabilidade civil como instrumento de concretização dos direitos fundamen-tais e de uma concepção pública de justiça. Pressupondo-se afirmativas as questões anteriores, será possível compreender se, dentro da perspectiva da responsabilidade civil como elemento de justiça também as relações travadas entre particulares.

É hoje um consenso quase generalizado que o aspecto do Direito Constitucional Geral maiormente estudado ao menos nos últimos cinquenta anos foi a Teoria dos Direitos Humanos/Fundamentais .

Posteriormente à concretização dos mais virulentos acontecimentos séc. XX , a construção político-constitucional dos Direitos Fundamentais adquire nítidos contor-nos de locus teleológico de toda a organização social, em seus mais diversos níveis ou leituras ideológicas .

Nesta esteira, sem que furtada fosse do Estado sua posição de destinatário por excelência das normas de direitos fundamentais, passou-se a reconhecer, de forma ex-pressa, a incidência das mesmas em relações que, observadas a partir do ponto de vista próprio da dogmática clássica dos ideais iluministas, quase sempre foram apontadas como relações entre iguais, e, por isso, colocadas no plano da “horizontalidade”.

O fato é que atualmente, poucos são os que se dispõe a contestar, seja de forma velada ou aberta, a efetiva existência do fenômeno do poder privado, bem como os efeitos até mesmo colonizadores que dele podem ser advindos em detrimento da pessoa humana, e, via reflexa, a necessidade da incidência do arcabouço de garantia dos direi-tos fundamentais nas relações privadas, isto, é naquelas disposições travadas em maior ou menor amplitude entre dois titulares de esta classe de garantias.

Destarte, o debate sobre a amplitude da proteção oferecida pelos direitos funda-mentais nas relações privadas, demonstra-se como corolário direto de uma determinada concepção dogmático – valorativa dos próprios direitos fundamentais, e, antes disto, daquela matriz normativa na qual eles figuram: a Constituição.

Assim, a compreensão da racionalidade inerente aos direitos fundamentais, que lhe permitem transcender aquela construção primária de garantia em face do Estado ou mesmo oferecida pelo Estado – para o estabelecimento de uma pauta mínima de proteção, inviolável mesmo perante às mais complexas relações desencadeadas entre

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os particulares, oferece a conclusão de que os direitos fundamentais podem ser compre-endidos como elementos de proteção de um verdadeiro pacto social, certificando uma determinada escolha por um ideal de organização e de justiça.

Quer dizer, se a atribuição de significância e funcionalidade dos direitos funda-mentais necessita de um diálogo com uma série de instâncias – verbi gratia, uma con-cepção política bem situada do papel destes mesmos direitos fundamentais na vida em comum; da sua operacionalização concreta através de instituições organizadas na forma de divisão e especialização do trabalho, como o Poder Judiciário e Executivo; e, máxime, de uma sempre mais ou menos subjetiva concepção de ética e formação moral daqueles que desempenham atribuições sociais estratégicas, como o juiz – não quer isso dizer que os mesmos direitos fundamentais não apresentem – dada a sua posição dentro da uma específica estrutura normativa de uma comunidade igualmente específi-ca – características que lhe confiram, desde logo, e de modo essencialmente funcional, importância e dignidade próprias na organização das sociedades contemporâneas, emi-nentemente complexas que são.

Nesse sentido, um primeiro passo para a compreensão destas características fun-cionais dos direitos fundamentais, é estabelecer que, estando esta classe de normas enraizada dentro de uma ordem ou sistema constitucional, será ela necessariamente herdeira das principais idiossincrasias desta própria matriz, e, por isso, caberia ao pes-quisador buscar delimitar que tipo de constituição é esta que alberga isto que cha-mamos de direitos fundamentais, norma constitucional que, sem dúvidas, representa caminho mais direto para a compreensão daqueles ideais de organização e de justiça de uma determinada comunidade .

Como sabemos, a nossa própria construção do conceito de direitos fundamentais e de sua fundamentalidade, decorre da localização desta espécie de norma nas cartas constitucionais advindas, basicamente, do contexto revolucionário norte-americano e eu-ropeu, que consubstanciam a fonte histórica do chamado constitucionalismo moderno.

Assim, pode-se estabelecer que a racionalidade própria dos direitos fundamentais está ancorada na racionalidade do constitucionalismo moderno, especificamente, em uma de suas grandes características, qual seja, a estrutura temporal com a qual as so-ciedades contemporâneas são dotadas a partir do advento das modernas constituições, isto é, a compreensão do tempo que lhe permite verdadeiramente uma abertura para a contingência, para o futuro.

O que se estabelece, nesse sentido, é que sendo os direitos fundamentais o núcleo normativo do constitucionalismo moderno, a inteligência desta sua estrutura temporal – de resto não existente nos “constitucionalismos” de outrora – dialoga e é corolário principal da própria funcionalidade deles, direitos fundamentais.

A estrutura deste elemento normativo que conhecemos por constituição – norma jurídica – traz em seu bojo diversos mecanismos que representam de forma bastante paradigmática a abertura para o futuro a que me referi ao longo texto.

Os direitos fundamentais, que são considerados por excelência, como os elemen-tos definidores da “modernidade constitucional” deixam claro esta proposta de legiti-mação através e pelo futuro.

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Neste ensejo, a função dos direitos fundamentais não se identifica com o seu con-teúdo normativo, mas sim com a representação de um futuro, ainda desconhecido, ao qual não são colocados mais limites naturais ou morais. A combinação da programação decisória no plano organizacional e a simbolização do futuro mediante os “direitos fundamentais” parecem, portanto, estar na base da construção da realidade temporal do moderno sistema jurídico.

Segundo a percepção desta proposta, uma destas novidades, conforme já pontu-ado, está diretamente referida à compreensão da temporalidade apresentada por tais sociedades.

Se, como pressupõe Elias (1994.), o tempo não é uma ideia que apareça a priori no bojo de uma dada civilização, mas sim “uma instituição cujo caráter varia conforme o estágio de desenvolvimento atingido pelas sociedades”, interessaria a um estudioso do Direito, especificamente do direito constitucional e dos direitos fundamentais, inda-gar de que forma, e até que ponto, um sistema de normas jurídicas, notadamente de um determinado grupo destas, as normas constitucionais, interagem enquanto demarcação do presente, e, antes disso, se uma constituição, da forma como a compreendemos, tem alguma função no estabelecimento do tempo social, na compreensão que dele se depre-ende, e mais, da relação entre presente e futuro, e, por isso, entre o homem, as diversas sociedades, e o absoluto desconhecimento quanto ao amanhã.

Pensamos que uma das funções precípuas deste instituto marcadamente humano que é o Direito, seria justamente fixar determinada forma de compreender e vivenciar a experiência temporal, de modo que possibilitada fosse uma verdadeira distinção demar-cadora do presente, bem compreendido este como a unidade da diferença entre o passado – nunca definitivo e inequívoco, pois novas hipóteses explicativas podem mudar nossa inteligibilidade a respeito do mesmo – e o futuro, para onde podemos fazer tão somente projeções de elementos presentes na atualidade, utilizando as experiências passadas me-diante um ato seletivo que ocorre sempre no presente, fazendo com que este torne-se eixo de ligação entre aquilo que compreendemos como eventos de um determinado espaço da experiência e um decorrente horizonte de expectativa, que, de forma mais ou menos plausível e confiável, daquele presente específico pode ser subsumido.

Nesse diapasão, é necessário desde logo pontuar que a compreensão temporal possibilitada à sociedade pelo constitucionalismo moderno, especialmente pela teoria de direitos fundamentais enquanto norma jurídica positiva, comporta possibilidades de firmamento de uma teoria de vinculação política que, nessas circunstancias, talvez não tenha mesmo lugar na antiguidade, no medievo e no surgimento modernidade.

É somente na modernidade que podemos ter uma concepção de temporalização que coloca o futuro como o tempo para onde tudo se direciona, e que deverá ser percebido sempre no presente, isto é, no tempo que não existe em si mesmo, mas a partir donde podemos alcançar a distinção entre o que é futuro e passado. O risco, que é o fundamento da responsabilidade civil objetiva situa-se exatamente nessa perspectiva.

É preciso pontuar que a sociedade moderna, funcionalmente diferenciada, parte de si mesma e vai até ela própria, como certifica o autorizado testemunho de De Giorgi (1998) para o qual a sociedade é uma máquina histórica, que em todas as suas opera-

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ções, sempre parte de si mesma; isto é, da situação na qual tem colocado a si mesma com suas operações. Para proceder deste modo, esta deve estar presente para ela mes-ma, esta deve auto-representar-se. A sociedade, portanto, produz auto-descrições que sedimentam significados, quer dizer semânticas históricas, através das quais uma socie-dade se diferencia. Esta se diferencia de todo o resto que não é sociedade e, ao mesmo tempo, das sociedades que a tem precedido.

Com esta compreensão da estrutura da sociedade, é possível que se formalizem vivências temporais voltadas especificamente para o futuro, de modo que o Eterno Retorno deixará de ser um imperativo categórico da existência social, situação de risco que pode ser melhor compreendida na robusta lição de Peter Pál Pelbart (2010) sobre a grandiosa filosofia do tempo de Gilles Deleuze para o qual no plano do pensamento, o eterno retorno parodia o imperativo kantiano: “o que tu quiseres, queira-o de tal modo que também queiras o seu eterno retorno”. O querer é submetido a uma condição de infinitização temporal. Apenas subsiste e retorna aquilo que se dispõe a retornar sem-pre. Aquilo que se quer apenas uma vez, uma última vez e nunca mais, não passa de um meio-querer, um querer fraco. Este é eliminado. Nesse sentido é o tempo (o infinito do eterno retorno) que pode fornecer a medida do querer. Querer verdadeiramente é querer infinitamente, mas querer infinitamente é querer sempre, querer para todo o sempre, querer que retorne infinitamente esse mesmo querer, querê-lo absolutamente. Somente projetado ao todo do tempo pode o querer dar prova de que atinge o seu limite, isto é, a sua potência máxima.

Na sociedade do futuro, isto é, daquela onde reina o porvir, não há espaço para a semântica do Eterno Retorno, de modo que, segundo dirá Pelbart, o futuro, mesmo quando se repete não pode repetir-se, é tempo do desconhecido e da pura contingência.

Mas é necessário que se repise: se estamos pugnando que uma das compreensões mais expressivas do direito constitucional contemporâneo tem a ver com a sua estrutura temporal, tal caracterização, perpassa, invariavelmente, pelas normas que, por excelên-cia, representam a juridicidade constitucional, quais sejam, os direitos fundamentais.

Outrossim, se os direitos fundamentais, e aqui, nestes termos, o “direito funda-mental de tutela da pessoa humana” deve corresponder ao dever de concretização des-sa mesma tutela e um dos mecanismo aptos para essa finalidade é a responsabilidade civil, que deve ser tido como um elemento de vinculação social, que não dispensa um contundente exercício precipuamente naquelas relações privadas, que são as que por excelência dirão sobre a eficácia ou não do pacto social fundamental.

O farto debate que se estabeleceu em torno do papel do código civil enquanto locus de garantia incondicional da autonomia privada e as relativizações desta compre-ensão advindas da chamada constitucionalização do direito está na base da construção teórica da vinculação dos particulares à proteção jurídica dos direitos fundamentais .

No centro da controvérsia sobre a vinculação dos particulares às diversas dimen-sões dos Direitos Fundamentais está posta a questão sobre: a) se os direitos fundamen-tais são política e juridicamente legitimados a limitar a autonomia privada; b) caso positiva a resposta, se coloca o problema de saber em que medida o são; e, por fim c) quais são as consequências e finalidades desta limitação tanto para a teoria dos direitos

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fundamentais como para a autonomia privada, e, seguindo essa diretriz, como deve o juiz lidar, em um caso concreto, com esta conjugação de fatores em face de a uma in-terpretação da constituição constitucionalmente adequada.

Com efeito, a autonomia privada, é um princípio constitucional de relevância in-questionável, bem como é a matriz básica, o núcleo e a razão fundadora do direito pri-vado. Os limites impostos a este princípio são relevantes para qualquer ramo do Direito e a exacerbação do seu exercício sempre deve ser motivo de preocupação jurídica.

Diversos seriam os argumentos teóricos capazes de fundamentar uma suposta flexibilização entre as distinções mais rígidas entre direito público e direito privado, aqui representativa do embate, pelo menos aparente, entre Constituição e Código Civil, Contudo, nos limitaremos a apresentar as razões centrais do processo de reconstrução do direito privado.

Inicialmente, podemos afirmar que as mais ferrenhas convicções iluministas so-bre o direito privado em geral estavam não apenas vinculadas a uma suposta liberdade (negativa) inerente ao ser humano, mas à necessidade imperativa de que esta liberdade fosse exercida a qualquer custo, enquanto forma de libertação do ser humano.

Não é por outro motivo que Sebastian Ernesto Tedeschi (2001) pontua que a cate-goria de sujeito construída pela modernidade é uma categoria histórica, que constituiu um sujeito de direito caracterizado por um indivíduo dotado de consciência e de von-tade, autor de suas próprias ideias e responsável pelas ações que realiza (autonomia).

Justamente ancorados nesta crença na liberdade e na racionalidade naturais do homem, bem como na necessidade de que fosse estabelecida um ordem mais clara na estrutura jurídica até então fragmentada, os movimentos de codificação tomam força, mo-vimentos estes que não têm como único predecessor, é bem de ver, o Código napoleônico, sendo este, outrossim, o maior representante de um segundo impulso de codificação.

Portanto, na ideia mais intuitiva e que classicamente se atribui ao direito privado – e mais especificamente, aqui, à liberdade de contratar – parte-se da suposição de que o Código Civil, como refere UBILLOS (1997), é locus, por excelência da liberdade privada, e, nesse sentido, que se erige a verdadeira carta constitucional dessa socieda-de autossuficiente, sancionando os princípios da autonomia da vontade e da liberdade contratual como eixos da regulação das relações jurídicas privadas.

Contudo, estes postulados que decorrem também de preceitos políticos liberais, acabam sofrendo inegável questionamento com a derrocada do Estado liberal e a ins-tauração do chamado Estado de bem-estar, de sorte que o Código, que, como lembra SARMENTO (2008) , “[...] aspirava à completude, visando disciplinar todos os aspec-tos da vida humana [...]” agora deveria abrir lugar para legislações específicas, o que acarretou, num primeiro momento, aquilo que se chamou de “era da descodificação” .

Com este primeiro sinal de crise, logo também passam a ser repensadas a pró-pria noção de sujeito e de direitos personalíssimos, o que nada mais representa que uma inequívoca (re)interpretação, agora mais maleável, da dicotomia público/privado. Questiona-se não mais apenas o TER mas o SER nas relações privadas.

Como hoje sabemos, aquela artificial divisão entre direito público e direito pri-vado, passa a não mais colher êxito frente aos inequívocos e contundentes questiona-

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mentos feitos em face da base da teoria política liberal, de modo que, para fazer uso da certeira síntese de Tedeschi (2001) a distinção entre direito público e direito privado se estreitou e, em muitas questões, hoje é difícil determinar em que campo estamos. A distinção público-privado é formulada a partir da modernidade, na qual o público se vinculou ao estatal e o privado com o espaço da família e da sociedade civil, especial-mente no aspecto existencial de tutela da pessoa humana.

No limite, contudo, o que nos interessa salientar é que, como resumiu TEDESCHI, o direito privado importa ao direito constitucional porque contem concreções dos direi-tos fundamentais. Sem as regras de direito privado, estes direitos enunciados não pode-riam concretizar-se. Assim, um direito civil que protege a personalidade e a autonomia privada forma parte das condições fundamentais da ordem constitucional.

Nesse sentido, certamente será pertinente a transcrição de assertiva lapidar de Carmem Lúcia Silveira RAMOS (1998), que leciona:

[...] pode-se asseverar que os novos paradigmas, consagrados constitucionalmente, com relação à apropriação de bens e relações contratuais, funcionalizando o exercício destas atividades com um sentido social, antecedida pelo rol de direitos e garantias do cidadão, princípios categóricos, instituídos no plano individual e coletivo, para trabalhar suas dimen-sões fundamentais, afetando o direito em geral e o direito privado em particular, correspon-dem, ao menos em parte, a um reflexo da concepção da vida da sociedade, com as inspirações interdisciplinares que sofre.

Esta novel dignidade que se dá aos preceitos jusfundamentais, é sem dúvida um elemento sem o qual não há a possibilidade de se falar na escolha, por uma determinada sociedade, dos seus princípios básicos de justiça, isto é, na eficácia dos mesmos.

Por essa razão, e considerando a adequação do parágrafo único do art. 927 com uma concepção de sociedade justa, e propondo ainda que o mesmo afigura-se como verdadeiro garanter, daquelas escolhas sociais fundamentais ao longo do tempo, urge que a responsabilidade civil seja pensada, seriamente, como um elemento específico de uma determinada teoria da justiça.

3. BIBLIOGRAFIA

DE GIORGI, Rafaelle: Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador, 2v. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

PELBART, Peter Pál. O tempo não-reconhecido. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2010.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

RAMOS, Carmen Lúcia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a socie-dade sem fronteiras. In: FACHIN, Edson (Coord.). Repensandos os fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1988. pp. 3-17.

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48 temas atuais de direito

RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge: Harvard University, 2000.

SARLET, Ingo Wolfgang (org.): Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang; MONTEIRO, António Pinto; Neuer, Jörg. Direitos fun-damentais e direito privado: Uma perspectiva de direito comparado.Coimbra, Almedina, 2007.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

TEDESCHI, Sebastián Ernesto. El waterloo del código civil napoleónico: uma mirada crítica a los fundamentos del derecho privado moderno para la construcción de sus nuevos principios generales. In: COURTIS, Christian (compilador). Desde otra mi-rada: texto de teoria crítica del derecho. Buenos Aires: Eudeba, 2001, pp. 159-182.

UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficácia de los derechos fundamentales frente a par-ticulares: análisis de la jurisprudencia del tribunal constitucional. Madrid: Centro de estudios constitucionales, 1997.

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5DIREITOS PATRIMONIAIS DISPONÍVEIS

E INDISPONÍVEIS À LUZ DA LEI DA ARBITRAGEM Antonio José de Mattos Neto

SUMÁRIO: 1. Posição da questão. 2. Noção de direito subjetivo. 3. Direitos patrimoniais. 3.1. Patrimônio. 4. Direitos Patrimoniais Disponíveis. 4.1. O Objeto da Lei de Arbitragem. 5. Di-reitos Excluídos da Lei de Arbitragem. 5.1. Direitos Personalíssimos. 5.2. Direitos de Família e das Sucessões. 5.3. Bens Fora do Comércio. 5.4. Créditos da Fazenda Pública. 5.5. Direitos Metaindividuais. 5.6. Matéria Antitruste. 5.7. Alguns tipos contratuais. 5.8. Questões de Pro-cedimento de Jurisdição Voluntária. 5.9. Concurso de Credores. 5.10. Falência. 5.11. Coisa julgada. 6. À guisa de conclusão. 7. Bibliografia

1. POSIÇÃO DA QUESTÃO

Os meios alternativos de composição de litígios vêm adquirindo prestígio e rele-vância na aldeia global jurídica contemporânea.

O ordenamento jurídico nacional oferece à sociedade brasileira uma opção de justiça privada e autônoma. E isso traz uma nova feição para a cultura jurídica nacional.

A Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, ao tratar da arbitragem, burilou uma nova faceta no Direito brasileiro. Por esse viés, amoldou-se o Estado brasileiro às exi-gências da pós-modernidade. Harmoniosamente aos dias que correm, o Estado Leviatã tutelar cede lugar ao Estado de respeito à iniciativa privada jurídica, onde o poder de regrar o litígio é ofertado à comunidade para ser promovido pela própria iniciativa par-ticular, sem roubar da oficialidade o monopolístico poder jurisdicional.

A arbitragem é mais um instrumento institucionalmente legítimo à disposição dos jurisdicionados para dirimirem suas múltiplas controvérsias. Por esse viés, o poder privado transforma-se em um novo centro de decisões.

O art. 1° da Lei nº 9.307/96 restringe, como não poderia deixar de ser, aos direitos patrimoniais disponíveis a matéria a ser posta à arbitragem. Somente o que a doutrina contemporânea conceitua por direito patrimonial disponível pode ser objeto de arbi-tragem, mediação ou negociação para composição dos interesses particulares.

A doutrina e a jurisprudência vão balizar os limites conceituais insertos dentro do que venham a ser os direitos patrimoniais disponíveis.

A missão é estimulante e provocadora, à medida em que há carência de uma arre-gimentação doutrinária e/ou jurisprudencial em torno dessa conceituação.

Assim, nosso objetivo no presente trabalho é esboçar o perfil desse conceito.

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50 temas atuais de direito

2. NOÇÃO DE DIREITO SUBJETIVO

Antes, devemos gizar que o direito patrimonial disponível a que a lei se refere per-tence à categoria jurídica de direito subjetivo. Por isso, devemos iniciar nosso estudo oferecendo a noção de direito subjetivo.

Para tanto, de todo o vasto estudo que a dogmática já elaborou, iremos centrar na delimitação do conceito de direito subjetivo que nos é proposto por três correntes amplamente discutidas.

Na visão de Ihering, entende-se por direito subjetivo o interesse juridicamente protegido. Para Windscheid, é o poder ou domínio da vontade conferido pela ordem jurídica. Ambos conceitos apresentam-se incompletos, porque enfocam um único ele-mento do direito subjetivo: Ihering aponta exclusivamente o fim, sem indicar os meios para alcançá-lo; Windscheid, leva em conta os meios, desprezando o fim (GOMES, 1988, pp. 111/112).

Jellinek reuniu os dois elementos e definiu direito subjetivo como o interesse prote-gido mediante o reconhecimento do poder da vontade individual (GOMES, 1988, p.112).

Atualmente, os juristas não hesitam em emprestarem univocamente ao conceito de direito subjetivo esses dois elementos integrados por Jellinek. Nesse sentido, podemos dizer que direito subjetivo é o poder atribuído à vontade do sujeito e garantido pelo or-denamento jurídico, para satisfação de próprios interesses (TRABUCCHI, 1993, p. 45).

A pessoa tem garantido o poder de exercer o direito e fazê-lo valer contra quem o ameace ou viole. Quer dizer, incluem-se os poderes para ter, fruir e dispor os direitos e os de exigi-los contra quem os ameace ou atente por meio do direito de ação (BITTAR, 1994, p. 53).

3. DIREITOS PATRIMONIAIS

Ao lado de outras classificações, a dogmática divide os direitos subjetivos em patrimoniais e extrapatrimoniais.

O critério refere se o direito é passível, ou não, de valoração pecuniária.Os extrapatrimoniais compreendem o direito à vida, à liberdade, à integridade

física, ao nome, à honra, à intimidade, dentre outros. São direitos que protegem carac-teristicamente interesses de natureza moral, não possibilitando ao titular extração de utilidades econômicas, pelo menos, em princípio.

Os direitos extrapatrimoniais são ínsitos na essencialidade do homem e dizem respeito à condição da pessoa humana de tal ordem, que Pietro Trimarchi (1991, p. 62) os denomina simplificadamente de direitos da personalidade, envolvendo os chamados direitos da personalidade e os de família. Trabucchi (1993, p. 49) os denomina apenas de não patrimoniais.

O caráter de extrapatrimonialidade não exclui a possibilidade do titular do direito auferir vantagem econômica, se houver lesão da qual resulte dano. Nesse caso, o dano produz um direito patrimonial ao ofendido consubstanciado na indenização. A indeni-zabilidade do dano moral é matéria pacífica hodiernamente no direito brasileiro, cuja cristalização se deu mormente a partir da Constituição Federal de 88.

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Assim, um direito não patrimonial, como por exemplo, a honra do cidadão, que não tem apreciação econômica, se maculada, vai gerar direito subjetivo à indenização. Este, evidentemente, de cunho patrimonial.

Do mesmo modo, certas qualidades do indivíduo, como por exemplo, a força de trabalho individual, a competência técnica na profissão, ambas não tem valor pecuniá-rio, pelo menos imediatamente, mas sua lesão, por terceiro, gera um dano patrimonial indenizável.

Por outra via, adverte Trabucchi (1993, p. 49) que das relações jurídicas desses di-reitos, podem haver consequências econômicas (patrimoniais), como direito à sucessão e a alimentos, sem que por isso percam a sua natureza extrapatrimonial.

O prevalecente elemento moral distingue os extrapatrimoniais, dos direitos patrimo-niais que tutelam diretamente interesse econômico, avaliado em dinheiro (1993, p. 49).

Os direitos patrimoniais compreendem os direitos reais, direitos autorais e os pes-soais. Estes subdividem-se em direitos de crédito, ou obrigacionais, certos direitos de família e os de sucessões.

Todos os direitos reais são patrimoniais. Entretanto, há direitos pessoais de natu-reza extrapatrimonial: os direitos puros de família.

Os direitos autorais, ou direitos intelectuais, são relativos à obra do engenho ou invenção humanos, aos qual Orlando Gomes (1988, p. 119) frisa que se incluem em categoria a parte, não podendo ser considerados nem direitos reais nem pessoais, cons-tituindo, em verdade, um tertio genus.

Os direitos autorais agrupam os direitos produzidos pelo espírito humano: obra literária, artística, científica, criação de software.

Há, ainda, uma classe de direitos sobre coisas incorpóreas, dotados de patrimo-nialidade, mas que não se enquadra nos direitos reais, constituindo um grupo a parte e que são, dentre outros, o direito ao fundo de comércio, direito à clientela, direito ao nome comercial.

A relevância da classificação dos direitos quanto à apreciação econômica reside na condição de transmissibilidade dos direitos patrimoniais e intransmissibilidade dos extrapatrimoniais.

A transmissão permite que o direito circule economicamente nas esferas ju-rídico-patrimoniais das pessoas. O direito transmissível serve ao comércio jurídi-co. Os direitos patrimoniais, reais e pessoais, são transmissíveis por excelência. Alguns, em virtude de sua finalidade, são intransmissíveis, como os direitos reais de uso e de habitação.

Embora os direitos extrapatrimoniais não se prestarem ao comércio jurídico, por exceção, alguns direitos personalíssimo tem oferecido utilidade pecuniária ao titular, como sói acontecer com o direito à imagem, direito à voz, em que o titu-lar do direito recebe remuneração pela cessão de sua imagem ou voz para fins de publicidade

Pelo que foi exposto, verifica-se que na classificação dos direitos em patrimoniais e extrapatrimoniais subjaz o discrímen referendado no conceito que é emprestado ao patrimônio. Por isso, convém firmar a noção de patrimônio.

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52 temas atuais de direito

3.1. Patrimônio

O termo patrimônio tem diversas acepções jurídicas. Clássico é o conceito de patrimônio para Clóvis (BEVILÁQUA, 1980, p. 167):

patrimônio é a projeção econômica da personalidade civil. A utilidade desse enfoque reside na coesão entre o princípio da identidade e continuidade do patrimônio, segundo o qual pode haver modificação quantitativa patrimonial para maior ou menor, ainda as-sim, o patrimônio conserva o conceito de unidade abstrata vinculada a mesma pessoa titular (GOMES, 1988, p. 209).

Tal ponto de vista, entretanto, peca por confundir conceitos inconfundíveis: per-sonalidade e patrimônio (GOMES, 1988, p. 209).

Tem-se o patrimônio global que significa o conjunto de relações jurídicas abraçan-do direitos e deveres avaliáveis em dinheiro de que uma pessoa é titular. Sendo conjun-to de relações jurídicas, compreende coisas móveis e imóveis, corpóreas e incorpóreas, créditos, obrigações e débitos, enfim todo o cipoal de relações jurídicas que, ativa e passivamente, tenha apreciação econômica. É a atividade econômica da pessoa sob o aspecto jurídico.

Modernamente, a doutrina tem emprestado conceito técnico ao patrimônio. Nesse sentido, patrimônio é o “conjunto de bens coesos pela afetação a um fim econômico determinado” (GOMES, 1988, p. 209).

Assim, cada pessoa tem um único patrimônio. Mas este pode ser geral, cuja uni-dade responde pelo adimplemento das obrigações de seu titular, e especial, no qual o titular submete uma parte do patrimônio geral a um tratamento jurídico particular, destinando massa patrimonial para um fim específico. O titular restringe bens em bene-fício de um fim específico. Exemplos de patrimônio especial são o acervo patrimonial destinado a capitalizar uma sociedade, os bens dados em garantias reais, o imóvel clau-sulado como bem de família. Em todos esses casos há bens destacados do patrimônio e vinculados a uma destinação.

Com base nesses enunciados, formulou-se o conceito técnico de afetação patri-monial: o titular destina especificamente massa patrimonial para um fim determinado, afetando, portanto, aquele conjunto de bens. A massa de bens constitui patrimônio de afetação, distinto e separado, formando o patrimônio especial.

Inversamente, o patrimônio pode ser objeto de relação jurídica com mais de uma pessoa, como sói acontecer com a co-propriedade, com o regime da comunhão de bens.

Distingue-se, também, o patrimônio em bruto e líquido. Bruto ou ilíquido é o con-junto de direitos avaliáveis em dinheiro, pertencentes a uma pessoa, deduzidas as obri-gações. Talvez, é nessa noção de patrimônio que reveste o maior interesse jurídico, pois é ele que interessa para a função jurídica do patrimônio, a garantia geral dos credores.

Líquido, é o acervo de bens e créditos, abatidos os débitos assumidos pelo titular.O patrimônio compreende o ativo e o passivo, ou seja, crédito e débito.A noção de patrimônio envolve como visto um conteúdo de economicidade, seja

positivo ou negativo, de tal arte que até a contingência de o passivo ser maior que o ativo, não descaracteriza a natureza patrimonial dessas relações jurídicas.

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4. DIREITOS PATRIMONIAIS DISPONÍVEIS

A disponibilidade é qualidade que se insere na patrimonialidade do direito. Entretanto, nem todo direito patrimonial é direito disponível. Como frisado, patrimo-nial quer dizer apreciável pecuniariamente, mas nem tudo que representa utilidade econômica é disponível (BEVILÁQUA, 1980,171). Exemplo é o bem imóvel (patri-monial) clausulado com a inalienabilidade (indisponível).

É que o patrimônio líquido é representado pelo acervo pecuniário (ativo) abatendo-se os débitos que o oneram (passivo). E a disponibilidade é resultante da natureza essencial de pecuniaridade dos direitos patrimoniais (KROETZ, 1997, p. 96.).

Contudo, não se diga que todo direito patrimonial é disponível. Daí, então, o que é disponibilidade?

Direito disponível é o alienável, transmissível, renunciável, transacionável. A dis-ponibilidade significa que o titular do direito pode aliená-lo; transmití-lo inter vivos ou causa mortis; pode, também, renunciar ao direito; bem como, pode, ainda, o titular transigir seu direito.

A alienação importa em mudança de sujeito ativo, pois há a transmissão do direito inter vivos. E nesse caso coincide os poderes de alienação/transmissão com os de dispo-sição. Não obstante, nem sempre disposição vem significar transmissão. Por exemplo, quando o titular do direito dele abdica (abandona), há a disposição do mesmo, mas não sua transmissão, pois o direito sai do patrimônio do titular, mas não é transmitido para nenhuma outra esfera jurídico patrimonial (MIRANDA, 2000, p. 367).

Atenta Pontes de Miranda que não se deve confundir duas classes distintas: negó-cio jurídico e atos reais de disposição, pois os primeiros são direito obrigacional e os de disposição são atos reais. Por isso é que um indivíduo pode vender o mesmo bem para diversas pessoas (praticar vários negócios jurídicos), mas só transfere a coisa a um deles, que é o eficaz (MIRANDA, 2000, p. 367).

Em regra, o direito transmissível é suscetível à constrição, sendo arrestável, se-qüestrável, penhorável, hipotecável, pois há paralelismo jurídico entre os princípios da transferibilidade e da constringibilidade (MIRANDA, 2000, p. 378).

A transmissão do direito obedece ao princípio da conservação dos direitos trans-mitidos cujo conteúdo expressa significativos dogmas jurídicos consagrados desde os romanos, tais como: ninguém pode transmitir a outros mais direitos dos que tem ( Nemo plus juris ad alium transferre potest quam ipse habet ); ninguém dá o que não tem ( Nemo dat quod non habet ) (Miranda, 2000, p.371).

O adquirente tem os mesmos direitos que o transmitente e nada mais que os di-reitos a que este fazia jus. Se o transmitente cede direito que não faz parte de sua esfera jurídico-patrimonial, necessariamente ao adquirente faltará tal direito. E as su-cessivas transmissões a non domino perpetuam a ausência desse direito aos sucessivos adquirentes.

Em razão do princípio essencial de Direito individualista e liberal que abraça o sistema jurídico romanista ocidental, dentre os quais o brasileiro, reconhece-se a livre transmissibilidade, alienabilidade e cessibilidade dos direitos.

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54 temas atuais de direito

Contudo, o titular do direito pode estar sujeito a limitações de dispor e a restri-ções de dispor. Como exemplo de limitações é o caso do menor de dezesseis anos; e de restrições é o dono de prédio com a cláusula de inalienabilidade.

As regras jurídicas concernentes a atos de disposição pelo não-titular do direito, acima ditadas, aplicam-se aos atos de disposição praticados pelo titular do direito se seu poder de dispor é limitado, se a limitação tem por fim a tutela de outrem, ou se o ato de disposição é ratificável (como no caso da ratificação do ato praticado por menor de dezesseis anos).

Após tais considerações vejamos a matéria aplicada à lei de arbitragem.

4.1. O Objeto da Lei de Arbitragem

São os direitos patrimoniais disponíveis o objeto litigioso no juízo arbitral.Veja-se que o legislador circunscreveu o direito a ser posto em juízo privado não

apenas pela sua patrimonialidade, mas concentrou ainda mais o universo, limitando aos disponíveis.

Salta aos olhos que o legislador teve preocupação de restringir a direitos nego-ciáveis. Melhor dizendo, que podem ser objeto de negócio jurídico, posto que a arbi-tragem, ou convenção arbitral, é um contrato privado: é negócio jurídico e, como tal, constitui-se em declarações de vontade endereçadas ao alcance de efeitos previstos no ordenamento jurídico. Os resultados negociais são desejados e queridos pelas partes convenentes.

As partes, de comum acordo, ditam cláusula visando certo fim, com fundamento na lei, e, assim, criando direito subjetivo e gerando, por outra via, obrigações. Uma des-sas está a de cumprir o que foi entabulado, não podendo voltar atrás o que foi decidido pelo árbitro, designado por ato livre de vontade das partes.

O poder de auto-regulação dos interesses que está contido na enunciação da lei denuncia que a arbitragem atua no âmbito da autonomia privada. Mas esta tem de ser conformada ao sistema jurídico, respeitando a lei, a ordem pública.

O juízo arbitral é negócio jurídico processual (FURTADO, BULOS, 1997, p. 27).Nesse âmbito de atuação, a arbitragem serve para dirimir conflitos de interesses

envolvendo direitos obrigacionais, de índole privada, os direitos intelectuais (artísticos, autorais), direitos industriais, direitos reais, como posse, propriedade, vizinhança, usu-fruto, etc, contanto que, uns e outros, sejam disponíveis.

Sua área de atuação, por excelência, reside nos negócios mercantis e internacio-nais, alcançando todos os direitos disponíveis dessas naturezas.

O comércio internacional representado pela compra e venda de mercadorias, pro-dutos agrícolas, matéria-prima, transferência de tecnologia, investimentos, tem presti-giado o juízo arbitral, mormente nos dias de hoje com a globalização e a formação de grandes blocos econômicos supranacionais,

Devido a lex mercatória ser o conjunto de regras desvinculadas de qualquer fonte ou ordenamento jurídico nacional, divorciado de um sistema legal impositivo, sua uti-lização facilita, com vantagens, a solução de controvérsias dessa natureza.

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Serve, também, o juízo arbitral, para solucionar lide de natureza trabalhista.Nesse caso, há de se distinguir quando envolve conflito trabalhista de relação in-

dividual e coletiva. Quanto ao primeiro há de ser discutido o aspecto da disponibilidade ou indisponibilidade do direito do trabalhador. É certo que os direitos trabalhistas são indisponíveis, na medida em que o empregado não pode renunciá-los. Por outro lado, a autocomposição é muito utilizada, aparecendo à transação como meio viável para solucionar os conflitos.

Milita a presunção juris tantum de vício de vontade do empregado no contrato individual de trabalho clausulado com a arbitragem para dirimir os conflitos que por-ventura venham a surgir naquele contrato. Não é dizer que seja ilegal tal fórmula de solução de conflito individual, mas somente deve ser aceita excepcionalmente.

E apenas o juiz do trabalho é quem tem legitimidade constitucional para aquilatar a excepcionalidade. Os fatores que devem ser analisados individual e particularmente, caso a caso, para identificar a manifestação viciada de vontade, são as condições pes-soais do empregado, tais como seu nível cultural, o grau de escolaridade, a atividade profissional exercida, a idade, a experiência no ramo, etc.

Quanto aos litígios trabalhistas de natureza coletiva, não pairam maiores dúvidas quanto à admissibilidade da arbitragem como mecanismo de solução conflitual.1.= A Constituição Federal em seu art. 114 e §§ contempla tal hipótese de composição, pois as partes litigantes, sponte sua, podem louvar-se de árbitros.

Devemos aludir que a crescente flexibilização das normas trabalhistas ensejam que esta forma de composição de litígio seja cada vez mais utilizada. E no Direito brasileiro, inexistindo lei específica de aplicação da arbitragem em sede de conflitos trabalhistas, deve ser aplicada a Lei nº 9.307/96, que é lei geral de arbitragem, lem-brando que o § 2º do art. 2º da lei assegura respeito à ordem pública, além de observar o princípio da norma mais benéfica, a regra do favor laboris, cujos cânones balizam a interpretação da matéria ao decidir um caso concreto.

A justiça privada pela arbitragem é também possível nos quadros do Código de Defesa do Consumidor. A lei do consumidor, em seu art. 51, VII, considera nula de pleno direito a cláusula contratual relativa a fornecimento de produto ou serviço que determine a utilização compulsória de arbitragem.

Veja-se que nulifica a lei a utilização compulsória da arbitragem. A dicção legal é clara e indene de dúvidas: a compulsoriedade é que vicia a estipulação. Isto significa dizer que se as partes contratantes – fornecedor e consumidor – por livre e espontânea vontade pretenderem ver a controvérsia dirimida pela arbitragem, nada há de ilegal ou abusivo.

Em quaisquer das situações jurídicas de Abrangência legal da convenção arbitral, sempre as partes devem obedecer às normas de ordem pública que, por serem cogente, não admitem que a vontade individual as derrogue.2

1 Georgenor de Sousa Franco Filho classifica de heterocompositivo ( e não autocompositivo) tal fórmula de dirimir conflito.( FRANCO FILHO, 1997, p. 9)

2 Sobre as matérias de ordem pública como objeto de arbitragem ver KROETZ, 1997, pp. 99/102

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56 temas atuais de direito

De modo genérico, para traçarmos uma linha de critério, podemos dizer que a lei da arbitragem exclui as relações que não se submetem à regulação dos interesses privados.

A natureza patrimonial e disponível do direito que atende a lei deixa fora de sua aplicação os chamados direitos indisponíveis, que é objeto de análise a seguir feita.

5. DIREITOS EXCLUÍDOS DA LEI DE ARBITRAGEM

Não são objeto do juízo arbitral não apenas os direitos extrapatrimoniais, mas também os patrimoniais indisponíveis.

Como a dicção legal expressa que podem ser objeto de arbitragem apenas os di-reitos patrimoniais disponíveis, por exclusão lógica não estão neste rol tanto os direitos extrapatrimoniais como os patrimoniais indisponíveis

Tentaremos arregimentá-los sucintamente.

5.1. Direitos Personalíssimos

Sob tal denominação, compreendem-se os direitos considerados essenciais à con-dição humana.

Estes direitos, de fato, não se prestam à avaliação pecuniária, sendo, pois extrapa-trimoniais, além de intransmissíveis, pois inerentes à natureza própria de homem, como o direito à vida, à liberdade, integridade física, integridade intelectual, não podem ser transferidos a outrem.

Embora extrapatrimoniais e intransmissíveis, os direitos da personalidade, con-forme já exposto alhures, quando são ofendidos ilicitamente geram direito à indeniza-ção por dano extrapatrimonial, este inegavelmente sendo patrimonial e transmissível.

Entretanto, e aqui deve ser observada a questão com acuidade, tal direito à indeni-zação não pode ser objeto de solução arbitral (justiça privada), porquanto a lide vai exi-gir que o Estado-juiz prolate sentença condenatória em desfavor do ofensor, cujo poder é de competência exclusiva da jurisdição estatal. Atente-se, ainda, que o juiz togado vai se valer do arbitramento para ditar o quantum indenizatório, mas a solução obriga-toriamente há de ser determinada pelo caráter da oficialidade jurisdicional do Estado.

Ressalte-se, ainda, que alguns dos direitos personalíssimos podem ser objetos de negócio jurídico. É que a imagem, a voz, o nome, o pseudônimo, as criações intelectu-ais podem ser negociadas no comércio jurídico. Nessas específicas situações, extrai-se dos direitos um filamento de disponíbilidade, sem, contudo, perder sua intransmissibi-lidade, pois intransmissíveis perpetuamente o são.

5.2. Direitos de Família e das Sucessões

São as relações jurídicas de união entre homem e mulher, pai ou mãe, ou compa-nheiros, e filhos, ou de parentesco; outra parte, chamada direito protetivo, concerne à tutela e à curatela.

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Nos direitos de família integram as questões de estado, de capacidade, pátrio--poder (poder-dever funcional dos pais), casamento, separação, divórcio, questões de filiação, alimentos, enfim tudo de relação jurídica que envolva laços de família.

Os direitos de família, assumindo tais contornos inatos à condição pessoal de relacionamento humano, fogem, evidentemente, do caráter tanto patrimonial quanto disponível que exige a lei de arbitragem para atuar.

O direito sucessório, por evidente motivo de ordem pública, dentro das relações de Direito Civil, também não pode ser objeto de convenção arbitral. Essas normas são de ordem pública e aderem à natureza do direito cujo poder exclusivo para solucionar é o da jurisdição do juiz togado, posto que o inventário e a partilham tem procedimentos judiciais (art. 1. 770, Código Civil).

5.3. Bens Fora do Comércio

Incluem-se nessa categoria os bens que não são objeto de negócio jurídico e, por isso, estão fora da circulação econômica de riquezas. São bens que não têm valor de troca no mercado.

No dizer de Clóvis (1980, p. 208) “coisas que estão fora do comércio são aquelas sobre as quais os particulares não podem exercer direito exclusivo ou que não podem alienar”; estão fora do comércio jurídico por sua própria natureza ou por disposição de lei. São bens inalienáveis e inapropriáveis pelo homem.

Quanto à primeira classe de bens fora do comércio – os que não podem ser objeto de apropriação dos particulares – compreendem neste rol os bens de uso ilimitado, inexaurível como o ar, a luz, o vento, a água do mar. Estão fora do comércio por sua própria natureza. São coisas comuns a todos: res communes omnium, e existem em quantidade superior às necessidades humanas.

Entretanto, há bens desse gênero que são raros e propiciam utilidades econômicas, como as águas térmicas, as areias monazíticas; em outras circunstâncias o homem en-genhosamente industrializa rareando o bem, como o ar comprimido, o gás em botijão, o oxigênio engarrafado, tornando-se objeto de direito, passando a ter valor econômico. Ou seja, passam a ter valor de troca e se tornam apropriáveis alienáveis.

Já os bens, extra commercium por mandamento legal são os declarados inaliená-veis por disposição de lei.

Nesses casos, diz-se inalienabilidade real, objetiva, para diferençar da inalienabili-dade subjetiva ou pessoal que é a situação em que o bem transitoriamente se torna ina-lienável para determinada pessoa, porque o indivíduo está em posição que juridicamente não pode negociar o bem, como, por exemplo, o tutor em relação aos bens do pupilo.

Há coisas que não integram o patrimônio de pessoas, mas podem integrar. São as res nullius e as res derelictae.

Res nullius são os bens não pertencentes a patrimônio algum, como os animais bravios, os peixes no mar. Podem vir a pertencer a alguém.

Res derelictae são as coisas abandonadas, as que o dono renunciou voluntariamente à propriedade e não se confundem com as perdidas, pois estas continuam a ter dono.

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58 temas atuais de direito

Por disposição de lei estão fora do comércio jurídico os bens públicos, assim os triplamente classificados no artigo 66 do Código Civil. Caracterizam-se por serem inalie-náveis, impenhoráveis e imprescritíveis. Os bens de uso comum do povo e os de uso es-pecial são incontestavelmente inalienáveis, mas a condição de inalienabilidade dos bens dominiais pode ser levantada por lei, subordinando à disposições legais específicas.

A inalienabilidade pode ser também imposta pela vontade humana, em razão de atribuir a lei este efeito à declaração do agente que assim clausula o bem, temporária ou vitaliciamente, por ato inter vivos (doação, bem de família) ou causa mortis (testamen-to). A inalienabilidade voluntária ocorre somente nos casos e na forma que a lei prevê, condicionando a vontade do indivíduo às situações previstas legalmente.

A inalienabilidade voluntária por instituição de bem de família é prevista no Código Civil e ocorre quando o agente tem vários imóveis e institui bem de família sobre um deles e sua inalienabilidade só se extingue quando ao ato de alienação con-sentirem os interessados e/ou representantes legais (Código Civil, art. 72).

Continua a ter validade jurídica a instituição de bem de família prevista no direito codificado, a despeito da edição da Lei nº 8.009/90, de cunho social, que veio afastar de execução por dívidas o imóvel que guarnece a residência familiar. A impenhorabilidade do imóvel residencial familiar nos termos da lei especial não transforma dito bem fami-liar em indisponível. O único imóvel que abriga a família é impenhorável nas hipóteses previstas na Lei nº 8.009/90, mas pode ser alienado livremente. A restrição, portanto, circunscreve-se apenas à impenhorabilidade.

A inalienabilidade significa indisponibilidade, porquanto não pode o proprietário praticar atos voluntários de disposição, assim entendidos a venda, a doação, a permuta, a dação em pagamento. A cláusula de inalienabilidade opera efeitos de imprescritibili-dade, incomunicabilidade e impenhorabilidade sobre o bem.

São também indisponíveis, porque fora da circulação econômico-jurídica, os bens dotais (Código Civil, arts. 293 e 295), os de menores (Código Civil, art.386), as terras habitadas pelos silvícolas (Lei nº 6.001/73, arts. 26 a 31), dentre outras hipóteses de indisponibilidade previstas em lei específica.

5.4. Créditos da Fazenda Pública

As pessoas jurídicas de direito público podem se valer da arbitragem como meio de solucionar seus conflitos, desde que a relação jurídica tenha natureza contratual privada, pois neste caso a lei admite transação. Nessas condições, o Estado funciona como Estado-empresário, no mundo dos negócios internacionais de natureza comercial. Exemplo desses negócios são contratos de empréstimo em moeda e de financiamento de importações, seja na qualidade de devedor, seja na qualidade de fiador da operação, firmado entre o Brasil e instituições estrangeiras, particulares ou governamentais, ou internacionais (Ex. BIRD, FMI).

Nada obsta, portanto, que União, Estados, Municípios ou Autarquias integrem uma relação arbitral, por inexistir qualquer impedimento constitucional, ressalvando--se, apenas, que o objeto da lide há de ser suscetível de transação e confissão.

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Se é possível os entes públicos serem partes contratantes no juízo arbitral para ver solucionada lide contratual de índole privada, no entanto os direitos creditórios tributá-rios, fiscais, e, em geral, todas aquelas de interesses à Fazenda Pública estão excluídos do raio de ação da lei de arbitragem.

Inegavelmente, a relação jurídica tributária tem caráter patrimonial (obrigacional) por referir a crédito/débito, mas a soberania estatal dita seu poder de império fazendo com que o crédito dessa relação se torne indisponível.

5.5. Direitos Metaindividuais

Os direitos metaindividuais, assim reconhecidos os direitos difusos e coletivos, apresentam caráter de indisponibilidade.

O Código de Defesa do Consumidor enuncia que difusos são os direitos “transindi-viduais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato” (art.81, § único, I); já interesses coletivos, são “os transindi-viduais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base” (art. 81, § único, II). A transindividualidade conduz à indivisibilidade, caracterizando esses direitos.

Em virtude desse tipo de relação jurídica material, tais direitos são indisponíveis e, consequentemente, insuscetível de convenção arbitral.

Já os direitos individuais homogêneos, em sendo divisíveis (porque individuais), quando patrimoniais, em princípio são disponíveis, e se prestam à arbitragem.

5.6. Matéria Antitruste

Toda matéria que diz respeito à lei antitruste, Lei nº 8.884, de 11.06.94, em que pese tratar de relação jurídica de direito patrimonial disponível, não pode ser objeto de juízo arbitral.

O assunto é de ordem pública por regular a economia de mercado e os abusos do poder econômico, tais como dumping, concorrência desleal, monopólio, oligopólio, por regular o mercado na economia da população. Em face desse caráter, a matéria é insuscetível de justiça privada.

5.7. Alguns tipos contratuais

A convenção arbitral é retrato do incremento da autonomia da vontade no mun-do contemporâneo. O Estado contemporâneo tem intervindo menos na liberdade contratual.

Não obstante, em alguns negócios jurídicos, o Estado intervém para minorar os efeitos da desigualdade entre as partes contratantes. Todos os casos em que há a inter-venção estatal o motivo exigente é a ordem pública.

Assim, nos contratos agrários (arrendamento, parceria e outros) regulados pela Lei 4.505/64 e Decreto-lei, 59.566/66 há normas que expressamente ditam ser alguns

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60 temas atuais de direito

direitos irrenunciáveis, impostergáveis (ex. prazo contratual mínimo de três anos), pelo que, esses assuntos, não são objeto do juízo arbitral.

Do mesmo modo, à autonomia privada resta pouco a ser negociado nas normas que versam sobre locação residencial no Brasil. Os casos de retomada do imóvel resi-dencial é matéria regulada pela Lei nº 8.245/91 e não admitem o juízo arbitral.

Também quanto aos contratos de representação comercial, a Lei nº 8.420/94 esta-belece direitos inegociáveis ao representado, tal como, por exemplo, o montante míni-mo na rescisão contratual que não pode ser inferior a 1/12 avos do total de distribuição auferida pelo representante durante o tempo que exerceu a representação.

Nesses casos, os árbitros têm liberdade para solucionar somente ponto não consi-derado por lei como intransigíveis, inegociáveis.

5.8. Questões de Procedimento de Jurisdição Voluntária

Estão igualmente fora do alcance da Lei nº 9.307/96 todos os casos que se sub-metem ao procedimento especial de jurisdição voluntária elencados no CPC, tendo em vista os interesses de ordem pública inseridos nestas questões.

5.9. Concurso de Credores

Na insolvência do devedor civil, o concurso de credores, contemplado no Código Civil, artigos 1.554 a 1570, embora versem sobre direitos patrimoniais disponíveis, por imposição de lei, compete exclusivamente ao juiz de direito processar e julgar o feito de insolvência (Código de Processo Civil, art. 92, I).

5.10. Falência

Em caso de falência, o juízo universal imposto no art. 7º do Decreto-lei 7.661/45, também confere ao juiz togado a competência exclusiva e absoluta de processar e julgar o processo falimentar contra o devedor comerciante insolvente.

5.11. Coisa Julgada

As questões já apreciadas definitivamente pela jurisdição estatal, que assumem a natureza de coisa julgada, não podem ser objeto de nova apreciação em sede de juízo privado.

6. A GUISA DE CONCLUSÃO

O espírito da Lei nº 9.307/96 é indene de dúvida, promover a paz social, por meio da composição alternativa de litígio, desafogando o Poder Judiciário.

Tal forma de solução de controvérsia está consentânea com os princípios e modelo atual de Estado, em que o cidadão é o centro dos interesses da sociedade e, conseguin-

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temente, seu voluntarismo passa a ser elemento político dentro de políticas públicas de soluções de conflitos.

A autonomia de vontade está limitada pelo sistema jurídico, quer dizer, pelas leis, ordem pública, costume, princípios gerais de direito. Nesse diapasão, somente os di-reitos patrimoniais disponíveis preenchem o conteúdo do objeto passível de justiça arbitral. A lei, sábia, limitou aos direitos de interesses privados a composição pelo juízo da arbitragem.

E tal modelo de pacificação social está avançando na prática da sociedade bra-sileira. Paulatinamente, o cidadão está depositando credibilidade na arbitragem, de tal sorte que os segmentos institucionais brasileiros estão criando instâncias, órgãos, comissões arbitrais e pondo à disposição da população como fórmula alternativa para compor a lide.

A progressiva educação do povo brasileiro ao juízo arbitral é mecanismo que ten-de a promover o desenvolvimento sócio-econômico da nação.

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6DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE:

PROPONDO UMA CONCEPÇÃO QUE RECONHEÇA O INDIVÍDUO COMO SEU DESTINATÁRIO

José Claudio Monteiro de Brito Filho

SUMÁRIO: 1. Contextualizando a discussão. 2. O direito fundamental à saúde como um direito dos indivíduos, a partir de uma concepção teórica que reconhece sua jusfundamentalidade. 2.1. O direito fundamental à saúde como um direito dos indivíduos. 2.2. O liberalismo de princípios de Rawls como concepção teórica suficiente para sustentar o direito fundamental dos indiví-duos à saúde. 3. Considerações finais.

1. CONTEXTUALIZANDO A DISCUSSÃO

O direito do ser humano à saúde é tema que tem ocupado minhas reflexões já há algum tempo, especialmente pela natureza de alguns argumentos que são apresentados para negar à pessoa o direito de viver – melhor seria dizer, sobreviver – em condições que lhe garanta exercitar suas potencialidades, dando curso às ações necessárias para o cumprimento de seu plano de vida.

De fato, inúmeras razões têm sido apresentadas para justificar essa negativa, desde o argumento de que é preciso compatibilizar as necessidades das pessoas à capacidade do Estado de prestar os serviços necessários, até chegar à alegação de que o direito à saúde é um direito social, não devendo ser entendido como configurando um direito subjetivo de índole individual.

Nesse sentido, por exemplo, Scaff que, tratando dos recursos para o financia-mento dos direitos sociais, primeiro argumento acima indicado, afirma:

Ocorre que os recursos são escassos e as necessidades infinitas. Como o sistema financeiro é um sistema de vasos comunicantes, para se gastar de um lado precisa-se retirar dinheiro de outro. Assim, seguramente, mais verbas para o ensino fundamental pode implicar em menos verbas para o ensino superior; e a mesma disputa financeira pode ocorrer no custeio da saúde pública. Nestes casos, a discricionariedade do legislador está presente. (destaque do autor).1

1 SCAFF, Fernando Facury. A efetivação dos direitos sociais no Brasil: garantias constitucionais de financiamento e judicialização. In SCAFF, Fernando Facury, ROMBOLI, Roberto, e REVENGA, Miguel (Coord.). A eficácia dos direitos sociais. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 29.

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64 temas atuais de direito

Outro que caminha no mesmo sentido é Amaral, para quem:

Administrar, em termos de saúde, é gerir recursos limitados para atender necessidades ilimita-das. As necessidades são ilimitadas porque a existência humana é limitada, assim, a luta pela saúde é, em última instância, a luta contra o inexorável.2

Voltando a Scaff, agora em relação ao último argumento, leciona o autor:

É nítido que este preceito determina um direito à saúde através de “políticas sociais e econô-micas”, porém a interpretação que vem sendo dada a este preceito é a de que este é um direito individual, que pode ser gozado diretamente por cada indivíduo, e não através da implemen-tação de uma política pública. Aprisiona-se o interesse social e concede-se realce ao direito individual. (destaques todos do autor).3

No mesmo sentido, mas salientando uma ação que “transcenda” as demandas in-dividuais, é o pensamento de Maués, que defende que pode o Judiciário atuar, desde que não respalde, por exemplo, “tratamentos não previstos oficialmente”, cabendo-lhe colaborar “com a distribuição mais equitativa dos bens relacionados à saúde”. Para esse autor, fica claro, o papel do Judiciário nas questões envolvendo o direito à saúde deveria estar voltado para que a discussão a respeito se dê, prioritariamente, no que chama de “campo por excelência” para as decisões em matéria de saúde, que é o “das leis orçamentárias”.4

Outro que se posiciona de forma semelhante é o já citado Amaral, que postula no sentido de que o Judiciário deve decidir para além da adjudicação em favor do autor envolvido diretamente no feito, impondo obrigações, “dentro de prazos e balizas postas [...] como técnica de solução”.5

Respeitando a honestidade intelectual dos que defendem essas posições, penso que elas partem de premissas que não são as mais adequadas, embora aparentemente sejam corretas, chegando, como era de se esperar, a conclusões que não são as que fa-vorecem o sujeito protegido no caso dessas normas, que é o ser humano.

2 AMARAL, Gustavo. Saúde direito de todos, saúde direito de cada um: reflexões para a transição da práxis judiciária. In NOBRE, Milton Augusto de Brito e SILVA, Ricardo Augusto Dias da (Coord.). O CNJ e os desafios da efetivação do direito à saúde. Belo Horizonte: Fórum, p. 92.

3 SCAFF, Fernando Facury. A efetivação dos direitos sociais no Brasil: garantias constitucionais de financiamento e judicialização. In SCAFF, Fernando Facury, ROMBOLI, Roberto, e REVENGA, Miguel (Coord.). A eficácia dos direitos sociais. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 30.

4 MAUÉS, Antonio Moreira. Problemas da judicialização do direito à saúde no Brasil. In SCAFF, Fernando Facury, ROMBOLI, Roberto, e REVENGA, Miguel (Coord.). A eficácia dos direitos so-ciais. São Paulo: Quartier Latin, 2010, pp. 270-271.

5 AMARAL, Gustavo. Saúde direito de todos, saúde direito de cada um: reflexões para a transi-ção da práxis judiciária. In NOBRE, Milton Augusto de Brito e SILVA, Ricardo Augusto Dias da (Coord.). O CNJ e os desafios da efetivação do direito à saúde. Belo Horizonte: Fórum, pp. 111-112.

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A esse respeito, e de forma genérica, ou seja, para os direitos sociais como um todo, já havia, em 2008, publicado texto denominado Direitos fundamentais sociais: realização e atuação do Poder Judiciário, nele concluindo o seguinte:

... de pouco adianta consolidar a idéia de que há direitos mínimos garantidos a todos os seres humanos se ficarmos, sempre, postergando sua realização.Argumentos contrários, com aparência de legalidade e até de bom-senso, sempre existirão. O que todos precisamos decidir é se vamos ceder a esses argumentos, fazendo da vontade da coletividade e da Constituição letras mortas, ou se vamos afastar esses argumentos contrários e materializar, de fato, o bem-comum.De minha parte, penso que tempo é de praticar todos os atos necessários para que os direitos sejam concedidos, sem exceções, e sem condicionantes. Já é hora de todos termos o mínimo.6

Nesse texto, escrito quatro anos atrás, defendi, como pode ser depreendido da transcrição acima, a plena realização dos direitos sociais, a partir da ideia de serem estes direitos componentes do mínimo necessário para o respeito à dignidade do ser humano,7 não fazendo sentido reconhecer a fundamentalidade de direitos se eles não serão respeitados no patamar adequado.

Agora, focando especificamente no direito à saúde, pretendo discutir, de forma mais restrita, a questão da realização dos direitos sociais em dois aspectos: 1) a reali-zação do direito que, de fato, consiga suprir as necessidades do real destinatário; 2) a concepção teórica que melhor justifique a realização do direito.

A respeito dessa discussão em espaço mais restrito, devo, por uma questão de honestidade, dizer que não é só a importância do tema que me motiva. Tanto quanto isso, o fato de ter passado, três anos atrás, pela experiência de necessitar, por período razoável de tempo, cuidados médicos intensivos e complexos, além de ter convivido com muitas pessoas nas mesmas condições, fez-me ver o acerto das posições que eu, até então, defendia como expectador, e não como participante.8

6 Revista do TRT da 8ª Região – Suplemento Especial Comemorativo, Belém, v. 41, nº 81, pp. 77-87, Jul./Dez./2008, p. 87.

7 Para ver a relação direta entre a dignidade da pessoa humana ver capítulo que escrevi, denominado Direitos humanos: algumas questões recorrentes: em busca de uma classificação jurídica, constante de livro coordenado por João Carlos de Carvalho Rocha e outros (Direitos humanos: desafios huma-nitários contemporâneos: 10 anos do Estatuto dos Refugiados [Lei nº 9474 de 22 de julho de 1997]. Belo horizonte: Del Rey, 2008), e que se encontra, nessa obra, pp. 29-43.

8 Um exemplo, apenas, para ver, desde logo, a realidade do que defenderei mais adiante, no sentido de que, ao final, limitar o Estado a prestação de seus serviços de saúde em geral, é prejudicar os mais necessitados: no período em que permaneci internado no INCOR/SP, em 2010, um hospital que presta serviços de excelência, mas que é público, conheci diversas pessoas que – usando aqui as pa-lavras ditas por elas mesmas –, mal ganhavam para sobreviver, e que tinham cardiopatia semelhante à minha, considerada grave. Sabendo o custo dos medicamentos e da fisioterapia indispensáveis no período posterior à internação, de custo alto para mim, mesmo membro do Ministério Público e professor, e de desembolso, do ponto de vista financeiro, provavelmente impossível para elas, fico pensando como hoje sobrevivem, se é que ainda sobrevivem.

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66 temas atuais de direito

Tratando-se de um breve ensaio, registro que, é possível que as questões não pos-sam ser tratadas de forma completa. Contento-me, todavia, em ao menos enunciar as questões principais para esse debate.

2. O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE COMO UM DIREITO DOS INDI-VÍDUOS, A PARTIR DE UMA CONCEPÇÃO TEÓRICA QUE RECONHECE SUA JUSFUNDAMENTALIDADE

Os dois objetivos acima indicados estão, não somente pelo tema comum, in-terligados. É que é natural, em uma concepção de Direitos Humanos e de Direitos Fundamentais, que a pessoa humana seja considerada também em uma perspectiva individual, sob pena de ser esquecida a razão de ser do reconhecimento de um mínimo de direitos ao ser humano, que é proporcionar a cada pessoa o indispensável para que ela possa viver com dignidade.

E há, penso, uma concepção teórica que permite acolher essa ideia de forma natu-ral, e que se vem convencionando chamar de liberalismo de princípios.

O tratamento que darei ao tema, entretanto, impõe, por uma questão somente ló-gica, o tratamento em separado, e na sequência que me parece ser a mais adequada.

2.1. O direito fundamental à saúde como um direito dos indivíduos

Penso que, aqui, a primeira questão a ser tratada diz respeito ao fato de o direito à saúde ser indicado, no texto constitucional brasileiro, como um direito social.

É certo que o artigo 6º, da Constituição da República prescreve, dentre os direitos sociais, a saúde, o que relaciona, de imediato, este direito a toda a coletividade, sendo, pelo que se depreende a partir do artigo 196, ainda do texto constitucional, esta a ótica preferencial, pela ênfase que é emprestada às políticas sociais e econômicas para a prevenção dos riscos da doença e para sua promoção, proteção e recuperação.

Isso significa que é dever, especialmente, do Estado, adotar as medidas necessá-rias para a preservação da saúde de todos os integrantes da coletividade.

Ocorre que, é no mínimo incorreto entender o direito à saúde somente sob essa ótica. É que, do ponto de vista das pessoas, a saúde é, claramente, uma questão que envolve cada um dos indivíduos, não sendo possível raciocinar apenas pelo prisma coletivo.

Pensar diferente é imaginar que o ser humano, em relação ao direito à saúde, é somente uma parte de um todo, e que basta uma política geral para que o direito seja preservado, como se os problemas de saúde não se manifestassem de maneira indivi-dualizada em cada pessoa; como se as particularidades dos indivíduos não os levassem a ter ou não determinados agravos à sua perfeita condição física e mental; como se as necessidades de todos fossem sempre as mesmas. É óbvio que não é assim.

Por esse motivo, não obstante deva o Estado planejar e executar serviços que promovam, protejam e recuperem a saúde das pessoas, concretamente cada pessoa es-tabelecerá com esse bem da vida uma relação de caráter individual.

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As políticas gerais, então, não desobrigam o Estado de se relacionar, nas medidas das necessidades das pessoas, com cada um dos indivíduos, a partir de demandas con-cretas para a preservação de sua saúde.

Assim é que, ao lado do interesse de toda a coletividade de ter o Estado realizando todas as ações necessárias para a preservação da saúde de todos, há o interesse de cada indivíduo de ter a sua própria saúde garantida, por meio das ações convenientes para o seu caso concreto.

Nesse sentido é o que afirma Sarlet:

... o que satisfaz o mínimo existencial guarda relação com necessidades físicas e psíquicas que, embora comuns às pessoas em geral, não podem levar a uma padronização excludente, pois o que o direito à saúde assegura – mesmo no campo dos assim designados direitos deri-vados a prestações (!!!), não é necessariamente o direito ao tratamento limitado a determinado medicamento ou procedimento previamente eleito por essa mesma política, mas sim, o direito ao tratamento para a doença ...9

É por isso que o direito à saúde constitui, sim, um direito subjetivo de cada indivíduo de exigir do Estado as medidas específicas para a preservação de sua saúde, e não somente aquelas que o Estado pretender prestar.10

A respeito do assunto, Bandeira de Mello, tratando genericamente do direito sub-jetivo do administrado em relação ao Poder Público, afirma que este existe quando:

a) a ruptura da legalidade cause ao administrado um agravo pessoal do qual estaria livre se fosse mantida íntegra a ordem jurídica oub) lhe seja subtraída uma vantagem a que acederia ou que pretenderia aceder nos termos da lei e que pessoalmente desfrutaria ou faria jus a disputá-la se não houvesse ruptura da legalidade, nada importando que a ilegalidade argüida alcance a um ou a um conjunto de indivíduos conjuntamente afetados, por se encontrarem na mesma situação objetiva e abstrata. (desta-que do autor).11

E mais adiante, o mesmo autor registra que, se não houvesse a possibilidade de se fazer a correção, pela via judicial, das violações aos direitos das pessoas, os princípios da legalidade e da isonomia de pouco valeriam.12

9 SARLET, Ingo Wolfgang. A titularidade simultaneamente individual e transindividual dos direitos sociais analisada à luz do exemplo do direito à proteção e promoção da saúde. In NOBRE, Milton Augusto de Brito e SILVA, Ricardo Augusto Dias da (Coord.). O CNJ e os desafios da efetivação do direito à saúde. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 141.

10 Defender que caiba ao Estado determinar onde e como vai atuar, no caso dos direitos fundamentais sociais – previstos na Constituição da República, e com a indicação de que é do ente público, em seus diversos níveis, a obrigação primeira de proporcioná-los –, é desvirtuar, senão aniquilar, a ideia de que, nestes casos, o Estado tem de ser visto como um prestador de serviços, e que não tem sua existência justificada senão para prestar serviços públicos essenciais à comunidade.

11 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Eficácia das normas constitucionais e direitos sociais. 1ed, 3ª tiragem. São Paulo; Malheiros Editores, 2011. pp. 43-44.

12 Ibidem, p. 46.

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68 temas atuais de direito

Já Sarlet, tratando especificamente do direito fundamental à saúde, embora afirme a preferência pela tutela coletiva, do ponto de vista dos objetivos que podem ser alcan-çados, deixa claro que há uma titularidade – “no que diz com a condição de sujeito de direitos subjetivos” – ao mesmo tempo individual e transindividual.13

De outro lado, sem fazer distinções, mas propondo uma busca mais intensa da tutela jurisdicional, tanto no plano individual como no coletivo, está Piovesan (2010, p. 69), que entende que,

É necessário [...] avançar em estratégias de litigância no âmbito nacional, que otimizem a justiciabilidade e a exigibilidade dos direitos econômicos e sociais, como verdadeiros direitos públicos subjetivos, por meio do empowerment da sociedade civil e de seu ativo e criativo protagonismo.14

No plano jurisprudencial, observa-se uma tendência dos tribunais, a começar do Supremo Tribunal Federal (STF), de reconhecer o direito de as pessoas pleitearem, in-dividualmente, em juízo, as prestações que entendem devidas pelo Estado em matéria de direito à saúde, tendência que, penso, deve ser ampliada cada vez mais.15

Cumpre registrar que, reconhecer o direito individual de pleitear o direito funda-mental à saúde contra o Estado em juízo, não é, ao contrário do que por vezes é afirma-do, uma visão elitizante do direito à saúde, no sentido de que, assim entender favorece os com mais recursos, e que podem mais facilmente demandar em juízo. Pelo contrário, favorece os que têm menos e, portanto, não podem suportar, ao menos no total, o custo da preservação ou da restauração de sua saúde.

A propósito, é preciso observar que, nada há de incorreto em discutir, judicial-mente, questões na esfera individual; afinal é, ao fim e ao cabo, o indivíduo que será beneficiado ou prejudicado com as medidas do governo. Além do mais, as ações co-letivas nem sempre serão hábeis para prevenir ou reparar todas as lesões, pois, podem investir contra situações gerais, mas, dificilmente serão suficientes para reparar todas as lesões causadas a cada um dos indivíduos, e, muito menos serão hábeis em casos de urgência.16

13 SARLET, Ingo Wolfgang. A titularidade simultaneamente individual e transindividual dos direitos sociais analisada à luz do exemplo do direito à proteção e promoção da saúde. In NOBRE, Milton Augusto de Brito e SILVA, Ricardo Augusto Dias da (Coord.). O CNJ e os desafios da efetivação do direito à saúde. Belo Horizonte: Fórum, 2011. pp. 143-144.

14 PIOVESAN, Flávia. Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos: desafios e perspectivas. In CANOTILHO, J. J. Gomes, CORREIA, Marcus Orione Gonçalves, e CORREIA, Érica Paula Bar-cha (Coord.). Direitos fundamentais sociais. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 69.

15 Para uma análise a respeito das decisões judiciais a respeito, especialmente do STF, ver Mendes (MENDES, Gilmar Ferreira, e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. PP. 709-712) e Piovesan (obra citada, pp. 58-62).

16 Isso reconhece, por exemplo, Scaff, quando, embora diga que não é papel do Poder Judiciário subs-tituir o Legislativo, afirma que, “É certo que muitas medidas de caráter urgente devem ser proferidas visando salvar vidas ou resolver situações emergenciais” (obra citada, p. 29).

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Essa é uma das formas, embora não a única, de dizer não à discricionariedade estatal. Afinal, as politicas públicas decorrem de mandamentos previstos no ordena-mento, não são criações, sem base alguma, dos governantes. As ações estatais devem obedecer à lógica da prestação dos direitos fundamentais de forma plena, e não à lógica mesquinha dos governos, mais preocupados com seus projetos de poder. Um exemplo: é habitual o fornecimento – seletivo – de medicamentos para algumas enfermidades graves, enquanto que para outras, também graves, não. Ora, permitir a discricionarie-dade é aceitar que o governo tem o direito de dizer que doença vai tratar, e quem deve viver, o que é, sob qualquer ótica, inaceitável.

2.2. O liberalismo de princípios de Rawls como concepção teórica suficiente para sustentar o direito fundamental dos indivíduos à saúde

Cabe agora indicar a concepção teórica que, combinada com o modelo de reco-nhecimento e proteção dos direitos fundamentais que é adotado no Brasil, justifica o direito dos indivíduos à saúde.

Penso que essa concepção é o liberalismo de princípios, que Vita também denomi-na de liberalismo kantiano17 e, Gargarella, de liberalismo igualitário.18

Antes disso, é preciso explicar qual a importância de discutir uma concepção te-órica específica para justificar a defesa do direito individual à saúde, como sustentado no item anterior.

É que as posições contrárias ou favoráveis ao direito individual à saúde não são apresentadas sem uma concepção teórica específica, não obstante nem sempre isso seja indicado de forma expressa. Identificá-las permite entender porque algo que parece óbvio: o dever do Estado de oferecer o básico aos indivíduos, que no caso aqui discutido é a saúde plena, pode ser singelamente negado por diversos autores, como se fosse algo normal.

Começando com as posições mais radicais contra o direito individual à saúde, penso que é possível perceber uma insatisfação contra o direito em si, ou seja, contra a obrigação do Estado de proporcionar saúde a todos.

É como se, em não sendo possível desobrigar o Estado do “ônus” de proporcionar saúde, tentassem os que entendem que assim deveria ocorrer limitar ao máximo o direito dos indivíduos, circunscrevendo a obrigação estatal a um espaço controlado pelo próprio Estado, onde é possível limitar o direito, ao ponto de torná-lo bem menor do que o que é imposto pelo texto constitucional, e muito abaixo do que é necessário para os seres humanos.

17 VITA, Álvaro de. Justiça liberal: argumentos liberais contra o neoliberalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. p. 22.

18 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: WMF Martins fontes, 2008. p. XIX.

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70 temas atuais de direito

Esse entendimento se enquadra no que Piovesan, tratando de algumas decisões ju-diciais contra o direito individual à saúde, chama de ótica liberal clássica,19 concepção que, hoje em dia, é chamada de libertarismo.

Para o libertarismo, o Estado tem um papel bem restrito, não lhe cabendo propor-cionar às pessoas direitos sociais. A concepção libertária fica clara nas palavras de um de seus expoentes, Nozick, que afirma:

[a]s principais conclusões que retiramos acerca do estado são as de que um estado mínimo, limitado às funções estritas da protecção contra a violência, roubo, fraude, execução de con-tratos, e por aí em diante, justifica-se; e que o estado mínimo, além de correcto, é inspirador. Duas implicações dignas de nota são a de que o estado não pode usar os seus instrumentos coercitivos com o objetivo de obrigar alguns cidadãos a ajudar outros, ou de proibir determi-nadas actividades às pessoas para o próprio bem ou protecção delas.20

Mas essa não é a única concepção que pode ser percebida. Há claramente os adep-tos do utilitarismo que, ao defenderem um atendimento limitado, que até pode ser su-ficiente, embora de forma precária, para uma boa parte da população, julgam que os casos que discreparem dessa atenção mínima são somente uma exceção. Essa é uma visão que, ao contrário do que dizem alguns de seus defensores, só é compatível, em caso de uma necessidade maior em matéria de saúde, com as possibilidades de uma mi-noria, que supre um atendimento mínimo e insuficiente investindo seus próprios recur-sos. É uma visão elitista, então, por criar uma diferenciação baseada na capacidade do indivíduo de empregar sua própria renda para suprir uma deficiência na atuação estatal.

A respeito do utilitarismo, só para relembrar, ensina Vita que:

[O] utilitarismo é uma teoria ética teleológica, isto é, uma teoria que define o que é correto ou justo fazer em função de uma concepção da boa vida humana. Essa concepção, no caso do utilitarismo, é vazia de conteúdo próprio, já que resulta da agregação de preferências e desejos de facto dos agentes, sem que a motivação ou a validade dessas preferências e desejos sejam colocadas em questão.21

Já Will Kymlika indica que, na forma mais singela, o utilitarismo “afirma que o ato ou procedimento moralmente correto é aquele que produz a maior felicidade para os membros da sociedade”.22 Mais adiante, o mesmo autor afirma que, no utilitarismo,

19 PIOVESAN, Flávia. Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos: desafios e perspectivas. In CANOTILHO, J. J. Gomes, CORREIA, Marcus Orione Gonçalves, e CORREIA, Érica Paula Bar-cha (Coord.). Direitos fundamentais sociais. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 60.

20 NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Tradução de Vitor Guerreiro. Lisboa – Portugal: Edi-ções 70, 2009. p. 21.

21 VITA, Álvaro de. Justiça liberal: argumentos liberais contra o neoliberalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. p. 13.

22 KYMLIKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma introdução. Tradução de Luís Carlos Bor-ges. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 11.

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direito fundamental à saúde:.. • josé claudio monteiro de brito filho 71

as preferências dos indivíduos não são satisfeitas quando contrárias ao que “maximiza a utilidade de maneira geral”.23

Essas duas passagens, mais a anterior, de Álvaro de Vita, deixam claras algumas questões próprias do utilitarismo: a predominância do bem sobre o justo, sendo o resul-tado o que indica o ato como moralmente correto, bem como o fato de que, no utilita-rismo, as preferências dos integrantes dos grupos minoritários são ignoradas, desde que se maximize a utilidade e se contemple a maior parte dos indivíduos.

É o que acontece, por exemplo, quando um governo afirma, normalmente de forma triunfante, que a medida que vai adotar possibilitará, por exemplo, que 90% das crianças tenham educação básica. Aparentemente tem-se aqui uma boa medida, pois a maioria das crianças será alfabetizada. O problema é que, na verdade, o que se está a dizer é que, por causa da medida adotada para cumprir uma obrigação essencial do Estado, 10% de todas as crianças serão excluídas do direito de ter educação formal, normalmente as mais necessitadas.

Já John Rawls rejeita o utilitarismo por diversos argumentos, podendo ser citado o fato de o utilitarismo – ao contrário da justiça como equidade, que afirma que os prin-cípios de justiça são objeto de um consenso original – estender “à sociedade o princípio da escolha feita por um único ser humano”. Para Rawls, não há sentido em haver a regulação de uma associação de pessoas, em uma sociedade plural e em que as pessoas têm interesses distintos, a partir da “extensão do princípio de escolha para um único indivíduo”.24 Rawls, a propósito, na mesma obra, um pouco antes, chega a afirmar que o “utilitarismo não leva a sério a diferença entre as pessoas”.25

O problema, no Brasil, a respeito da utilização do utilitarismo, é que essa utilização é agravada pela sua apropriação por aqueles que ainda acreditam, de forma literal, nas velhas ideologias de “esquerda”, pois estes, tenho observado, pensam que a justiça distri-butiva deve ser pensada não como um modelo em que o Estado é obrigado a proporcionar o mínimo a cada indivíduo, e que vai depender, é claro das necessidades mínimas de cada indivíduo em relação a alguns direitos, mas sim em um mínimo imutável.

Para eles, acredito, bem comum é proporcionar o mesmo, da mesma forma, a to-dos, em um nivelamento por baixo que não faz sentido. Tratando-se de um bem como a saúde, em que as necessidades são individualizadas, esse pensamento deveria ser considerado uma bobagem, não fosse o componente trágico dessa cruel opção, que é negar o direito à saúde a cada um dos indivíduos.

Para encerrar o item, e reveladas, ao menos como vejo, as motivações teóricas para posicionamentos tão conservadores na questão debatida, vou usar o pouco espaço que ainda resta para, ao menos indicar qual o modelo teórico que pode justificar um tratamento mais qualitativamente igualitário para todos em matéria de direito á saúde.

23 Ibidem, p. 25.24 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2ª ed. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli

Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 31.25 Ibidem, p. 30.

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72 temas atuais de direito

Esse modelo, claro que atualizado e compatibilizado com as normas brasileiras a respeito desse direito (à saúde), é o modelo de justiça distributiva construído a partir das concepções de John Rawls na obra Uma teoria da justiça, já indicada em nota, e chamado de justiça como equidade.

Sintetizando a ideia de justiça distributiva, atualmente, essa concepção se esteia no reconhecimento, como afirma Fleischacker, de que “alguma distribuição de bens é devida a todos os seres humanos, em virtude apenas de serem humanos”.26

Sob esse prisma, o autor indica as premissas necessárias para o moderno conceito de justiça distributiva, e que são:

1. Cada indivíduo, e não somente sociedades ou a espécie humana como um todo, tem um bem que merece respeito, e aos indivíduos são devidos certos direitos e proteções com vistas à busca daquele bem;2. Alguma parcela de bens materiais faz parte do que é devido a cada indivíduo, parte dos direitos e proteções que todos merecem;3. O fato de que cada indivíduo mereça isso pode ser justificado racionalmente, em termos puramente seculares;4. A distribuição dessa parcela de bens é praticável: tentar conscientemente realizar essa tarefa não é um projeto absurdo nem é algo que, como ocorreria caso se tentasse tornar a amizade algo compulsório, solaparia o próprio objetivo que se tenta alcançar; e5. Compete ao Estado, e não somente a indivíduos ou organizações privadas, garantir que tal distribuição seja realizada.27

Ela é feita por Fleischacker, obviamente, sob uma perspectiva liberal igualitária, ou de princípios, como principalmente venho denominando, pois toma por base que a distribuição deve ser feita a todos os indivíduos, nessa condição, sendo que se pode sintetizar as premissas acima em duas partes: cada indivíduo é merecedor de direitos básicos, sendo que uma certa parcela de bens materiais está compreendida nesses di-reitos; garantir que ocorrerá a distribuição desses bens – entendida a distribuição como algo factível – compete principalmente ao Estado.

E em relação ao direito fundamental à saúde, onde a ideia pode ser encontrada, na teoria de Rawls?

Genericamente, em duas ideias, caras ao autor. Primeiro, de que cada indivíduo deve ser levado em consideração, respeitadas as suas diferenças, o que já foi visto logo acima, quando mostrei o pensamento desse autor em relação ao utilitarismo.

Segundo, pelo que se pode ser depreendido em um dos princípios de justiça enun-ciados por Rawls, e que é chamado de princípio da diferença.28 Nele, Rawls defende o que tenho chamado de desigualdade controlada, e que pode ser explicado, de forma singela, assim: 1) ninguém pode ter tudo, mesmo que isso seja amealhado licitamente,

26 FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. São Paulo: Martins Fontes, 2006. P. 12.

27 Idem. 28 Obra citada.

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pelo que, ao menos pela tributação, uma parte deverá reverter à sociedade; 2) nin-guém pode ficar sem alguma coisa, cabendo aos indivíduos um mínimo que deve ser garantido.29

Em relação à saúde, o que é o mínimo? Claro que não pode ser um “mínimo de saúde”, sinônimo de uma vida precária. Só pode ser a saúde plena, no limite do que for possível, considerando o conhecimento disponível.

A única forma de fazer isso é admitindo que o direito à saúde também é um direito fundamental individual, e se aceitando que o Estado, no caso em discussão o Estado Brasileiro, é obrigado a proporcionar a cada indivíduo o que for necessário para que esse direito seja satisfeito.

3. CONSIDERAÇõES FINAIS

Como fecho das questões enfrentadas, permito-me fazer algumas considerações, e que refletem o que penso, embora, reconheça, neste item, em parte, haja um abandono da visão científica que procurei imprimir ao texto.

É que, em boa medida, isso traduz a minha perplexidade em ver criarem corpo teorias que negam aos indivíduos aquilo que lhes é básico, mínimo, fundamental.

Devo começar dizendo que, quando há restrições na prestação dos serviços de saúde pelo Estado, o que este faz é: decidir quem atenderá, e quem não atenderá; deci-dir para quem fornecerá medicamentos, e para quem não fornecerá; decidir quem tem direito de participar da vida em sociedade, e quem não terá; mais que isso, decidir, às vezes, quem vive e quem morre.

Isso, sempre, prejudicará os menos favorecidos. Acolher concepções restritivas, para quem advoga soluções radicais e que culminam com a negativa do direito à saúde, penso, é só uma visão elitista, reacionária, digna, na melhor das hipóteses, dos herdei-ros do libertarismo, e, na pior delas, de pensadores como Malthus ou Herbert Spencer.30

Para os que ainda postulam restrições, embora em menor grau, lembro que, só há respeito ao direito fundamental à saúde se os serviços forem prestados de forma plena, e isso só acontece se a pessoa tiver preservado o seu direito à vida, e uma vida com saúde.

Para isso, a solução é dizer não à desigualdade, rejeitando-se teorias conserva-doras e que só privilegiam quem já tem, subordinando o papel do Estado aos interes-

29 Há dois autores que podem aperfeiçoar essa discussão: Ronald Dworkin (A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005) e Amartya Sen (Desigualdade reexaminada. Tradução de Ricardo Doninelli Mendes. Rio de Janei-ro: Record, 2001). Essa discussão, todavia, por ser longa, não cabe nesse texto, devendo ficar para outra oportunidade.

30 Para compreender um pouco a respeito das ideias desses dois autores sugiro ler: Thomas Robert Malthus (Princípios de economia política e considerações sobre sua aplicação prática; Ensaio sobre a população. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Coleção Os economistas); Stanley L. Brue (História do pensamento econômico. São Paulo: Thomson Learning, 2006); e Fleischacker (obra citada).

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74 temas atuais de direito

ses dos governantes, e contra a sociedade, especialmente os menos favorecidos, sendo exemplos as teorias da reserva do possível; dos custos dos direitos; da prevalência da lei orçamentária; entre outras.

E os abusos – para que não se diga que não falei disso —, que, infelizmente, em certos casos são cometidos, e que acabam servindo de mote para justificar a retirado do mínimo das pessoas? Que sejam coibidos, mas sempre sendo tratados como exceções, pois a regra de toda e qualquer comunidade deve ser a de ter respeito por cada um de seus integrantes.

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7ASPECTOS RELATIVOS À FASE INICIAL

DO CUMPRIMENTO DA DECISÃO DE QUANTIA NO PROJETO DO NCPC

José Henrique Mouta Araújo

RESUMO: O texto pretende enfrentar aspectos ligados ao início da fase de cumprimento de sentença de quantia, com observações e críticas relativas ao projeto do novo Código de Processo Civil.

PALAVRAS-CHAVE: Cumprimento – título – fase – intimação – multa – prazo – protesto.Abstract: The text aims to address issues related to the early stage of compliance with judgment sum with remarks and criticisms regarding the design of the new Code of Civil Procedure.

KEY WORDS: Compliance – Title – phase – intimation – fine – term – protest.

SUMÁRIO: 1. Introdução e delimitação do tema; 2. Manutenção do sistema de cumprimento – satisfação sem necessidade de nova ação; 3. Cumprimento de sentença ou de decisão? e as interlocutórias de mérito? 4. Necessidade de provocação e de intimação – confirmação de um entendimento anterior; 5. modificações e aprimoramentos gerais da fase inicial.

1. INTRODUÇÃO E DELIMITAÇÃO DO TEMA

Como é sabido, está sendo discutido no Congresso Nacional o projeto do Novo Código de Processo Civil. Este projeto (que passa a ser chamado neste ensaio de NCPC) procura superar os pontos de estrangulamento do sistema e abreviar o tempo de duração dos processos em tramitação no Judiciário nacional.

Essa preocupação quanto ao tempo do processo e ao rápido acesso à justiça aponta para o aprimoramento do sistema de cumprimento de sentença, que já existe no CPC atual e foi objeto das alterações ocorridas nos anos de 2005 e 2006.

Contudo, após estas reformas, a doutrina e jurisprudência pátria passaram a travar discussões quanto a necessidade ou não de intimação do executado para o início da fase de cumprimento, ao órgão jurisdicional competente, ao próprio conceito de cum-primento, a forma e prazo para a efetivação da multa de 10% em decorrência do não pagamento voluntário da obrigação contida no título, etc.

Essas controvérsias, que acabaram repercutindo na prática forense, por vezes aca-baram por atravancar a prestação jurisdicional e foram tratadas de forma específica pelas diversas Comissões de Juristas que estão trabalhando no NCPC, como será de-monstrado neste breve ensaio.

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76 temas atuais de direito

Um esclarecimento deve ser dado: o que se pretende enfrentar é a fase inicial do cumprimento da decisão impositiva de quantia. Não se quer, neste momento, analisar as modificações em relação à fase de devesa do devedor (impugnação, embargos, objeção de pré-executividade), ao sistema executivo autônomo (títulos executivos extrajudiciais ou especiais – como a execução contra a fazenda pública) e nem o cumprimento das decisões que contenham tutelas específicas (fazer, não fazer e en-trega de coisa).

Vamos aos argumentos.

2. MANUTENÇÃO DO SISTEMA DE CUMPRIMENTO – SATISFAÇÃO SEM NECESSIDADE DE NOVA AÇÃO

Inicialmente, vale citar que o NCPC procura aprimorar o sistema de cumprimento de sentença impositiva de quantia, como fase procedimental, com previsão específica no Livro I (Do processo de conhecimento e do cumprimento de sentença), Titulo II (arts 528 e seguintes – versão da Câmara).

O sistema processual está, em verdade, caminhando em etapas de reformas, ini-ciadas ainda no Século passado e que procuram superar óbices ligados ao tempo de duração dos processos, especialmente no que respeita à forma de satisfação das obri-gações judiciais.

Assim, o cumprimento das decisões judiciais impositivas de quantia passou a ser feito de maneira sincrética, com duas fases distintas (uma de declaração da existência do direito e outra de satisfação da ordem contida no decisum). A Lei nº 11.232/05 trou-xe importante alteração no sistema executivo pecuniário, com a previsão da execução como fase (redação dada ao art. 475, I do CPC atual), além de estimular o sincretismo processual com a redimensão do conceito de sentença de mérito como o pronuncia-mento que interliga as fases de conhecimento e de cumprimento do julgado (art. 162, §1º c/c 269 do CPC atual).

Neste contexto, falar em autonomia do processo de execução (e, portanto, autono-mia da ação executiva) é enfrentar tema complexo e que requer profunda atenção. Com efeito, tem-se debatido, diante das reformas ocorridas nos últimos anos, a necessidade de estimular processos judiciais sincréticos, onde atos de conhecimento e de execução (efetivação) possam ser vislumbrados numa mesma base procedimental, mediante úni-ca provocação da tutela jurisdicional.

Realmente, a quebra da autonomia da execução advinda de título judicial foi um dos principais (quiçá o principal) aspectos enfrentados pela Lei nº 11.232/05, e que foi aprimorado no projeto do NCPC. O projeto, portanto, deixa claro, em sua parte especial, que haverá um Livro I (Do processo de conhecimento e do cumprimento de sentença), iniciando-se no art. 300, ratificando a existência de duas fases sincréticas – conhecimento e satisfação da obrigação contida na decisão judicial, passando o cum-primento de sentença a ser tratado de forma específica nos arts. 528 e seguintes (versão da Câmara).

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3. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA OU DE DECISÃO? E AS INTERLOCUTÓRIAS DE MÉRITO?

Neste momento, torna-se necessário analisar a redação pretendida para o Título II – Cumprimento de Sentença, bem como para o Livro I – Do Processo de Conhecimento e do Cumprimento de Sentença.

A pergunta que se deve fazer, seguida posteriormente de uma critica à redação pretendida no NCPC, é a seguinte: é apenas a sentença que gera cumprimento sincré-tico? A resposta é negativa.

Em vários artigos do próprio Título II, o CPC projetado menciona cumprimento de sentença, a saber: art. 528 (caput e §§1º, 2º, 4º), 529, 530, etc. Contudo, em outras passagens, o texto indica que o cumprimento é de decisão (seja sentença, acórdão ou mesmo interlocutória).

O art. 530, I do projeto, por exemplo, ao consagrar os títulos executivos judiciais, indica decisões proferidas no processo civil. Que decisões são estas? Não apenas as sentenças, incluindo as interlocutórias impositivas de condutas a serem cumpridas e os casos de pedidos incontroversos julgados antecipadamente.

O mesmo ocorre na redação prevista para o art. 532 do NCPC (versão da Câmara) que, ao prever a possibilidade da decisão judicial transitada em julgado possibilitar o protesto, não indica necessariamente que se trata de uma sentença.

O intérprete deve fazer análise em conjunto do sistema de cumprimento das de-cisões judiciais, para chegar à conclusão de que, apesar de ser consagrada a expressão cumprimento de sentença, não é este apenas o pronunciamento judicial que pode gerar a nova fase procedimental.

Nas tutelas antecipadas específicas de obrigação de fazer, não fazer ou entrega de coisa, por exemplo, estar-se-á diante de interlocutórias que, também gerarão a uti-lização das técnicas de cumprimento sincrético. Aliás, na redação pretendida para o art. 534 do NCPC (versão da Câmara), também há o indicativo de que as disposições relativas ao cumprimento de sentença são aplicáveis, no que couber, às decisões (inter-locutórias) que concederem tutela antecipada.

Vale destacar uma premissa: o mais importante para um pronunciamento judi-cial é a verificação de seu conteúdo; se terá ou não o grau cognitivo suficiente para imunizar-se pela coisa julgada e se poderá ou não gerar o cumprimento (satisfação) do seu conteúdo, de forma provisória ou definitiva.

Há, no sistema processual atual, várias situações jurídicas em que a decisão, apesar de não encerrar o processo ou uma de suas fases (não sendo, portanto, sentença, nos termos do art. 184, §1º, do Projeto do NCPC – versão da Câmara), possui cognição suficiente para a formação da coisa julgada e possibilidade de gerar o cumprimento sincrético (definitivo ou provisório). Na tutela antecipada da parte incontroversa da demanda (art. 273, §6º, do atual CPC e 364, I do projeto do NCPC – versão da Câmara), por exemplo, está-se diante de resolução parcial de mérito (decisão interlocutória definitiva), capaz de gerar o cumprimento sincrético definitivo.

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78 temas atuais de direito

Esta hipótese, aliás, provoca três reflexões importantes: a) a possibilidade de re-solução parcial de mérito (verdadeiro julgamento antecipado parcial do mérito) gerar imutabilidade (coisa julgada material); b) a previsão de coisa julgada em momentos diferenciados numa mesma relação jurídica processual; c) a consagração do sistema de cumprimento de decisão interlocutória e não apenas de sentença.

Em outras passagens do Projeto do NCPC há indicação da possibilidade de inter-locutória resolver o mérito (art. 1037, II – versão Câmara), rescisória sendo admitida em face de decisões de mérito e não apenas sentença de mérito (art. 987 – Versão Câmara), e resoluções parciais de mérito (art. 364- Versão Câmara).

De mais a mais, o projeto do NCPC consagra as hipóteses em que será cabível o agravo por instrumento, dentre as quais os casos das resoluções parciais de mérito (art. 1037, II) e de indeferimento da reconvenção (art. 1037, XII).

Enfim, a meu ver parece adequada a ressalva de que o projeto deveria, logo nos Títulos I e II, consagrar a expressão cumprimento de decisão e não de sentença, dei-xando claro que o que importa é a ordem contida na decisão e não necessariamente sua natureza jurídica

Aliás, em outras passagens, no próprio Livro II, há o indicativo da possibilida-de de cumprimento de decisão interlocutória definitiva e não apenas de sentença. Na redação proposta para o art. 538 do NCPC (versão da Câmara), há a possibilidade do cumprimento definitivo de parcela incontroversa que, a rigor, advém de resolução par-cial de mérito (art. 1037, II do Projeto), cuja natureza jurídica, como já mencionado, é de decisão interlocutória transitada em julgado.

E não é só.Além destes existem outros dispositivos no projeto do NCPC (versão da Câmara)

que consagram a possibilidade de várias decisões de mérito capazes de formar coisa julgada material e, como consequência, a possibilidade de cumprimento de várias deci-sões (e não apenas sentença) oriundas de um mesmo processo, a saber:

– Art. 184, 1º – consagra a sentença como ato final do processo ou de uma de suas fases;– Art. 184, §2º – prevê a possibilidade de pronunciamento judicial de natureza decisória que não se enquadre no conceito de sentença;– Art. 364, §2º – indica que a decisão que resolver parcialmente o mérito estará sujeita ao recurso de agravo;– Arts. 517 e 518 – ao apresentarem o conceito de coisa julgada material, indicam que esta ocorre nos casos de decisão de mérito (e não sentença de mérito, como consta o atual CPC – art. 467);– Art. 530, I – indica que são títulos judiciais as decisões proferidas no processo civil que reconheçam obrigação de pagar quantia, fazer, não fazer ou entrega de coisa (ao contrário do atual CPC que, no art. 475-N, I, consagra apenas a sentença como a formadora de título executivo judicial);– Art. 530, IX – menciona decisão interlocutória estrangeira como título executivo;– Art. 548 – cumprimento de decisão sobre parcela incontroversa (e não cumprimento de sentença);– Art. 987 – ao consagrar o cabimento de ação rescisória, ao contrário do atual art. 485 do CPC atual (que indica apenas sentença de mérito), prevê expressamente a hipótese de qual-quer decisão de mérito transitada em julgado.

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Após todas essas observações, especialmente no que respeita a alteração contida no Projeto do termo sentença (contido no CPC atual – arts. 485 e 475-N) para decisão, nos casos de rescisória (art. 987 do NCPC) e títulos executivos judiciais (art. 530, I, do NCPC), entendo que a crítica deve ser ratificada: deveria o NCPC mencionar a ex-pressão cumprimento da decisão e não da sentença, espancando qualquer margem de dúvida sobre a interpretação a ser dada pelo operador do direito em relação à natureza jurídica da ordem judicial a ser cumprida e a possibilidade de vários cumprimentos sincréticos oriundos de um mesmo processo.

4. NECESSIDADE DE PROVOCAÇÃO E DE INTIMAÇÃO – CONFIRMAÇÃO DE UM ENTENDIMENTO ANTERIOR

Dois aspectos polêmicos e que geraram controvérsia interpretativa nos últimos anos foram enfrentados pelo Projeto, a saber: a) momento de início da fase de cum-primento; b) prazo para a efetivação da multa de 10% decorrente do não pagamento voluntário.

Estes assuntos já foram objeto de reflexões anteriores, onde me manifestei que o prazo para pagamento não é automático e que há a necessidade intimação do demanda-do para inicio de sua fluência.

Contudo, tais aspectos estão longe de uniformização interpretativa. Existem, no sistema atual, no mínimo três posicionamentos doutrinários sobre esses temas: a) aque-le que defende que o prazo de 15 dias é automático e inicia-se após a coisa julgada, independente de nova intimação; b) o que advogada a necessidade de intimação pela simples publicação no Diário Oficial (físico ou eletrônico), dirigida ao advogado do executado; c) o que assevera ser necessária a intimação pessoal do devedor.

Neste tema, vale citar que o STJ, no julgamento do REsp 954.859/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 27.08.2007, entendeu que “transitada em julgado a sentença condenatória, não é necessário que a parte vencida, pessoalmente ou por seu advogado, seja intimada para cumpri-la. Cabe ao vencido cumprir espon-taneamente a obrigação, em quinze dias, sob pena de ver sua dívida automaticamente acrescida de 10%”.

Posteriormente, o Tribunal Superior manteve a interpretação de que o prazo seria automático, cabendo ao réu efetuar o pagamento voluntário contado da ocorrência do trânsito em julgado da decisão.

Contudo, alguns julgados da 4ª Turma do Tribunal manifestaram-se com certa divergência, como o seguinte:

Agravo regimental. Processo civil. Execução. Cumprimento de sentença. Art. 475-J do CPC. Multa. 1. A fase de cumprimento de sentença não se efetiva de forma automática, ou seja, logo após o trânsito em julgado da decisão. De acordo com o art. 475-J combinado com os arts. 475-B e 614, II, todos do do CPC, cabe ao credor o exercício de atos para o regular cumprimento da decisão condenatória, especialmente requerer ao juízo que dê ciência ao devedor sobre o montante apurado, consoante memória de cálculo discriminada e atualiza-da. 2. Observado pelo credor o procedimento relativo ao cumprimento do julgado na forma

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80 temas atuais de direito

do art. 475-J do CPC e ciente o advogado da parte devedora acerca da fase executiva, o descumprimento da condenação a que lhe fora imposta implica na imposição de multa de 10% sobre o montante devido. 3. Agravo regimental provido para aplicar a multa prevista no art. 475-J do CPC” (AgRg no AG 1.058.769/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe de 30.11.2009 – grifo nosso).

Percebe-se, portanto, que no próprio STJ havia divergência de posicionamento acerca do início da fluência do prazo para cumprimento espontâneo da decisão e sobre a necessidade ou não de atuação do exequente.

O Projeto do NCPC (versão da Câmara) pretende, pelo menos em tese, colocar a última pá de cal sobre esses temas, com as seguintes previsões legais:

a) Art. 538, §1º – irá dispor que o cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, será feito a requerimento do exequente (por meio de petição com documentação comprobatória do crédito atualizado – arts. 537 e 539 do NCPC); b) §2º: irá prever a necessidade de intimação do devedor pelo Diário de Justiça, na pessoa de seu advogado ou por carta com Aviso de Recebimento, quando não tiver advogado ou for representado pela Defensoria Pública;c) Art. 538 e §1º indicará que a multa de 10% pelo descumprimento será imputada acaso não haja o pagamento nos quinze dias, contados da intimação;d) E o §2º estabelecerá a multa de 10% também para os casos de cumprimento provisório (art. 535, §2º).

Pelo que se percebe, o NCPC tem a intenção de encerrar as polêmicas envolvendo a fixação da multa e o papel do exequente na fase inicial do cumprimento da decisão de quantia, além de consagrar seu cabimento também nos casos de execução provisória (outro aspecto que gerou polêmica interpretativa nos últimos anos).

Uma vez aprovado e sancionado o NCPC, o cumprimento não será automático como parte dos estudiosos do direito passou a defender após a Lei nº 11.232/05 e sim depen-derá de provocação do exequente, e a multa será imputada (no cumprimento provisório e definitivo) apenas após o descumprimento do prazo de 15 dias, contados da intimação para o pagamento, na forma estabelecida no §2º, do art. 538 (versão da Câmara). Basta aguardarmos a forma que serão interpretados os dispositivos legais projetados.

5. MODIFICAÇõES E APRIMORAMENTOS GERAIS DA FASE INICIAL

Além dos aspectos até aqui apresentados, o NCPC visa aprimorar aspectos im-portantes relativos ao conceito de título executivo, competência, protesto do título, etc.

O CPC em vigor, visando estimular o sincretismo processual entre as fases de conhecimento e cumprimento, alterou o conceito de título executivo, constante no art. 475-N. Pela leitura atual, o inciso I consagra que é título executivo a sentença que re-conhece obrigação de fazer, não fazer, coisa ou pagamento de quantia, além dos demais incisos que consagram sentença penal, arbitral, homologatória de conciliação, etc.

Contudo, analisando o art. 530 do NCPC (versão da Câmara) e seus incisos, é fácil perceber alguns aprimoramentos na redação, que são agora resumidos:

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– No caput do dispositivo, além da sentença condenatória, são títulos executivos os docu-mentos previstos em seus incisos. Percebe-se que esta expressão volta ao diploma legal, após sua retirada pela Lei nº 11.232/05. Ratifica-se, nesse contexto, a crítica feita anteriormente no sentido de que não deveria ser apenas a sentença e sim qualquer decisão impositiva de conduta o que, aliás, está claro no inciso I do mesmo dispositivo;– Aliás, o inciso I projetado, corrigindo a expressão contida no atual art. 475-N, I do CPC, passa a consagrar decisões que reconheçam a exigibilidade da obrigação de pagamento, de fazer, não fazer e coisa. Interessante essa alteração em relação à redação atual, tendo em vista que estabelece claramente que o título não é apenas a decisão que reconhece a existência de obrigação, mas sim aquela que prevê a imediata exigibilidade da obrigação, inclusive pelo fato de que essa exigibilidade é requisito obrigatório para o título executivo e pode ser objeto de irresignação pelo executado em sua impugnação (art. 540, III e § 6º do NCPC – versão da Câmara). Não se deve confundir existência com exigibilidade. Por derradeiro, esta proposta legislativa deixa claro, como já mencionado anteriormente, que será título executivo qualquer decisão que reconheça a exigibilidade de obrigação e não apenas sentença;– Houve o acréscimo do inciso V – créditos dos serventuários, peritos, intérpretes, etc. Na verdade, o projeto pretende fazer uma correção em relação ao sistema processual atual, que prevê esses títulos como executivos extrajudiciais (art. 585, VI, do CPC). Tratam-se, a bem da verdade, de títulos judiciais e que podem provocar um sistema de satisfação da obrigação mais célere se comparado à execução autônoma de título extrajudicial, pelo que entendo que andou bem o projeto;– No inciso IX prevê que é título judicial a decisão interlocutória estrangeira, o que também caminha no mesmo sentido das observações anteriores quanto a possibilidade de existência de títulos executivos distintos de sentença;

O mesmo aprimoramento legislativo ocorre em relação à competência para o cumprimento de decisão de quantia.

No atual CPC o assunto é tratado nos arts. 475-P c.c 575. O NCPC (art. 531 – ver-são da Câmara) pretende aprimorar a competência para o cumprimento, especialmente nos casos em que estiver em análise o juízo que constituiu o título ou aquele competen-te para a satisfação da sentença arbitral, penal condenatória e estrangeira.

Destarte, o CPC projetado passará a consagrar a opção em relação à competência tam-bém para os casos das obrigações de fazer e não fazer, que poderão ser objeto de cumpri-mento tanto no juízo que constitui a obrigação (também o cível competente para a decisão penal condenatória, arbitral e estrangeira) quanto naquele em que ela deva ser executada.

A única observação que entendo necessária diz respeito à falta de menção à sen-tença que reconhece obrigação de entrega de coisa, que poderia também estar sujeita a esta opção, por exemplo, entre o juízo que configurou a obrigação e aquele em que a coisa está localizada.

Por fim, há uma importante modificação quanto a possibilidade do credor na fase inicial do cumprimento de sentença, protestar o título. Pelo sistema processual proje-tado, após o prazo de pagamento voluntário previsto no art. 538 do NCPC (versão da Câmara), poderá o autor promover o protesto do título executivo, nos termos e com as consequências previstas em lei (art. 532 do NCPC – versão da Câmara). Trata-se de mais uma previsão louvável do projeto, levando em conta os objetivos e a consequência deste ato constritivo, cujo procedimento estará consagrado no dispositivo em comento.

Em relação à fase inicial do cumprimento, vejo estes como os principais aspectos constantes no Projeto do NCPC.

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8TÓPICOS TEMÁTICOS EM DIREITOS FUNDAMENTAIS

Alexandre Manuel Lopes Rodrigues

SUMÁRIO: 1. Direitos humanos e direitos fundamentais. 2. Direitos e garantias fundamentais. 3. Evo-lução Histórica. 3.1. Antiguidade e Idade Média. 3.2. Idade Moderna (Locke, Rousseau, Mon-tesquieu e Kant). 3.3. Era contemporânea. 4. Dimensões dos direitos fundamentais. 4.1. Direitos individuais. 4.2. Direitos sociais e econômicos. 4.3. Direitos de solidariedade. 4.4. Quarta dimen-são. 5. Direitos fundamentais e Constituição. 5.1. Direitos formal e materialmente fundamentais. 5.2. Princípio da dignidade da pessoa humana. 6. Perspectivas objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais. 7. Limitações e restrições aos direitos fundamentais. 7.1. A reserva do possível. 7.2. Dignidade da pessoa humana como limitação jusfundamental. 8. Direitos humanos: liberdade individual vs. liberdade social. 9. Direitos sociais e sua efetividade.10. Bibliografia.

Este artigo tem por objetivo apresentar de forma bem simples ao leitor alguns tó-picos ou temas de interesse geral, em relação aos assuntos Direitos Fundamentais e/ou Direitos Humanos. Procurou-se esclarecer definições que dentro do estudo dos Direitos Fundamentais podem ser controversos ou revestirem-se de pouca clareza. De qualquer sorte, são conceitos básicos que vão servir para qualquer leitor que esteja iniciando seus estudos no tema dos Direitos Fundamentais.

1. DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Existe uma ampla gama de autores que buscam conceituar as expressões direitos hu-manos e direitos fundamentais, além de outras denominações. Faz-se necessário realizar um breve apanhado dessas definições, para situar o leitor e embasar o desenrolar do estudo.

J. J. Gomes Canotilho utiliza as expressões direitos fundamentais formalmente constitucionais e direitos fundamentais materialmente constitucionais. Com relação aos primeiros, diz o autor que eles se referem aos direitos consagrados e reconhecidos pela Constituição, visto que são enunciados e protegidos por normas de valor constitucional formal. Os segundos seriam a categoria de outros direitos fundamentais constantes das leis e regras aplicáveis de direito internacional, pois as normas que os reconhecem e protegem não possuem a forma constitucional.1

1 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1996, p. 528.

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84 temas atuais de direito

Norberto Bobbio, por sua vez, estabelece distinção entre direitos humanos (di-reitos do homem, enquanto direitos exclusivamente naturais) e direitos fundamentais (direitos positivados). Com relação a essa distinção, afirma o autor que, enquanto os direitos do homem eram tidos, unicamente, como direitos naturais, a única defesa que se tinha como possível, contra a sua violação pelo Estado, era o direito, igualmente natural, de resistência.2

Na visão de Guerra Filho, a expressão “direitos fundamentais” está ligada a uma concepção que representa as manifestações positivas do direito, com aptidão para a produção de efeitos no plano jurídico, ao passo que direitos humanos seriam pautas ético-políticas, repousadas em uma dimensão suprapositiva, deonticamente diversas daquela em que se consagram as normas jurídicas.3

José Cláudio Monteiro de Brito Filho leciona que os direitos fundamentais devem ser entendidos como aqueles que são reconhecidos pelo Estado, em sua ordem interna, e que são tidos como necessários à dignidade da pessoa humana. Revela o autor que, embora tanto a expressão direitos humanos, quanto a expressão direitos fundamentais tenham suas definições ligadas à necessidade de seu reconhecimento como modo de garantir a dignidade da pessoa humana, nem sempre coincidem. Explica que, no âmbito interno dos Estados, é comum o fato de nem todos os direitos internacionalmente vi-gentes serem reconhecidos, sendo comum ainda que alguns direitos só sejam reconhe-cidos em determinados Estados, e não na órbita internacional. Cita como exemplos os casos do acréscimo de um terço na remuneração de férias do trabalhador brasileiro, que faz parte dos direitos fundamentais dos trabalhadores em nosso País (art. 7.º, XVII, da Constituição Federal (CF) de 1988), bem como a instituição do décimo terceiro salário (art. 7.º, VIII), que existem apenas como institutos dessa categoria no Brasil.4

Para Ingo Wolfgang Sarlet, existem três expressões distintas: direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais. A primeira faria referência aos direitos na-turais, ainda não positivados; a segunda diria respeito aos direitos já positivados na esfera do direito internacional; por fim, a terceira representaria os direitos reconhecidos e protegidos pelo direito constitucional interno de cada País. Na visão desse autor, o elemento primordial para diferenciar os direitos humanos dos direitos fundamentais consiste no fato de a expressão “direitos fundamentais” constituir o conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de um País específico, configurando, assim, direitos delimitados espacial e temporalmente, tendo, portanto, o caráter de fundamentador do sistema jurídico do Estado de Direito.5

2 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 31.3 GUERRA FILHO, Willis Santiago (Org.). Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 12.4 BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro. Trabalho decente. São Paulo: LTr, 2004, p. 35. 5 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advoga-

do, 2004, p. 32.

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tópicos temáticos em direitos... • alexandre manuel lopes rodrigues 85

2. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Qual seria a diferença entre as expressões direitos fundamentais e garantias fun-damentais? Pode-se dizer, prima facie, que os direitos são prerrogativas de todos os cidadãos, enquanto as garantias seriam os meios utilizáveis para fazer valer aqueles direitos. Desse modo, os direitos teriam uma natureza material, enquanto as garantias teriam um caráter instrumental – possibilidade que pertence ao cidadão de exigir dos poderes públicos que protejam os seus direitos, bem como a corporificação dos meios processuais adequados a essa proteção.6

Os direitos podem ser entendidos como todos os bens ou interesses ligados a esses bens, que são importantes para a vida do homem – aqueles que satisfazem as neces-sidades que o ser humano possui, para poder desenvolver, em plenitude, a sua vida e alcançar seus objetivos com dignidade. As garantias, por sua vez, destinam-se apenas a assegurar a fruição desses bens ou interesses. Em outras palavras, os primeiros devem ser entendidos como atributos de ordem política e jurídica dos quais a pessoa é titular. Já as garantias devem ser entendidas como normas positivas que asseguram e protegem o respectivo direito.7

Como exemplos podem-se citar: com relação ao direito à vida, a garantia que implica a proibição da pena de morte; com relação ao direito à liberdade, as garantias de proibição da pena de prisão perpétua, a irretroatividade da lei penal, in pejus, e o instrumento do habeas corpus.

3. EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Passa-se a demonstrar a evolução que os conceitos e institutos de direitos huma-nos sofreram no decorrer do tempo.

3.1. Antiguidade e Idade Média

É fato notório que o surgimento dos direitos fundamentais deveu-se principalmente à tentativa de limitar o poder do Estado sobre os direitos individuais dos cidadãos. O primeiro momento em que se torna visível essa característica é, provavelmente, o surgimento do Código de Hamurabi, na Babilônia. Essa codificação trazia o esboço de um primeiro catálogo de direitos fundamentais, pois listava uma gama de comportamentos humanos e gizava, em contrapartida, a sanção ou punição a que a pessoa estaria sujeita, limitando assim a discricionariedade estatal.8

6 CANOTILHO, 1996, p. 520.7 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direitos e garantias fundamentais. Revista da Faculdade de

Direito da UFMG, Belo Horizonte, v. 33, nº 33, 1991, p. 295.8 ADEODATO, João Maurício. O problema da legitimidade no rastro do pensamento de Hannah

Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 9.

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86 temas atuais de direito

Nesse primeiro momento, a presença da religiosidade é muito sentida, pois os reis ou mandatários máximos de um povo eram, regra geral, considerados como os próprios deuses encarnados. Assim, tornava-se difícil estabelecer limites para seus po-deres. Alguns povos do Oriente Médio, como os hebreus, possuíam um entendimento mais avançado sobre esse tema, visto que professavam uma religião monoteísta, na qual os governantes não eram divinizados, mas eram considerados como simples re-presentantes de Deus. Isso facilitava a defesa de interesses dos súditos, pois, sendo o soberano apenas humano, dele também se poderia exigir que respeitasse as leis que eram impostas a todos, sobretudo os “Dez Mandamentos”.

A Grécia Antiga foi o berço de grandes avanços no campo dos direitos fundamen-tais. Embora esses direitos tenham sido concebidos exclusivamente para os cidadãos gregos, o que deixava de lado as mulheres, os estrangeiros e os escravos, podem-se des-tacar a participação política dos cidadãos, a crença na existência de um direito natural superior às leis escritas pelo homem (Sófocles), a liberdade como direito do cidadão (Platão), a igualdade como princípio básico da democracia, com exclusão de privilé-gios políticos, a curta duração das funções públicas e a resolução em assembleia geral de cidadãos das questões públicas mais importantes.9

A Idade Média pode ser considerada o marco principiológico da democracia moder-na, tendo por base os direitos fundamentais, pois foi nesse período, mais precisamente em 1215, que o rei João Sem Terra fez publicar a Magna Charta Libertatum. Esse documen-to, apesar de garantir direitos apenas aos senhores feudais, normatizou as limitações do poder do soberano, fixando parâmetros para o poder de tributar, estabelecendo um sentido de proporcionalidade entre o ilícito e a pena, criando o devido processo legal, o livre acesso à Justiça e tornando efetivos a liberdade de locomoção e o direito à propriedade.

3.2. Idade Moderna (Locke, Rousseau, Montesquieu e Kant)

Como grande reação ao modelo de Estado Absolutista, o Iluminismo vem lançar as bases de um Estado Liberal, no qual os poderes absolutos do Estado pudessem ser moderados e contrapostos aos direitos individuais dos cidadãos, surgindo aí a alavanca que impulsionou a ideia de garantia e respeito dos direitos fundamentais.

O Estado Liberal desponta inicialmente na Inglaterra e tem como baluarte John Locke. Ele foi o principal defensor de um modelo de separação de poderes, com o objetivo de restringir quaisquer exorbitâncias por parte das pessoas a quem se havia conferido autoridade, depositando o poder de governo em mãos diferentes e dividindo, assim, o poder entre o monarca e a representação popular.10

O pensamento de Locke influenciou a Revolução Gloriosa na Inglaterra, pondo fim ao Estado Absoluto e fazendo nascer o Estado Liberal de Direito (monarquia parla-

9 ARISTÓTELES. A política. Tradução de R. L. Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 125.10 LOCKE, John. Dois tratados sobre o Governo. Tradução de J. Fischer. São Paulo: Martins Fontes,

1998, p. 514.

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tópicos temáticos em direitos... • alexandre manuel lopes rodrigues 87

mentarista). Essa revolução, fruto do confronto entre rei e parlamento, culmina com a publicação do Bill of Rights (1689). A partir desse ponto, os poderes públicos passam a ter um respeito maior pelos direitos individuais, pois ficou plasmado nesse documento o princípio da legalidade e a proibição de castigos e penas cruéis e degradantes.

Montesquieu é conhecido como o principal mentor do princípio da separa-ção de poderes. Ao inverso de Locke, Montesquieu nutria profunda desconfiança em relação ao poder estatal, pois acreditava que ele possuía uma natureza interior negativa. Para esse teórico, a liberdade política só estaria presente nos governos moderados, nos quais não haveria o abuso do poder. O abuso só pode ser contido se o poder estatal estiver fracionado entre órgãos diferentes. Esse pensamento deu origem, como se sabe, à teoria da tripartição dos poderes, que é adotada, até hoje, em vários países.11 Essa teoria contribuiu para a formação do Estado Liberal de Direito, implementando as garantias do direito à vida, à liberdade e à propriedade e o respeito aos direitos fundamentais.

A teoria de Rousseau tem por base o princípio da igualdade, segundo o qual o homem seria livre por natureza. Para esse filósofo, a família seria a única sociedade natural válida. O Estado seria um plágio deformado da sociedade familiar, no qual o soberano seria o pai e os súditos, os filhos. Entretanto, na sociedade estatal, o pai teria, não amor por seus filhos, mas desejo de ordenar e reprimir. A única forma de controlar esse desejo do soberano seria submetê-lo à vontade geral, que tem por ob-jetivo o bem comum.

Na ideia rousseauniana, o homem seria naturalmente detentor de certos direitos individuais que poderia transferir ao Estado para que este fomentasse o bem comum. A vontade geral substituiria a vontade do governante. Entretanto, há direitos que não podem ser transferidos, pois nem mesmo o ser humano, individualmente, deles pode dispor, como seria o caso do direito à vida.12

Kant, por sua vez, por intermédio de seu imperativo categórico (“Age apenas se-gundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei univer-sal”), reforçou a ideia de uma dignidade da pessoa humana que tivesse a característica da transcendência. Há em seu pensamento a ideia da cidadania mundial, na qual todos os homens, independentemente de raça, sexo, cor, religião etc., deveriam ser tratados com a mesma dignidade, pelo simples fato de serem humanos. Mesmo que um estran-geiro estivesse em outro país, impunha-se que ele fosse tratado como se nacional fosse (hospitalidade universal).13

11 MONTESQUIEU. O espírito das leis. Tradução de C. Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 167.

12 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social e outros escritos. Tradução de R. R. Silva. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 30.

13 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de P. Quintela. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 59.

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88 temas atuais de direito

3.3. Era contemporânea

É notório que, no primeiro momento em que se deram os movimento liberais do século XVIII, a proteção que se buscava para os direitos fundamentais era apenas aquela que visava aos direitos individuais, em detrimento dos direitos sociais. Isso era compreensível, pois o Estado absolutista possuía a característica de invadir a esfera de disponibilidade dos direitos individuais dos cidadãos, já que exigia sempre mais para si e quase nada proporcionava em troca. Ao Estado só cabia garantir a livre iniciativa e a liberdade de concorrência, não intentando nenhuma ação no sentido de garantir o bem-estar social. Os pensadores da época perceberam que não era eficaz, apenas, lutar pela garantia dos direitos individuais, mas era necessário que se fosse mais além, partindo-se em busca de um Estado que agisse no âmbito social, buscando satisfazer os interesses coletivos da população, como saúde, educação e lazer.14

Calcadas nessa concepção e, sobretudo, nas ideias do filósofo alemão Karl Marx, fincaram-se as bases que fariam surgir, no início do século XX, os Estados Sociais. Na antiga União Soviética, em 1918, foi proclamada a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, que consagrava os princípios da igualdade, a abolição da divisão classista da sociedade, a prestação de apoio material aos operários e as demais medidas que se encarregariam de consubstanciar o socialismo. A Constituição alemã da República de Weimar de 1919 foi o grande exemplo de garantia dos direitos sociais, pois enunciou a proteção à maternidade, à saúde, ao desenvolvimento da família, a educação pública gratuita, a seguridade e previdência social, etc.

Não obstante, houve grande retrocesso no que tange à defesa e à garantia dos direitos humanos quando, em 1939, teve início a segunda grande guerra mundial, que só findaria em 1945. Nesse período, todo tipo de barbárie contra os direitos fundamen-tais individuais e sociais foi perpetrado, o que suscitou a necessidade de transformar os direitos fundamentais, que já haviam sido declarados, em direitos fundamentais de âmbito internacional e de inseri-los na esfera constitucional de cada Estado. Com esse objetivo, em 1948, foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos do Homem, verdadeira Carta instituidora dos direitos fundamentais em âmbito internacional, que pressionou os Estados a respeitar e a inserir em seus ordenamentos jurídicos internos as garantias dos direitos fundamentais individuais, sociais, coletivos e difusos.

4. Dimensões dos direitos fundamentais

As mudanças históricas que marcaram o estudo e o entendimento dos direitos fun-damentais trazem consigo a ideia de gerações ou dimensões. As declarações de direitos inglesas, norte-americanas e francesas tiveram fundamental importância na transmuta-ção dos direitos humanos em direitos fundamentais, pois, anteriormente, aqueles direi-tos jaziam apenas como valores filosóficos e históricos. É importante notar, entretanto,

14 BARACHO, 1991, p. 278.

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que as declarações inglesa e norte-americana foram dirigidas a camadas bem distintas da sociedade: a inglesa (Magna Charta Libertatum, de 1215) foi dirigida a uma elite pensante e de poder político e aquisitivo bem delimitado; já a norte-americana foi re-digida para o proveito e a comodidade de um povo que acabara de ser libertado politi-camente e que ansiava por garantir seus direitos de liberdade e trabalho, contra os ônus impostos pela Coroa Inglesa. Diferentemente, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), francesa, veio a lume com um caráter universal bem definido, dirigindo-se ao gênero humano, de forma bem abstrata.15

De uma forma futurista, o lema revolucionário francês acabou por demonstrar a sequência histórica da institucionalização dos direitos fundamentais. Com efeito, em seu jargão – “liberdade, igualdade e fraternidade” –, pode-se ler “direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações ou dimensões”.

O uso da expressão “gerações” tem recebido inúmeras críticas de estudiosos do mundo todo, pois traria a ideia de que, no momento em que a história dos direitos fundamentais tivesse avançado no tempo e assim passado da primeira geração para a última, as gerações antecedentes seriam substituídas pelas gerações vindouras, deixan-do-se, assim, de se assegurar ou proteger os direitos fundamentais contidos em cada uma delas. Por mais que esse raciocínio possa, aparentemente, ficar apenas no campo ideológico, existem exemplos práticos que comprovam a teoria. Um deles é a situação ocorrida na antiga União Soviética, na qual, no afã de garantir os direitos sociais de segunda geração, findou-se por mutilar os direitos individuais de primeira geração, com uma brutal restrição ao direito de liberdade e de propriedade dos cidadãos.

O mais correto seria acomodar esses direitos em dimensões, pois elas não se ex-cluem, nem se substituem umas pelas outras. As dimensões coexistem harmonicamente, como se fossem nuances ou variações de um mesmo tema. Há inclusive quem afirme, com razão, que os direitos de uma geração anterior passam a ser pressuposto para que se interpretem e se apliquem de forma equânime os direitos das gerações subsequentes. Por exemplo, o direito de propriedade (direito individual – primeira dimensão) só pode ser exercido levando-se em conta a função social da propriedade (segunda dimensão) e também a sua indispensável função ambiental (terceira dimensão).16

4.1. Direitos individuais

A pedra de toque dos direitos fundamentais individuais é a limitação do poder esta-tal em relação ao indivíduo. Esse pensamento surgiu, como já foi visto, a partir dos mo-vimentos liberais inglês, norte-americano e francês, que deram origem ao Estado Liberal.

Os direitos fundamentais individuais são os de liberdade: direito à vida, à liberda-de, à propriedade e à igualdade formal. Naquele momento, a liberdade material ainda não era cogitada, pois esse conceito só surgiria com os direitos de segunda dimensão.

15 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 516.16 GUERRA FILHO, 1997, p. 13.

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90 temas atuais de direito

Estão incluídos, ainda, nos direitos de primeira dimensão, aqueles que possibilitam o exercício das liberdades de expressão (imprensa, pensamento, reunião e associação) e os direitos de participação política (votar e ser votado), isto é, os direitos civis e políti-cos, que representam uma resistência às forças do Estado.17

É importante notar que, mesmo no Estado Democrático de Direito, os direitos de primeira dimensão fazem-se necessários, pois, ainda assim, o Estado pode cometer injustiças e exercer um domínio desmedido sobre as pessoas, que precisa ser mitigado. Além disso, as liberdades fundamentais não devem buscar apenas a proteção do cidadão contra o Estado, visto que não é apenas ele que ameaça os direitos individuais. Há, também, outros tipos de perigos, como os interesses particulares e os grupos organiza-dos que defendem determinados objetivos, como os econômicos, os sociais, culturais e religiosos (poderes não estatais).18

4.2. Direitos sociais e econômicos

O modelo de Estado que vigorava à época dos direitos de primeira dimensão era um Estado preponderantemente negativo, ou seja, aquele que assegurava os direitos civis e políticos, mas não buscava realizar ações positivas, não caminhava, portanto, na direção dos direitos econômicos e sociais. Quando garantiu a livre iniciativa e as liber-dades políticas, o Estado apenas assegurou que um grupo muito privilegiado de pessoas pudesse usufruir dessas liberdades, no caso, a classe burguesa que, após o advento do constitucionalismo liberal, passou a ser a classe dominante, em lugar da nobreza.

A igualdade que existia nesse período era uma igualdade meramente formal (todos são iguais perante a lei), mas os cidadãos estavam em uma situação de desigualdade real, sobretudo econômica. Consequentemente, mesmo que o Estado se abstivesse de interferir nas esferas de interesses particulares, a igualdade não seria alcançada, pois, para igualar os desiguais, o Estado necessitaria tomar medidas positivas.19

Com a Revolução Industrial, o cidadão operário passa a ter de vender sua força de trabalho a preço vil, pois não apresentava capital próprio para exercer a livre iniciativa que lhe assegurava o Estado Liberal. Como o Estado era abstencionista, prevalecia, na maioria das vezes, a força do dono do capital, que era economicamente mais forte e subjugava a classe operária. Buscando sanear essas desigualdades, surge o Estado Social, com uma proposta de realizar os direitos fundamentais econômicos e sociais de segunda dimensão.

O Estado Social visa assegurar a todos o exercício das liberdades materiais con-cretas, como o direito ao trabalho, à educação, à saúde, à assistência e previdência social. Para implementar esses direitos, o Estado deve aplicar parte de seus recursos

17 BONAVIDES, 1997, p. 517.18 NEUMANN, Franz. Estado democrático e Estado autoritário. Tradução de L. Corção. Rio de Janei-

ro: Zahar, 1969, p. 224.19 BONAVIDES, 1997, p. 61.

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econômicos e sociais na consecução desses fins. É a responsabilidade ativa do Estado que deve fazer com que ele adote as políticas públicas necessárias para atingir seus objetivos. Não obstante, fica claro que o Estado só pode pôr em prática essas políticas se possuir recursos em seu orçamento. Mesmo constando do texto constitucional, tais direitos sociais não possuem, na sua grande maioria, autoexecutoriedade, dependendo sempre da ação do Estado.20

A característica acima citada faz com que os direitos de segunda dimensão apre-sentem uma força normativa muito débil, pois a maioria das cartas políticas tratou-os como normas de caráter programático, que representam um compromisso do Estado com a possível concreção dos programas socioeconômicos propostos. Na busca de al-terar essa posição, as constituições contemporâneas têm considerado os direitos sociais e econômicos como preceitos dotados de aplicabilidade imediata. Esse esforço, no en-tanto, não é suficiente para a concretude de tais direitos, pois muitas barreiras impedem que ocorra a eficácia em sua aplicação. Em apertada síntese, pode-se citar: o legislador elabora leis que visam dirimir mais especificamente conflitos interindividuais do que transindividuais; o judiciário está mais preparado, de modo geral, para entregar a pres-tação jurisdicional em demandas do tipo sujeito/sujeito; não há políticas públicas (e até mesmo vontade política) destinadas a tornar efetivos os direitos de segunda dimensão; as normas constitucionais que agasalham institutos jurídicos voltados para a concreção dos direitos sociais e econômicos são interpretadas de forma muito restritiva ou retró-grada (por exemplo, o mandado de injunção).21

Em que pesem esses argumentos, há um fator positivo muito importante na cons-titucionalização dos direitos de segunda dimensão: sua inclusão representa um fator político-ideológico de alta relevância, na medida em que impede que o poder estatal desenvolva políticas públicas contrárias aos postulados neles contidos, sendo, portanto, uma proibição de retrocesso.22

Por outro lado, é importante destacar também que há a necessidade de certo inter-vencionismo estatal, na dose certa, para que não se permita que os direitos individuais sejam desrespeitados por outras forças que não as do Estado. Não se pode esquecer que os direitos sociais e econômicos são também direitos dos indivíduos, o que demanda muitas vezes a atuação estatal para defender esses direitos, sob pena de se deixar o di-reito individual correspondente a descoberto. Exemplo prático dessa questão é o tema que se traz à baila no presente trabalho. Quando se defende um tratamento penal que aplica a medida de segurança ao agente que pratica o ilícito típico, como o psicopata, em detrimento de sua liberdade, está-se buscando garantir o direito social de seguran-ça pública, mas, ao mesmo tempo, também se protege o direito individual do próprio agente, visto que essa medida é a mais indicada para o tratamento e a recuperação de

20 CANOTILHO, 1996, p. 543.21 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da constru-

ção do direito. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 39.22 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 86.

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sua patologia, restringindo o mínimo possível o direito à dignidade da pessoa humana, que lhe é devido.

4.3. Direitos de solidariedade

A ideia de direitos fundamentais de terceira dimensão, chamados direitos de solida-riedade ou fraternidade, surgiu com a compreensão de que os direitos fundamentais não estariam cingidos somente aos indivíduos ou a grupos de indivíduos, mas, em certo aspecto, pertenceriam a todo o gênero humano, tendo caráter de universalidade. São exemplos des-ses direitos: direito à paz, ao meio ambiente equilibrado e saudável, ao patrimônio genético, ao desenvolvimento, à qualidade de vida, á autodeterminação dos povos23. Esses direitos apresentam a característica de se referirem a uma universalidade de pessoas indefinidas, não sendo possível identificar objetivamente quem são os seus titulares. Apenas de forma abstrata, é possível identificá-los como de propriedade do gênero humano.

Dessa forma, essa categoria de direitos é vítima de uma série de restrições doutri-nárias, no que se refere à sua implementação. Argumenta-se que eles não configuram direitos subjetivos, ou seja, não representariam instrumentos jurídicos eficientes para que pudessem ser exigíveis. Diz-se que seriam apenas normas programáticas, apenas declarações de intenções, que não vinculariam os poderes estatais, pois não apresenta-riam regulamentação legislativa que os dotaria de eficácia, não sendo possível, assim, demandar uma ação em juízo para garanti-los.24

Por outro prisma, é sabido que, hodiernamente, a mais abalizada doutrina tem re-chaçado a ideia de normas eminentemente programáticas. A doutrina atual afirma que normas programáticas, no sentido de normas que apenas servem como programas de rea-lização ou meras exortações morais e apelos aos poderes constituídos, não mais existem. Isso pelo fato de que, no momento em que elas passam a integrar o ordenamento consti-tucional de um país, vinculam o legislador, o Executivo e o Judiciário, de forma perma-nente, no sentido de que esses órgãos busquem realizá-las. E mais: vinculam o legislador, o Executivo e o Judiciário também com relação aos limites materiais negativos, ou seja, é possível arguir a inconstitucionalidade de uma norma que siga em direção contrária ao que já foi estabelecido em termos de direitos de terceira dimensão.25

Corroborando esse entendimento, nunca é demais relembrar que a nossa Carta Política, bem como a de outros Estados, já prevê meios eficazes para defender determi-nados direitos de solidariedade, como o direito a um meio ambiente equilibrado. É só citar como exemplos a ação popular e a ação civil pública, que possibilitam a defesa em juízo desses direitos, mesmo sendo pulverizados de forma difusa e coletiva.

23 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 132. 24 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos subjetivos, direitos humanos e jurisprudência dos inte-

resses (relacionados com o pensamento tardio de Rudolf Von Ihering. In: ADEODATO, João Mau-rício Leitão (Org.). Ihering e o direito no Brasil. Recife: Universitária, 1996, p. 253.

25 CANOTILHO, 1996, p. 184.

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4.4. Quarta dimensão

Há autores que defendem a existência de uma quarta dimensão dos direitos fun-damentais. Essa dimensão surge de uma ideia de globalização de direitos. Esses direi-tos trariam o traço do humanismo e da solidariedade e traduzir-se-iam nos direitos de quarta dimensão: a informação, a democracia e o pluralismo (máxima universalidade de uma sociedade aberta). A democracia seria a direta e defenderia os povos de toda e qualquer forma de opressão. A informação limpa e não distorcida, por sua vez, ga-rantiria a democracia, inclusive em âmbito internacional, e o pluralismo defenderia as sociedades globalizadas de todo e qualquer monopólio de poder.26 Não obstante a maestria na defesa dessa nova dimensão de direitos, tem-se a impressão de que eles são, na verdade, os mesmo direitos de terceira dimensão, só que travestidos com outra roupagem, o que não diminui o interesse em vê-los concretizados e protegidos, mesmo que isso somente venha a ser alcançado num futuro um pouco distante e seja seguido de grande esforço e elevação espiritual ou moral (ou racional) da sociedade universalizada.

5. DIREITOS FUNDAMENTAIS E CONSTITUIÇÃO

Rezava o artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789: “toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegu-rada, nem a separação dos poderes, determinada, não possui Constituição”. Esse pensa-mento traduz o que seria a base e o núcleo material das primeiras constituições escritas, de cunho liberal-burguês, isto é, o princípio jurídico da limitação do poder estatal, por intermédio da garantia de alguns direitos fundamentais e do princípio da separação dos poderes.27 Por essa citação, logo se constata a nítida influência que os direitos funda-mentais exercem sobre as noções de Constituição e Estado de Direito. Tanto a ideia de criar uma constituição, quanto a de instituir uma gama de direitos fundamentais possu-íam o mesmo objetivo, que era o de limitar o poder estatal.

É possível dizer então que a Constituição, na medida em que necessita de uma atuação juridicamente programada e controlada dos diversos órgãos estatais, representa uma condição de existência das liberdades fundamentais, de forma que os direitos fundamentais apenas poderão ter eficácia no ambiente de um Estado constitucional. Seguindo o raciocínio inverso, os direitos fundamentais são a verdadeira condição sine qua non para a formação do Estado constitucional democrático, pois é neles que se encontra a limitação para a atuação do próprio Estado.

Os direitos fundamentais, entretanto, não servem apenas como limitadores do poder estatal e como garantidores de determinadas formas e procedimentos para a organização do poder e das competências dos órgãos estatais; devem também indicar caminhos ou metas para a atividade estatal, pautados por valores, direitos e liberdades fundamentais, trazendo a lume uma verdadeira legitimidade da ordem constitucional do Estado.

26 BONAVIDES, 1997, p. 524.27 SARLET, 2004, p. 67.

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Assim, os direitos fundamentais legitimam o poder estatal, na medida em que o poder justifica-se pela observância da realização dos direitos fundamentais, sendo a ideia de justiça inerente a tais direitos.28

Na verdade, os direitos fundamentais condicionam a validade material das normas produzidas pelo poder estatal e, ao mesmo tempo, indicam os fins ou objetivos que norteiam o Estado constitucional de direito.

J. J. Gomes Canotilho ensina que, a partir da positivação dos princípios de direitos fundamentais, na condição da expressão de valores e necessidades consensualmente reconhecidos pela sociedade, a Constituição e o próprio Poder Constituinte passam a configurar uma verdadeira reserva de justiça que, por sua vez, servirá como parâmetro de legitimidade formal e material da ordem jurídica estatal. Assim, o fundamento de validade da Constituição, ou seja, a sua legitimidade é diretamente proporcional à dig-nidade do seu reconhecimento como ordem justa e à convicção, por parte da sociedade, de sua bondade intrínseca.29

Os princípios de direitos fundamentais, juntamente com o princípio da soberania popular, servem como base normativa do Estado Democrático de Direito, indo, portan-to, além de uma função embrionária de defesa das liberdades individuais. Fazem parte, na verdade, de um sistema axiológico que se traduz em fundamento material de todo o ordenamento jurídico.30

O próprio conceito de democracia também está ligado intimamente ao de direitos fundamentais, na medida em que tais direitos podem ser considerados como pressupos-tos, garantias e instrumentos do princípio democrático da autodeterminação dos povos, por meio da autonomia de cada indivíduo, quando se reconhece o direito de igualdade, de liberdade e de participação na formação da vontade e do processo político de cada Estado (exercício de direitos políticos). Além disso, os direitos fundamentais também exercem uma função de garantia das minorias contra desvios do poder praticados por força da maioria.

5.1. Direitos formal e materialmente fundamentais

Os direitos fundamentais, em seu aspecto formal, estão inscritos no Texto Constitucional, o que significa dizer, também, que essa categoria de direitos está posta-da no ápice da pirâmide do ordenamento jurídico. Enquanto normas constitucionais, es-ses direitos estão submetidos aos limites formais (procedimento agravado) e materiais (cláusulas pétreas) da reforma constitucional. Por fim, trata-se de normas aplicáveis diretamente e que vinculam, imediatamente, os órgãos públicos e as entidades privadas (art. 5.º, § 1.º, da CF).31

28 Ibid., p. 69.29 CANOTILHO, 1996, p. 115.30 SARLET, 2004, p. 70.31 SARLET, 2004, p. 87.

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A fundamentalidade material, por seu turno, decorre do fato de os direitos funda-mentais serem elementos constitutivos da própria constituição material, pois expres-sam posições fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade. Não obstante, é por meio do Direito Constitucional positivado (art. 5.º, § 2.º, da CF) que se torna possível a abertura da Constituição, para que se possam inserir em seu contexto formal outros direitos que não constam do Texto Constitucional, mas apresentam a característica de fundamentalidade material.

Pode-se dizer assim que apenas a análise do conteúdo da norma de direito funda-mental possibilita auferir se ela é dotada de fundamentalidade material, isto é, se possui ou não elementos fundamentais sobre a estrutura do Estado e da sociedade e a posição do ser humano nesses organismos. Não é demais lembrar que a nossa Carta Política admite expressamente a existência de outros direitos fundamentais que não estão lista-dos no catálogo do Título II, sem contar aqueles que não fazem sequer parte do próprio Texto Constitucional.

Com relação à questão da universalidade dos direitos fundamentais, é importan-te ressaltar que, em seu aspecto formal, nem todos os direitos que constam do Texto Constitucional de um Estado estarão, necessariamente, representados ou presentes na Carta Magna de outro Estado, mesmo que eles tenham configurações políticas seme-lhantes. Mesmo com relação aos direitos fundamentais materiais, sabe-se que deve haver a contextualização dos direitos na realidade sociocultural do País, uma vez que mesmo direitos consagrados, como a vida, a liberdade, a igualdade e a dignidade, po-dem ser passíveis de uma valoração distinta e condicionada à realidade de cada socie-dade e cultura.32

Alexy formula uma definição de direitos fundamentais que abarca tanto as carac-terísticas formais quanto as materiais:

“[...] todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do Direito Constitucional positivo, forem, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade material), integradas ao Texto Constitucional e, portanto, retiradas da esfera de disponibilida-de dos Poderes Constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparadas, agregando-se à Constituição material, tendo ou não, assento na Constituição formal”.33

É importante lembrar que a norma contida no artigo 5º, § 2º, da CF permite entender que existem direitos que, por seu conteúdo e substância, fazem parte do corpo fundamental da Constituição, mesmo estando fora do catálogo de direitos fundamentais. São, portanto, direitos materialmente fundamentais.

O Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão proferida na ADIN nº 939-7, de 18 de março de 1994, cujo relator foi o ministro Sydney Sanches, reconheceu que o princípio da anterioridade, em matéria tributária, previsto no artigo 150, III, “b”, da CF,

32 Ibid., p. 89.33 ALEXY, 2002, p. 407.

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é um direito fundamental do contribuinte, que não consta expressamente do catálogo. Assim, manifestou-se pela possibilidade da abertura material da listagem dos direitos fundamentais da Constituição.34

Nota-se que é o senso jurídico coletivo ou a ordem de valores dominante e consen-sualmente aceita pela maioria da sociedade que pode determinar quais são os valores que devem possuir o status de norma materialmente fundamental. É preciso também levar em conta as circunstâncias sociais, políticas, econômicas e culturais.35 Nesse as-pecto, não é demais afirmar que o direito à segurança é um direito materialmente fun-damental, passível de ser contraposto ao direito à liberdade. Em nosso País, a crise na segurança pública, os altos índices de criminalidade e a sensação de insegurança que impera na sociedade brasileira são elementos que, sem dúvida, apontam nessa direção. O cidadão que demonstra periculosidade e que põe em risco a integridade física de ou-tros cidadãos não pode ficar ao abrigo da legislação, que aplica uma sanção inadequada ao seu caso, fragilizando a segurança pública, bem como infringindo o próprio direito individual referente à dignidade desse indivíduo.

Questiona-se se a abertura material do catálogo dos direitos fundamentais abran-geria, também, os direitos de segunda dimensão ou direitos ditos sociais, como é o caso do direito à segurança. Ingo Sarlet responde positivamente a essa questão, afir-mando que o artigo 5º, § 2º, da CF refere-se a “direitos e garantias expressos nesta Constituição”, portanto, sem qualquer limitação em relação à posição do direito no texto constitucional. Os direitos sociais estão dispostos no título relativo aos direitos fundamentais, apesar de estarem regrados em outro capítulo. O artigo 6º da CF, que trata dos direitos sociais básicos, utiliza a expressão “na forma desta Constituição”, tornando-se claro que existe a possibilidade de se inserir, no catálogo dos direitos so-ciais, outros direitos que estejam dispersos no texto constitucional.36

É importante notar também que as normas contidas nos artigos 1º a 4.º da CF apontam que a nossa República está representada como um autêntico Estado Social e Democrático de Direito, pois existe em seu texto um catálogo expresso de direitos fundamentais sociais, como visto nos artigos 6º a 11 e em princípios insculpidos nos artigos 170 e 193, além de normas dispersas. Assim, a existência de direitos fundamentais sociais protegidos em nossa Carta Magna é decorrência da natureza de um Estado Social. Portanto, é cabal a existência de direitos sociais materialmente fun-damentais, como a segurança social, que, mesmo relacionados de forma implícita, ou localizados fora da Constituição, devem ser plenamente protegidos, pois a sua não efe-

34 Resumo: existe, sim, direito adquirido contra emenda constitucional, pelo limite material constante do artigo 60, IV, da CF/88 referente à cláusula pétrea – direitos e garantias individuais c/c artigo 5º, XXXVI (a lei não prejudicará o direito adquirido, entendido esse em seu sentido amplo), tendo o STF entendido que os direitos individuais são limites (limites formais, materiais e circunstanciais) à emenda e não se restringem aos do artigo 5º, podendo neles estarem inclusos outros, como os direi-tos tributários (ver também ADIN nº 829-DF, Rel. Min. Moreira Alves).

35 SARLET, 2004, p. 92.36 SARLET, 2004, p. 95.

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tivação representa uma limitação muito grande para o exercício das liberdades indivi-duais, sobretudo o direito de ir e vir do cidadão. Esses direitos integram o rol do Título II da Constituição Federal e apresentam a mesma dignidade fundamental material e formal que os direitos individuais, pois encontram seu sustentáculo no princípio de-mocrático consagrado no artigo 1.º, caput e incisos I, II e V, da Constituição de 1988.37

5.2. Princípio da dignidade da pessoa humana

O princípio da dignidade da pessoa humana é indicado por grande parte da dou-trina nacional e estrangeira como um princípio que apontaria a materialidade do direito fundamental. Em outras palavras, se o direito fundamental estiver em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, ele será considerado, com um alto grau de certeza, um direito materialmente fundamental.38

Esse princípio, insculpido no artigo 1º, inciso III, da Constituição da República, constitui um verdadeiro valor unificador de todos os direitos fundamentais implícitos, decorrentes ou previstos em tratados internacionais, o que demonstra a sua nítida rela-ção com o artigo 5º, § 2º, da Carta Magna.

A ideia da dignidade do ser humano nasceu no pensamento cristão. No Antigo Testamento, há a manifestação de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Logo, o homem é dotado de um valor intrínseco superior ou divino, não poden-do e não devendo ser tratado, em momento algum, como animal ou como coisa. Essa alegação de que o ser humano estaria em posição superior aos animais e coisas leva à conclusão de que todos os seres humanos são iguais entre si, não havendo maior ou menor dignidade.

A dignidade encerra, além da noção de igualdade, outra, que seria a de liberdade, ou seja, o homem como ser livre e senhor de seus atos e de seu destino, dotado, portan-to, de livre arbítrio. A ideia de dignidade parte do pressuposto da autonomia ética do ser humano, nem o próprio indivíduo poderia tratar a si mesmo como simples objeto ou coisa.39

Assim, é importante notar que a dignidade é um valor fundamental para a ordem jurídica. O homem, pelo simples fato de ser homem, é titular de direitos que necessitam ser reconhecidos e respeitados pelos outros seres humanos e pelo próprio Estado. A dig-nidade, por ser inerente ao ser humano, é irrenunciável e inalienável, não podendo ser criada ou retirada, independentemente da condição do ser humano, ainda que ele seja desprovido de posses materiais, espirituais ou, até mesmo, psíquicas. É o que preconi-za o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que dispõe: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”.

37 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2ª ed. Coimbra: Coimbra, 1993, v. 4, p. 155.38 SARLET, 2002, p. 92.39 Id., 2004, p. 112.

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98 temas atuais de direito

Não se deve olvidar que, para grande parte da doutrina, o núcleo do conceito de dignidade é a possibilidade de autonomia e de autodeterminação do ser humano. Entretanto, é importante lembrar que essa autonomia é considerada de forma potencial ou abstrata, de forma que mesmo uma pessoa que sofra das faculdades mentais ou esteja absolutamente incapacitada apresenta a mesma dignidade que qualquer outra pessoa sã. Por esse mesmo motivo, o consentimento do ofendido ou até mesmo a agressão a um corpo já sem vida também pode ser capaz de atingir a dignidade da pessoa humana.40

Há, por outro lado, uma posição segundo a qual a dignidade não deve ser tomada exclusivamente como um atributo inerente ao ser humano. À dignidade também deve ser atribuído um sentido cultural, ou seja, o produto do trabalho de várias gerações e da própria humanidade como um todo, havendo, assim, uma interação entre o sentido natural e cultural da dignidade. Por isso, a dignidade assume um papel de limite e de meta para a atuação do Estado, dada a necessidade de proteção individual e coletiva da dignidade, mas os poderes estatais devem também se programar para criar condições que propiciem o máximo exercício da dignidade.41 Verifica-se, assim, que a própria dignidade individual necessita, para existir plenamente, do concurso da implementação da dignidade coletiva ou da comunidade, pois é muito difícil que sozinho o indivíduo consiga efetivar a sua própria dignidade (no sentido de necessidades existenciais bási-cas). Logo, o Estado ou a comunidade devem sempre participar para integrar o sentido de dignidade individual.

Não se deve tampouco esquecer que a dignidade também possui um caráter ou dimensão intersubjetiva. Com efeito, a dignidade individual ou da pessoa humana in-dividualmente considerada traduz-se ou propala-se por meio de uma obrigação geral de respeito do indivíduo aos demais sujeitos da coletividade e à coletividade como um todo. Isso se expressa por intermédio de uma rede ou de uma teia de direitos e deveres correlativos, que circulam em todos os sentidos e direções, ao mesmo tempo.42

Não é de se negar que a dignidade da pessoa humana expressa-se, sobretudo, por uma proteção ou respeito à integridade física do indivíduo (proibição de penas desu-manas, tortura, pena de morte, etc.), mas não se pode olvidar também que essa mesma dignidade manifesta-se por meio da garantia de condições justas de vida para o indiví-duo e sua família no grupo social. Isso implica dizer que há a necessidade de defender e garantir boas condições para que se efetivem os direitos sociais (leia-se: direito ao trabalho digno, direito à seguridade social, direito à segurança pública).

Há, entretanto, evidentemente, a possibilidade de se estabelecerem limites ou res-trições à liberdade pessoal. O aparato estatal e o desenvolvimento social representam uma constante ameaça ao direito individual. Não obstante, é possível que se tolerem determinadas ingerências na esfera de direitos do indivíduo, mas sempre com a obser-vância dos ditames legais e com base no princípio da proporcionalidade.

40 SARLET, 2004, p. 115.41 Ibid., p. 116.42 LOUREIRO, João Carlos Gonçalves. O direito à identidade genética do ser humano. Lisboa: Por-

tugal-Brasil, 2000, p. 282.

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tópicos temáticos em direitos... • alexandre manuel lopes rodrigues 99

6. PERSPECTIVAS OBJETIVA E SUBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais não se expressam apenas em sua perspectiva subjetiva, ou seja, aquela que protege o indivíduo em relação aos atos do Poder Estatal. Além desse horizonte, existe a dimensão jurídico-objetiva desses direitos, que espraia sua efi-cácia para todo o ordenamento jurídico e fornece diretrizes para a atuação dos diversos órgãos do Poder Público.

Mesmo os valores que indicam os direitos subjetivos de defesa dos cidadãos estão imbuídos de um caráter coletivo (objetivos fundamentais da comunidade), pois devem ter sua eficácia avaliada não apenas sob o ângulo individual (indivíduo vs Estado), mas também sob o aspecto do social (comunidade em sua totalidade, que inclui o individu-al), pois trata-se de valores e fins que a própria comunidade e o Estado devem respeitar e esforçar-se para concretizar.43

Nesse passo, é possível afirmar que a perspectiva objetiva dos direitos fundamen-tais informa que o exercício dos direitos subjetivos individuais está atrelado ao seu reconhecimento pela comunidade na qual se encontra embutido (responsabilidade co-munitária dos indivíduos). Em outras palavras, os valores fundamentais da comunidade respaldam o efetivo exercício dos direitos subjetivos individuais. Por isso, afirma-se que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais não apenas torna legítimas as res-trições aos direitos subjetivos individuais em relação ao interesse coletivo prevalente, como também colabora para a limitação do conteúdo e do alcance dos direitos funda-mentais, sempre ressalvando o núcleo duro e essencial desses direitos.44

Com esse entendimento, é possível constatar, por exemplo, que o próprio valor inserido no direito individual de liberdade do delinquente, que, diga-se de passagem, é um valor muito caro para a comunidade, permite que essa mesma comunidade possa, por meio do Estado, limitar o seu uso irrestrito por parte do infrator da lei penal, quan-do esse cidadão, por seus atos predatórios, põe em risco esse mesmo bem (liberdade), agora tomado em seu aspecto social.

Outro aspecto relevante da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais diz res-peito à eficácia dirigente que esses direitos (inclusive os precipuamente subjetivos) desenvolvem em relação aos órgãos do Poder Estatal. Nesse sentido, esses direitos encerram uma verdadeira ordem de fazer dirigida ao Estado, para que ele se incumba de realizar ou garantir efetivamente os direitos fundamentais. Mas não podemos esque-cer que existe, também, a ideia de que os direitos fundamentais podem irradiar seus efeitos para além da esfera estatal, atingindo certamente as relações de cunho privado. São, pois, direitos oponíveis não apenas aos poderes públicos, mas também aos demais integrantes da comunidade, em seu aspecto horizontal, espraiando mandamentos no sentido de que os demais integrantes da sociedade respeitem os direitos fundamentais de cada um e de todos ao mesmo tempo.

43 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa. Coimbra: Almedina, 1987, p. 144.

44 Ibid., p. 145.

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100 temas atuais de direito

É ainda pela perspectiva objetiva que se deve incumbir ao Estado o dever de zelar, inclusive preventivamente, pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos, não apenas contra os arbítrios do Poder Público, mas também contra as agressões oriundas de outros membros da comunidade. Isso implica dizer que o Estado deve adotar medidas positivas, com o intuito de garantir o exercício dos direitos fundamentais. Essas medidas podem resultar de decisões legislativas na esfera penal, por exemplo, ou levar à criação de organizações ou instituições estatais que possam efetivar a garantia daqueles direitos. Nosso Estado possui um dever geral de proteção do cidadão, decorrente, de forma expressa, do artigo 5.º, caput, da Constituição Federal (direito à segurança). Assim, está o Estado obrigado a concretizar esse direito por meio de nor-mas que possam dispor, por exemplo, sobre o procedimento administrativo ou judicial que deva ser dispensado a um determinado cidadão que infringe a lei penal de forma grave, ou por meio da criação de órgãos ou instituições próprias que possam cuidar do infrator, respeitando sempre os seus direitos fundamentais.

7. LIMITAÇõES E RESTRIÇõES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos tratados até aqui, não obstante serem fundamentais, não apresentam caráter absoluto, isto é, podem ser passíveis de sofrer restrições, desde que validamente estabelecidas e observados determinados critérios.

Canotilho informa que a busca do entendimento dos limites dos direitos funda-mentais passa pela identificação do âmbito estrutural do enunciado da norma em que está contido o direito, no intuito de que se individualizem quais as situações de fato protegidas e qual a extensão da proteção, que seriam os limites de conteúdo e os limites jurídicos, respectivamente.45

No próximo momento, deve-se perquirir se existe uma restrição estabelecida por normas constitucionais, de forma direta (restrição expressa), ou se a interpretação siste-mática autoriza essa restrição (limites imanentes). Pode ocorrer, também, que a própria Constituição estabeleça para o legislador infraconstitucional a autorização para realizar a restrição (reserva de lei). Com esse discurso, é possível distinguir o que se entende por limites e restrições. Os primeiros são atribuídos aos limites imanentes, ao passo que as restrições são as delimitações da norma constitucional dadas por ação de nor-ma ordinária ou constitucional contemporânea. Canotilho fala, ainda, em limites cons-titucionais imediatos, que seriam aqueles constitucionalmente positivados (em nossa Constituição, serve como exemplo o artigo 5.º, XVI – liberdade de reunião –, que sofre limites nas expressões “pacificamente” e “sem armas”).46

A questão relativa aos limites dos direitos fundamentais está diretamente ligada à questão das teorias externa e interna que procuram explicar o conteúdo desses direitos.

45 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1142.

46 Ibid., p. 1143.

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A teoria interna pressupõe a não limitação dos direitos fundamentais. Considera existir o direito, desde sempre, com um específico conteúdo. Assim, uma atitude jurídi-ca que ultrapasse o limite desse conteúdo não pode ser válida, pois não está amparada por uma proteção de direito fundamental. Para tal teoria, os limites não seriam elemen-tos externos ao conteúdo dos direitos fundamentais, pois ela não admite que a legis-lação desenvolvida com fundamento nas reservas represente limites ao conteúdo dos direitos, mas apenas mecanismos de interpretação e revelação de seus limites máximos. Além de tal horizonte, não é possível cogitar uma proteção da norma jusfundamental, pois, nesse ponto, já não existe direito fundamental. Por outro lado, na parte interna do âmbito de proteção da norma, qualquer intervenção legislativa corresponde à violação do direito fundamental. Nesse passo, só é dado ao legislador infraconstitucional, no espaço dos direitos fundamentais, conformar seu conteúdo de forma a afastá-lo dos outros bens e valores constitucionais de igual ou superior hierarquia ou violar esses direitos, toda vez que se imiscuir no interior de sua imanência.47

Na visão de Alexy,48 ao adotar-se a teoria interna, deve-se imaginar como realida-de que existe apenas o direito com um determinado conteúdo. Não há a necessidade de se questionar acerca de seus limites, pois eles dizem respeito, não à existência dos di-reitos, mas apenas ao seu conteúdo. Por esse prisma, os direitos fundamentais definidos como sem reserva legal não possuem outras limitações a não ser aquelas decorrentes de seu próprio conteúdo, que será decifrado por meio da análise do âmbito da norma e de seu programa normativo. Assim, o conteúdo do direito é conhecido de uma vez só, por meio de um único ato dogmático de interpretação que incide no âmbito normativo, no qual repousam os limites imanentes. Os limites imanentes são, nessa concepção, parte integrante do conteúdo dos direitos fundamentais, e não apenas limites.49

Para os direitos com expressa reserva legal, existem os limites, visto que o legisla-dor possui autorização para efetuar uma cisão adicional no conteúdo previamente esta-belecido por meio da interpretação da previsão constitucional, pois aqueles instituídos sem reservas não podem ser limitados, a não ser pela própria Constituição.

Para a teoria interna, dessa forma, os direitos fundamentais são considerados como absolutos e ilimitados, não existindo restrições que os afetem, visto que as restrições importariam em diminuição de seu conteúdo. Os limites aceitos são apenas aqueles ima-nentes, pois, pela análise do conteúdo da norma de direito fundamental, é que se vai fazer a sua interpretação. Quando existe uma norma infraconstitucional que exclui ou limita a hipótese de proteção da norma jusfundamental, ela deve ser considerada apenas como es-clarecedora de algo que já estava contido na intimidade da norma (limitação imanente).50

47 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 314.

48 ALEXY, 2002, p. 307.49 Ibid., p. 59.50 MEDINA GUERRERO, Manuel. La vinculación negativa del legislador a los derechos fundamen-

tales. Madri: McGraw-Hill, 1996, p. 59.

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102 temas atuais de direito

Os limites imanentes são considerados aqueles que, desde seu nascedouro, estão contidos no interior da norma de direito fundamental. Logo, não podem ser provenien-tes, em hipótese alguma, do exterior. Quando nasce, a norma jusfundamental já possui em seu interior as fronteiras jurídicas e materiais de sua atuação (limites do conteúdo da proteção constitucional inserido no âmbito de proteção da norma de direito fundamen-tal). Como exemplo, é possível citar a hipótese contida nos artigos 6.º, 196 e seguintes da Constituição Federal de 1988, que afirmam que o direito à saúde é um direito cons-titucional fundamental. Considere-se a hipótese de uma pessoa gestante fazer questão de dar à luz em um determinado hospital e de ser tratada por um médico específico de sua preferência, quando o Estado possibilita-lhe o acesso a um hospital público de qualidade e com profissionais reconhecidamente competentes. Pergunta-se: teria essa pessoa, com amparo na norma de direito jusfundamental à saúde, o direito de escolher onde e por quem vai ser atendida? A resposta, com base na teoria dos limites imanen-tes, seria, obviamente, negativa, pois nem todos os modos de exercício do direito estão abrangidos na previsão normativa. O direito à saúde e à vida permanecem intocados, mas a pretensão da parturiente não está incluída nos limites de conteúdo da norma de direito fundamental.51

Um dos limites imanentes mais importantes apontado pela doutrina52 diz respeito ao conteúdo do artigo XXIX, nº 2, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.53 Esse dispositivo prega que um limite só deve ser admitido como tal, quando se destine a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a satis-fazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar social.

A Constituição da República Portuguesa dispõe expressamente, em seu artigo 16º, nº 2, que a interpretação dos preceitos constitucionais e infraconstitucionais relativos a direitos fundamentais somente deve ser realizada em consonância com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Nossa Constituição não prevê tal dispositivo, en-tretanto, temos o § 3º do artigo 5º (Emenda Constitucional nº 45/2004), que propala o reconhecimento pela ordem jurídica interna dos direitos fundamentais introduzidos por tratados internacionais, dos quais nosso País seja parte, que assim ganharão força de emenda constitucional.

É fato que a Declaração Universal não é um tratado; entretanto, traduz-se em um verdadeiro código e em uma verdadeira plataforma comum de ação, que possui força jurídica vinculante, no dizer de Piovesan,54 por estar embasada na compreensão de que

51 FREITAS, Luiz Fernando Calil de. Direitos fundamentais: limites e restrições. Porto Alegre: Livra-ria do Advogado, 2007, p. 83.

52 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 115.

53 “No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações deter-minadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem, e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática”.

54 PIOVESAN, 1996, p.155.

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tópicos temáticos em direitos... • alexandre manuel lopes rodrigues 103

dispõe de normas de direito costumeiro internacional ou princípios gerais de direito internacional. A mesma autora,55 para reforçar seu entendimento, afirma que a legiti-midade e a força da Declaração decorrem do fato de que várias constituições incorpo-ram seus mandamentos. Há, também, inúmeras resoluções da Organização das Nações Unidas que recomendam a observância dos fundamentos contidos na Declaração; em nosso caso, existem também muitas decisões de Tribunais de Justiça nacionais que se referem à Declaração Universal como fonte de direito.

Admitindo-se o artigo XXIX, nº 2, como limite imanente e aplicável ao nosso siste-ma jurídico, é possível verificar que o cidadão, no uso de seus direitos de liberdade, deve observar, como limite, o respeito aos direitos e liberdades de outrem e deve também estar guiado pela satisfação às exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar social.

A ordem pública pode ser considerada a situação de tranquilidade e normalidade social que o Estado deve assegurar às instituições e a todos os jurisdicionados. São as condições necessárias ao regular funcionamento das instituições e ao pleno exercício dos direitos. A ordem pública deve buscar sempre a concretização do equilíbrio en-tre liberdade e autoridade.56 Está ligada aos bens considerados de segurança pública, como o direito à vida, à segurança propriamente dita, à saúde, à liberdade (pública), ao patrimônio e à honra, sempre protegidos pelo direito positivo e ainda por normas de natureza social, cultural e moral (concepções éticas e sociais dominantes), visando a prevenção ou a eliminação de perigos que afetem a ordem e a segurança da sociedade, observando, em todo o caso, os limites dos princípios da legalidade e da proporcionali-dade, sem violar o núcleo essencial do direito fundamental limitado.57

Ainda no que tange às restrições, existe o que se convencionou chamar teoria ex-terna, que se funda na distinção entre o conteúdo dos direitos fundamentais e os limites decorrentes do exterior. Essa teoria preocupa-se com o limite da legitimidade dos limi-tes e das restrições passíveis de serem impostos aos direitos fundamentais. Tem como interesse a proteção e a defesa da liberdade e da propriedade contra as ingerências provenientes do Poder Estatal (Teoria Liberal dos Direitos Fundamentais).58 A liberda-de é um bem considerado anterior e preponderante em relação ao Estado, havendo um nítido espaço de separação entre eles. Assim, a anterioridade da liberdade do indivíduo pode ser considerada como ilimitada, enquanto a possibilidade de o Estado proceder à intervenção nessa liberdade passa a ser limitada. Todos os limites, desse modo, passam a ter um efeito exterior, pois o conteúdo intrínseco é, prima facie, ilimitado. A limitação externa passa a ocorrer a partir da existência da lei, entendida como norma jurídica que afeta os direitos à liberdade e à propriedade.

O raciocínio faz-se da seguinte maneira: perquire-se se uma determinada situação está incluída no âmbito de proteção da norma jusfundamental; em seguida, deve-se

55 Ibid., p. 162.56 MIRANDA, 1993, p. 303.57 NOVAIS, 2003, p. 476.58 Ibid., p. 292.

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examinar se existe limitação estabelecida em lei e se tal limite está constitucionalmente autorizado. Assim, chega-se ao entendimento de que a limitação ou restrição é legítima ou viola o conteúdo do direito fundamental.

A crítica que se faz a essa teoria é a seguinte: se a possibilidade de limitação e de restrição aos direitos jusfundamentais depende da existência de reserva legal, quando não existir essa norma, ter-se-ia de admitir que não há limitação, ou seja, que existem direitos fundamentais absolutos.

Robert Alexy propõe uma outra forma de considerar a questão dos limites e res-trições aos direitos fundamentais. Para esse autor, os limites e as restrições não são anteparos impostos pelos poderes constituídos, embasados em autorização constitucio-nal (teoria externa), nem a concretização de limites imanentes contidos nas normas de direitos fundamentais (teoria interna). Mas é a natureza das normas de direitos funda-mentais, tidas como princípios, que estabelece o fundamento que permitirá estabelecer a prevalência de um direito, prima facie, sobre outro.59

Alexy tomou por base o trabalho de Dworkin,60 no qual o autor faz a diferenciação entre regras e princípios. As primeiras seriam levadas em conta no modelo de interpre-tação “tudo ou nada” (regra válida ou inválida). Quanto aos princípios, a dimensão é o peso, sendo possível a variação na sua aplicabilidade, em função da importância que o princípio adquire em um caso concreto. Deverá atuar, então, um juízo de proporcio-nalidade para que se dê a solução do caso, surgindo, assim, as regras adscritas, que são aquelas resultantes da ponderação.

Para Alexy, existe uma diferença marcante entre o direito fundamental prima facie e o direito fundamental definitivo, que é aquele que já resulta da ponderação. O direito prima facie pressupõe a possibilidade de realizar toda e qualquer conduta que esteja embutida no âmbito de proteção da norma, só encontrando limitação no momento em que se realiza a ponderação, tendo em vista os demais direitos fundamentais e os bens constitucionalmente protegidos, no caso concreto.

7.1. A reserva do possível

Qualquer que seja a teoria adotada, não é possível olvidar que, em termos de limites e restrições de direitos fundamentais, a teoria da reserva do possível sempre vai atuar como um freio a mais nesse âmbito. Essa teoria diz respeito, mais diretamente, aos direi-tos às prestações positivas ou prestações em sentido estrito. Mesmo que se admita que os direitos sociais não são meros direitos a prestações programáticas, mas possuem vincula-tividade normativa, ou seja, tem o Poder Público o dever de legislar e de atuar em confor-midade com as diretrizes definidas por tais direitos, sob pena de omissão inconstitucional.

É sabido que o Poder Público deve perseverar no sentido de materializar medidas concretas e determinadas que possam viabilizar a existência dos direitos sociais. Tais

59 ALEXY, 1997, p. 70.60 DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 132.

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medidas não são deixadas ao livre arbítrio do legislador; entretanto, ele possui livre conformação quanto às soluções legislativas, ao modo de estruturação e ao ritmo da concretização dessas medidas.

De qualquer modo, a realização de direitos a prestações positivas sempre demanda dispêndio de recursos econômicos, como nos casos dos direitos à saúde, à educação, à segurança, etc. A reserva do possível é um limitador fático para a implementação desses direitos, em razão de sua natureza econômica. A definição dos recursos e a sua destina-ção são tarefas afetas ao legislador e ao administrador; entretanto, é possível repousar sobre o julgador o exame da adequação de tais decisões às previsões constitucionais.61

O direito social à saúde, por exemplo, direito subjetivo que pode ser exigido pe-rante o Estado-juiz, pode ser limitado em função da escassez de recursos. Caso haja a necessidade de decidir se se deve garantir o direito à saúde de uma pessoa que necessita tomar remédios caros e não disponíveis no país, ou manter recursos disponíveis para atender e tratar uma grande quantidade de pessoas atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o Judiciário pode ser chamado a intervir. Nesse caso, com base no prin-cípio da reserva do possível, devem-se evitar as decisões desproporcionais e não razo-áveis, pugnando-se para que o Estado cumpra o seu dever constitucional, sem adentrar no mérito da escolha que caberia ao Estado-administração. Há decisões no sentido de que sejam estabelecidas prioridades no atendimento do direito à saúde, quando se verifica que existe carência de recursos orçamentários para atender a todos os pedidos concernentes ao direito à vida.62

Entretanto, não se pode deixar de notar que mesmo os direitos fundamentais de caráter social, que demandam a realização de prestações positivas, possuem um con-teúdo nuclear, também chamado “núcleo duro”, que é detentor de uma força jurídica especial, por estar ligado diretamente ao conceito de dignidade da pessoa humana. Assim, deve-se atuar de forma moderada quanto à aplicação do princípio da reserva do possível como limitador dos direitos fundamentais, ainda mais diante de prestações que demandam urgência e cujo indeferimento judicial pode acarretar o perecimento do direito à vida, à saúde, à integridade física ou mesmo da dignidade humana.

7.2. Dignidade da pessoa humana como limitação jusfundamental

O princípio da dignidade da pessoa humana também atua como fator de limi-tação e restrição de direitos fundamentais. Esse princípio tem uma capacidade de se espraiar no seio da comunidade e de impor limites às relações entre o Estado e o particular, entre particulares e até mesmo da pessoa contra si mesma, visto que a dignidade possui uma característica de indisponibilidade, por ser parte do núcleo essencial dos direitos fundamentais.63

61 AMARAL, Gustavo. Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 113.62 TJRS. Agravo de Instrumento nº 70010918449, Rel. Maria Berenice Dias, 23 mar. 2005. 63 SARLET, 2002, p. 113.

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A dignidade da pessoa humana tanto pode existir como limite imanente – ou seja, aquele que existe desde sempre e está presente no âmago da norma jusfundamental –, quanto pode estar presente como autorizadora de restrições atribuídas ao legislador ordinário. De qualquer sorte, esse limite apresenta a qualidade de ser muito genérico ou abstrato, o que dificulta a sua concretização, ainda mais quando se verifica que se devem observar e respeitar as ideias e concepções de outras culturas, que podem ter uma percepção diferente do que seja dignidade e do limite necessário para que ela seja atingida ou não.

Veja-se o caso do direito de não ser torturado. Esse direito é tido por muitos como uma possível exceção aos limites e restrições dos direitos fundamentais. Dito de outro modo, seria um direito que valeria em qualquer situação e que não admitiria jamais limites, nem em casos excepcionais.64 No caso do Brasil, a Lei nº 9.455/97 define a tor-tura como crime, e o artigo 5º, LVI, da CF estabelece que as provas obtidas por meios ilícitos não podem ser utilizadas no processo penal. Isso, para alguns autores, tornaria absoluto o direito a não ser torturado em nosso País, somente sendo possível estabe-lecer o que vem a ser um comportamento torturante (limite de conteúdo – restrição concreta e não abstrata).65

Por outro lado, a dignidade humana está configurada como princípio fundamen-tal da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso II, da CF), constituindo parte do núcleo essencial de nossa Magna Carta, em seu aspecto tanto formal quanto material. Assim, os direitos fundamentais encontrariam seu fundamento na dignidade da pessoa humana, pois o Estado existiria em função da pessoa humana; logo o que justifica e dá finalidade e legitimidade ao poder estatal é a garantia do princípio da dignidade da pessoa humana.

Não obstante, existem países que admitem o emprego da tortura, em determinados casos de segurança nacional, como é o caso dos EUA, de Israel e da Irlanda (terrorista que, preso, pode revelar a localização de objetos explosivos, capazes de causar danos a muitas pessoas), nos quais o direito a não ser torturado cede frente ao direito à vida, à integridade física, à segurança e à ordem pública.

É possível ainda falar nos limites dos limites com relação à aposição de limites e restrições aos direitos fundamentais. Assim, a ação limitadora somente poderia fazer-se sentir na medida do estritamente necessário à concretização e à preservação dos direitos jusfundamentais. Seriam os limites dos limites, portanto, requisitos constitucionalmente estabelecidos que seriam exigíveis de todas as limitações e restrições e que devem obrigatoriamente ser respeitados, sob pena de serem essas limitações e restrições consideradas inconstitucionais.

Em nosso país, não existem esses limites constitucionais previamente e explici-tamente estabelecidos, como ocorre em outros países (Portugal, Espanha, Alemanha, etc.). Logo, deve-se buscar socorro no princípio do Estado Democrático de Direito,

64 BOBBIO, 1992, p. 21.65 FREITAS, 2007, p. 180.

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pois esse é um Estado de Direitos Fundamentais, como diz Canotilho,66 no qual estão pre-servadas, ao mesmo tempo, as liberdades individuais e sociais (liberdade e igualdade). O Estado está comprometido em modificar a realidade social por via da intervenção demo-crática e da otimização dos direitos fundamentais, com ênfase na proteção do princípio da dignidade humana. No Estado Democrático de Direito, é possível observar duas vertentes principais da virtude jurídica, que expressam os limites dos limites em termos de direitos fundamentais: a primeira seria a lei, como manifestação dos interesses e programas dos grupos políticos majoritários; a segunda seria individualizada pelos direitos invioláveis atribuídos pela Constituição ao cidadão, independentemente de lei.67

O artigo 5º, inciso II, da nossa CF estabelece a reserva legal. A lei é assim limita-dora das atividades que opõem limites e restrições aos direitos fundamentais. Mesmo quando a Constituição explicitamente ou implicitamente autoriza uma restrição, ela só se pode dar em virtude de lei; mesmo assim, as restrições devem ser interpretadas, sem-pre, de forma restritiva. Isso ocorre pelo fato de que, no Estado Democrático de Direito, ao legislador é dado o poder de limitar a fome de poder do Executivo, protegendo-se assim os direitos fundamentais. Hoje, com o aumento da atividade do Estado, que não só se limita a não intervir no âmbito de mobilidade do indivíduo, mas também é chama-do a atuar de forma ativa para a realização dos direitos sociais, torna-se mais premente a interpretação de forma restrita das cláusulas restritivas, que somente devem aceitar tolhimento quando destinadas à otimização dos direitos fundamentais, sempre que pos-tos em perigo tais direitos, ou outros bens, inclusive os sociais, como a segurança, em decorrência de conflitos e colisões.68

Não obstante, o legislador pode estabelecer restrições aos direitos fundamentais, bem como preencher seu conteúdo e clarear seus limites, agindo sempre com ponde-ração, em decorrência de autorização constitucional explícita ou implícita, de forma a equalizar a existência e o convívio dos direitos jusfundamentais entre si e para os outros bens protegidos na forma da Constituição. De qualquer sorte, o instrumento de que se vale o legislador deve ser a lei em sentido formal e material, devendo ela ter as seguintes características: ser clara, geral e abstrata, voltada para a produção de efeitos no futuro; ser razoável; não ofender o princípio da proporcionalidade; preservar o núcleo essencial do direito jusfundamental restringido; não afetar a dignidade da pessoa humana.69

A restrição legal aos direitos fundamentais apenas deve ser tida como válida, ou seja, constitucional, quando for produto de uma norma clara, determinada, geral e abs-trata. Isso se infere, no caso do Brasil, do modelo de Estado Democrático de Direito no qual ele se constitui.

Quando a norma infraconstitucional refoge dos preceitos suprarreferidos, ocorre clara violação do princípio da segurança jurídica que, no dizer de José Afonso da Silva,

66 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991, p. 83.67 FREITAS, 2007, p. 187.68 FREITAS, 2007, p. 188.69 Ibid., p. 189.

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é “o conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida”.70

Quando se examina o problema à luz da teoria externa, verifica-se que as restri-ções aos direitos fundamentais apenas são constitucionalmente adequadas quando a expressa autorização constitucional assim determinar (reserva legal). Daí deriva, ob-viamente, o controle que a teoria externa propicia das intervenções desvantajosas aos direitos fundamentais, pois elas somente serão válidas se autorizadas e na exata medida da autorização. Assim, quando a lei que deve ser elaborada e que deriva da autorização constitucional não se apresenta de forma clara e determinada, pode ser apontada como inviável e inconstitucional, uma vez que a intervenção restritiva tornou-se prejudicada.

8. DIREITOS HUMANOS: LIBERDADE INDIVIDUAL vS. LIBERDADE SOCIAL

Os direitos do homem representam uma classe variável de direitos, como a história dos últimos séculos tem demonstrado. A grande gama de direitos do homem modificou-se e ainda está em mutação, acompanhando as mudanças das condições históricas e as cres-centes necessidades e interesses da comunidade humana, impulsionados por constantes avanços sociais, econômicos, tecnológicos e científicos. Direitos declarados absolutos nos estertores do século XVIII (propriedade e liberdade, por exemplo) foram submetidos a radicais limitações nas declarações contemporâneas. Direitos que as declarações do século XVIII jamais pensaram em mencionar, como os direitos sociais – dentre os quais se destacam o da segurança pública (em virtude da crescente onda de violência que assola diversos países), o do meio ambiente sadio, o da segurança dos meios de comunicação e de transmissão de dados, o da biossegurança (questão relacionada à manipulação dos genes humanos ou clonagem) –, devem agora ser tratados com a maior atenção possível, não sendo difícil prever que, em um futuro próximo, essas pretensões e mesmo outras que no momento nem sequer podemos imaginar passem a compor o texto de novas declara-ções de direitos do homem. Tais fatos comprovam que não existem direitos fundamentais por natureza, pois os direitos são historicamente relativos.71

A classe dos direitos do homem é também heterogênea, uma vez que as declara-ções apresentam direitos muito diversificados e até incompatíveis entre si. Bem escas-sos são os direitos considerados fundamentais que não entram em conflito com outros direitos também considerados fundamentais e que, portanto, não impõem uma opção em determinada situação. Assim, segundo Bobbio, o reconhecimento do direito de não ser escravizado implica a eliminação do direito de possuir escravos. Nesse caso, acrescenta o autor, a escolha parece fácil, mas, na maioria das situações, a escolha é

70 SILVA, José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 433.

71 BOBBIO, 1992, p. 20.

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duvidosa e necessita ser motivada. Por exemplo: quando se propugna pela abolição da censura prévia dos espetáculos cinematográficos, tem-se de escolher entre o direito de expressão do produtor do filme e o direito do público de não ser escandalizado ou chocado com as cenas ou ideias expostas na película. Para Bobbio, a escolha resolve--se com a introdução de limites na extensão de um dos dois direitos, de forma que seja em parte resguardado também o outro. Relativamente aos espetáculos, cita o referido autor, a limitação deve ficar afeta ao respeito aos bons costumes. Assim, direitos fun-damentais também podem sofrer restrições quando contrapostos a outros direitos não menos fundamentais.72

Assim também devem ser tratados os conflitos entre os direitos individuais tradi-cionais (liberdades) e os direitos sociais (poderes). Os primeiros exigem da parte dos outros (aí incluídos os órgãos públicos) obrigações puramente negativas, que implicam abstenções de determinados comportamentos. Já os segundos só podem ser realizados se for imposto a outros (incluídos os órgãos públicos) um certo número de obrigações positivas. Logo, verifica-se que a realização total de uns impede a realização integral dos outros. Quanto mais se agigantam os poderes dos indivíduos, mais diminuem as liberdades dos mesmos indivíduos.

Bobbio defende a ideia de que dois direitos fundamentais e antagônicos não po-dem ter um fundamento absoluto comum, isto é, um fundamento que torne um direito e seu oposto, ambos, inquestionáveis ou intocáveis. Para ele, a ilusão do fundamento ab-soluto foi um obstáculo à introdução de novos direitos. Um exemplo seria o empecilho posto ao avanço da legislação social pela teoria jusnaturalista do fundamento absoluto da propriedade. Ainda: a oposição quase secular contra a introdução dos direitos sociais foi feita em nome do fundamento absoluto dos direitos de liberdade. Assim, na visão do autor em tela, o fundamento absoluto é não apenas uma ilusão, mas também um argumento para defender posições conservadoras. Tal posicionamento, regra geral, não é aceito hodiernamente, uma vez que se entende que o fundamento absoluto combatido por Bobbio é, sem dúvida, a dignidade da pessoa humana, que está insculpida em man-damento constitucional (art. 1º, III, da CF de 1988).73

Ainda segundo Bobbio, há três modos de fundamentar os valores: deduzi-los de um dado objetivo constante, como, por exemplo, a natureza humana; considerá-los como verdades que podem ser depreendidas de si mesmas; por fim, descobrir que, num dado momento histórico, eles são geralmente aceitos, o que expressaria a prova do consenso.

Contra o primeiro argumento, tem-se que a natureza humana é um dado incons-tante e mutável, e isso é comprovado por meio da história do jusnaturalismo, que evi-dencia que a natureza humana foi interpretada dos mais diferentes modos: do direito do mais forte (Spinoza) ao direito à liberdade (Kant). Já o apelo à evidência tem a deficiência de se estruturar além de qualquer prova de caráter racional. Por certo, no momento em que se submetem valores tidos como evidentes à verificação histórica,

72 BOBBIO, 1992, p. 20.73 Ibid., p. 22.

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fica patente que o que foi declarado como evidente por uns em um dado momento, não mais será assim considerado por outros em outro momento. Bobbio cita alguns exem-plos. A Declaração de 1789 declarava que a propriedade era “sagrada e inviolável”; hoje, ao contrário, toda referência ao direito de propriedade como direito do homem desapareceu nos documentos mais recentes das Nações Unidas. Durante muito tempo, a tortura foi aceita e defendida como procedimento judiciário normal; hodiernamente, existem, em quase todas as nações desenvolvidas do mundo, leis que consideram a tortura como crime – no Brasil, ela é até mesmo considerada um ilícito equiparado aos crimes tidos como hediondos.

O terceiro modo de justificar os valores é demonstrar que eles são apoiados no consenso. Trata-se de um argumento histórico e, portanto, não absoluto, mas, segundo Bobbio, é o único que pode ser factualmente comprovado. A Declaração Universal dos Direitos do Homem pode ser considerada como a maior prova histórica do consensus omnium gentium sobre um determinado sistema de valores. A partir de sua aprovação, tal documento foi acolhido como inspiração e orientação no processo de crescimento de toda a comunidade internacional no sentido de delinear uma comunidade não só de Estados, mas também de indivíduos livres e iguais.74

John Locke, grande representante do jusnaturalismo, afirmava que, por natureza, os homens são livres e iguais. A mesma ideia foi sintetizada no corolário da Declaração Universal dos Direitos do Homem que cunhou a seguinte expressão: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. De acordo com esse pensamento, o verdadeiro estado do homem não é o civil, é antes o natural. Não obstante os termos da Declaração, na realidade os homens não nascem livres nem iguais. São livres e iguais apenas em relação a um nascimento ou a uma natureza ideal, isto é, aquela que tinham em mente os jusnaturalistas. As tão propaladas liberdade e igualdade do homem não são um dado factível; são antes um ideal a ser alcançado; são, não uma existência, mas um valor; são, não um ser, mas um dever ser.75

A partir da Declaração de 1948, a afirmação dos direitos do homem passa a ter um caráter universal e positivo, visto que os destinatários dos princípios nela contidos são, não mais os cidadãos desse ou daquele Estado, mas toda a Humanidade. Além disso, a Declaração desencadeia um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser, não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, mas eficazmente reconhecidos e protegidos, isto é, positivados.

Não obstante, é de suma importância evidenciar que a Declaração representa ape-nas o primeiro passo de uma longa e profícua caminhada, pois, apesar de denotar um sistema doutrinário, não chega a ser um sistema de normas jurídicas. Em seu próprio texto, afirma-se que ela tem por objetivo buscar “um ideal comum a ser alcançado por todos os povos e por todas as nações”; afirma-se ainda que “é indispensável que os direitos do homem sejam protegidos por normas jurídicas, caso se queira evitar que o

74 BOBBIO, 1992, p. 27.75 BOBBIO, 1992, p. 29.

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homem seja obrigado a recorrer, como última instância, à rebelião contra a tirania e a opressão”.76

No tempo em que os direitos do homem eram considerados exclusivamente como direitos naturais, a única defesa possível contra a sua violação pelo Estado era outro direito igualmente natural – o de resistência. Posteriormente, nas constituições que reconheceram a proteção jurídica desses direitos, o direito de resistência transmutou-se no direito positivo de promover uma ação judicial contra os próprios órgãos do Estado. Dessa forma, aos cidadãos integrantes de um Estado que não reconheça determinados direitos naturais, só resta recorrer ao direito natural de resistência.77

De tudo o que foi dito, pode-se inferir, na esteira de Bobbio, que os direitos huma-nos não são um produto da Natureza; são antes fruto da evolução da civilização humana, visto que, sendo direitos históricos, eles são mutáveis, suscetíveis de transformações e ampliações. Os mais embrionários jusnaturalistas (Hobbes, por exemplo) reconheciam a existência de apenas um direito: o direito à vida. Posteriormente, compreendeu-se que os direitos do homem evoluíram, sendo certo que ultrapassaram três fases distintas. No pri-meiro momento, afirmaram-se os direitos de liberdade (aqueles que limitam o poder do Estado). Esse direito de primeira geração foi pensado tomando-se por base as necessida-des do homem médio (burguês ou comerciante) do século XVIII, que tinha por objetivo defender-se do crescente domínio e poderio estatal, representado pelo Estado Absolutista. Num segundo momento, ganharam efeito os direitos políticos, os quais concebem a li-berdade não só negativamente, como impedimento da ação estatal, mas também positi-vamente, o que motivou, como consequência, a participação cada vez mais ampla dos membros de uma comunidade no poder político. Por último, foram sacramentados os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências ou novos valores, como bem estar (qualidade de vida), igualdade, defesa social contra a insegurança provo-cada pela violência urbana e rural, usufruto de um meio ambiente limpo e sadio, poder – ou não – utilizar recursos medicinais oriundos da manipulação genética de células tronco com o objetivo de curar doenças ou minorar suas consequências, usufruir da segurança da transmissão de dados, voz e imagens via rede mundial de computadores (Internet), etc.78

Percebe-se cristalinamente que o desenvolvimento da técnica, a evolução econô-mica e social, a ampliação dos conhecimentos e a intensificação dos meios de comuni-cação, bem como o avanço da violência urbana e da criminalidade, impulsionado pela desigualdade social e pela proliferação de maciços conglomerados urbanos, marcados pela carência de recursos materiais e muitas vezes morais, fazem nascer novas necessi-dades e novos valores que passam a criar a demanda por novos status de liberdade e de poder. Como exemplos, podem-se citar a necessidade de não ser enganado ou perturba-do por uma propaganda maciça e deformadora, que se contrapõe ao direito de expressar as próprias opiniões e ao direito à verdade das informações.

76 Ibid., p. 31.77 Ibid., p. 32.78 BOBBIO, 1992, p. 33.

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112 temas atuais de direito

Regra geral, quando dois direitos igualmente fundamentais estão em conflito, não se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante. Importante se faz lembrar o já citado exemplo do direito à liberdade de expressão em contrapartida ao direito de não ser enganado, escandalizado, injuriado, pelos progra-mas ou atos que são veiculados ou expostos ao público. Nesses casos, deve-se falar de direitos fundamentais não absolutos, no sentido de que sua tutela encontra um limite insuperável na tutela de um direito igualmente fundamental, mas concorrente. Sempre será uma questão de opinião estabelecer qual o ponto em que um termina e o outro co-meça. A delimitação do âmbito de um direito fundamental do homem é extremamente variável e não pode ser estabelecida de uma vez por todas.79

Quando se consideram como direitos do homem, além dos direitos de liberdade, também os direitos sociais, entende-se imediatamente que esses direitos pertencem a uma categoria heterogênea de direitos. Isso porque a categoria em seu conjunto passou a conter direitos entre si incompatíveis, ou seja, direitos cuja proteção não pode ser con-cedida sem que seja restringida ou suspensa a restrição de outros. É possível imaginar uma sociedade ao mesmo tempo livre e justa, na qual são global e simultaneamente realizados os direitos de liberdade e os direitos sociais, mas isso é extremamente im-provável. As sociedades são mais livres na medida em que menos justas e mais justas na medida em que menos livres. Vale esclarecer que se denominam “liberdades” os direitos que são garantidos quando o Estado não intervém e “poderes” os direitos que exigem uma intervenção estatal para sua efetivação.80

Por outro lado, não se pode esquecer que uma coisa é falar dos direitos do homem (direitos sempre novos e cada vez mais extensos) e justificá-los com argumentos con-vincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva, pois, à medida que as pre-tensões aumentam, a satisfação delas torna-se cada vez mais difícil. Os direitos sociais são mais difíceis de proteger do que os direitos de liberdade.81

De qualquer sorte, os direitos do homem são também um fenômeno social, o que lhes confere um caráter de mutabilidade e faz com que se multipliquem à medida que a sociedade muda e também evolui. Essa multiplicação deu-se de três formas distintas: a) aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos do homem a sujeitos diversos; c) o próprio homem passou a não mais ser considerado como ente genérico ou homem em abstrato, mas visto na concreticidade de suas diversas maneiras de ser – criança, velho, doente, etc.

A primeira mudança ocorreu com a passagem dos direitos de liberdade (das cha-madas liberdades negativas de religião, de opinião, de imprensa, etc.) para os direitos políticos e sociais, que requerem uma intervenção direta do Estado. A segunda mudan-ça deu-se com a passagem da consideração do indivíduo humano, uti singulis, primeiro sujeito a quem se atribuíram direitos naturais (a pessoa), para sujeitos diferentes do

79 BOBBIO, 1992, p. 42.80 BOBBIO, 1992, p. 43.81 Ibid., p. 63.

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indivíduo, como a família, as minorias étnicas e religiosas, toda a Humanidade em seu conjunto, a natureza, a sociedade fazendo frente à violência (direito à segurança pública). A terceira mudança resultou da passagem do homem genérico para o especí-fico, com base em seu diferenciado status social (sexo, idade, condições físicas, etc.). Basta examinar as cartas de direitos que se sucederam no âmbito internacional para se observar esse fenômeno: Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (1959), Declaração da Criança (1959), Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (1971), Deficientes Físicos (1982), etc.82

É dispensável acrescentar que o reconhecimento dos direitos sociais suscita, além do problema da proliferação dos direitos do homem, outro problema bem mais difícil, que se traduz pela efetiva proteção desses direitos, o que requer uma intervenção ativa do Estado (intervenção essa que não é requerida para a proteção dos direitos de liberdade). Intervir ativamente implica uma alta organização dos serviços públicos, nascendo daí uma nova forma de Estado (o Estado Social). Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado, no sentido de limitar tal poder, os direitos sociais exigem, para sua realização prática, ou seja, para sua efetiva proteção, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado. O exercício do poder pode ser considerado benéfico ou maléfico, segundo o contexto histórico. Não traduz a realidade a afirmação de que o aumento da liberdade é sempre um bem ou o aumento do poder é sempre um mal.83

Não há como negar que a doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofia jusnaturalista, a qual, no intuito de justificar a existência de direitos pertencentes ao ho-mem, independentemente do Estado, partiu da ideia de um estado de natureza, no qual os direitos do homem são poucos e essenciais, como o direito à vida e à sobrevivência, que inclui também o direito à propriedade, e o direito à liberdade. Para Kant, o homem natural tem um único direito, o direito de liberdade, entendida a liberdade como “in-dependência em face de todo constrangimento imposto pela vontade de outro”, já que todos os demais direitos, incluindo o direito à igualdade, estão nele compreendidos.84

Com base nesse conjunto de ideias, verificamos que a hipótese do estado de natu-reza, enquanto estado pré-estatal e, para alguns, até mesmo pré-social, era uma tentati-va de justificar racionalmente certas demandas que proliferavam de forma vertiginosa. Num primeiro momento, durante as guerras de religião, surgiu a necessidade da liber-dade de consciência contra toda forma de imposição de uma crença. Essa imposição era normalmente seguida de uma sanção, não só espiritual e moral, como também fí-sica (tortura e execuções praticadas em nome da religião pela Santa Inquisição, por exemplo). Em um segundo momento, na época que vai da Revolução Inglesa à Norte-Americana e à Francesa, houve a demanda de liberdades civis contra toda forma de despotismo. Nessa fase, o estado de natureza é considerado uma construção doutriná-

82 Ibid., p. 69.83 BOBBIO, 1992, p. 72.84 Ibid., p. 74.

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ria, cujo objetivo era justificar e tornar eficazes os direitos inerentes à própria nature-za do homem, declarando-os invioláveis em relação aos detentores do poder público, inalienáveis por atos de seus próprios titulares e, finalmente, imprescritíveis por mais longa que fosse a duração de sua violação. O berço no qual floresceram as necessidades e exigências desses direitos era constituído pelas lutas e pelos movimentos, que devem ser buscados, não mais na hipótese do estado de natureza, mas na realidade social da época, que expressava os anseios e carências resultantes das contradições e mudanças de um dado momento histórico.

Mostra-se patente que as necessidades e exigências evoluem e ultrapassam a hipótese do racional para alcançar a análise da sociedade real e de sua história. Hodiernamente percebe-se que as exigências que buscam conferir maior proteção a indivíduos e grupos (exigências que vão bem além da liberdade) aumentaram enor-memente e continuam a aumentar. Nesse aspecto, para justificá-las, a hipótese abstrata de um estado de natureza simples, primitivo, no qual o homem sobrevive com poucas necessidades essenciais, não teria mais nenhuma força de persuasão e, portanto, ne-nhuma utilidade teórica ou prática. O fato de que a lista dos direitos que necessitam de proteção esteja em constante ampliação não só demonstra que o ponto de partida do hipotético estado de natureza perdeu toda a plausibilidade, mas também deveria ter o condão de tornar-nos conscientes de que o mundo das relações sociais do qual essas exigências derivam é muito mais complexo e de que, para a vida e para a sobrevivência dos homens, nessa nova sociedade, não bastam os chamados direitos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade.85

Novamente Bobbio cita um exemplo que bem ilustra a situação descrita: não exis-te atualmente nenhuma carta de direitos que não reconheça o direito à instrução; em um primeiro momento, tratava-se do direito à instrução elementar, depois da instrução secundária e pouco a pouco da universitária. Não obstante ser o direito à instrução, hoje em dia, amplamente reconhecido, não era ao menos referido nas mais conhecidas declarações que se baseavam no estado de natureza. A verdade é que esse direito não foi posto no estado de natureza porque não emergira na sociedade da época na qual nasceram as doutrinas jusnaturalistas. Naquele momento, as exigências fundamentais traduziam-se principalmente em exigências de liberdade, para fazer face às obriga-ções impostas pela Igreja e pelo Estado. Somente uma sociedade bem mais evoluída econômica e socialmente pode sentir a necessidade de proteger outros bens, como a instrução, para buscar o exemplo de Bobbio, ou da segurança pública, para abordar o tema do presente estudo.

As antigas exigências tinham por finalidade impor limites aos poderes opressivos. Sendo assim, a hipótese de um estado pré-estatal, ou de um estado liberto de poderes supraindividuais, como os das igrejas e dos governos políticos, correspondia perfeita-mente à finalidade de justificar a redução, ao mínimo possível, do espaço ocupado por tais poderes e de ampliar os espaços de liberdade dos indivíduos. De forma contrária,

85 BOBBIO, 1992, p. 75.

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a hipótese do homem como animal político, que remonta a Aristóteles, permitiu justificar durante séculos o Estado paternalista, no qual o indivíduo não possui por natureza ne-nhum dos direitos de liberdade, direitos dos quais, como uma criança, não estaria em con-dições de usufruir, não só para o bem comum, mas nem mesmo para seu próprio bem.86

Enquanto a relação entre mudança social e nascimento dos direitos de liberdade foi menos evidente, era possível afirmar que a exigência de liberdades civis era fundada na existência de direitos naturais, pertencentes ao homem enquanto tal. Não obstante, a relação entre o nascimento e o crescimento dos direitos sociais, por um lado, e a transformação da sociedade, por outro, é inteiramente evidente. É possível evidenciar tal fenômeno, quando se verifica que as exigências de direitos sociais tornaram-se tan-to mais numerosas quanto mais rápida e profunda foi a transformação da sociedade. Bobbio cita um exemplo: a exigência de uma maior proteção aos idosos jamais po-deria ter-se consolidado se não houvesse ocorrido um incremento na longevidade da população, o que demonstra um efeito direto das modificações ocorridas nas relações sociais e resultantes dos progressos da medicina. Da mesma sorte, temos as exigências de maior proteção da natureza, da segurança nos meios de comunicação via Internet, da manipulação de material genético, que traz à baila a possibilidade de clonagem animal e até mesmo humana, com a consequente ampliação da esfera dos direitos e liberdades públicas; além desses pontos, consideramos muito significativo o direito da população à segurança, dada a crescente onda de violência.

A proteção de toda essa gama de direitos era inconcebível quando esses mesmos direitos ainda não haviam nascido, ou não eram possíveis de serem implementados por questões de evolução social, econômica, populacional e técnica. Isso significa dizer que a conexão entre mudança social e mudança na teoria e na prática dos direitos funda-mentais sempre existiu. O nascimento dos direitos sociais apenas tornou essa conexão mais evidente, tão evidente que atualmente não pode mais ser negligenciada. Numa sociedade em que somente os proprietários gozavam de cidadania ativa, era óbvio que o direito de propriedade fosse elevado à categoria de direito fundamental; também é óbvio que, na sociedade existente em países da primeira revolução industrial, quando entraram em cena os movimentos operários, o direito ao trabalho tenha sido inconti-nenti elevado à categoria de direito fundamental. A inclusão dos direitos citados na categoria de direitos fundamentais tem suas raízes na natureza das relações de poder características das sociedades que haviam gerado tais reivindicações e, por conseguin-te, na natureza específica, historicamente determinada, daquelas sociedades.87

9. DIREITOS SOCIAIS E SUA EFETIVIDADE

É inegável que os direitos sociais são parte integrante dos direitos fundamentais – direitos individuais, políticos, econômicos e sociais –, os quais constituem, como

86 BOBBIO, 1992, p. 76.87 BOBBIO, 1992, p. 77.

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aqueles, direitos essenciais, básicos e elementares, levados em consideração em deter-minada época, desenvolvidos a partir da consciência social e moral de um determinado povo em certo momento histórico. Configuram-se, pois, como um conjunto de valores que, considerados como fundamentais dentro de cada ordenamento jurídico, concreti-zam e desenvolvem a ideia de justiça.

Embora os direitos sociais façam parte do conteúdo mínimo de direitos assegu-rados ao indivíduo para que possa atingir uma existência digna, fazendo jus ao status de ser humano, sua eficácia imediata ainda não é ponto pacífico entre doutrinadores, juristas e aplicadores do Direito, não só em nosso País, como também em Estados alie-nígenas. Por eficácia jurídica, deve-se compreender a aptidão formal de uma norma jurídica para incidir sobre a vida material, regendo relações concretas.

O que costumeiramente é alegado, quando se pretende descaracterizar a condi-ção de aplicabilidade imediata dos direitos sociais, é que suas normas não teriam o caráter de autoaplicabilidade, como os chamados direitos individuais. Pelo contrário, os direitos sociais teriam um nítido caráter de normas programáticas, que sempre ne-cessitariam de uma atuação política, econômica e social do governo, o que denota que elas necessitam de uma regulamentação estatal, por meio de regras que lhes delimitem melhor o objeto, o campo de incidência e a forma procedimental, concedendo-lhes assim plena eficácia.88

A classificação das normas constitucionais quanto à sua eficácia apresenta grande variação. Há autores que as definem como normas de eficácia absoluta, normas com eficácia plena, normas com eficácia restringível e normas com eficácia complemen-tável. Outros, como José Afonso da Silva, entendem que, embora a Constituição de-clare expressamente que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, isso não resolve todas as questões, uma vez que a própria Constituição indica que algumas normas definidoras de direitos sociais dependem da regulamentação por uma legislação posterior, para ganhar aplicabilidade. José Afonso da Silva afirma que existem normas constitucionais programáticas, que se subdividem em normas constitucionais de eficácia plena, normas constitucionais de eficácia con-tida e normas constitucionais de eficácia limitada, compreendidas por normas consti-tucionais de princípio institutivo e normas constitucionais de princípio programático. Esclarece o autor também que as normas que consubstanciam os direitos fundamentais políticos e individuais são de eficácia contida e de aplicabilidade imediata, ao passo que as definidoras dos direitos econômicos e sociais tendem a sê-lo também, mas algu-mas apresentam eficácia limitada, princípios programáticos e aplicabilidade indireta.89

Não obstante, podemos levantar a hipótese de que a Constituição, como expres-são de um pacto político fundamental que emerge da sociedade, tem legitimidade para regular a estrutura nuclear das relações essenciais existentes naquela sociedade. Dessa

88 SILVEIRA, Cláudia Maria Toledo. Auto-aplicabilidade dos direitos sociais. Disponível em: <http:// www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 16 jul. 2008./.

89 SILVA, 1996, p. 96.

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forma, a ideia de negação de imediata aptidão para atingir e reger situações e relações fático-jurídicas concretas – negação de eficácia – não é compatível com o conceito de Carta Política de um País. A Constituição, considerada como diploma máximo de uma realidade sociopolítica é, antes de tudo, válida, eficaz e aplicável, incidindo imediata-mente sobre situações fático-jurídicas concretas. Não podemos negar, entretanto, que determinados preceitos constitucionais apresentam um grau variável na intensidade de sua eficácia imediata, o que, em alguns casos, acaba por determinar a negação de auto-aplicabilidade de certas normas.

Nesse passo, podemos reconhecer a existência de três tipos principais dessas nor-mas: normas de eficácia plena, de aplicação imediata e integral, que não dependem de legislação posterior para o alcance de sua cabal operatividade; normas de eficácia con-tida, de aplicabilidade imediata, embora sua eficácia seja restringível por diploma in-fraconstitucional, conforme autorizado pela própria Constituição (não sendo editada a legislação complementar regulamentadora e restritiva, a norma firmar-se-ia em vigor); normas de eficácia limitada, que dependem da emissão de uma normatividade futura (regulamentação cabível ao legislador ordinário) para alcançar plena eficácia que, não obstante seja imediata, é significativamente limitada.

Para alguns autores, os direitos sociais estariam inseridos nesse último tipo de normas que, apesar de não serem totalmente destituídas de eficácia jurídica, já que têm aptidão para obstar a edição de normas infraconstitucionais de sentido antitético ou in-compatível ao incorporado ao preceito constitucional, têm caráter programático, visto que propõem um verdadeiro “programa constitucional” a ser desenvolvido mediante legislação integrativa da vontade constitucional.

Robert Alexy apresenta uma classificação que enfatiza a existência de direitos sociais com caráter “definitivo” – isto é, aqueles dotados de efeito vinculante ou autoa-plicáveis e direitos oriundos de obrigações estatais –, que dariam nascimento a princí-pios, os quais, por sua vez, não gerariam nenhum dever definitivo por parte do Estado, tornando-se enunciados meramente programáticos. A diferença fundamental existente entre o primeiro e o segundo tipo de direitos sociais reside no fato de que os primeiros têm de ser estabelecidos por meio de ponderações; isso não se aplica ao caso dos deve-res não vinculantes. Para o não cumprimento de um princípio (direitos sociais com ca-ráter de definitividade), têm de existir, do ponto de vista do direito, razões plausíveis e bastante fortes. Isso não ocorre no caso de não cumprimento de um dever juridicamente não vinculante. Um dever ordenado por um princípio pode, se não existe nenhuma ra-zão aceitável para seu não cumprimento, conduzir a um dever definitivo; um dever não vinculante não apresenta esse efeito.90

Segundo Alexy, o Poder Judiciário, por meio da Corte Suprema de Controle Constitucional, não pode exercer controle sobre o cumprimento dos princípios consti-tucionais; pode apenas controlar aquelas normas geradoras de dever definitivo. Mesmo assim, tais princípios somente seriam executáveis por intermédio de prévia pondera-

90 ALEXY, 1993, p. 98.

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ção, o que faz com que certo princípio específico, por exemplo, à luz dos princípios opostos, seja ou não satisfeito.

A colisão de princípios pode ser resolvida realizando-se a ponderação entre os bens jurídicos em jogo, estabelecendo-se uma relação de pesos, com base na máxima da proporcionalidade. Essa máxima é formada, por sua vez, de três máximas parciais: a adequação (a resposta jurídica que se quer dar é adequada ao problema que se en-frenta?), a necessidade (postulado do meio mais benigno. Meio que agredirá o Direito Fundamental em conflito de forma mínima, dentro do possível) e a proporcionalidade em sentido estrito (postulado de ponderação em sentido estrito – qual direito deverá efetivamente prevalecer).

10. BIBLIOGRAFIA

ADEODATO, João Maurício. O problema da legitimidade no rastro do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

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9A EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS

Ivanilson Paulo Corrêa Raiol

RESUMO: Este artigo discute a delicada questão dos direitos fundamentais, com desta-que aos direitos sociais. Procura apresentar caminhos para eficácia dos direitos sociais fundamentais.Palavras-chave: direitos fundamentais; direitos sociais.

ABSTRACT: This article discusses the delicate question of the fundamental rights, mainly the social rights. Looking for ways to present the effectiveness of fundamental social rights.

KEY-WORDS: human rights; social rights.

SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais. 1.1. Direitos fundamentais e direitos humanos. 1.2. Direitos fundamentas individuais e sociais. 2. A eficácia dos direitos sociais.

1. CONSIDERAÇõES INICIAIS

Uma das mais inquietantes questões que cercam as regras e princípios consti-tucionais diz respeito à necessidade da realização prática dessas normas. Imputar à Constituição escrita a posição secundária de simples “folha de papel”1 não parece re-sponder às carências que os dispositivos normativos integrantes de um ordenamento jurídico apresentam no longo e angustiante caminho em busca de sua materialização, de sua passagem de categorias abstratas para realidades concretas da vida; enfim, de sua efetividade.

1 LASSALLE, em conferência de 1863 para operários e intelectuais da Prússia, falando acerca da essência da Constituição, assim se pronunciou: “Tenho demonstrado a relação que guardam entre si as duas constituições de um país: essa constituição real e efetiva, integralizada pelos fatores reais de poder que regem a sociedade, e essa outra constituição escrita, à qual, para distingui-la da primeira, vamos denominar folha de papel.” LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição, p. 23.

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122 temas atuais de direito

A realização do direito, portanto, é que diminuirá o vazio existente entre realidade fática e normatividade,2 contribuindo-se decisivamente para a racionalidade na aplica-ção do direito.

Nessa linha, apresentam-se os direitos fundamentais com um significado rele-vante para a diminuição do vazio, mencionado acima, por intermédio da sua eficácia irradiante que reconhece a força dos valores inseridos nas normas jusfundamentais, capazes de penetração por todo o ordenamento jurídico e obrigando os que lidam com o direito a um esforço interpretativo que condicione as regras e princípios a uma gra-vitação em torno daqueles direitos. Como lembra Daniel Sarmento, “através dela” (da eficácia irradiante dos direitos fundamentais), “os direitos fundamentais deixam de ser concebidos como meros limites para o ordenamento, e se convertem no norte do direito positivo, no seu verdadeiro eixo gravitacional”.3

Portanto, a efetividade do Direito impõe que se procure um delineamento dos direitos fundamentais. Precisar o conteúdo, alcance e limites desses direitos representa um grande passo para superação dos problemas colocados à sua concretização, apro-ximando o direito da realidade social subjacente e fornecendo ao intérprete padrões seguros para aplicação de preceitos constitucionais.

Nessa esteira, os direitos sociais fundamentais merecem especial consideração para, levando-se em conta a necessidade de concretização da norma constitucional, es-clarecer-se da possibilidade de sua aplicação efetiva, pelo menos com respeito àqueles que já se encontram inseridos no catálogo de direitos reconhecidos pela Constituição.

1.1. Direitos fundamentais e direitos humanos

Um primeiro problema a enfrentar diz respeito à própria concepção de direitos so-ciais. O que são direitos sociais? Na verdade, são eles direitos fundamentais? E, afinal, o que são direitos fundamentais?

Começando pela última das indagações, impõe-se saber, inicialmente, o significa-do da expressão “direitos fundamentais”.

Não existe unanimidade doutrinária no emprego das expressões direitos huma-nos e direitos fundamentais. Há autores que distinguem uma de outra, afirmando que

2 HESSE chamou a atenção para a busca desse equilíbrio entre o ser (realidade) e o dever ser (norma-tividade), afirmando da necessidade de aproximação desses dois aspectos: “Hay, pues, que buscar el camino entre el sacrifício de lo normativo ante la simple facticidad de uma parte y la normatividad ajena a la realidad y carente de contenido, de outra” – “Deve-se, pois, perseguir o caminho entre o sa-crifício do normativo diante da simples facticidade, de uma parte, e a normatividade alheia à realidade e carente de conteúdo, de outra”. In: HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Trad. Pedro Cruz Villalon. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992, p. 61. Tradução livre do autor.

3 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 156. O mesmo autor menciona que os que atuam com o direito devem proceder à revisita-ção das normas infraconstitucionais, reinterpretando os dispositivos existentes à luz da Constituição e especialmente dos direitos fundamentais. É o fenômeno da filtragem constitucional.

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a eficácia dos direitos sociais fundamentais • ivanilson paulo corrêa raiol 123

direitos fundamentais seriam aqueles direitos positivados ou reconhecidos pela ordem constitucional de determinado Estado.4 Porém, para outros, a utilização é indistinta, vez que, na essência, não permaneceria a diferença entre direitos humanos e direitos fundamentais.5

Qualquer tentativa de estabelecer diferença entre as duas expressões apresenta-se desprovida de real importância. Há autores que justificam a opção por direitos funda-mentais, alegando que se trata de conceito mais preciso, definido, restrito e que, por ser utilizado em referência aos direitos constitucionais positivados no ordenamento interno de Estados, daria uma maior conformação espacial e temporal àqueles direitos. Nesse sentido, a expressão direitos humanos seria vaga, de contexto universal, relacionada aos acordos internacionais e que estaria condicionada a ações estatais para sua efetividade.

Na realidade, é inadmissível falar de direitos fundamentais, sem esclarecer que eles representam os mesmos direitos humanos cuja designação se procura evitar. Foram os doutrinadores alemães que elaboraram a distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais, buscando sustentar o caráter de obrigatoriedade daqueles “direitos do homem” que fossem reconhecidos expressamente pelas autoridades incumbidas da ela-boração das normas.6 Porém, deixando à parte esse aspecto nitidamente positivista, não há como sustentar convincentemente uma diferença entre as duas expressões.

Tem razão Comparato, aliás, quando afirma que o fundamento dos direitos hu-manos encontra-se na consciência ética coletiva.7 Somente um natural desenrolar do processo histórico pode fornecer os indicativos seguros para uma compreensão dos direitos humanos fundamentais.8

Desse modo, não se pode utilizar como critério distintivo entre direitos humanos e direitos fundamentais o registro ou não da norma em um determinado texto oriundo da ação do Estado, quer nacional ou internacionalmente, pois, se admitida essa hipótese,

4 Nessa linha, Ingo Sarlet, Paulo Bonavides e Jorge Miranda apud THEODORO, Marcelo Antonio. Direitos fundamentais e sua concretização. Curitiba: Juruá, 2003, p. 28. Também, Fábio Konder Comparato, embora demonstre a fragilidade dessa distinção, revela que os direitos fundamentais “são os direitos humanos reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o poder polí-tico de editar normas, tanto no interior dos Estados quanto no plano internacional”. In: A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 57.

5 Assim, FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Sarai-va, 2004, p. 14. É interessante notar que o autor, adotando a terminologia direitos humanos funda-mentais, afirma que direitos fundamentais são uma abreviação da referida designação. Celso Lafer, ora menciona direitos fundamentais do homem, ora direitos humanos, reservando àquela a qualidade de “expressão jurídica do valor da pessoa humana”. In: A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 118.

6 COMPARATO, Fábio Konder. Ibidem, p. 57. 7 A consciência ética coletiva seria “a convicção, longa e largamente estabelecida na comunidade,

de que a dignidade da condição humana exige o respeito a certos bens ou valores em qualquer circunstância, ainda que não reconhecidos no ordenamento estatal, ou em documentos normativos internacionais”. Ibidem, p. 59.

8 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Ibidem, p. 14.

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124 temas atuais de direito

os direitos fundamentais só existiriam a partir da atuação da vontade estatal, criando-se, com esse entendimento, o grave risco de admitir-se que o mesmo Estado que “cria” os direitos fundamentais tem, também, o poder de extingui-los. Seria, em última instância, a nacionalização ou estatização dos direitos humanos.

Portanto, respeitadas as opiniões contrárias, é possível admitir que as expressões direitos humanos, direitos fundamentais, direitos fundamentais do homem ou direitos humanos fundamentais podem ser empregadas sem distinção de conteúdo ou valor.

1.2. Direitos fundamentais individuais e sociais

Na busca pela origem dos direitos humanos, pode-se ir muito longe. Vê-se, por exemplo, que quando Caim matou a Abel seu irmão, o próprio Deus teria estabelecido um limite à vingança de qualquer pessoa em relação ao fratricida, determinando que ninguém poderia tocar na vida de Caim.9 Identificar-se-ia, nessa ordem divina, a proteção de vários direitos fundamentais, o direito à vida, à integridade física, a um julgamento justo, todos convergentes à preservação da dignidade da pessoa humana, ainda que autora da mais reprochável conduta. Como se vê, fica extremamente complicado o estabelecimento de marcos doutrinários para a indicação do nascimento dos direitos fundamentais.10

Por opção metodológica, entretanto, adota-se o século XVIII como ponto de par-tida para uma análise histórica desses direitos, mais precisamente na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

A Declaração de Independência dos Estados Unidos foi antecedida por alguns dias pela Declaração dos Direitos da Virgínia (editada em 12 de junho de 1776 e tornada pública em 16 de junho do mesmo ano) que, segundo Fábio Comparato, constitui, na História, o registro de nascimento dos direitos humanos.11 Seja como for, redigida por Thomas Jefferson, a Declaração de Independência representa um marco importante na consolidação de direitos, como o da autodeterminação dos povos, o de que todos os homens são iguais e possuidores de certos direitos inalienáveis (vida, liberdade e busca da felicidade), entre outros. Para se ter uma ideia da grandiosidade desse documento, Jefferson condenara no projeto da Declaração de Independência (cujas raízes mergu-lham na Declaração de Virgínia) até mesmo os horrores da escravidão negra.

Dessa maneira, a Declaração de Independência apresenta-se duplamente impor-tante. Por um lado, expressa em documento o reconhecimento de “direitos inaliená-

9 GÊNESIS. Português. In: Bíblia de estudo de Genebra. Tradução João Ferreira de Almeida. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999, p. 16. O texto declara: “O SENHOR, porém, lhe disse: Assim, qualquer que matar a Caim será vingado sete vezes. E pôs o SENHOR um sinal em Caim, para que o não ferisse de morte quem quer que o encontrasse” . Gn 4, 15. (sic).

10 Há estudiosos que procuram desenvolver um relato em busca da origem e desenvolvimento dos di-reitos humanos, desde os remotos tempos bíblicos. Nesse sentido, LAFER, Celso. Idem, pp. 118ss; COMPARATO, Fábio Konder. Idem, p. 1-67.

11 Ibidem, p. 49.

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veis” em favor de todos os homens (direitos fundamentais) e, por outro lado, projeta-se espacialmente para outro continente, influenciando os revolucionários franceses com seus ideais de exaltação dos direitos individuais.

Porém, ainda que se reconheça o valor do documento americano, não se pode deixar de anotar que, por seu caráter destacadamente nacionalista (não era uma pre-ocupação imperativa com os direitos de “todos os homens”, mas uma reafirmação de antigos direitos do cidadão inglês, diante dos abusos e usurpações do governo da Grã-Bretanha), não se espraiou pelo mundo.12 Diferentemente, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão apresenta uma característica universal, uma generosidade transmitida por suas fórmulas que alcançou uma multidão de povos de diferentes lín-guas, tendo, portanto, um destaque incomparável na disseminação das concepções fun-damentais de direitos que obrigavam a um reconhecimento geral.

O documento francês tem, por conseguinte, o mérito de uma preocupação uni-versal com os direitos fundamentais, já que, conforme declinado no preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a ignorância, a negligência ou o desprezo dos direitos humanos são as causas exclusivas dos infortúnios públicos e das corrupções do governo.13 Evidente que não se pretende realizar um estudo aprofundado do texto da Declaração de 1789 (ainda que seja algo interessante); contudo, é suficiente observar que a Carta enuncia uma primeira geração histórica de direitos fundamentais relacionados ao Homem e suas liberdades (o indivíduo com prerrogativas reconhecidas e tuteladas pelo ordenamento do Estado), estabelecendo-se, destarte, a demarcação entre Estado e não-Estado.14 Merece menção, ainda, o fato de que a Declaração procla-ma a vinculação da existência de um Estado constitucional à condição da garantia dos direitos e da separação dos poderes.15

Por essa perspectiva, positivado foi aquilo que Manoel Gonçalves Ferreira Filho identifica como o núcleo dos direitos fundamentais,16 ou seja, as liberdades públicas (direitos individuais). Ou seja, a primeira geração histórica de direitos fundamentais.

Constituída a fase histórica de afirmação dos “direitos-liberdades”, novas inquie-tações eclodiram na sociedade, oriundas do progresso técnico e da corrida desenfre-

12 Em carta de 4 de maio de 1787, Thomas Jefferson escreve a John Jay acerca de uma epístola rece-bida de um brasileiro que demonstrara interesse em seguir os Estados Unidos no “exemplo de liber-tação”, desejando o apoio americano na possibilidade do Brasil “quebrar os grilhões” de Portugal. Após descrever detalhadamente as condições geográficas, militares, econômicas e culturais do Bra-sil, na referida Carta, Jefferson revela o caráter nacionalista da revolução americana, dizendo “que não estamos em circunstâncias de comprometer a nação em uma guerra; que desejamos especial-mente cultivar a amizade de Portugal, com o qual fizemos um trato vantajoso”. In: O Federalista. Tradução Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell, 2003, pp. 11-14.

13 PAINE, Thomas. Direitos do homem. Tradução Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2005, pp. 95-96.14 LAFER, Celso. Ibidem, p. 126.15 “Toda comunidade na qual uma separação dos poderes e uma garantia dos direitos não estejam

estabelecidas, quer uma Constituição”. In: PAINE, Thomas. Idem, p. 98.16 Op. cit. p. 28.

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ada pela conquista e consolidação de mercados. As liberdades já não se mostravam suficientes à garantia da dignidade da pessoa, surgindo, então, as doutrinas socialistas como resposta às terríveis condições de miséria a que foram lançadas as classes traba-lhadoras. Revolução Industrial, Movimentos Sociais (ludismo, cartismo, Comuna de Paris), novas doutrinas sociais (positivismo, socialismo, anarquismo), enfim, o mundo estava mudando e exigia uma nova configuração ou, pelo menos, outra interpretação dos direitos humanos fundamentais.

Os direitos sociais começam, então, a ser reconhecidos em vários documentos. Primeiro, por meio da Constituição Mexicana de 1917; depois, a Constituição de Weimar de 1919. Estabelecidos os limites contra o abuso do poder estatal em face do indivíduo, observou-se que a liberdade fora extremada em prejuízo da igualdade (reduzida a um conceito formal), criando-se na sociedade um abismo intransponível entre os que detinham a propriedade (ou a liberdade de comércio) e os que foram re-legados à exploração da sua força de trabalho. Como assinalaram Marx e Engels, no Manifesto Comunista do ano de 1848, a burguesia (única classe a usufruir da liber-dade) fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e, no lugar das numerosas e indestrutíveis liberdades conquistadas, estabeleceu uma única e implacável liber-dade: a liberdade de comércio.17 Esse quadro impôs o reconhecimento de novos di-reitos, os direitos individuais exercidos coletivamente, chamados direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade: liberdade de associação, direito ao trabalho, à educação, à saúde, enfim, um feixe espesso de direitos fundamentais que passou a complementar os direitos de primeira geração, procurando concretizar a dignidade da pessoa humana.

A Constituição mexicana trazia em seu bojo, devido à influencia do anarquismo, proposições de proteção às relações de trabalho, instituindo a jornada máxima de oito horas (art.123, I), a responsabilidade patronal por acidentes do trabalho (art. 123, XIV); o direito de associação de classe (art. 123, XVI), o direito de greve com fechamento dos estabelecimentos (art. 123, XVII), o direito de moradia (art, 123, XXX), dentre outras tantas disposições que fundaram as bases de um Estado Social de Direito.

Por sua vez, a Constituição de Weimar de 1919, embora posterior à Constituição mexicana, devido originar-se de um país europeu e possuir, sem dúvida, uma estrutura mais refinada do que a mexicana, influenciou decisivamente muitos países ocidentais, ressentidos das agruras da 2ª Guerra Mundial, com todas as consequências sociais ne-gativas que esse conflito ajudou a aprofundar: miséria, fome, desamparo. A população mundial estava perdida sem saber a quem recorrer, pois o liberalismo, com sua doutrina redutora do Estado, mostrara-se insensível aos direitos econômicos e sociais capazes de conferir dignidade ao ser humano. Ressurgiu, por conseguinte, a discussão acerca do retorno do Estado, por intermédio da redefinição e reorganização da sua função, para ocupar um espaço ativo na promoção de ações governamentais que interviessem no

17 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Cartas filosóficas e o manifesto comunista de 1848. São Paulo: Editora Moraes, 1987, p. 105.

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mercado, produzindo investimentos públicos e distribuição de bens. Por essa razão, a primeira parte da Constituição de 1919 ocupa-se do Estado.

Para completar a sua bem elaborada estrutura, a segunda parte da Constituição de Weimar é dedicada aos “direitos e deveres fundamentais dos alemães”. Destacam-se, nesse catálogo, os direitos sociais: educação obrigatória (art. 145), igualdade entre marido e mulher (art. 119), preocupação com a infância e adolescência (art. 121 e 122), liberdade econômica, mas nos limites da manutenção da existência, conforme à digni-dade humana (art. 151). Enfim, por tudo que dispôs, o documento alemão representa, ao lado da Constituição Mexicana de 1917, um divisor de águas entre um Estado liberal clássico e um Estado social.

A partir de então, não se podia mais negar, no plano jurídico positivo, a existência de outros direitos que fossem além da liberdade individual. Reconheciam-se, agora, formalmente, direitos fundamentais que exigiam, ao contrário de uma abstenção do Estado, uma ação concreta desse mesmo Estado na realização de prestações sociais consideradas fundamentais.

Todavia, novas necessidades humanas impunham novéis desafios. Os horrores de duas grandes guerras foram o grito que despertou o valor da solidariedade humana; os homens tornavam-se conscientes de que não bastavam tutelar liberdades e direitos sociais, uma vez que a experiência revelara novas dimensões dos direitos fundamentais referentes a todas as gentes. Essa terceira geração de direitos, amplos, abrangentes, pas-sa a ser reconhecida no plano internacional. Com a criação dos organismos internacio-nais e os documentos que passaram a publicar, iniciou-se um caminho sem volta para a internacionalização dos direitos humanos.18 As Convenções Internacionais celebradas pela Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Internacional do Trabalho (OIT) e outras entidades de direito internacional produziram vários documentos enun-ciando esses novos direitos dos povos e da humanidade.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho19 informa que são quatro os principais direitos dessa terceira geração: o direito à paz (relacionado à convivência amistosa entre os Estados), o direito ao desenvolvimento,20 o direito ao meio ambiente21 e o direito ao patrimônio comum da humanidade.22

18 COMPARATO menciona duas fases de internacionalização dos direitos humanos. A primeira, da 2ª metade do século XIX, iniciando com a Convenção de Genebra de 1864, até a 2ª Guerra Mundial. A segunda, a partir de 1945, término da Grande Guerra. Idem, pp. 54-57.

19 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, op. cit., p. 58.20 A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento da ONU, de 1986, no seu artigo 1º diz que o

direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável.21 O primeiro dos direitos de 3ª geração a definir sua estrutura. A Declaração de Estocolmo, 1972, pro-

clamou que o homem tem o direito fundamental ao gozo de condições de vida adequadas num meio ambiente sustentável.

22 A Convenção sobre o Direito do Mar, de 1982, estabeleceu que “os fundos marinhos e oceânicos e o seu subsolo para além dos limites da jurisdição nacional, bem como os respectivos recursos, são patrimônio comum da humanidade”. – Preâmbulo da Convenção.

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Como se verifica, os direitos fundamentais alcançaram dimensões gigantescas. Da simples luta por um núcleo individual que garantisse um espaço inviolável de liberda-des e, ao mesmo tempo, protegido pelo Estado, passou-se à proteção de grupos huma-nos (consumidores, família, nação, povo) que se apresentam como titulares difusos ou coletivos desses diretos de terceira geração, direitos de solidariedade.

Para rematar, é interessante notar que há autores que sustentam a existência de outras gerações de direitos fundamentais. Assim, Bobbio fala da integridade do pa-trimônio genético,23 Bonavides defende os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo.24

Sobram críticas quanto a essa excessiva compartimentalização (mesmo histórica) dos direitos fundamentais, afirmando-se do grave risco que se corre na busca pela iden-tificação de “outras gerações” de direitos, quando ainda nem mesmo foram efetivados antigos direitos humanos, deixando no vazio um considerável elenco das garantias fun-damentais existentes. Nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho adverte que é preciso, todavia, ter consciência de que a multiplicação de direitos’fundamentais’ vul-gariza e desvaloriza a idéia.25 Contudo, mesmo reconhecendo a justa preocupação do professor Ferreira Filho, convém observar que o fato da não concretização de direitos fundamentais não deve ser atribuído à identificação de novos direitos humanos. Pelo contrário, uma vez que não se criam direitos fundamentais, mas tão-somente declara-se a sua existência, deve-se, sim, ampliar cada vez mais o rol desses direitos, obrigando--se, por meio dos instrumentos legislativos e judiciários, o respeito e a efetividade dos direitos humanos fundamentais, tornando-os uma realidade histórica e jurídica, e não um simples ornamento constitucional.

Diante dessas considerações, crê-se que já se pode estabelecer o alcance da ex-pressão “direitos fundamentais”. Sem definir, por todos os inconvenientes que qualquer definição carrega, os direitos fundamentais são aqueles direitos do homem, reconhe-cidos ou não pelo Estado, frutos de um movimento histórico inacabável e de práticas interpessoais e sociais constantes e que se assentam em variadas exigências, como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana.

Muitas conclusões podem ser extraídas do conceito que se propôs. Por dificulda-des naturais, são esclarecidas apenas algumas. O princípio que se adota é kantiano, pois se compreende que só as pessoas, como seres racionais dotados de vontade, existem, por sua própria natureza, como um fim em si mesmas. Desse modo, os direitos funda-mentais, como direitos da pessoa, são universais, antecedendo, desse modo, a qualquer ordenamento do Estado. Esse fato, porém, não retira o reconhecimento da individua-lidade; pelo contrário, reforça a condição de ser insubstituível do homem e de toda a sua espécie. Aliás, essa característica de universalidade dos direitos fundamentais foi

23 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Op. cit., p. 6.24 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 6a ed., São Paulo: Malheiros, 1994, apud

THEODORO, Marcelo Antonio. Direitos fundamentais e sua concretização, ibidem, p. 30.25 Ibidem, p. 67.

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afirmada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.26

Outra conclusão é que os direitos fundamentais são resultado do movimento da História. Realmente, não se concebe que possa qualquer outra força (inclusive estatal) “criar” os direitos humanos fundamentais. É a “consciência ética coletiva”, já mencio-nada, que se expande, impondo o respeito a bens e valores reconhecidos pela comunida-de como inalienáveis e irrenunciáveis, devido à afetação, na sua ausência, da dignidade da condição do homem como pessoa que existe por si mesma, autonomamente.

Finalmente, embora se reconheça que a positivação dos direitos humanos imprima segurança e programaticidade aos valores que expressa, não se pode admitir, sem diver-gir, que os direitos fundamentais são apenas aqueles reconhecidos pela ordem estatal. Fábio Comparato apresenta razões seguras para rejeitar esse posicionamento positi-vista. Uma seria que nada impediria a inserção de falsos direitos humanos em textos oficiais, quando, na verdade, tais “direitos fundamentais” não passariam de regramento de privilégios de uma minoria dominante. Outra razão estaria na contestação à crítica positivista de que, fora do Estado, não há direito, pois os direitos fundamentais pos-suem a característica justamente de valerem contra o Estado. Vale dizer, o Estado, num ilogicismo flagrante, estabeleceria direitos contra o seu próprio poder, caso se aceitasse tal ideia positivista. Por derradeira razão, se o Estado cria os direitos humanos, nada impediria que esse Estado suprimisse ou, muitas vezes o que pode ser até pior, alterasse o conteúdo desses direitos, tornando-os ineficazes ou irreconhecíveis.27

Como reforço, traz-se à baila o argumento de que a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 60, § 4º, IV, veda qualquer deliberação sobre proposta de emenda que realize a “abolição” dos direitos e garantias individuais. Mas, só para demonstrar o risco de sustentar-se a ideia de inexistir direito fundamental fora do ordenamento estatal, veja-se que o legislador usou o termo abolir, e não alterar que, como dito acima, pode apresentar-se até mais nocivo do que abolir. Assim, a prevalecer a tese de existirem direitos humanos somente sob a força criadora do Estado, correr-se-ia o perigo de admitir-se modificação ou alteração na configuração de direitos reconheci-dos constitucionalmente, esvaziando-os ou deformando-os e ocasionando, na prática, uma reversão desses direitos com incalculáveis perdas à comunidade formada sob a égide dos direitos humanos. Também, uma interpretação acanhada do dispositivo mencionado, conduziria à desastrosa conclusão de que o constituinte não estabele-cera limites à emenda concernente à abolição de direitos sociais. O que seria um absurdo que poucos defenderiam.

Estabelecida essa compreensão dos direitos fundamentais, urge, agora, enfrentar a segunda indagação formulada acima no início, respondendo, ao mesmo tempo, à per-gunta: o que são direitos sociais?

26 Art. I: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.

27 Ibidem, pp. 58-59.

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130 temas atuais de direito

À questão se os direitos sociais podem ser reputados como direitos fundamentais, responde-se afirmativamente.

Segundo Alexy,28 os direitos sociais fundamentais são direitos a prestações em sen-tido estrito, ou seja, direitos do indivíduo frente ao Estado; direitos a prestações estatais.29 Alexy identifica, dentro das classes dos direitos sociais fundamentais, os direitos sociais explicitamente estabelecidos e os direitos sociais interpretativamente atribuídos. Os pri-meiros, à evidência, seriam os direitos sociais fundamentais expressos em texto constitu-cional, ao passo que os segundos se constituiriam de normas que se encontram inseridas às disposições de direito fundamental, por uma atribuição interpretativa.

Por sua vez, Bidart Campos afirma que os direitos sociais são inspirados no con-ceito de “liberdade para”, buscando satisfazer àquelas necessidades humanas que se encontram fora do alcance dos recursos individuais de todos. Os direitos sociais dei-xariam de lado o individualismo liberal (marcado pelo conceito de “liberdade de”), inclinando-se, dessa forma, à solidariedade social e ao desenvolvimento material, econômico, social, cultural, político da comunidade.30 Os direitos sociais prendem-se, portanto, à concepção do Estado social de direito, relacionando-se à ideia não mais de um Poder Público distante da vida de seus membros (abstencionista), mas próximo e atuante a eles, tendo em vista, sobretudo, a realização da dignidade do ser humano.

No que concerne à titularidade desses direitos, uma dificuldade frequentemente apresentada pelos que negam atribuir aos direitos sociais a condição de direitos fun-damentais repousa no fato de não poderem referidos direitos ser exigidos em juízo (pretensão). Rebate-se essa crítica com o argumento de que, na realidade, não se deve fazer confusão entre direito subjetivo e pretensão, pois o primeiro refere-se justamen-te ao aspecto central da titularidade, ao reconhecimento de que um bem ou interesse encontra-se ligado a uma pessoa, pertence a ela. Enquanto que a segunda, a pretensão, diz respeito ao poder jurídico conferido pelo ordenamento para que alguém possa as-segurar o respeito àquele direito subjetivo. Daí, Fábio Comparato afirmar que o núcleo

28 “Cuando se habla de derechos sociales fundamentales, por ejemplo, del derecho a la previsión, ao trabajo, la vivienda y la educación, se hace primariamente referencia a derechos a prestaciones en sentido estricto”. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Op. cit., pp. 482-483.

29 Quando se fala em prestação estatal é bom que se tenha em mente que Jellinek desenvolveu a Teoria dos Quatro Status (posição do cidadão como resultado de sua qualidade de membro do Estado): Status passivo (campo das sujeições do indivíduo ao Estado, o dever, as obrigações); status negativo (esfera de liberdade, o cidadão como ser livre); status positivo (poder do indivíduo de exigir prestações do Estado, um fazer ou não-fazer) status ativo (direitos de participação, competência para participar do Estado). In: FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2003, pp. 109-111. No mesmo sentido, THEODORO, Marcelo Antonio. Op. cit., pp. 31-32.

30 “Esta segunda generación de derechos, más difíciles que los civiles para adquirir vigencia socio-lógica, porque normalmente requieren prestaciones positivas (de dar o de hacer) por parte de los sujetos pasivos, se inspira en el concepto de libertad positiva o libertad ‘para’, conjuga la igualdad con la libertad (...) presta atención a la solidaridad social, propende al desarrollo (...)”. BIDART CAMPOS, Germán J. Teoría general de los derechos humanos. México: Universidad Nacional Au-tónoma de México, 1989, pp. 196-197.

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essencial dos direitos subjetivos não está na garantia de sua realização forçada com o concurso dos órgãos do Estado – Judiciário, a Força Pública –, mas sim na devida atribuição a cada qual dos bens da vida que lhe pertencem.31 Logo, a insuficiência ou até mesmo a completa ausência de instrumentos jurídicos garantidores à realização dos direitos subjetivos não deve representar um freio à aceitação dos direitos sociais como direitos fundamentais, mas, antes, deve revestir-se de estímulo aos poderes públicos, em todas as esferas, para que promovam ações exigidas à efetividade des-ses direitos. No que compete ao Judiciário, as ações podem ir desde uma sistemática interpretação que concretize, em situações específicas, as normas definidoras dos direitos sociais, até chegar-se a um controle amplo das políticas governamentais, indispensáveis à caracterização de um sistema eficaz de garantias que favoreça a realização da justiça social.32

A título de exemplo, veja-se o direito à moradia. Consagrado como direito social fundamental, por meio da emenda constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, não havia reconhecimento, na Lei Fundamental, dessa categoria jurídica, até antes da alte-ração do texto da Constituição. Agora, será que tal direito fundamental somente passou a existir após a edição da Emenda? É evidente que não. Para se ter uma noção de como os direitos fundamentais preexistem à positivação constitucional de um Estado, basta verificar que desde 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU) con-sagrava o direito à habitação, no art. XXV. Portanto, nada impedia o reconhecimento doutrinário e judicial do direito social humano à moradia, antes mesmo de ser incorpo-rado no elenco do art. 6º da Constituição brasileira. E mais. Por possuírem a natureza de direitos fundamentais, os direitos sociais apresentam-se como poderes de exigir do Estado uma prestação concreta. Para alcançar essa efetividade (“prestação concreta”), contudo, é mister que os direitos sociais fundamentais estejam com seu conteúdo de-finido, seus limites e destinatários especificados, a fim de que possa o Estado cumprir a obrigação que lhe é imposta. Não é suficiente o reconhecimento de um determina-do direito fundamental, impõe-se, sobretudo, o esforço de torná-lo concreto, efetivo, realizá-lo na comunidade de pessoas.

2. A EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS

A Constituição Federal de 1988 impõe, no art. 5º, § 1º, a regra da aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais. Logo, em prin-cípio, todo e qualquer direito fundamental goza de uma presunção de eficácia direta e imediata. Porém, a realidade constitucional tem revelado a falsidade dessa premissa, na

31 COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit. p. 336.32 Nesse sentido, RAIOL, Ivanilson Paulo Corrêa. O controle de constitucionalidade das políticas pú-

blicas. Boletim Informativo do Centro de Apoio Operacional Constitucional do Ministério Público do Pará, Belém, v. 1, nº 1, pp. 25-49, ago. 2005.

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132 temas atuais de direito

medida em que, diante de certas normas constantes do texto da Constituição, assiste-se a uma frustração de não-executoriedade normativa.

Por essa razão, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, advoga a posição de que nem toda norma de direito fundamental tem aplicação imediata, pois só seriam auto-execu-táveis quando fossem completas, ou seja, quando a condição de seu mandamento não possui lacuna, e quando esse mandamento é claro e determinado. Do contrário ela é não-executável pela natureza das coisas.33

Com todo o respeito e admiração que merece o professor Ferreira Filho, não se pode concordar que a Constituição imponha, sem excepcionar, uma regra de aplica-bilidade imediata dos direitos fundamentais para, em seguida, reconhecer-se a não--executividade de certas normas referentes aos mesmos direitos!

Parece mais palatável, diante disso, o entendimento do constitucionalista José Afonso da Silva quando dividiu em três grupos as normas constitucionais, quanto à sua eficácia: normas constitucionais de eficácia plena, normas constitucionais de eficácia contida e normas constitucionais de eficácia limitada.34 Impondo-se, assim, que toda norma constitucional é sempre executável, variando apenas os seus efeitos.

As normas constitucionais de eficácia plena produzem seus efeitos desde sua en-trada em vigor, enquanto as de eficácia contida, embora produzindo seus efeitos desde a entrada em vigor, têm alguns desses efeitos limitados pelo legislador, diante de deter-minadas circunstâncias, ao passo que as normas de eficácia limitada são aquelas que, mesmo estando em vigor, não produzem todos os efeitos essenciais, necessitando de integração por parte do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.

Assim, quando inseridos na categoria de normas constitucionais de eficácia limi-tada ou reduzida, os direitos fundamentais podem receber a força vinculante por inter-médio da interpretação do texto constitucional promovida pelos órgãos jurisdicionais, caso os demais poderes deixem de cumprir ou realizar os preceitos normativos que padeçam de indeterminação ou lacuna.

Trazendo a discussão para o campo dos direitos sociais fundamentais, urge re-conhecer que não vigoram maiores dificuldades no reconhecimento de que, sendo opostos contra o Estado, a eficácia dos direitos sociais se daria na relação cidadão e Estado, limitando e vinculando a prestações positivas ou negativas os Poderes Públicos. Nesse sentido, a Constituição reconhece, por exemplo, a saúde como “de-ver do Estado” (art. 196), a educação, também (art. 205), e o lazer da mesma forma (art. 217). Portanto, desde os primeiros documentos de positivação dos direitos so-ciais fundamentais, já expostos anteriormente, houve uma preocupação em destacar que a concretização dos direitos sociais demandava uma ação estatal em três senti-dos: atendendo diretamente às exigências de satisfação desses direitos; facilitando

33 Ibidem, p. 102.34 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª ed. São Paulo: Malheiros,

1998, p. 83.

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a eficácia dos direitos sociais fundamentais • ivanilson paulo corrêa raiol 133

as ações dos próprios titulares dos direitos na busca pelo atendimento dos direitos fundamentais e protegendo ativamente os direitos fundamentais de qualquer violação ou ameaça de terceiros.

Nessa mesma linha, Bolzan de Morais entende que a eficácia dos direitos hu-manos, em especial os sociais e os de solidariedade, deve ser realizada tanto na pers-pectiva do Estado quanto na da sociedade. A concretização pelo Estado levaria em conta não apenas o reconhecimento legislativo, mas a “atuação promotora” dos direitos fundamentais; é necessário, desse modo, que se rompam as amarras do formalismo normativo que apresenta os direitos humanos como meros ornamentos, convenientes à legitimação da ordem estatal, para assegurar-se uma efetiva implementação dos con-teúdos desses direitos. Ainda, levar-se-ia em consideração a atuação jurisdicional am-pliada, no sentido de prática jurídica comprometida, de maneira a comprometer todos os que atuam com o direito a uma atitude positiva na concretização dos conteúdos dos direitos fundamentais.

Por sua vez, a concretização pela sociedade seria aquela relacionada às estra-tégias utilizadas pelos atores sociais para fruição dos direitos humanos, o que se realizaria em duas vias: por intermédio de pretensões dirigidas à autoridade pública estatal em que se projetariam legítimas pressões sobre os Poderes Públicos para a prática dos conteúdos dos direitos fundamentais; e por meio de um processo de auto-nomização social, quando aqueles mesmos atores sociais apropriar-se-iam coletiva-mente das incumbências indispensáveis ao gozo dos conteúdos dos direitos humanos. Ou seja, a aquisição de consciência coletiva à superação dos obstáculos à vivência dos direitos fundamentais.35

Em suma, uma prática nesses moldes corresponde à aproximação das ideias de Konrad Hesse, quando propõe uma análise conjugada entre norma e realidade. De um lado, entender que a eficácia normativa depende das condições históricas (naturais, técnicas, econômicas e sociais) existentes na realidade, mas, por outro lado, compreender que a própria Constituição possui uma pretensão de eficácia au-tônoma, procurando imprimir (normatividade ou força normativa da Constituição) ordem e conformação à realidade. Vale dizer, realidade e norma constitucional influenciam-se mutuamente numa relação de interdependência, sem, contudo, confundirem-se.36

Portanto, buscar na Constituição a sua força normativa significa despertar as for-ças que foram consagradas pelas condições históricas no texto constitucional, tornan-do-o sempre atual e adaptado à realidade imperante. Contudo, para alcançar-se essa situação ideal de força vinculante (força ativa) da Constituição, impõe-se a presença

35 MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do Estado e da constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, pp. 74-78.

36 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Ale-gre: Sergio Antonio Fabris, 1991, pp. 13-22.

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134 temas atuais de direito

na consciência geral (e aqui está a convergência com a proposta exposta acima por Bolzan de Morais, em suas duas perspectivas de realização dos direitos humanos) tanto da vontade de poder quanto da vontade de Constituição.37

BIBLIOGRAFIA

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MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e a transforma-ção espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

37 HESSE ensina que a vontade de Constituição origina-se de três vertentes diferentes: a compreensão da necessidade e valor de uma ordem normativa inquebrantável, protetora do Estado; a percepção de que essa ordem normativa encontra-se em permanente processo de legitimação e, finalmente, a consciência de que a ordem normativa só é eficaz com o concurso da vontade humana. Idem, pp. 19-20.

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10LINEAMENTOS DA TÉCNICA DA PONDERAÇÃO

NO PROCESSO DO TRABALHOMarcelo Freire Sampaio Costa

RESUMO: O presente trabalho objetiva estudar a técnica da ponderação no processo do trabalho, considerando a pouca evolução científica desse ramo jurídico nesse tema, bem como o cotidiano desafio jurisdicional de serem enfrentadas demandas cada vez mais complexas, chamados casos difíceis (hard cases) ou duvidosos. Além de enfrentar a posição da jurisdição quanto ao tema, principalmente pelo Tribunal Superior do Trabalho, busca apresentar pressu-postos, conceitos, fases de construção dessa técnica, além de parâmetros gerais e um chamado de “específico” e “prefencial”, qual seja, a prevalência da dinidade da pessoa humana.Palavras-chave: ponderação; processo do trabalho; parâmetros; dignidade humana.

ABSTRACT: The present study aims to study the technique of balancing in the labor process, considering the lack of scientific legal branch as well as the daily challenge of being faced demands increasingly complex, called hard cases (hard cases) or doubtful. Besides enjoying the position of the brasilian courts on the subject, mainly by the Superior Labor Court, seeks to present assumptions, concepts, construction phases of this technique, in addition to general parameters and one called “specific” and “prefencial”, ie, the prevalence of human dignity.

KEYWORDS: balancing; process; parameters; prevalence; human dignity

SUMÁRIO: 1. Justificativa; 2. Aspectos introdutórios; 3. Pressupostos da ponderação; 4. Con-ceito da ponderação; 5. Critérios materiais e fases da ponderação; 5.1. Parâmetros gerais à ponderação; 5.2. Parâmetro específico e preferencial à ponderação no processo do trabalho. Prevalência da dignidade do hipossuficiente; 6. Conclusão.

1. JUSTIFICATIVA

O presente estudo tem por objetivo discutir aspectos da técnica da pondera-ção no processo do trabalho, usada como mecanismo de suporte à solução de casos concretos.1

1 Como destaca José João Abrantes, o juízo de ponderação somente há de ser feito “em concreto”. In Contrato de trabalho e direitos fundamentais. Portugal: Coimbra editora. 2005. p. 199.

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138 temas atuais de direito

Inobstante a evolução desse assunto nos ramos jurídicos científicos, notadamente no constitucional,2 na doutrina3 e tribunais laborais regionais pátrios, inclusive no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, ainda há muito a ser feito, daí a justificativa do presente.

Óbvio que a vastidão desse assunto não suportaria os limites aqui impostos, daí ter se escolhido usar a expressão “lineamentos” para destacar que serão apreciados apenas alguns aspectos desse apaixonante tema.

Como destacado, a realidade dos tribunais pátrios, inclusive dos laborais, mostra cotidianamente o desafio de serem enfrentadas demandas cada vez mais complexas, os chamados casos difíceis (hard cases) ou duvidosos4, exigindo trabalho mais árduo e intrincado do operador do direito, pois envolve usualmente conflitos princiológicos5 de idêntica hierarquia contrapostos, sendo a aplicação dessa técnica de fundamental im-portância ao desenlace dessas demandas, principalmente à construção de argumentação jurídica racional apta a conduzir o trabalho do intérprete.

2. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS

Deve-se partir pelas premissas da força deontológica ou normativa dos princípios, isto é, trata-se de modalidade de norma também dotada de coercitividade suficiente para solução de conflito jurisdicionalizado, bem como da correção da chamada distin-ção qualitativa6 entre normas-regras e normas-princípios.

Tal distinção significa que os princípios, inobstante serem também dotados de força normativa, possuem dimensão de peso ausente nas conhecidas normas-regras. Isto faz com que, usualmente, na resolução dos chamados casos difíceis (hard cases) ou duvidosos envolvendo conflitos entre princípios, há de se utilizar o juízo de ponde-ração, técnica distinta da chamada subsunção7 – premissa fática menor sobre premissa normativa maior, igual a solução mecânica-subsuntiva de os conflitos.

2 Para maior aprofundamento, vide, dentre outros trabalhos, os seguintes: BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva. 2009; PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janei-ro: Renovar. 2006.

3 Sobre esse assunto já tivemos a oportunidade de publicar COSTA, Marcelo Freire Sampaio Costa. Eficácia dos direitos fundamentais entre particulares: juízo de ponderação no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2010.

4 Nesse mesmo sentido, cf. ALEXY, Robert. Conceito de validade do direito (tradução Gercélia Ba-tista de Oliveira Mendes). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 89.

5 Neste sentido vide ensinamento de Robert Alexy: “Um critério para averiguar se o juiz apoia-se em princípios é saber se ele procede a uma ponderação. Aplica-se o seguinte teorema: quando uma pessoa procede a uma ponderação, ela se apóia necessariamente em princípios”. Op. cit., p. 87.

6 Cf. com mais vagar sobre esse assunto DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes. 2007; ALEXY, Robert. Op. cit.

7 Juarez Freitas, em obra de consulta obrigatória, salienta que o intérprete não é mero “descobridor ou revelador de significados” preexistente, mas atua na condição de “conformador prescritivo” e partícipe estruturador” do objeto interpretado. In A interpretação sistemática do direito. 4ª ed. São

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Nesse eito, a técnica da ponderação vem sendo desenvolvida nesse caldeirão de pensamento em que é necessário o desenrolar de um raciocínio mais enredado, dife-rente do dito mecanismo de subsunção clássico8, quando não se mostrar possível a re-dução de um conflito normativo em apenas uma premissa maior, pelo fato de haverem diversas premissas maiores (princípios e regras) igualmente válidas e vigentes, porém colidentes. A finalidade dessa técnica será alcançar solução justificada de um conflito jurisdicional usualmente menos óbvio, homenagendo-se, devidamente, a fundamenta-ção reclamada pelo art. 93, IX, da Carta Maior de 1988 .

Não se pode olvidar, também, como já salientado, que esse cenário de ponderação de interesses exige da jurisdição um papel de maior protagonismo9 (não significando a mesma coisa que ativismo ou decisionismo judicial10), pois não se está tratando da mera aplicação subsuntiva (ou mero encaixe) dos fatos a lei, daí a necessidade de serem criados balizamentos de racionalidade capazes de justificarem e legitimarem a decisão exarada.

3. PRESSUPOSTOS DA PONDERAÇÃO

Apontam-se quatro pressupostos11 à ocorrência da técnica da ponderação: i) plu-ralidade de direitos, igualmente válidos; ii) impossibilidade de o exercício simultâneo e completo desses direitos; iii) enunciados normativos,12 usualmente da modalidade principiológica, abstratamente válidos e a priori colidentes; iv) necessidade de solução de casos difíceis ou duvidosos.

Paulo: Malheiros, 2004. p. 66. Também Ronald Dworkin, trabalha, com maestria, as deficiências de o modelo de interpretação mecânica do direito e a necessidade da compreensão das afirmações jurí-dicas como “opiniões interpretativas”, combinando elementos que se voltam “tanto para o passado quanto para o futuro”, ao longo de quase cinco centenas de páginas. In O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 272.

8 Nesse mesmo sentido, BARROSO, Luís Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da his-tória. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In BARRO-SO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 345.

9 “No hay ninguna duda de que em la aplicación de los princípios, el juez assume um papel más pro-tagonistao creativo que en la mera subsunción de normas o reglas, función que consigue dotarse de más intensos contenidos cuando se defiende que, em determinadas circunstancias, cualquier norma sea aplicada bajo la técnica de los princípios”. In ORMAETXEA, Edurne Terradillos. Principio de proporcionalidad , constitucíon y derecho laboral. Valencia: Tirant lo blanch. 2004. p. 48.

10 Sobre esse assunto, vide interessante e instigante crítica em STRECK, Lenio Streck. O que é isto. Decido conforme minha consciência?. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2012.

11 Argumento inspirado em SEQUEIRA, Elza Vaz. Dos pressupostos da colisão de direitos no direito civil. Lisboa: Universidade Católica, 2004. pp. 15-17.

12 Enunciado normativo ou texto é o sinal linguístico. A norma é a revelação, pelo intérprete, do texto linguístico. Cf., com maior profundidade, GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpre-tação/aplicação do direito. 2ª ed. São Paulo: Malheiros. 2003.

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140 temas atuais de direito

A presença simultânea de uma pluralidade de direitos, inicialmente consubstan-ciado por normas válidas e a priori colidentes, pressupõe a necessidade de serem bus-cados mecanismos de limitações recíprocas, visando a alcançar “os limites a que estão sujeitos os exercícios desses respectivos direitos”.13

A ponderação, portanto, pressupõe a existência de enunciados normativos abstra-tamente válidos e colidentes, motivo pelo qual resulta uma operação que inicialmente identifica e depois se restringe o conteúdo, na medida do caso concreto, de um ou al-guns desses preceitos normativos.

4. CONCEITO DE PONDERAÇÃO

O verbo ponderar, fora do discurso jurídico, significa: “1. Examinar com aten-ção e minúcia; pesar. 2. Ter em consideração. 3. Meditar. 4. Dizer em defesa de uma opinião”.14

Portanto, toda decisão racional envolve algum tipo de exercício de pondera-ção. Avalia-se a vantagem ou desvantagem em se adotar um determinado compor-tamento em desfavor de outro. Tal exercício acompanha o ser humano, nas mais diversas situações, ao longo de toda sua existência. Como no dito popular: “a vida é feita de escolhas...”.

No discurso jurídico pode-se tentar conceituar o exercício da ponderação como a técnica de solução de conflitos normativos que envolve usualmente casos difíceis ou duvidosos, conflito este insuperável pelas formas hermenêuticas tradi-cionais, isto é, pela estrutura geral da simplificada e mecânica técnica da subsun-ção15 (premissa maior, texto legal, a incidir sobre a premissa menor, repositório fático da contenda).

Nesses chamados casos difíceis ou duvidosos convivem, buscando aplicação, enunciados normativos igualmente válidos (normas-regras e normas-princípios), de hierarquia idêntica ou distinta, motivo pelo qual o mecanismo clássico da subsunção mostra-se insuficiente para firmar uma posição capaz de aquilatar os elementos nor-

13 SEQUEIRA, Elza Vaz. Op. cit., p. 15.14 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da língua portuguesa. 6ª ed. Curitiba:

Posigraf, 2004. p. 641. 15 Carlos Roberto Husek define ponderação como um “instrumento para aplicação dos princípios (uma

técnica de decisão judicial). Ponderar significa uma difícil e complexa atividade mental de sentimen-tos em torno do que é razoável, visando a alcançar com essa razoabilidade o objetivo que se propôs a norma”. Idéias para uma interpretação do Art. 114 da Constituição Federal. In COUTINHO, Gri-jalbo e FAVA, Marcos Neves (orgs.). Justiça do trabalho: competência ampliada. São Paulo: LTr, 2005. p. 51. Conceito similar também é constatado em Ana Paula de Barcellos. Vejamos: “De forma muito geral, a ponderação pode ser descrita como uma técnica de decisão própria para casos difíceis, em relação aos quais o raciocínio tradicional da subsunção não é adequado”. In Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional. BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpreta-ção constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 55.

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mativos em choque. A lógica da subsunção tentaria “isolar uma única norma para o caso”,16 o que neste cenário seria inadequado.

Nesses conflitos há razões opostas que, individualmente tomadas, constituiriam bons argumentos para uma determinada deliberação, e só não levam de imediato a uma decisão definitiva porque também existem outras boas razões conduzindo para um ou-tro caminho distinto daquele inicialmente pensado.

Muito importante registrar que o mecanismo da ponderação não pode mais ser considerado apenas método privativo de princípios17 – apesar de mais recorrente nessas hipóteses, mas verdadeira técnica de decisão jurídica autônoma,18 aplicada também em ambientes diversos daqueles relacionados aos conflitos principiológicos,19 tais como a ocorrência de colisão entre hipóteses normativas de moldura mais objetiva, admitindo--se a solução desse conflito por intermédio da atribuição de um peso maior a determina-da regra colidente com outra, inclusive sem que esta de menor peso, à semelhança dos conflitos principiológicos, perca sua validade.20 Apenas preponderará no caso concreto.

Aliás, foi exatamente o que pareceu reconhecer emérito positivista, Herbert Hart, em capítulo de livro, que foi chamado por ele de “pós-escrito”, elaborado para refutar críticas dirigidas contra ele principalmente por Ronald Dworkin, em trecho a seguir transcrito:

Não vejo motivos para aceitar seja esse violento contraste entre os princípios e as normas ju-rídicas, seja a opinião segundo a qual, se uma norma válida for aplicável a determinado caso, ela deverá, ao contrário de um princípio, determinar invariavelmente o desenlace da causa. Não há razão alguma pelo qual um sistema jurídico não possa reconhecer que uma norma válida define um resultado nos casos aos quais se aplica, exceto quando outra norma, julgada mais importante, for também aplicável ao mesmo caso. Assim, uma norma, vencida num de-terminado caso ao conflitar com outra mais importante, pode, como um princípio, sobreviver e continuar vigente, de modo que determine o desenlace em outros casos onde for considerada mais importante que outra norma concorrente.21

16 BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 55.17 Cf. trabalho anterior, COSTA, Marcelo Freire Sampaio Costa. Eficácia dos direitos fundamentais

nas relações entre particulares: juízo de ponderação no processo do trabalho, cit.18 Veja trecho de Humberto Ávila: “Com efeito, a ponderação não é método privativo de aplicação

dos princípios. A ponderação ou balanceamento (weighing and balancing, Abwägung), enquanto sopesamento de razões e contra-razões que culmina com a decisão de interpretação, também pode estar presente no caso de dispositivos hipoteticamente formulados, cuja aplicação é preliminarmente havida como automática (no caso de regras)...”. In: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 11ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2010. p. 44. Nesse sentido, também, BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional, cit., p. 56.

19 Essa posição vinculadora da ponderação unicamente aos conflitos principiológicos sobe-ja no Tribunal Superior do Trabalho. Dentre dezenas de precedentes, temos o Proc. TST--RR-5500-35.2007.5.08.0008. 7. Turma. Rel. Min. Kátia Magalhães Arruda. DEJT. 10/12/2010 e Proc. TST-RR-24700-97.2005.5.09.0322. 8. Turma. Rel. Min. Dora Maria da Costa. DEJT. 24/112010.

20 Posição sustentada por ÁVILA Humberto. Op. cit., p. 44.21 HART, Herbert L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. pp. 337-338.

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142 temas atuais de direito

Para esse tema, ressalte-se a importância de se consolidar a ponderação por inter-médio da construção de critérios materiais,22 evitando-se estruturar tal técnica apenas e tão somente por meio dos postulados,23 de infindáveis e tortuosos caminhos, da razoa-bilidade e proporcionalidade,24 pois assim pouco se caminhará para evitar arbitrarieda-des e decisionismos.

Assim, mesmo sendo um caso difícil ou duvidoso em que o raciocínio da mera subsunção não consiga suprir a exigência de fundamentação das decisões jurisdicionais (art. 93, IX, da CF/88), será necessária a busca de ótima argumentação para alcançar a resposta mais bem justificada25 ou “hermeneuticamente adequada”26 pelo julgador, por intermédio da aplicação de critérios racionais,27 autorizadores da conclusão alcançada,28 dada “sempre e somente na situação concreta”.29 E a técnica da ponderação, com os critérios justificadores que serão apresentados, mostra-se uma importante ferramenta à busca desse resultado.

A jurisprudência do TST não vem seguindo esse rumo, pois recorre à técnica pon-derativa sem a devida construção dos citados critérios justificadores, e acaba por abrir caminho para decisionismos.30

22 Exatamente como pretendem fazer, dentre outros: BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racio-nalidade e atividade jurisdicional, cit.; STEINMETZ. Wilson Antônio. Colisão de direitos funda-mentais e o princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001.

23 “Os postulados funcionam diferentemente dos princípios e das regras. A uma, porque não se situam no mesmo nível: os princípios e as regras são objeto de aplicação; os postulados são normas que orientam a aplicação de outras. A duas, porque não possuem os mesmos destinatários: os princípios e as regras são primariamente dirigidos ao Poder Público e aos contribuintes; os postulados são frontalmente dirigidos ao intérprete e ao aplicador do direito. A três, porque não se relacionam da mesma forma com outras normas: os princípios e as regras, até porque se situam no mesmo nível do objeto, implicam-se reciprocamente, quer do modo preliminarmente complementar (princípios), quer do modo preliminarmente decisivo (regras); os postulados, justamente porque se situam num metanível, orientam a aplicação dos princípios e das regras sem conflituosidade necessária com outras normas.” ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 124.

24 Nesse mesmo sentido ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 86.25 AARNIO, Aulis. Sobre la justificación de las decisiones jurídicas:las tesis de la única respuesta

correcta y el principio regulativo del razonamiento jurídico. Madrid: Doxa, 1990, nº 8, p. 437. 26 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de

Janeiro: Lumen Juris. 2006, p. 183.27 Nesse mesmo sentido, PADILHA, Norma Sueli. Colisão de direitos metaindividuais e a decisão

judicial. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006. p. 90.28 Ao contrário de Ronald Dworkin que acredita na possibilidade da existência de uma única resposta

correta à solução de os chamados casos difíceis, acompanha-se pensamento de Robert Alexy acerca da necessidade de se buscar tal resposta correta, “independentemente da existência a priori dela”. In: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, cit., p. 599.

29 STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 210.30 Cf. exemplo: “Considerando-se o ora decidido, cujo entendimento tem respaldo também na Consti-

tuição Federal, não há que se falar em violação dos artigos constitucionais explicitados pelo recor-

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lineamentos da técnica da ponderação... • marcelo freire sampaio costa 143

5. CRITÉRIOS MATERIAIS E FASES DA PONDERAÇÃO

Consoante destacado anteriormente, pouco relevância terá para a solução de con-flitos considerados difíceis a mera vinculação superficial e sem justificação da ponde-ração, como vem fazendo a jurisprudência, aos chamados princípios ou postulados31 da proporcionalidade e razoabilidade, porque a idéia geral de ponderação, despida de critério formal, será “muita mais ampla”32 que os próprios postulados citados.

Humberto Ávila constrói muito bem a ponderação estruturada em fases, nos se-guintes termos:

“A primeira delas é a preparação da ponderação (...). Nessa fase devem ser analisados todos os elementos e argumentos, o mais exaustivamente possível. (...)A segunda etapa é a da realização da ponderação (...), em que se vai fundamentar a relação estabelecida entre os elementos objetos de sopesamento. No caso da ponderação de princí-pios, essa deve indicar a relação de primazia entre um e outro. A terceira etapa é a reconstrução da ponderação (...), mediante a formulação de regras de relação, inclusive a primazia entre os elementos objetos do sopesamento, com a pretensão de validade para além do caso.”33

Ana Paula de Barcellos concebe a aplicação da ponderação também como um processo composto em três etapas sucessivas.34 Veja-se resumo formulado pela autora sobre as duas primeiras etapas, verbis:

“Na primeira delas, caberá ao intérprete identificar todos os enunciados normativos que apa-rentemente se encontram em conflito ou tensão e agrupá-los em função da solução normativa que sugerem para o caso concreto. A segunda etapa ocupa-se de apurar os aspectos de fatos relevantes e sua repercussão sobre as diferentes soluções indicadas pelos grupos formados na etapa anterior”.35

A terceira etapa, após a identificação de elementos normativos e fáticos que com-põe a moldura da lide, refere-se à fase da decisão. Neste momento são examinados conjuntamente as hipóteses normativas conflitantes e o natural encaixe fático nessas molduras legais, além de serem apurados os “pesos que devem ser atribuídos aos diver-

rente, porquanto na antinomia entre normas constitucionais adota-se o princípio da proporcionali-dade, ou seja, na ponderação de interesses entre os direitos fundamentais envolvidos, dá-se maior preponderância para um deles, sem que o outro seja excluído”. Tribunal Superior do Trabalho. 6ª Turma. Proc. TST AIRR 42/2006. Rel. Ministro Maurício Godinho Delgado. DJ. 04.09.2009.

31 Cf. ÁVILA, Humberto. Op. cit., pp. 79-82.32 ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 87.33 ÁVILA, Humberto. Op. cit., pp. 87-88.34 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, cit., pp. 91-146. 35 BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 92.

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144 temas atuais de direito

sos elementos em disputa”.36 Após a atribuição desses pesos, chega-se ao momento de definir a possibilidade de serem conciliados os diferentes elementos normativos con-flitantes e qual dele(s) deverá preponderar, e, via de consequência, qual será “a norma que dará solução ao caso”.37

As duas posições doutrinárias citadas constroem fases necessárias à construção da técnica da ponderação. Estas podem ser resumidas da seguinte maneira:

1. preparação à ponderação: neste momento inicial são destacados os elementos normativos e fáticos que compõe a moldura de o conflito posto;2. construção da ponderação: nesta etapa são apurados os aspectos fáticos relevantes e sua repercussão sobre as diversas e possíveis soluções indicadas, de acordo com cada encaixe possível das hipóteses normativas aos fatos descobertos na fase anterior;3. decisão: neste momento serão selecionados os pesos a serem atribuídos a cada uma das so-luções normativas possíveis, conferindo preponderância de uma hipótese normativa ou grupo delas sobre outra(s) com aquela(s) colidente.

Essas fases apontadas são certamente úteis à condução e composição de raciocínio apto a ordenar a ponderação necessária à solução de um dado caso concreto, contudo, conveniente também a construção de verdadeiros parâmetros gerais e específicos,38 ap-tos a servirem de norte justificador ao desfecho dos conflitos processuais.

5.1. Parâmetros gerais à ponderação

Apontam-se dois parâmetros jurídicos gerais39 a incidirem em todo e qualquer exercício de ponderação: a) pretensão de racionalidade40 do discurso jurídico; b) con-cordância prática das hipóteses normativas em tensão.

O primeiro refere-se à necessidade do desenvolvimento de argumentação jurídica possuir racionalidade41 e legitimidade capaz de ser compreendida imediatamente pelos partícipes do litígio em questão, e, também, mediatamente pelo entorno social.

O irrefragável reconhecimento da importância da técnica ponderativa não signi-fica a formação de “um campo livre para convicções morais e subjetivas dos aplica-dores do direito”,42 pois há de se buscar, por intermédio da edificação de balizamentos determinados, como se vem pretendendo fazer ao longo do presente, a “objetivação

36 BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 123.37 BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 124.38 Nesse sentido vide BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 125.39 Os parâmetros foram inspirados em BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., pp. 125-146.40 BARCELLOS, Ana Paula de prefere chamar de “pretensão de universalidade”. Op. cit., p. 125. 41 “O juiz deve atuar sem arbitrariedade; sua decisão deve ser fundamentada em uma argumentação

racional”. In ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica (tradução Zilda Hutchinson Schild Silva), cit., p. 53.

42 ALEXY, Robert. Op. cit., p. 40.

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lineamentos da técnica da ponderação... • marcelo freire sampaio costa 145

dessas valorações”,43 com o fito de justificar e legitimar a argumentação construída, até porque, como já firmado anteriormente, é preceito constitucional a necessidade de as decisões jurisdicionais serem devidamente fundamentadas (art. 93, IX).

O segundo diz acerca da concordância prática das hipóteses normativas e fáticas em tensão, ou seja, a harmonização recíproca dessas categorias “de modo que nenhum deles tenha sua incidência totalmente excluída na hipótese”.44

A concordância prática, utilizando-se dos elementos clássicos e modernos da her-menêutica jurídica, levará o intérprete à escolha da solução que produza o melhor equi-líbrio possível, impondo a menor quantidade de restrição à maior parte dos elementos normativos e fáticos em discussão.

Sobre a chamada concordância prática no processo do trabalho, não se pode dei-xar de transcrever trecho elucidativo de doutrina lusitana, senão veja-se:

“Tendo em vista a correcta delimitação dos direitos em conflito, de forma a assegurar a con-cordância prática entre todos eles, a ordem jurídica apenas admite limitações aos direitos fundamentais do trabalhador desde que se mostrem justificadas por critérios de proporciona-lidade, numa tripla dimensão de estrita necessidade (de salvaguarda da correcta execução do contrato), de adequação (entre o objectivo a alcançar com a limitação e o nível desta) e de proibição do excesso (devendo a restrição ser a menor possível, em função da finalidade a ser alcançada com a sua imposição”.45

O próximo passo será a construção de parâmetro específico a incidir nos conflitos laborais.

5.2. Parâmetro específico e preferencial à ponderação no processo do trabalho. Prevalência da dignidade do hipossuficiente

A finalidade de os parâmetros gerais citados anteriormente e do específico que será apontado ao longo desta é bem singela: funcionam como instrumentos capazes de controlar as ilimitadas possibilidades de exercício da ponderação, bem como conferem elementos de verificação da racionalidade do discurso jurídico.

Cabe uma explicação acerca da nomenclatura utilizada. Diz-se “parâmetro prefe-rencial” porque não são construídos elementos rígidos e imutáveis à solução dessas de-mandas que fogem da obviedade, além de a possibilidade desse marco interpretativo poder ser afastado pelo intérprete desde que demonstre reforçada motivação46 para tanto.

Diz-se “parâmetro específico” porque tal baliza servirá unicamente à solução dos conflitos jurisdicionais havidos em sítio processual laboral. Já a nomenclatura “prefe-rencial” justifica-se porque não são construídos elementos rígidos e imutáveis à solução

43 Idem. 44 BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 133.45 ABRANTES, José João. Op. cit., p. 198.46 BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 1162.

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146 temas atuais de direito

dessas demandas que fogem da obviedade, além de a possibilidade desse marco poder ser afastado pelo intérprete, desde que demonstre reforçada motivação47 para tanto.

Em suma, a utilização da técnica ponderativa exige a consideração do seguinte parâmetro preferencial e específico: prevalência da dignidade do hipossuficiente, usu-almente o trabalhador.

Óbvio que não se gastará mais tinta para tratar da ambiência histórica propiciadora do surgimento do direito do trabalho para se ressaltar aspecto que exsurge indelével, qual seja, a finalidade protetiva do hipossuficiente nessa seara. O processo também não pode fugir dessa sina, até porque serve como instrumento à consecução do direito material do trabalho.

Contudo, com o fulcro de evitar possíveis incompreensões acerca do presente discurso, vale salientar que, por razões lógicas, não se está a defender um resultado, para qualquer demanda laboral, sempre favorável ao hipossuficiente, apenas pretende--se destacar parâmetro preferencial para auxiliar na construção da argumentação do intérprete nas demandas difíceis ou duvidosas, em que a utilização do recurso da pon-deração mostra-se inevitável.

Aliás, o Tribunal Superior do Trabalho vem há muito tempo acolhendo posição similar, mesmo não havendo desenvolvido a idéia ora defendida de parâmetro prefe-rencial e específico de proteção ao hipossuficiente. Basta ver a última parte do julgado abaixo, verbis:

“Todavia, quando há aparente conflito de princípios constitucionais, como sugere o Recorrente, a doutrina recomenda que seja utilizado o princípio da proporcionalidade, feito a partir de uma ponderação de interesses, considerando que não há hierarquia entre os princípios constitu-cionais. Com base nessa ponderação de interesses, onde, de um lado, tem-se o princípio da moralidade administrativa e, do outro, os princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1.º, III), o do valor social do trabalho (CF, art. 1.º, IV) e da igualdade substancial (CF, art. 5.º, -caput-), o TRT bem andou ao deferir as diferenças salariais com base no princípio da isono-mia, pois extraiu a máxima efetividade das normas constitucionais em jogo, especialmente levando em consideração que o trabalhador deve ser considerado a parte mais fraca na relação que permeia entre o capital e o trabalho, assumindo a condição de hipossuficiente na relação trabalhista, tanto que há inúmeros preceitos de ordem pública que o protegem em relação ao empregador.”48

Nesse eito, quando houver embates normativos de princípios e regras, válidos, hierarquicamente iguais ou diferentes, há de prevalecer, salvo situações excepcionais, na solução desses conflitos, o princípio da proteção da dignidade do hipossuficiente.

Ressalte-se, mais uma vez, que a construção desse parâmetro preferencial não leva automaticamente (seria uma estultice defender tal posição) à procedência da de-manda veiculadora de interesses do trabalhador, mas apenas significa a necessidade

47 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, cit., p. 1162.48 Tribunal Superior do Trabalho. 4ª Turma. Proc. TST AIRR 2/2005. Rela. Ministra Maria de Assis

Calsing. DJ. 26.10.2007.

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lineamentos da técnica da ponderação... • marcelo freire sampaio costa 147

de o intérprete, ante a difícil contenda posta, construir sua fundamentação levando em consideração tal baliza.

Tal posição é um reflexo direto da importância do princípio da dignidade da pessoa humana (art, 1º, III, da Constituição de 1988), “verdadeiro super princípio constitucional”,49 “estruturante, constitutivo e indicativo das ideias diretivas básicas de toda a ordem constitucional”,50 como expressão de um movimento de superação do eixo de prevalência do valor patrimonial,51 típico da visão individualista-liberal, para a consagração da primazia dos valores existenciais à tutela da pessoa humana.52 Trata-se de norma-princípio, com inescusável eficácia deôntica.53 Na batalha, inclusive jurisdi-cional, entre o patrimônio e a dignidade do ser humano, vence esta última – sempre.54

Além da dignidade, tem-se o princípio constitucional do “valor social do trabalho (art. 1º, IV) e as regras de proteção aos trabalhadores entabulados nos arts. 7º até 11 da Carta Maior, aptos à construção de um escudo protetivo dessa classe, porque também refletem o citado movimento de superação do eixo patrimonial pela tutela da pessoa humana.

Portanto, nas “batalhas” laborais em que haja embate entre os interesses econômi-cos dos grupos patronais em detrimento daqueles da classe laboral (patrimônio versus dignidade da pessoa humana), deverão prevalecer aqueles protetores da dignidade dos hipossuficientes.

Essa posição vem sendo, em algumas ocasiões, sufragada pelo Tribunal Superior do Trabalho.Há interessante precedente, decorrente de ação civil pública manejada pelo Ministério Público do Trabalho, em que se discutia a possibilidade de uma indústria de cigarro utilizar empregados para medição da qualidade desse produto – os chamados provadores de cigarro. Nesse feito restou demonstrado real conflito entre o princípio constitucional da livre iniciativa empresarial e a necessidade de proteção à saúde, vida e consequente dignidade do trabalhador, utilizado como mero instrumento, como se

49 PIOVESAN, Flávia; VIEIRA, Renato Stanziola. A força normativa dos princípios constitucionais fundamentais: a dignidade da pessoa humana. In: PIOVESAN, Flávia (Org.). Temas de direitos humanos. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 393.

50 FACHIN, Edson. Estatuto do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 179.51 “A pessoa, e não o patrimônio, é o centro do sistema jurídico, de modo que se possibilite a mais

ampla tutela da pessoa, em uma perspectiva solidarista que se afasta do individualismo que condena o homem à abstração”. Id. Ibid., p. 48.

52 TEPEDINO, Gustavo. Direitos humanos e relações privadas: temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 04.

53 Há posição doutrinal, com a qual não se pode compactuar, classificando o princípio da dignidade da pessoa humana como de “mínima densidade normativa”. Cf. MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Os pilares do direito do trabalho – princípios e sua densidade normativa. Revista LTr, São Paulo, ano 76, nº 07, jul. 2012.

54 “Vê-se caminho para a superação da visão liberal individualista, centrada no patrimônio. O orde-namento jurídico tem como suprema missão a tutela da pessoa, possibilitando a convivência dos homens, uma pacífica vida comunitária regida por normas obrigatórias”. In: FACHIN, Edson. Op. cit, p. 46.

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148 temas atuais de direito

fosse máquina, para aferir, em detrimento da sua própria saúde, a qualidade daquele produto. Acabou por prevalecer a proteção da incolumidade física daquela coletividade de trabalhadores e tal função foi proibida.55

Esse precedente citado, e tantos outros que poderiam ser lembrados, reflete a posição ora defendida: havendo conflito entre interesses meramente patrimoniais e os valores ínsitos à proteção da dignidade, nas suas vertentes individual e coletiva,56 prevalecerá esta última.

Ressalte-se, mais uma vez e para finalizar, que a construção desse parâmetro pre-ferencial não leva automaticamente à procedência dos pedidos veiculados pela parte hi-possuficiente, mas apenas significa a necessidade de o intérprete, ante a difícil contenda posta, construir sua fundamentação levando em consideração tal baliza preferencial.

6. CONCLUSÃO

Pode-se apresentar a conclusão, de forma simplificada, por intermédio dos seguin-tes itens:

a. Há demandas cada vez mais frequentes na seara laboral que exigem a construção de argumentação jurídica racional apta a conduzir o trabalho do intérprete, daí a importância do desenvolvimento da técnica da ponderação;

b. Conceitua-se o exercício da ponderação como o mecanismo de solução de conflitos normativos, verdadeira técnica de decisão jurídica autônoma, envolvendo usualmente casos difíceis ou duvidosos de contendas de princípios, conflitos estes in-superáveis pela mecânica clássica da subsunção;

c. A importância de se consolidar a ponderação por intermédio da construção de critérios materiais de justificação. São apontados dois parâmetros jurídicos gerais: i) pretensão de racionalidade do discurso jurídico; ii) concordância prática das hipóteses normativas em tensão. E um específico e preferencial: prevalência da dignidade do hipossuficiente.

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55 “Por derradeiro, a decisão regional deve ser mantida, no sentido de obstar a utilização de em-pregados para a medição da qualidade dos cigarros produzidos, porquanto irremediavelmen-te lesiva a aludida atividade laboral”. Tribunal Superior do Trabalho. 7. Turma. Proc. TST--RR-120300-89.2003.5.01.0015. Rel. Ministro Pedro Paulo Teixeira Manus. DEJT. 03.12.2010.

56 Acerca da projeção coletiva da dignidade da pessoa humana vide nosso Dano moral (extrapatrimo-nial) coletivo, cit.

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11A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

LABORAIS À SAÚDE E À SEGURANÇA DO TRABALHADOR PELA VIA DA ATRIBUIÇÃO DO ÔNUS DINÂMICO DA

PROVA PERICIAL AO EMPREGADORPastora do Socorro Teixeira Leal

RESUMO: Trata da viabilização da concretização dos direitos fundamentais à saúde e à segurança do trabalhador pela aplicação do ônus dinâmico da produção da prova pericial ao empregador nas ações de responsabilidade civil. Considera que proteção à saúde e à se-gurança no trabalho pressupõe e está diretamente relacionada à garantia do meio ambiente sadio e seguro, dever do empregador, catalogado em normas legais regulamentadoras, que se projeta no ônus de provar em Juízo o respectivo cumprimento das normas legais pertinentes. Contrasta a precariedade da previsão legal trabalhista atinente à produção da prova pericial com a legislação previdenciária que presume o nexo causal e com as garantias constitucionais de proteção à saúde e à segurança no trabalho. Discorre sobre a alteração legislativa ( Projeto de Lei 3407/1996), em tramitação no Congresso Nacional, que desloca para o empregador o ônus da produção da prova pericial.

PALAVRAS-CHAVES: direitos fundamentais; direito fundamental à saúde; direito funda-mental à segurança; ônus dinâmico da prova; risco da atividade; responsabilidade civil; con-cretização de direitos; interpretação judicial.

ABSTRACT: This is the feasibility of the implementation of fundamental rights to health and worker safety by implementing the dynamic burden of production of expert evidence the em-ployer . Considers that protect health and safety at work presupposes and is directly related to ensuring safe and healthy environment, the duty of the employer, cataloged in regulatory laws, which projects the burden of proving in court their compliance with relevant legal . Contrasts the precarious legal provision labour, regards the production of expert evidence to the pension legislation that assumes a causal relationship and the constitutional guarantees of protection of health and safety at work. Discusses the legislative amendment (bill nº 3407/1996), pend-ing in Congress, which shifts to the employer the burden of producing expert evidence

KEYWORDS: fundamental rights, fundamental right to health; fundamental right to security; dynamic burden of proof; risk activity; liability; realization of rights, judicial interpretation.

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Como viabilizar a concretização de direitos fundamentais? Que mecanismos ju-rídicos podem ser utilizados para essa finalidade? Esses questionamentos ficam ainda mais complexos e difíceis de responder quando estamos diante de direitos humanos laborais ou direitos fundamentais trabalhistas.

A saúde e a segurança são bens jurídicos objeto de direitos fundamentais e, como tal, estão elencados na Constituição Federal: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a pro-teção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

O dispositivo antes destacado encontra seu fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no inciso III, do art. 1º , da Carta Magna, que para con-solidar sua garantia estabeleceu no art. 5º, § 1º que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”

A preocupação com a tutela da saúde e da segurança no trabalho é ratificada no plano constitucional: “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:.... XXII. redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

Garantir direitos pressupõe identificar e fazer valer os deveres a eles correlatos.Quem seria então o responsável pela higidez e segurança no trabalho? Uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico brasileiro revela que o

responsável é o empregador ou aquele que toma ou se beneficia do serviço prestado.É oportuno que não se confunda responsabilidade e culpabilidade. O risco de

uma atividade faz com que por ele responda aquele que a explora, embora em algumas circunstâncias não seja culpado, a exemplo do que ocorre com produtos que, por defeito de fabricação, venham a causar danos ao consumidor, mesmo tendo sido fabricados com a observância das regras técnicas. O risco não pode ser 100% previsto ou prevenido, tampouco a ciência e a tecnologia podem dar respostas precisas, mas a responsabilidade pode até ser presumida ou estabelecida objetivamente pelo mero exercício da atividade de risco.

O art. 2º, da CLT, quando define o empregador como aquele que “assume os riscos de sua atividade econômica” foi muito além de sua época, pois em 1943, início de sua vigência, não se poderia imaginar a magnitude dos números de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais que as estatísticas hoje revelam, decorrentes de variáveis que decorrem do modelo de sociedade complexa e de massa e do incremento vertiginoso da tecnologia, que geram maior desgaste ambiental, físico, mental e emocional.

A proteção à saúde e à segurança no trabalho pressupõe e está diretamente relacio-nada à garantia do meio ambiente sadio e seguro, o que exige medidas de prevenção e até mesmo de precaução. Nesse ponto, a Constituição avançou consoante se vislumbra nos seguintes dispositivos:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso co-mum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletivi-dade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

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§ 1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:IV. exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;V. controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;§ 3º. As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obriga-ção de reparar os danos causados.

O avanço no plano constitucional contrasta com a petrificação no plano trabalhis-ta. Estamos nos referindo à manutenção de normas de monetização do risco, como os adicionais de insalubridade e de periculosidade, quando o desejável é a sua prevenção ou redução. Apesar dessa crítica, nota-se que as normas que regulamentam as ativida-des insalubres e perigosas apresentam regras que impõem aos empregadores a utiliza-ção de mecanismos de prevenção, mais adiante apontados de forma exemplificativa.

Nosso ordenamento jurídico é pródigo em normas que nos autorizam a con-cluir que é do empregador o dever de manter a saúde e a segurança no trabalho e de responder por gravames a esses bens jurídicos. Todavia, dentro dos limites deste artigo, numa síntese apertada, alguns exemplos ilustrativos podem ser enumerados, conforme Normas Regulamentadoras contidas nos anexos da Portaria MTB 3.214, de 08 de junho de 1978, que “aprova as Normas Regulamentadoras – NR – do Capítulo V, Título II, da Consolidação das Leis do Trabalho, relativas a Segurança e Medicina do Trabalho:

a) A NR5, estabelece que a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes- CIPA – “ tem como objetivo a prevenção de acidentes e doenças decorrentes do trabalho, de modo a tornar compatível permanentemente o trabalho com a preservação da vida e a promoção da saúde do trabalhador” e determina que “ devem constituir CIPA, por estabelecimento, e mantê-la em regular funcionamento as empresas privadas, públicas, sociedades de economia mista, órgãos da administração direta e indireta, instituições beneficentes, associações recreativas, cooperativas, bem como outras instituições que admitam trabalhadores como empregados”.

b) A NR6, que trata do dever de fornecimento de Equipamento de Proteção Individual determina em seu item 6.3 que a empresa é obrigada a fornecer aos empre-gados, gratuitamente, EPI adequado ao risco, em perfeito estado de conservação e de funcionamento;

c) Destaca-se da NR 7 alguns itens: 7.1.1, que estabelece a obrigatoriedade de elaboração e implementação, por parte

de todos os empregadores e instituições que admitam trabalhadores como empregados, do Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional – PCMSO, com o objetivo de promoção e preservação da saúde do conjunto dos seus trabalhadores;

7.1.3, que caberá à empresa contratante de mão-de-obra prestadora de serviços in-formar a empresa contratada dos riscos existentes e auxiliar na elaboração e imple-mentação do PCMSO nos locais de trabalho onde os serviços estão sendo prestados;

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7.2.3, que o PCMSO deverá ter caráter de prevenção, rastreamento e diagnósti-co precoce dos agravos à saúde relacionados ao trabalho, inclusive de natureza sub-clínica, além da constatação da existência de casos de doenças profissionais ou danos irreversíveis à saúde dos trabalhadores;

7.3.1, que compete ao empregador: a) garantir a elaboração e efetiva implemen-tação do PCMSO, bem como zelar pela sua eficácia; e, b) custear sem ônus para o empregado todos os procedimentos relacionados ao PCMSO;

d) A NR 9 estabelece: 9.1.1. a obrigatoriedade da elaboração e implementação, por parte de todos os em-

pregadores e instituições que admitam trabalhadores como empregados, do Programa de Prevenção de Riscos Ambientais – PPRA, visando à preservação da saúde e da inte-gridade dos trabalhadores, através da antecipação, reconhecimento, avaliação e con-sequente controle da ocorrência de riscos ambientais existentes ou que venham a existir no ambiente de trabalho, tendo em consideração a proteção do meio am-biente e dos recursos naturais;

9.1.2. que as ações do PPRA devem ser desenvolvidas no âmbito de cada estabele-cimento da empresa, sob a responsabilidade do empregador, com a participação dos trabalhadores, sendo sua abrangência e profundidade dependentes das características dos riscos e das necessidades de controle;

e) É necessário o preenchimento de formulário (PPP) pelas empresas que exer-cem atividades que exponham seus empregados a agentes nocivos químicos, físicos, biológicos ou associação de agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física, de acordo com Norma Regulamentadora nº 9 da Portaria nº 3.214/78 do MTE;

f) De acordo com art. 58 e seus §§, da Lei nº 8.213, de 24/07/91, com altera-ções introduzidas pela Lei nº 9.528, de 10/12/97, DOU de 11/12/97, as empresas estão obrigadas a manter laudo técnico de condições ambientais do trabalho (LTCAT), elaborado por médico do trabalho ou engenheiro de segurança e medicina do trabalho, que servirá para comprovação da efetiva exposição do segurado aos agentes nocivos para fins de aposentadoria especial. No laudo técnico referido deverá constar informações sobre a existência de tecnologia de proteção coletiva que dimi-nua a intensidade do agente agressivo a limites de tolerância e recomendação sobre a sua adoção pelo estabelecimento respectivo. A empresa que não mantiver laudo técnico atualizado com referência aos agentes nocivos existentes no ambiente de trabalho de seus trabalhadores ou que emitir documento de comprovação de efetiva exposição em desacordo com o respectivo laudo estará sujeita à penalidade prevista no art. 133, da referida lei.

Se houver violação, pelo empregador, de qualquer dos procedimentos antes enu-merados ele estará passível de autuação pelo órgão fiscalizador. A competência para anular referido tipo de penalidade é da Justiça do Trabalho, na forma do inciso VII, do art.114, da Constituição Federal: “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:...VII. as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos emprega-dores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;”. Essa atribuição reforça a conclusão de que ao judiciário trabalhista incumbe não somente o poder de anular as

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a concretização dos direitos fundamentais... • pastora do socorro teixeira leal 155

penalidades, mas também, no caso concreto, de exigir das empresas que comprovem o cumprimento dos deveres de garantir meio ambiente de trabalho sadio e seguro.

Definir direitos e estabelecer deveres correlatos pressupõe mecanismos para a sua efetivação, sendo o mais abrangente deles a garantia de acesso à Justiça, como prevê o inciso XXXV, do art.5º, da Constituição Federal: “ a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;” que deve ocorrer na forma do inciso LXXVIII, do mesmo artigo: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são asse-gurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Isto quer dizer que é necessário todo um instrumental processual capaz de garantir, de forma efetiva, os direitos tutelados.

Os meios de prova são o arsenal de que se deve utilizar o interessado para de-monstrar seu direito. Ocorre que muitas das vezes esses meios não estão ao alcance da parte. É o caso, por exemplo, do trabalhador que busca o judiciário para fazer valer seus direitos à saúde e à segurança no trabalho, seja pela via da prevenção – o que é raro -, seja pela via da reparação.

Quanto à distribuição do ônus da prova podemos identificar duas posturas que de-nominamos de: tradicional ou rígida ( teoria da distribuição do ônus estático da prova) e a efetivadora ou flexível (teoria da distribuição do ônus dinâmico da prova).

A tradicional ou clássica resiste a qualquer possibilidade do que se costumou denomi-nar de “inversão do ônus” e limita-se à estrita dicção do, do inciso I, do art.333, do CPC: “ O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito.”

A denominada teoria da distribuição do ônus dinâmico da prova (CARPES, 2010), que rotulamos de efetivadora, se predispõe a reconhecer que o ônus da prova incumbe àquele que tem o dever de viabilizar a concretização do direito e que, portanto, é quem tem mais fácil acesso aos meios de prova para sua demonstração em Juízo.

Em matéria de insalubridade e de periculosidade o art.195, da CLT, representa a corrente tradicional, pois impõe ao juiz determinar a realização de perícia e ao empre-gado arcar com seus custos, quando todo o restante da legislação pertinente remete ao dever do empregador de implementar mecanismos de tutela como aqueles já mencio-nados (EPIs, PPRA,PCMSO,PPP,LTCAT), dentre outros.

Sabe-se que um grande número de processos que tramitam na Justiça do Trabalho e que tem por objeto pleitos de reparação por danos à saúde têm sua tramitação emper-rada devido às inúmeras dificuldades na realização de perícias na hipótese de assistên-cia judiciária gratuita, tais como: recusa sistemática de entidades públicas em realizar perícias alegando falta ou insuficiência de pessoal qualificado; as empresas alegam que o custeio compete ao empregado que postula, pois é dele o ônus da prova; os empre-gados, em sua grande maioria, não têm recursos para arcar com as despesas periciais; o custeio de perícias pela União (Resolução CSJT nº35/2007) apresenta expressivas restrições e onera o orçamento dos TRTs; existem localidades de difícil acesso, nas quais sequer há profissionais habilitados; dificuldade de encontrar peritos que aceitem receber os valores tabelados.

Se o empregador está obrigado a implementar os mecanismos de prevenção já enumerados, a visão efetivadora usa da interpretação sistemática para concluir que o

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ônus da prova pericial compete ao empregador e a presumir a ocorrência do fato que se pretendia demonstrar pela a perícia, levando-se em conta os demais elementos dos autos em seu conjunto, pois se a descrição da atividade do trabalhador não se inclui naquelas previstas como de risco, não há como presumi-lo.

Os parâmetros que servem de suporte para a visão tradicional e para a efetivadora decorrem do paradigma no qual cada uma delas se assenta.

Nossas crenças é que determinam nossa forma de agir. Se acreditamos que as pessoas e coisas são como são e que nada pode ser feito para alterá-las, nada muda. Por outro lado, se acreditarmos que o esforço comum pode realizar mudanças este já é um grande passo.

Quem lê este artigo deve estar se perguntando: O que tem a ver crenças ou visões de mundo com a distribuição do ônus da prova e com a concretização dos direitos hu-manos? Tudo.

O modelo de ciência que utilizamos para descrever e alterar a realidade pode res-ponder a questão.

Abaixo o quadro apresentado por Maria José Esteves de VASCONCELLOS (2002), que sintetiza a problemática do paradigma da cientificidade, que se projeta na forma de pensar e de aplicar o sistema jurídico.

Modelos de Ciência

Modelo Tradicional Modelo Novo-Paradigmático ou Complexoobjetividade intersubjetividade

imutabilidade instabilidadesimplicidade complexidadelinearidade circularidade

O modelo tradicional não tem servido para dar respostas aos problemas comple-xos da sociedade de massa e globalizada. Nem mesmo no campo das ciências exatas o paradigma clássico se manteve. Os físicos tiveram que aceitar a dualidade das ondas luminosas, também conhecida como dualidade onda-partícula ou dualidade matéria--energia, dependendo das condições de observação da luz. É conhecido também na Física o chamado “princípio da incerteza”, segundo o qual a palavra dualidade deve ser substituída pela ideia de complementariedade, pois ondas e partículas são como duas imagens que se complementam mutuamente. Assim, a “probabilidade” agora se interpreta de forma diferente daquela da física clássica, pois depende das condições nas quais o fenômeno ocorre.

Nos estendemos um pouco mais na exemplificação com o intuito de demonstrar que a ciência precisou rever seu paradigma, sua forma de pensar e de agir.

Nem é necessário destacar que a forma tradicional de manejar o ônus da prova tem por baliza o modelo de ciência tradicional da imutabilidade a toda prova (ônus estáti-co), ou seja, a de que “provar compete a quem alega”; que a pretexto da objetividade

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ignora qualquer circunstância ou condição do caso concreto, tudo em nome da assepsia do intérprete, como se sua concepção de mundo em nada interferisse. Segundo essa visão, a distribuição do ônus da prova funciona como uma receita, sempre ocorre da mesma maneira, ou seja, é linear.

Aplica-se à visão efetivadora ou dinâmica da distribuição do onus probandi as características do modelo de ciência novo-paradigmático, porquanto ajusta-se às va-riáveis do caso, à equidade, porque a realidade não é imutável, mas instável, um mes-mo agente de risco pode gerar consequências as mais variadas. A questão também é complexa. Assim, se o dever de implementar mecanismos de prevenção e de proteção à saúde e à segurança no trabalho é do empregador, a ele incumbe tê-lo feito antes de demandado em Juízo. A título de exemplo temos o PCMSO cujos exames devem ser feitos na admissão, durante o contrato de trabalho e por ocasião da dispensa. Tais exames têm o condão demonstrar em que condições de saúde o trabalhador ingressou na empresa, se adoeceu ou se teve agravamento no seu quadro clínico por conta da atividade laboral e em que condições foi dispensado. Por outro lado, o PPRA pode de-monstrar quais as condições de risco no trabalho. Sendo assim, a produção de referidos documentos técnicos em Juízo é apenas uma consequência do dever de produzi-los fora dele. Desta feita, caso o tomador dos serviços não os tenha providenciado em tempo oportuno é porque descumprira deveres básicos pertinentes à salubridade e à higidez do ambiente de trabalho.

Contudo, ainda existe uma enorme resistência da comunidade jurídica em ajustar--se ao novo paradigma, pois a própria formação jurídica, em sua grande maioria, ainda está calcada no modelo de ciência tradicional. Essa resistência aliada à deficiência do aparato fiscalizador do Estado integram um conjunto de obstáculos à concretização dos direitos fundamentais laborais.

Manter-se resistente é mais simples e algumas das vezes até mais cômodo, pois ninguém gosta de dar-se ao trabalho de ler “NRs”(normas regulamentadoras), repletas de detalhes técnicos, quando basta apenas que o trabalhador não possa custear a perícia ou que não se encontrem peritos predispostos a receber valores tarifados para que o pleito seja julgado improcedente por falta de provas.

A introdução expressa da presunção do nexo causal entre a atividade da empresa e o agravo à saúde (Lei 11.430/2006), como se pode verificar pela redação do art. 21-A: “Presume-se caracterizada incapacidade acidentária quando estabelecido o nexo téc-nico epidemiológico entre o trabalho e o agravo, decorrente da relação entre a ativi-dade da empresa e a entidade mórbida motivadora da incapacidade, em conformidade com o que dispuser o regulamento.”, representa significável avanço da lei previdenciá-ria em face da trabalhista, cuja rigidez na distribuição do ônus da prova, principalmente em matéria de saúde e de segurança do trabalho, tem levado à dramática situação de toda um a legião de vitimados pelo trabalho que, justamente por dificuldades de prova, não têm acesso integral à Justiça e, como consequência, não conseguem responsabili-zar seus empregadores pelos danos suportados.

O Decreto nº 6.042/07 oficializa a necessidade de implantação, pela Previdência, de dois instrumentos legais que são: o Nexo Técnico Epidemiológico (NTPE) e o

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Fator Acidentário Previdenciário (FAP). Esses novos instrumentos têm o intuito de permitir a flexibilização das alíquotas de contribuição das empresas ao seguro acidente de trabalho (SAT).

Dentre os antecedentes dessa normatividade encontra-se a Resolução nº.1236, do Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS), publicada em 10 de maio de 2004, que trouxe novo procedimento, de especial importância para as doenças ocupacionais, nas quais há grande resistência à emissão do CAT. Essa nova sistemática também pas-sou a constar da Lei nº 8213/91, com a redação dada pela Medida Provisória nº 316/06, posteriormente convertida na Lei nº 11.430, de 26 de dezembro de 2006, que acres-centou o art. 21-A ao Plano de Benefícios. Nessas situações, como o benefício será considerado acidentário de ofício, não haverá multa pela ausência de comunicação de acidente do trabalho (CAT) por parte do empregador (art. 22, § 5º, da Lei nº 8213/91, com redação dada pela Lei nº. 11430/06). No Regulamento da Previdência Social, o as-sunto é tratado a partir do art. 337, com redação dada pelo Decreto nº 6.042/07, que dá nova formatação ao Anexo II do RPS, o qual estabelece Nexo Técnico Epidemiológico entre a atividade da empresa e a entidade mórbida motivadora da incapacidade. Essa presunção que dá acesso a benefício acidentário é válida a partir de abril de 2007 (art. 5º, I, do Decreto nº 6.042/07).

A resistência de muitos empregadores em emitir a CAT, a desproporcionalidade no custeio acidentário entre empresas onde a ocorrência de acidentes era diferenciada, a dificuldade de controle, a oneração do custeio público, dentre outras, foram algumas das causas da alteração da legislação mencionada que, como se pode verificar, teve suporte em problemas de natureza econômica. Todavia, ainda que decorrente de fatores econômicos, são sensíveis os reflexos de sobredita normatividade na tutela dos direitos fundamentais à saúde e à segurança no trabalho.

A presunção de nexo causal, quando a patologia (CID) corresponder no enquadra-mento legal à atividade econômica (CNAE) do local de trabalho, provoca um desloca-mento de eixo na maneira tradicional de conceber a responsabilidade civil, prescindindo da investigação da culpa, bastando que fique demonstrado o nexo causal entre a ativida-de da empresa e o dano ao trabalhador.

No mesmo sentido é a dicção do parágrafo único, do art. 927, do Código Civil: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos espe-cificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”

Projeto de Lei em tramitação (PL nº 3427/2008) significa tentativa de inserção desse novo paradigma na legislação trabalhista, quando reforça o reconhecimento da obrigação de o empregador propiciar meio ambiente de trabalho sadio e seguro, bem como de adotar medidas preventivas para eliminar ou neutralizar os agentes nocivos e as causas de acidentes ou de doenças ocupacionais.

Mencionado Projeto de Lei: Acrescenta à CLT o art. 818-A, altera os arts. 195 e 790-A e revoga os §§ 1º, 2º e 3º do art. 195 e os §§ 4º e 6º do art. 852-A, para dispor sobre ônus da prova nas reclamações sobre insalubridade e periculosidade e estabele-cer critérios para a remuneração do perito em caso de assistência judiciária gratuita.

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O Projeto de Lei em referência representa reforço aos argumentos já expendidos no sentido de que sendo do empregador o dever legal de propiciar ao trabalhador meio ambiente sadio e seguro também lhe incumbe a respectiva produção da prova. Vejamos:

Art.818-A. Constitui ônus da empresa demonstrar que propicia a seus trabalhadores meio ambiente sadio e seguro ou que adotou, oportuna e adequadamente, as medidas preventivas de modo a eliminar ou neutralizar os agentes insalubres, penosos ou perigosos, bem como as causas de acidentes ou doenças ocupacionais.§ 1º. O reclamado deverá apresentar com a defesa, documentação relativa aos programas e instrumentos preventivos de segurança e saúde no trabalho a que está obrigada a cumprir.§ 2º. Se o reclamado não cumprir o disposto no §1º, o Juiz poderá determinar a realização de prova pericial as suas expensas.§ 3º. Será dispensável a realização de perícia sempre que o Juiz entender que as provas dos autos são suficientes para respaldar tecnicamente a decisão.§ 4º. Determinada a realização da prova técnica, o Juiz nomeará perito, facultando às partes, no prazo de cinco dias, a formulação de quesitos pertinentes e a indicação de assistentes téc-nicos, os quais apresentarão seus pareceres no prazo fixado para o perito.§ 5º. As partes que não indicarem assistentes técnicos poderão apresentar impugnação funda-mentada ao laudo, no prazo comum de cinco dias, após o que fixado para a entrega do laudo oficial.§ 6º. O perito do Juízo e os assistentes técnicos deverão estar habilitados na forma do art.195.A proposta de alteração legal acima destacada representa significável avanço e ajusta a legis-lação trabalhista ao modelo de efetividade, mas também denuncia que a formação jurídica calcada no modelo tradicional exige que a literalidade da lei traduza a regra aplicável, embora as demais regras e os princípios do ordenamento jurídico, como já explicitado, convirjam para a mesma conclusão.

BIBLIOGRAFIA

ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.

CARPES, Arthur Thompsen. Ônus dinâmico da prova. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

COMPARATO, Fábio Konder. O papel do juiz na efetivação dos direitos humanos. Aula proferida na Escola Paulista de Magistratura em 22 de janeiro de 2001.

Disponível:http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/31990-37511-1-PB.pdf. Acesso em: 01/11/2012

COMPARATO, Fábio Konder. O papel do juiz na efetivação dos direitos humanos. Aula proferida na Escola Paulista de Magistratura em 22 de janeiro de 2001.

Disponível: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/31990-37511-1-PB.pdf

Acesso em: 01/11/2012

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UBILLOS, Juan María Bilbao. La eficacia de los derechos fundamentales frente a par-ticulares: análisis de la jurisprudencia del tribunal constitucional. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1997.

VASCONCELLOS, Maria José Esteves de. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. Campinas, SP : Papirus, 2002.

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12LEITURA SISTEMÁTICA, MENOR ONEROSIDADE E

PENHORA DE PECÚNIA EM EXECUÇÃO PROVISÓRIAMarcelo Freire Sampaio Costa

RESUMO: O presente trabalho objetiva estudar os verdadeiros limites do princípio da me-nor onerosidade ao devedor, disposto no art. 620 do Código de Processo Civil, no processo do trabalho, levando em consideração as peculiaridades (faticidade) dos casos concretos e o impacto que a leitura sistemática e a consequente avaliação vertical (técnica conforme a Constituição) e horizontal ocasionará sobre tal investigação, principalmente à posição juris-prudencial consolidada acerca desse tema, notadamente a necessária revisão do disposto no inciso III do art. 417 do TST.

PALAVRAS-CHAVE: leitura sistemática; art. 620 do CPC; faticidade; revisão da jurisprudência

ABSTRACT: The present work aims to study the true limits of the principle of minimum onerosity on the debtor, the provisions of art. 620 of the Code of Civil Procedure, the work process, taking into consideration the facticity of concrete cases and the impact that reading systematic review and subsequent vertical (technique according to the Constitution) and ho-rizontal will cause on such research, especially the position of jurisprudence concerning this subject, notably the necessary review the provisions of part III of art. 417 of the TST.

KEYWORDS: systematic reading, art. 620 the CPC; facticity; review of jurisprudence

SUMÁRIO: 1. Justificativa e objetivo; 2. Da importância da compreensão adequada à leitura sis-temática; 3. Da releitura da menor onerosidade ao executado a ser aplicada ao processo do trabalho; 4. Conclusão. Proposta de cancelamento ou nova redação ao item III da Súmula 417 do Tribunal Superior do Trabalho; 5. Bibliografia.

1. JUSTIFICATIVA E OBJETIVO

Recentemente o ministro presidente do Tribunal Superior do Trabalho, João Oreste Dalazen, afirmou, acertadamente, conforme restou publicado no sítio virtual daquele tribunal em painel chamado “Notícias do TST”,1 a necessidade de serem dis-

1 Disponível em : <http://www.tst.gov.br/>. Acesso em: 10 set. 2012.

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cutidas e amadurecidas pela jurisprudência a aplicação das regras objetos de reformas legislativas do Código de Processo Civil, relativas à execução definitiva e provisória, ao processo do trabalho, ante a inquestionável superação da legislação laboral.

Tal assunto está efetivamente na ordem do dia dos tribunais laborais pátrios, ca-recendo, realmente, como deixou esposado na referida notícia, de “um posicionamen-to mais categórico, num sentido ou noutro, do TST”, conforme manifestação de Sua Excelência, o presidente daquela Corte. Óbvio que tal firmeza jurisprudencial, caso alcançada por esse tribunal laboral maior, terá a capacidade de espraiamento e, por consequência, abrandar dissensões regionais tão frequentes sobre esse assunto.

O objetivo do presente não será discutir propriamente a incidência do modelo de execução provisória do art. 475-O do CPC no processo laboral, até porque tal assunto já foi explorado amplamente pelo autor do presente em obra voltada especificamente para esse assunto,2 nem muito menos avançar no aprofundamento do caminho trilhado pela ação mencionada na citada notícia, mas apenas tentar desenvolver novo rumo ao princípio da menor onerosidade ao devedor disposto no Código de Processo Civil, em uma ambiência de leitura sistemática no processo laboral, visando a consolidação de uma posição jurisprudencial entendida como mais equânime à questão.

Acredita-se, para finalizar esse passo inicial, que o papel da doutrina não pode colocar-se como mera “caudatária das decisões tribunalícias”,3 mas buscar a crítica res-peitosa visando a colaboração com o aperfeiçoamento de os precedentes jurisdicionais. É a modesta pretensão do presente.

Para isso, inicia-se tratando da leitura sistemática.

2. DA IMPORTÂNCIA DA COMPREENSÃO ADEQUADA À LEITURA SISTEMÁTICA

Os limites impostos ao presente não acolheriam o desenvolvimento do intrincado conceito de sistema jurídico ou extrajurídico.4 O objetivo é bem mais modesto. Apenas revelar a importância da técnica da leitura sistemática (aquela mesma estudada ainda no início do curso de graduação em direito) “como tarefa básica do jurista, pois para compreender juridicamente um problema, deve-se buscar normas de diversos ramos do direito”,5 em uma verdadeira “visão holística”6 dessa ciência, portanto, interdisciplinar.

2 Cf. COSTA, Marcelo Freire Sampaio. Execução Provisória no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2009.

3 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 81.

4 Sobre esse assunto vide, dentre tantos, CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e con-ceito de sistema na ciência do direito. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

5 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 204.

6 “A visão holística, integrada e sincrética dos clássicos ramos, disciplinas, institutos e instrumentos jurídicos é a tendência dos últimos tempos, o que implica um nível maior de complexidade na

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A consequência mais evidenciada dessa premissa é o reconhecimento da supe-ração da concepção de autossuficiência do texto celetista. Esta ideia merece menção como mero registro histórico. O desenvolvimento do presente partirá desse aspecto.

Nessa ambiência, parte-se de premissa cuja bitola exige a superação da concepção positivista de modelo jurídico, reconhecida como hermeticamente cerrada aos recla-mos sociais,7 vocacionada à “mais absoluta neutralidade em face do conteúdo político e ético das normas jurídicas”,8 construída por intermédio de ramos jurídicos autossu-ficientes e desatrelados dos demais, além de caracterizada por paradigmas prontos, descolados da realidade, decorrentes de raciocínios apriorísticos, para o reconhecido de uma concepção de sistema jurídico em que estão impregnadas as ideias de “conexão multímoda”9 das normas, incompletude, abertura,10 instabilidade,11 “provisoriedade do conhecimento científico”,12 e, principalmente, a variabilidade temporal da interpreta-ção jurídica, com o consequente reconhecimento do processo interpretativo como um mecanismo também criativo, e não meramente “reprodutivo”,13 este resultado de uma operação mecânica de aplicação da lei aos fatos (subsunção).

compreensão, diagnóstico e solução dos conflitos individuais ou coletivos, nas relações e interações múltiplas propiciadas pela sociedade contemporânea”. YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. Tutela dos interesses difusos e coletivos. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006. p. 185.

7 Veja-se íntegra do parágrafo de Juarez Freitas em que tal ideia é apresentada: “Pelo visto, resulta que não se deve pressupor um mundo jurídico acabado fora do pensamento, tampouco pretende constituir ou formular um conceito de sistema fechado à base de definições alheias ao mundo dos valores materiais e históricos. O Direito Positivo é aberto, vale dizer, a ideia de um suposto conjunto autossuficiente (sem variabilidade evolutiva) de normas não apresenta a menor plausibilidade, seja no plano teórico, seja no plano empírico”. FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2010. p. 33.

8 DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 117.9 “As normas jurídicas, tal como foi continuamente referido, não estão desligadas umas das outras,

mas estão numa conexão multímoda umas das outras”. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 621.

10 Neste mesmo sentido FREITAS, Juarez. op. cit., p. 51.11 Cf. VASCONCELOS, Maria José Esteves de. Pensamento sistemático: o novo paradigma da ciên-

cia. 9ª ed. Campinas: Papirus, 2002. pp. 152 e ss.12 CANARIS, Claus Wilhelm. op. cit., p. 106.13 O desenvolvimento dessa questão, como ela merece, desviaria a pretensão e os objetivos do pre-

sente, motivo pelo qual se transcreve trecho de doutrina que resume a posição aqui sustentada: “O processo interpretativo/hermenêutico tem (deveria ter) um caráter produtivo, e não meramente re-produtivo. Essa produção de sentido não pode, pois, ser guardada sob um hermético segredo, como se sua holding fosse uma abadia do medievo. Isto porque o que rege o processo de interpretação dos textos legais são as suas condições de produção, as quais, devidamente difusas e oculta(da)s, apare-cem – no âmbito do discurso jurídico-dogmático permeado pelo respectivo campo jurídico – como se fossem provenientes de um ‘lugar virtual’, ou de um ‘lugar fundamental’. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 7ª ed. Porto Alegre: Livr. do Advogado, 2007. p. 93.

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Também se tem como premissa, com inspiração em Canaris, que o papel con-ceitual de sistema é o de “traduzir e realizar a adequação valorativa e a unidade da ordem jurídica”,14 visando à superação das antinomias ínsitas a um modelo estrutural normativo por intermédio da compreensão da importância da integração axiológica das normas-princípios, normas-regras e valores,15 a ser vivificado pelo labor interpretati-vo16 do sujeito.

O conceito de sistema jurídico de Juarez Freitas encaixa perfeitamente com a ideia a ser desenvolvida posteriormente. É o seguinte, literalmente:

...entende-se apropriado conceituar o sistema jurídico como uma rede axiológica e hierar-quizada topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras) e de va-lores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando antinomias em sentido lato, dar cumprimento aos objetivos justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição.17

Depois das linhas já construídos, pode-se destacar, didaticamente, pelo menos três

aspectos fundamentais à compreensão da posição a ser defendida ao longo do presente. Vejamos:

i) As partes de um sistema jurídico devem guardar conexões entre si, constituindo um “conjunto harmônico e interdependente”.18 Qualquer “exegese comete, direta ou indiretamente uma aplicação de princípios, regras e valores componentes da totalidade do direito”.19 Conforme impactante ensinamento de Eros Roberto Grau, o direito “não pode ser interpretado em tiras, aos pedaços”;20

ii) A superação da leitura positivista insulada, desatrelada do mundo concreto21 e dos demais ramos da ciência jurídica do texto celetista;

14 CANARIS, Claus Wilhelm. op. cit., p. 23.15 A distinção entre essas modalidades normativas deve ser buscada em ÁVILA, Humberto. Segurança

jurídica: entre a permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros Ed., 2011. p. 113.

16 “A interpretação sistemática envolve, existencial e consciencialmente, o sujeito que interpreta e ‘lê’ o sistema. Não lhe permite ser apenas um descobridor ou revelador de significados. Quer que atue como espécie de conformador prescritivo e partícipe responsável e estruturador do objeto.” FREI-TAS, Juarez. op. cit., p. 69.

17 FREITAS, Juarez. op. cit., p. 56.18 DINIZ, Maria Helena. op. cit., p. 430.19 FREITAS, Juarez. op. cit., p. 73.20 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2ª ed. São Pau-

lo: Malheiros Ed., 2003. p. 122. 21 Veja-se trecho doutrinal em foi extraída tal ideia: “Em outras palavras, o positivismo atinge seu de-

siderato – repito, nas suas mais diversas manifestações – quando consegue descolar a enunciação da lei do mundo concreto, ou seja, quando transforma a lei em uma razão autônoma (mesmo quando, nas posturas realistas, considera as decisões como o modo privilegiado de manifestação do direito)”. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?, cit., p. 63.

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iii) Raciocínios apriorísticos ignoradores dessas infinidades de variáveis decor-rentes das peculiaridades dos casos concretos (a tal faticidade) devem ser afastados, sob pena de se empobrecer demasidadamente a atividade do intérprete. Qualquer desses raciocínios apriorísticos no direito é equivocado, pois a quadra de desenvolvimento dessa ciência não admite mais meras “reduções lógico-formais”22, como se essa ciência decorresse de lógica cartesiana.

A técnica sistemática pretende alcançar maior diálogo entre os ramos da ciên-cia jurídica, por intermédio de uma avaliação vertical (esta por meio da técnica da interpretação conforme a Constituição) e horizontal de ponderação de dispositivos infraconstitucionais hierarquicamente idênticos, porque a resolução de um dado caso concreto reclama a exegese da totalidade de princípios, regras e valores componentes desse ordenamento jurídico; o direito, como salientado anteriormente, “não pode ser interpretado em tiras, aos pedaços”.23

Nessa visada, deverá o intérprete, ao buscar a resolução de dada contenda, debru-çar-se sobre a totalidade do direito, hierarquizando topicamente (sobre o caso concreto) as modalidades normativas citadas anteriormente, em busca da melhor ou de ótima argumentação para alcançar a resposta mais bem justificada24 ou “hermeneuticamente adequada”,25 por intermédio da aplicação de critérios racionais26 justificadores da con-clusão alcançada,27 principalmente considerando a abertura, incompletude e mobilida-de desse sistema.

Destarte, além de o confronto do caso concreto com textos infraconstitucionais a se-rem lidos em conformidade com a Carta Maior (aqui nominada leitura vertical), a técnica sistemática propõe tal cotejo a ser realizado também com os diversos ramos da ordem jurídica infraconstitucional (aqui chamada leitura horizontal). Há a somatória dessas téc-nicas. O movimento interpretativo, consequentemente, para ser completo e corretamente considerado sistemático, deverá ser concomitantemente vertical e horizontal.

22 Vale transcrever íntegra de trecho doutrinal que corrobora tal afirmação: “O raciocínio apriorístico está findando. O direito é complexo na sua aplicação, afastando reduções lógico-formais”. ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 182.

23 GRAU, Eros Roberto. op. cit., p. 122.24 AARNIO, Aulis. Sobre la justificación de las decisiones jurídicas:las tesis de la única respuesta

correcta y el principio regulativo del razonamiento jurídico. Madrid: Doxa, 1990, nº 8, p. 437. 25 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção

do direito, cit., p. 183.26 Nesse mesmo sentido, PADILHA, Norma Sueli. Colisão de direitos metaindividuais e a decisão

judicial. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006. p. 90.27 Ao contrário de Ronald Dworkin que acredita na possibilidade da existência de uma única resposta

correta à solução de os chamados casos difíceis, acompanha-se pensamento de Robert Alexy acerca da necessidade de se buscar tal resposta correta, “independentemente da existência a priori dela”. In: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad.: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Ed., 2008. p. 599.

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As premissas da leitura sistemática (abertura, incompletude, instabilidade, mobi-lidade e construção interpretativa) conferem substancial suporte teórico ao intérprete para a realização dessa operação mais ampla, visando a “um diálogo maior”28 entre os ramos da ciência jurídica, aqui especialmente da processualística. No caso em desta-que, o diálogo pretendido acontece primordialmente entre o processo civil e o laboral.

Portanto, interpretar sistematicamente significará a realização de um raciocínio jurídico ponderativo29 mais sensível e complexo, tendo em conta a amplitudade dos diversos preceitos legais, sem desconsiderar as vissicitudes apresentadas pela realidade dos fatos, a hierarquização axiológica e escalonada dos princípios, regras e valores, componentes da totalidade do ordenamento jurídico.

Não cabe mais na complexidade das relações sociais e na rotina jurisdicional pátria a redução do equacionamento de conflitos a meras fórmulas prontas, acabadas e acríticas.

Como se pretende desenvolver no próximo item, longe de se mostrar correta a aplicação acrítica, para toda e qualquer situação posta, como se fosse receita de bolo de caixa, do princípio da menor onerosidade ao devedor.

Finaliza-se singelamente esta parte lembrando, como suporte em Juarez Freitas, que a interpretação jurídica ou é sistemática, “ou não é interpretação”.30

3. DA RELEITURA DA MENOR ONEROSIDADE AO EXECUTADO A SER APLICADA AO PROCESSO DO TRABALHO

A finalidade desse tópico é apreciar especificamente31 o princípio do meio execu-tivo menos oneroso ao devedor, regulado pelo processo civil, no processo do trabalho, conforme previsto no art. 620 do CPC. Tal é amplamente acolhido pela doutrina e juris-prudência laboral,32 inclusive cristalizado em súmula que reconhece a impossibilidade

28 Nessa mesma linha caminha Mauro Schiavi: “Além disso, atualmente, a moderna doutrina vem defendendo um diálogo maior entre o Processo do Trabalho e o Processo Civil, a fim de buscar, por meio de interpretação sistemática e teleológica, os benefícios obtidos na legislação processual civil e aplicá-los ao Processo do Trabalho. Não pode o Juiz do Trabalho fechar os olhos para normas de Direito Processual Civil mais efetivas que a CLT, e se omitir sob o argumento de que a legislação processual do trabalho não é omissa, pois estão em jogo interesses muito maiores que a aplicação da legislação processual trabalhista e sim a importância do Direito Processual do Trabalho, com sendo instrumento célere, efetivo, confiável que garanta, acima de tudo, a efetividade da legislação proces-sual trabalhista e a dignidade da pessoa humana”. SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual do trabalho. 4ª ed. São Paulo: LTr, 2011. p. 100, grifo nosso.

29 A ideia da ponderação no processo do trabalho já foi aprofundada em outra obra de nossa lavra. Cf. COSTA, Marcelo Freire Sampaio. Eficácia dos direitos fundamentais entre particulares: juízo de ponderação no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2010.

30 FREITAS, Juarez. op. cit., p. 76.31 Sobre o estudo dos outros princípios incidentes na execução laboral, vide, dentre tantos, SCHIAVI,

Mauro. Execução no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2008. pp. 24-35.32 Dentre tantos precedentes, cf. Tribunal Superior do Trabalho. 2. Turma. Processo AIRR

151.70.2010.5.08.0000. Data de Julgamento: 04.05.2011. Rel. Ministro: Renato de Lacerda Paiva. Data de Publicação DEJT 13.05.2011.

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de penhora de pecúnia em sede de execução provisória, conforme será apresentado mais à frente.

Diz o citado dispositivo legal (art. 620 do CPC) que a execução, quando puder ser promovida por mais de um meio, deverá ser realizada pelo caminho “menos gravoso para o devedor”.33 Aliás, registre-se que o projeto do novo Código de Processo Civil, tramitando no Congresso Nacional, possui disciplina idêntica (art. 729). 34

A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, como já salientado, vem conferindo excessiva preponderância à menor onerosidade ao devedor em execução provisional. E essa posição está cristalizada pelo Tribunal Superior do Trabalho por intermédio da Súmula 417, III, com a seguinte redação:

III. Em se tratando de execução provisória, fere direito líquido e certo do impe-trante a determinação de penhora em dinheiro, quando nomeados outros bens à penho-ra, pois o executado tem direito a que a execução se processe da forma que lhe seja menos gravosa, nos termos do art. 620 do CPC.

Aliás, magistrados reunidos na Jornada de Execução Trabalhista havida em Cuiabá, em novembro de 2010, rechaçaram o conteúdo da posição sumulada em apre-ço ao aprovarem a Orientação nº 21, cujo teor admite a possibilidade de penhora em dinheiro em sede executiva provisional.35 Ratifica-se tal orientação, consoante argu-mentos que serão a seguir desenvolvidos.

Como visto em momento anterior, a técnica da leitura sistemática pretende ser uma operação, para a resolução de um dado caso concreto, apta a demandar exegese ponde-rativa e escalonada (horizontal e vertical) da totalidade de os princípios, regras e valores componentes de um sistema jurídico, hierarquizando-se topicamente o peso de cada uma dessas modalidades normativas em busca da melhor interpretação, ante as nuanças do caso concreto. Será o problema posto, a faticidade, com suas peculiaridades, que vai con-duzir o desenlace buscado, levando-se em consideração a interpretação-aplicação desse conjunto normativo. O item III da Súmula 417 impõe uma regra apriorística e genérica, bem ao gosto da linha do positivismo jurídico. Não tem relação qualquer com a concep-ção de interpretação sistemática; passa longe dela.

Quando se menciona a questão da importância da faticidade, ou mais claramente, as peculiaridades de cada caso objeto de apreciação jurisdicional, busca-se destacar al-gumas variáveis que deveriam ser dimensionadas de tal maneira que pudessem afastar a incidência acrítica da citada posição sumular. Por exemplo, o fato de o executado ser uma sólida instituição financeira, ou um grupo empresarial com dimensões ultrana-

33 A íntegra desse dispositivo diz que: “Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”.

34 Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor.

35 A íntegra da redação é a seguinte: “EXECUÇÃO PROVISÓRIA. PENHORA EM DINHEIRO. POSSIBILIDADE. É válida a penhora em dinheiro na execução provisória, inclusive por meio do Bacen Jud. A Súmula nº 417, III, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), está superada pelo art. 475-O do Código de Processo Civil (CPC)”.

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cionais, em invés de uma pequena sociedade individual, ou comprovada situação de necessidade do credor, deveria ser capaz de afastar a regra geral da impossibilidade de penhora de pecúnia em execução provisória, principalmente se for visualizada a tenta-tiva de o executado protelar além do razoável o tempo de duração processual.

A impossibilidade de constrição de pecúnia não pode estar atrelada apenas e tão somente ao critério da provisoriedade da via executiva, desconsiderando-se, repita-se, as incontáveis peculiaridades apresentadas por cada caso singular objeto de apreciação, a tal faticidade mais de uma vez mencionada.

Aliás, já se percebe na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho prece-dentes esparsos capazes de progressivamente minar a força da posição sumular em destaque. Por exemplo:

O princípio da menor onerosidade, consagrado no art. 620 do CPC não tem, em regra, força para comprometer a ideia mestra, de que a execução se realiza no interesse do credor (art. 612 do CPC). Ademais, o principio da menor onerosidade está atrelado à possibilidade de execução por vários meios, o que não é o caso.36

Além do mais, a citada leitura sistemática do precedente sumular ora criticado, considerando as características descritas dessa técnica, deveria não apenas aplicar in-suladamente o teor do art. 620 do CPC, mas conjugar também a inteligência do dis-posto no art. 655 do CPC,37 o princípio da utilidade do resultado da execução para o exequente, conforme previsto nos parágrafos 2º e 3º do art. 659 do CPC38, bem como a ideia da primazia da satisfação, pela técnica executiva, do interesse do credor, con-soante plasmado no art. 612 do CPC,39-40 além de o princípio da máxima utilidade da execução, “construído a partir do disposto nos arts. 577, 579, 599, 600 e 601”,41 normas

36 Tribunal Superior do Trabalho. 3ª Turma. Processo TST-AIRR-15850-15.2010.5.04.0000. Relator Min. Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira. Data de Julgamento 20/10/2010. Há outros pre-cedentes seguindo a mesma linha. Cf. Tribunal Superior do Trabalho. 2ª Turma. Processo AIRR 36300-40.1992.5.02.0040. Relator Renato Min. Lacerda de Paiva. Data de Julgamento 28/09/2012; Tribunal Superior do Trabalho. 1ª Turma. Proc. AIRR 6736-46.2010.5.15.0000. Relator Min. Lelio Bentes Corrêa. Data de Julgamento 24.08.2012.

37 “Art. 655. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem: I- dinheiro, em espécie ou depósito ou aplicação em instituição financeira”

38 “2o Não se levará a efeito a penhora, quando evidente que o produto da execução dos bens encontrados será totalmente absorvido pelo pagamento das custas da execução;§ 3o No caso do parágrafo anterior e bem assim quando não encontrar quaisquer bens penhoráveis, o oficial descreverá na certidão os que guarnecem a residência ou o estabelecimento do devedor”.

39 Art. 612. Ressalvado caso de insolvência do devedor, em que tem lugar o concurso universal (art. 751, III), realiza-se a execução no interesse do credor, que adquire, pela penhora, o direito de prefe-rência sobre os bens penhorados.

40 Para Julio César Bebber, o princípio do art. 612 do CPC sempre prevalecerá no processo do trabalho. In: BEBBER, Julio César. Processo do trabalho: adaptação à contemporaneidade. São Paulo: LTr, 2011. p. 175.

41 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: tutela jurisdicional executiva. 3ª ed. São Paulo: Saraiva. 2010. v. 3, p. 56.

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essas que lidas em conjunto buscam a satisfação plena do credor em detrimento de os possíveis atos procrastinatórios do executado ou de qualquer terceiro aptos a frustrar tal finalidade, além da força a ser atribuída aos princípios constitucionais da efetividade da atividade jurisdicional e duração razoável do processo.

A propósito, solução similar a defendida no presente encontra-se estampada no art.878-D (“Havendo mais de uma forma de cumprimento da sentença ou de execução do título extrajudicial, o juiz adotará sempre a que atenda a especificidade da tutela, a duração razoável do processo e ao interesse do credor”) de projeto de lei de reforma da execução trabalhista, fomentado no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, e já em trâmite no Congresso Nacional.42

O standard sumular fixado pelo Tribunal Superior do Trabalho afasta a técnica ponderativa desses preceitos, bem como, repita-se, as características peculiares de cada situação julgada que poderiam conferir norte resolutivo apto a afastar a prevalência usual da suposta não prejudicialidade do devedor, como sói acontecer na rotina deci-sória desse tribunal, pois entabulou verdadeira regra imutável de impossibilidade de execução provisória incidir sobre dinheiro quando houver outros bens possíveis de nomeação à penhora, em razão da inteligência isolada do art. 620 do CPC. Como dito antes, qualquer raciocínio apriorístico no direito é equivocado, porque o direito é com-plexo, não admite meras reduções formais.

Portanto, o fato de os possíveis bens nomeados à penhora não possuírem razoá-vel valor de mercado ou serem passíveis de rápida degradação pelo simples transcurso do tempo, a reiterada conduta maliciosa do devedor em procrastinar indevidamente a duração do processo, como acontece rotineiramente na jurisdição, o porte econômico desse devedor (de um modestíssimo empreendedor até um gigante econômico de atuação global), o grau da “necessidade” do credor, os distintos momentos procedi-mentais em que podem ser deflagradas as execuções provisórias (pode ser tanto em sede de recurso ordinário como em agravo de instrumento para destrancar recurso extraordinário), e tantas outras variáveis que poderiam ser aqui exemplificadas, não teriam o condão de modificar a aplicação mecânica dessa posição sedimentada pelo Tribunal Superior do Trabalho; daí porque a técnica sistemática ora defendida não está sendo considerada. Se essa técnica fosse efetivamente realizada, as variáveis citadas poderiam ter a aptidão para, em certas situações, afastarem o maior peso sem-pre aplicado na execução provisória sobre o art. 620 do CPC em detrimento de todos os diversos outros dispositivos legais mencionados, constitucionais e infraconstitu-cionais, apontados em direção contrária.43

42 Projeto de Lei nº 606/2011. 43 Em sentido próximo vide GÓES, Gisele Santos Fernandes. A base ética da execução por subrroga-

ção no processo civil brasileiro: os princípios da idoneidade do meio e da menor onerosidade. In: SHIMURA, Sérgio; NEVES, Daniel Assumpção (Orgs.). Execução no processo civil: novidades e tendências. São Paulo: Método, 2005.

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Veja-se que não se está a defender para toda e qualquer situação jurisdicional posta a “total inaplicabilidade”44-45 do princípio insculpido no art. 620 do CPC, apenas, repita-se, a necessidade de se interpretar verdadeiramente de maneira sistemática todos os precep-tivos legais citados, de sorte que haja a possibilidade, dependendo da(s) peculiaridade(s) apresentada(s) pelo caso concreto, na seara executiva definitiva ou provisória, da supera-ção deste por outro(s) mandamento(s) legal(is) com esse contraposto(s).

O norte insculpido no art. 620 do CPC deveria servir como barreira de proteção de possíveis excessos realizados em favor de o exequente, e não como verdadeiro mar-co intransponível de “limitação política impeditiva da execução”,46 como infelizmente tem acontecido em sede de execução provisória no processo laboral.

Corroborando os argumentos ora esposados, irresistível a transcrição de trecho de dou-trina sobre essa interpretação isolada do art. 620 do CPC na seara laboral, senão vejamos:

Menos gravoso não significa benefício do devedor em prejuízo ao credor. Não. Significa que, se houver duas possibilidades de cumprimento da obrigação que satisfaça da mesma forma o credor, escolher-se-á aquela mais benéfica ao devedor. Se existirem duas formas de cumpri-mento, mas uma delas prejudica o credor, escolher-se-á aquela que beneficia o credor.47

Também irresistível transcrever trecho de acórdão do Tribunal Superior do

Trabalho que corrobora integralmente os principais argumentos esposados no presente, especialmente no tocante à avaliação do art. 620 do CPC em conformidade com a téc-nica de interpretação sistemática. Vejamos:

Convém lembrar que nenhum dispositivo legal deve ser interpretado senão em consonância com todo o ordenamento que integra. Na hipótese dos autos, o Juízo de origem ao acolher e limitar a penhora em R$ 3.000,00 sobre a renda da empresa, até perfazer o montante do cré-dito exequendo, nada mais fez do que conciliar o direito do empregado em receber o que lhe era devido com o princípio da menor onerosidade da execução inserto no art. 620 do CPC, de forma a assegurar a continuidade das atividades da entidade sindical...48

Não é demais registrar a concepção originária de o processo civil ratificar a supos-ta paridade (igualdade formal) de forças entre as partes litigantes, enquanto no processo do trabalho o credor é ordinariamente hipossuficiente e usualmente desempregado, sem possibilidade de prover o sustento de sua família. Portanto, palmar a necessidade de

44 Como já foi feita em trabalho anterior. Vide COSTA, Marcelo Freire Sampaio. Execução provisória no processo do trabalho, cit., p. 83.

45 Nesse sentido temos, dentre outros, MENEZES, Claudio Armando Couce de. Teoria geral do pro-cesso e a execução trabalhista. São Paulo: LTr, 2003. p. 171.

46 BEBBER, Julio César. op. cit., p. 176.47 OLIVEIRA, Francisco Antonio de. Execução na Justiça do Trabalho: doutrina, jurisprudência, sú-

mulas e orientações jurisprudenciais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1988. p. 93.48 Tribunal Superior do Trabalho. 6ª Turma. Processo AIRR 119700-12.2006.5.04.0005. Relator Min.

Augusto César Leite de Carvalho. Data de Publicação DEJT 19.12.2011.

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serem observadas tais variáveis, o que certamente alteraria o rumo dessa jurisprudência consolidada em enfoque, pelo menos em determinadas situações.

Para finalizar, a aplicação da citada interpretação sistemática teria o condão de lograr verdadeira execução equilibrada, capaz de equacionar a efetividade da jurisdição com a ampla defesa do devedor, ou, em outros termos, do balanceamento dos princípios do resultado e da menor gravidade da execução.49

4. CONCLUSÃO. PROPOSTA DE CANCELAMENTO OU NOVA REDAÇÃO AO ITEM III DA SÚMULA 417 DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO

Recentemente o Tribunal Superior do Trabalho, em louvável iniciativa, por intermédio do que foi chamado “2ª Semana do TST”, ocorrida ao longo do mês de setembro, acabou por cancelar e também alterar a redação de diversos escólios jurisprudenciais consolidados.

O item III da Súmula 417 que afasta integralmente a hipótese de possibilidade de penhora em dinheiro em sede de execução provisória, quando houver nomeação de outros bens à penhora, entra em conflito com a construção doutrinal apresentada, pois, conforme razões demonstradas ao longo do presente, o princípio disposto no art. 620 do Código de Processo Civil não pode ser compreendido de tal maneira que afaste, por completo, a possibilidade de penhora pecuniária em sede de execução provisória.

Como se pretendeu demonstrar ao longo desse texto, a jurisdição não pode ol-vidar das peculiaridades descortinadas em casos concretos, sob pena de empobrecer grandemente a atividade jurisdicional, ofender-se a técnica da leitura sistemática aqui delineada, e, principalmente, serem ordinarizadas as decisões ineficazes e injustas, daí porque fica a sugestão de cancelamento do item III da Súmula 417 do Tribunal Superior do Trabalho ou alteração dessa redação, de sorte que se permita a possibilidade de ser admitida, em vista das peculiaridades do caso concreto (exemplo: incontestável capa-cidade econômica do devedor, comprovada situação de necessidade do credor ou até avançado estágio de tramitação processual da demanda), a concreção de penhora de pecúnia em sede de execução provisória.

5. BIBLIOGRAFIA

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad.: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Ed., 2008.

ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre a permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros Ed., 2011.

BEBBER, Julio César. Processo do trabalho: adaptação à contemporaneidade. São Paulo: LTr, 2011.

BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: tutela jurisdicional executiva, cit., v. 3.

49 BUENO, Cassio Scarpinella. op. cit., p. 57.

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172 temas atuais de direito

BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual: tutela jurisdi-cional executiva, cit., v. 3.

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13FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA

E A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO ÂMBITO DA AMAZÔNIA LEGAL

Luzia do Socorro Silva dos Santos / Marcos Alberto Pereira Santos

RESUMO: O presente artigo examina alguns aspectos da Lei nº 11.952/2009, que trata da regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, a fim investigar se instrumentaliza o cumprimento da função socioambiental da propriedade pública, partindo da inferência de que o Poder Público deve submissão a esse regime de solidariedade como todos os seus cidadãos.

PALAVRAS CHAVES: Regularização Fundiária – Amazônia Legal – Função Social da Propriedade – Função Social da Propriedade Pública – Lei nº 11.952, de 2009.

SUMÁRIO: 1. O contexto da edição da Lei nº 11.952/2009 em face da função social e ambiental da propriedade. 2. Regularização Fundiária na Amazônia Legal – Lei nº 11.952/20. 3. Função Social e Ambiental da Propriedade Pública. 4. Função Socioambiental da Propriedade e a Lei de Regularização Fundiária da Amazônia Legal. 5. Notas Conclusivas. 6. Bibliografia.

1. O CONTEXTO DA EDIÇÃO DA LEI Nº 11.952/2009 EM FACE DA FUNÇÃO SOCIAL E AMBIENTAL DA PROPRIEDADE

O problema fundiário do Brasil é conhecido e exige resolução, principalmente na região Amazônica a necessidade de ação se mostra mais premente, pois segundo levantamento do governo federal, a região tem menos de 4% de seu território regulari-zado.1 O número é ainda mais preocupante considerando que a região representa 61% do território brasileiro.

Essa temática de ausência de regularização remete à incerteza quanto ao direito de propriedade, implicando em desdobramentos significativos, dentre os quais podemos citar: (I) insegurança jurídica quanto à propriedade, afugentando investimento estatal e também do capital privado, que teme aportar recursos na região por não ter garantia de retorno ante à falta de segurança; (II) invasões de terras, pois não se sabe ao certo quem é o dono; (III) grilagem; (IV) desmatamento e degradação ambiental; (V) traba-lho análogo ao de escravo.

1 Plano Amazônia Sustentável. PAS(2008). Ministério da Integração Nacional, p. 03.

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174 temas atuais de direito

Atentas para esse cenário, as Políticas Públicas2 do Estado focaram para neces-sidade de solucionarem as informalidades, e, nesse esforço, que segundo Vicente de Abreu Amadei, “cunhou-se a expressão regularização fundiária como categoria maior ou gênero, que, por sua ampla abrangência, abarca todas as etapas, modos e instru-mentos de regularização das informalidades imobiliárias”.3

Especificamente, para tratar da regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal, foi editada a Lei nº 11.952, de 2009.

O Estado, embora possuísse o domínio na quase totalidade da região, percebeu que as ocupações incidentes em suas áreas eram irreversíveis e que mais sensato seria regularizá-las. E assim o fez com a edição da lei acima citada, no entanto, antevemos que exige a satisfação de alguns requisitos, identificados principalmente com a obser-vância da função socioambiental da propriedade.

Em um primeiro momento, surge a ideia da função social da propriedade, erigin-do-se como princípio com positivação no direito constitucional moderno, o qual res-tringe os atributos da propriedade, para que ela não seja usada e gozada egoistamente, mas, em uma dimensão coletiva, solidarística. Assim, se por um lado é garantido o direito à propriedade, por outro, ele é condicionado ao atendimento de um dever, de dele se valer somente com escopo social.

A função social foi expressamente prevista na Constituição Federal de 1988. Primeiro, no art. 5º, XXIII, no rol dos direitos e garantias fundamentais, revestindo-a de irretratabilidade, dureza eterna, que jamais poderá ser modificada, ante o fato de ser pétrea cláusula (art. 60, §4º, IV).

A função social também foi contemplada como princípio de ordem econômica (art. 170, III), que nas palavras de José Afonso da Silva, tem como objetivo ser instru-mento destinado à realização da existência digna de todos e da justiça social. 4

A Constituição vigente foi bem mais além do que as anteriores, visto que não só previu expressamente a exigência ao atendimento à função social, como também con-sagra no seu texto o bem jurídico ambiental que, ao nosso sentir, integra o conteúdo da função social da propriedade e, por isso, empregamos a expressão “função socioam-biental da propriedade”.

Essa inferência se extrai a partir da interpretação do tratamento dado ao meio am-biente no sistema jurídico brasileiro.

2 Políticas públicas aqui entendida conforme Cristiane Derani, para quem “é um conjunto de ações coordenadas pelos entes estatais, em grande parte por eles realizadas, destinadas a alterar as relações sociais existentes. Como prática estatal, surge e se cristaliza por norma jurídica”. Política Pública e norma jurídica. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org). Políticas Públicas e reflexões sobre o con-ceito jurídico. p. 135).

3 Regularização de Terras da União, p. 306.4 Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 790.

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Compreendemos que a Constituição Federal de 1988 recepcionou a definição le-gal de meio ambiente prevista no artigo 3º da Lei nº 6.938/1981, concebendo-o como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.

Esse bem jurídico foi proclamado no artigo 225 do texto constitucional como di-reito de todos, de natureza jurídica difusa, por ser transindividual, com impossibilidade fática e jurídica de ser apropriado por alguem com exclusividade, por se tratar de bem imaterial, o equilíbrio ecológico, assim reconhecido:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum de todos e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Identificamos, assim, importante característica do bem jurídico ambiental que lhe vincula com o direito à vida, qual seja, ser um bem essencial à sadia qualidade de vida, conteúdo indispensável para sua escorreita interpretação de direito fundamental de so-lidariedade, pertencente à categoria dos direitos humanos.

A Constituição vincula a dinâmica do meio ambiente equilibrado como essencial à vida saudável. Por consistir em termo jurídico indefinido, ao intérprete cabe a tarefa de densificar a nomenclatura normativa.

Sempre oportunas as palavras de Celso Antonio Pacheco Fiorillo,5 que diz que os valores positivados abrangidos no enunciado sadia qualidade de vida são aqueles que tutelam a vida humana, a exemplo do patrimônio genético, da fauna, da flora, dos recursos minerais, como também aqueles decorrentes da dignidade humana, fundamento maior a ser observado normativamente.

Esse bem jurídico ambiental, essencial à sadia qualidade de vida, é observado desde a Lei nº 6.938, de 31.8.1981, em uma concepção ampliada, abarcando o ambiente construído pelo ser humano nas suas relações sociais, econômicas e culturais como ser vivente da terra, pelo que se constata ser unidade multifacetária a partir das relações estabelecidas entre seus elementos.

Assim é que essas relações permitem observarmos dimensões destacadas dessa realidade jurídica, entre as quais destacamos: o meio ambiente natural, meio ambiente cultural, meio ambiente urbano, meio ambiente rural.

O meio ambiente natural corresponde ao meio ambiente físico, constituído pelos elementos bióticos e abióticos que possibilitam o surgimento, a manutenção e a trans-formação do espaço no qual se desenvolvem todas as formas de vida, encontrando claro reconhecimento no artigo 225 citado.

O meio ambiente cultural representa o mundo humano, imaginado, criado, cons-truído, desenvolvido, mantido, modificado, transformado, enfim, vivido pelo espírito do homem e da mulher, seres componentes da biosfera.

5 Fundamentos constitucionais do direito ambiental brasileiro. In: Direito ambiental e cidadania, pp. 46-48.

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176 temas atuais de direito

A normatividade de regência dessa dimensão se situa nos artigos 215 e 216 c/c o artigo 225 da Constituição Federal, que se irradia por todo o sistema de tutela dos direitos culturais inerentes ao bem jurídico da cultura, quer na significação de forma-ção pessoal, quer no sentido antropológico de modos de vida criados, adquiridos e transmitidos de uma geração para outras por determinado agrupamento humano, ma-terializados mediante símbolos, que abrigam valores aceitos pelo grupo social. Quer dizer, o direito ambiental brasileiro protege a cultura brasileira identificada com o seu patrimônio cultural, na forma concebida no artigo 216 do texto magno.

Do meio ambiente cultural, pode-se distinguir outra dimensão do fenômeno am-biental, o meio ambiente urbano, integrado pelos artigos 182 em combinação com o ar-tigo 225, ambos da Lei Maior, representando os espaços habitáveis pela pessoa humana, ou seja, os espaços de vida e convivência familiar, profissional, recreativa, religiosa etc.

O artigo 182 referido diz que a política de desenvolvimento urbano tem por obje-tivo organizar o desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de todos os habitantes.

As funções sociais da cidade, sintetizadas pelo direito urbanístico na promoção de moradia e condições adequadas de trabalho, higiene, recreação e de circulação humana, são alargadas pelo direito ambiental, que incorpora para o âmbito dos espaços ocupa-dos pelo ser humano a efetivação de todos os direitos fundamentais.

Esse espaços ocupados pelas pessoas estão diretamente vinculados com a função so-cial da propriedade contida no artigo 5º, XXIII, como direito fundamental, erigido em prin-cípio da ordem econômica preconizado no artigo 170, III, ambos da Constituição Federal.

Assim é que a legislação civil reconhece a imbricação da função social da pro-priedade com as dimensões do meio ambiente em comento, como se vê pelo § 1º do artigo 1.228 do Código Civil, que professa que o exercício do direito de propriedade deve guardar consonância com as finalidades econômicas e sociais, de modo que sejam preservados, conforme disciplina legal específica, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico-artístico-cultural, bem como prescreve que seja evitada a poluição do ar e das águas.

Citamos, por derradeiro, o meio ambiente rural se reporta aos artigos 184 a 190 combinado com o artigo 225, vinculado à ordem jurídico-econômica rural, que abrange o manejo dos recursos ambientais na produção de bens agrícolas de acordo com a fun-ção social da propriedade rural, que tem como um dos instrumentos a reforma agrária, satisfazendo-se assim o equilíbrio humano e ecológico desse aspecto do meio ambien-te, essencial a sadia qualidade de vida.

Para o artigo 186 a função social da propriedade rural é cumprida quando simul-taneamente atende, segundo critérios e graus fixados legalmente, os requisitos do apro-veitamento racional e adequado do imóvel rural, da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e da preservação do meio ambiente natural, bem como a observân-cia das disposições que regulam as relações de trabalho, proporcionando o bem estar de proprietários e trabalhadores.

Para a ordem jurídica esses são os pressupostos básicos para o alcance da sadia qualidade de vida no ambiente rural.

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Partindo dessas considerações, defendemos que a função socioambiental da propriedade também se aplica aos bens públicos e, diante disso, pretendemos de-bater se a regularização fundiária almejada pela Lei nº 11.952/2009, instrumenta-liza ou revela o princípio da função socioambiental da propriedade pública, já que mantém relação direta com o patrimônio pertencente à União, pessoa jurídica de direito público, cujas terras podem ser objeto de transferência, mediante alienação ou concessão de direito real de uso aos beneficiários que a possuem, caso atenda seus requisitos.

2. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NA AMAZÔNIA LEGAL – LEI Nº 11.952/2009

Segundo reflexão do próprio Governo Federal, divulgada no Plano da Amazônia Sustentável – PAS de 2008, a ocupação na região foi desastrosa, pois houve apossa-mento de terras de forma irregular e sem a garantia dos direitos de propriedade, que gerou insegurança jurídica e favoreceu a grilagem, além da degradação ambiental em razão do desmatamento da Floresta Amazônica. Em algumas localidades a ocupação ocorreu, apesar da inexistência de infraestrutura e transporte, vários assentamentos fo-ram implantados sob a ideologia de se povoar as fronteiras para não serem invadidas. Ainda hoje, o acesso aos serviços de água, saneamento e eletrificação são ainda muito precários, embora haja abundância de recursos naturais.

Cabe notar que a expansão das ocupações irregulares se desenvolveu à margem da lei nas regiões mais carentes e afastadas, contando em muitos casos com o apoio, ainda que velado, de lideranças políticas e outros segmentos da sociedade.

Por conta da debilidade em seu processo colonizatório, pode-se dizer que o Brasil tem uma dívida histórica com a região. Nas palavras de Alex Fiúza de Mello a “federa-ção, no Brasil, em toda história republicana, tem sido uma ficção; e a região Norte, na geografia política do país, um insignificante detalhe”.6

A Lei nº 11.952, de 2009, pretende diminuir esse débito. O Estado, então pos-suidor do domínio das áreas ocupadas se mostra convencido de que sua conduta não poderia ser outra que mediar as tensões sociais através da regularização fundiária, aten-tando para seu dever jurídico de adotar medidas para preservar e recuperar a qualidade ambiental essencial à vida saudável de todos, conforme preceitua o §1º do artigo 225 da Constituição Federal.

A referida Lei foi direcionada apenas para Região Amazônica, assim compreen-dendo os Estados os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Tocantins, Pará e do Maranhão na sua porção a oeste do Meridiano 44º e que não menciona o Estado do Goiás.7

6 Mello, Alex Fiúza de. Para Construir uma Universidade na Amazônia. Realidade e Utopia. p. 44. 7 O art. 1º da Lei 11.952, de 2009, remete a definição da Amazônia Legal para a Lei Complementar

nº 124, de 2007, que exclui o Estado do Goiás.

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178 temas atuais de direito

O seu principal objeto é regularizar as ocupações existentes, quer dizer, o ponto fulcral que diferencia a regularização fundiária dos demais institutos agrários é o fator ocupação, pois pretende regularizar apenas o que está irregular, que no caso são áreas urbanas ou rurais indevidamente ocupadas, pertencentes tanto a particulares como ao Poder Público.

Para o seu mister, a Lei elegeu a alienação gratuita ou onerosa, isto é, a doação, venda direta ou mediante licitação das áreas, como também o instituto da concessão de direito real de uso, onerosa ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado.

Ao estabelecer os requisitos a serem preenchidos dos beneficiários teve especial preocupação com o fator temporal, ou seja, de não promover novas ocupações, mas em beneficiar somente aqueles que comprovadamente já estivessem na área em razoável decurso do tempo.8

A Lei estabeleceu o teto máximo do tamanho da área a ser regularizado em até 15 (quinze) módulos fiscais e não superiores a 1.500ha (mil e quinhentos hectares), para evitar a consagração dos latifúndios.

Todavia, foi com a exigência das condições resolutivas que a Lei demonstrou sua imprescindibilidade no processo fundiário, pois se bem entendidas e cumpridas, chegar-se-á a conclusão que o Poder Público trata com seriedade o problema e não quis vilipendiar a floresta, mas preservá-la, ao passo que se cercou de medidas para regula-rizar só os pequenos proprietários.

A condição resolutiva é elemento acidental do negócio jurídico, que atua no plano da eficácia do fenômeno respectivo. Tem previsão no Código Civil: “Art. 127: Se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o negócio jurídico, po-dendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido”.

Pela definição infere-se que enquanto a condição resolutiva não se implementar, o negócio vigorará perfeitamente, podendo se exercer os direitos imanentes do negócio.

Visualizando na prática a condição resolutiva na regularização fundiária, temos que os títulos ou termos outorgados pertencerão ao beneficiário, que poderá exercer os direitos de propriedade dele decorrentes. Entretanto, caso descumpra alguma das exi-gências impostas, a concretizar as condições resolutivas, o negócio se resolverá, restará desfeito, tornando sem efeito o título ou termo anteriormente outorgado.

O beneficiário, portanto, receberá a área regularizada (não importando se gratuita ou onerosamente) e ficará obrigado a não praticar nenhuma das condições resolutivas, que se implementadas, resolverá o negócio, cessando os efeitos da alienação ou cessão.

As condições resolutivas previstas na Lei de Regularização, dada à sua impor-tância, além de já estarem expressas na norma, presumindo-se, assim, que todos têm conhecimento, também devem constar no título que será levado ao registro público, que possui efeito erga omnins.

8 No caso dos ocupantes rurais, de acordo com o art. 5º, IV, para fazer jus à regularização deverá com-provar o exercício da ocupação e exploração direta, mansa e pacífica, por si ou seus antecessores, anterior a 1º de dezembro de 2004.

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Por isso o artigo 15 da Lei, nos casos de regularização rural, exige que o título de domínio ou termo de concessão de direito real de uso deverão conter, entre outras, cláusulas sob condição resolutiva, pelo prazo de 10 (dez) anos:

Art. 15. O título de domínio ou, no caso previsto no § 4o do art. 6o, o termo de concessão de direito real de uso deverão conter, entre outras, cláusulas sob condição resolutiva pelo prazo de 10 (dez) anos, que determinem:I – o aproveitamento racional e adequado da área;II – a averbação da reserva legal, incluída a possibilidade de compensação na forma de legis-lação ambiental;III – a identificação das áreas de preservação permanente e, quando couber, o compromisso para sua recuperação na forma da legislação vigente;IV – a observância das disposições que regulam as relações de trabalho; eV – as condições e forma de pagamento.

De observar que com exceção do inciso V, que trata das condições e forma de pa-gamento, todas as condições resolutivas em verdade se assemelham aos requisitos exi-gidos de toda propriedade rural para que ela cumpra sua função social, nos termos do artigo 186 da Constituição Federal, consistente no aproveitamento racional e adequado, bem como na utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, bem como observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Dessa forma, os beneficiários da regularização são obrigados a comprovar o cum-primento da função socioambiental da sua propriedade, sob pena de haver reversão das áreas em favor da União.

3. FUNÇÃO SOCIAL E AMBIENTAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA

Hodiernamente não há mais espaço ao antigo absolutismo do direito de proprieda-de (jus utenti et abutendi), cujos atributos deveriam ser exercidos indistintamente, sem nenhuma outra preocupação a não ser com o seu exercício individual.

Daniella Santos Dias observa que a propriedade, enquanto instituto jurídico e di-reito subjetivo individual, por muito tempo corporificou os interesses isolados dos pro-prietários, que exerciam o jus domini sem considerar os interesses e objetivos sociais, fruto da influência do Direito Romano em que o direito de propriedade se constituía em um atributo individual da personalidade.9

Esse individualismo e absolutismo foram contrapostos por orientações progressis-tas que elevou a propriedade ao campo dos interesses comuns e ditos sociais.

De acordo com Carlos Alberto Dabus Maluf, hoje, a ninguém é dado ignorar, que a propriedade perdeu já as suas mais fortes características antigas, e que, ante o desen-volvimento das novas correntes do pensamento político e social, inspiradas nas ideias solidarísticas da época, vai sendo paulatinamente substituída a sua concepção clássica

9 Desenvolvimento Urbano: Princípios Constitucionais, p. 7

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180 temas atuais de direito

por uma concepção dinâmica, mais humana e de maior e mais denso conteúdo social.10 Fernando Alves Correia caracteriza:

A função ou vinculação social significa que o proprietário deve dar uma utilização socialmen-te justa ao objeto do direito de propriedade. Ela tem subjacente a recusa de um ordenamento da propriedade no qual o interesse individual tenha uma precedência em face do interesse geral.11

Nas palavras de Sílvio Luiz Ferreira da Rocha, a função social da propriedade pode ser concebida “como um poder-dever ou um dever-poder do proprietário de exercer o seu direito de propriedade sobre o bem em conformidade com o fim ou interesse coletivo”.12

Não resta dúvida que hoje a ideia de conformação da propriedade privada ao interesse público é simpática, inclusive sendo exaustivamente consagrada em nossa Constituição Federal em vários dispositivos (art. 5º, XXIII, art. 170, III, art. 182, § 2º e art. 186).

Também o é, fartamente prevista em vários diplomas infraconstitucionais, notada-mente no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 2001) e no Código Civil.

Questão não tão bem quista é tese de que função social também acometeria a propriedade pública.

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a Constituição brasileira adota expressamen-te o princípio da função social da propriedade privada, mas também agasalha, embora com menos clareza, o princípio da função social da propriedade pública, que vem sendo inserido de forma implícita em alguns dispositivos constitucionais que tratam da polí-tica urbana.13

Anderson Schreiber e Gustavo Tepedino também se posicionam pelo acometi-mento da função social da propriedade aos bens públicos:

Neste sentido, conclui-se que também a chamada propriedade pública tem uma função social. A referência corriqueira à “função social da propriedade privada” explica-se pelo fato de que é, neste âmbito, que a funcionalização opera de forma mais revolucionária, afastando a tradi-cional noção da propriedade privada como espaço de liberdade individual e tendencialmente absoluta do titular do domínio. A propriedade pública, ao contrário, já se dirige, em tese, ao atendimento dos interesses de todas as pessoas e, por isso mesmo, referir-se à sua função social costuma parecer dispensável, uma repetição inútil daquilo que já lhe é reconhecido como essencial. A verdade, todavia, é que a propriedade pública é, por definição, voltada não ao interesse social, mas ao interesse público, e o reconhecimento de sua função social impõe uma verificação de conformidade entre estes dois interesses, cuja importância não pode passar despercebida ao intérprete.14

10 Limitações do Direito de Propriedade, p. 7211 Fernando Alves Correia. O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, p. 314. 12 Função Social da Propriedade Pública, p. 7113 Função Social da Propriedade Pública. Revista Eletrônica de Direito de Estado, p. 2. 14 A Garantia da Propriedade no Direito Brasileiro, Revista da Faculdade de Direito de Campos, p. 112.

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Cristina Fortini corrobora este entendimento:

A Constituição da República não isenta os bens públicos do dever de cumprir função social. Portanto, qualquer interpretação que se distancie do propósito da norma constitucional não encontra guarida. Não bastasse a clareza do texto constitucional, seria insustentável con-ceber que apenas os bens privados devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se os bens públicos de tal mister. Aos bens públicos, com maior razão de ser, impõe-se o dever inexorável de atender à função social.15

Fazendo coro com autores citados, é forçoso concordar com vinculação tanto da propriedade privada quanto pública à função social da propriedade, posto que o Constituinte não promoveu qualquer restrição a sua incidência.

Nesse sentido é a inteligência do artigo 182 da Constituição Federal, principal-mente o seu parágrafo § 2º que, de maneira inequívoca, condiciona o adimplemento da função social ao cumprimento das ordenanças do plano direto.

Observamos que tal norma é destinada a todos, indistintamente, tanto proprietá-rios privados como ao Poder Público. Aqueles ficam obrigados porque devem cumprir o estatuído na legislação urbanística. O Poder Público, por sua vez, está obrigado, no-tadamente levando em conta que a municipalidade tem a obrigação legal de legislar, ditando as diretrizes urbanas a ser seguida, bem como porque os bens do Poder Público em todas espécies devem se submeter ao regramento urbanístico proposto.

Por isso, Silvio Luís Ferreira da Rocha também se posicionou favorável à fun-ção social da propriedade pública, pois “os bens públicos estão submetidos ao cum-primento de uma função social, pois servem de instrumento para a realização, pela Administração Pública, dos fins que está obrigada”.16

Asseverou ainda:

Para nós, a finalidade cogente informadora do domínio público não resulta na imunização dos efeitos emanados do princípio da função social da propriedade, previsto no texto constitu-cional. Acreditamos que a função social da propriedade é princípio constitucional que incide sobre toda e qualquer relação jurídica de domínio, pública ou privada, não obstante reconhe-çamos ter havido um desenvolvimento maior dos efeitos do princípio da função social no âmbito do instituto da propriedade privada, justamente em razão do fato de o domínio público, desde a sua existência, e agora, com maior intensidade, estar de um modo ou de outro, volta-do sempre ao cumprimento de fins sociais, pois, como visto, marcado pelo fim de permitir à coletividade o gozo de certas utilidades.17

Então a função social não seria uma redundância, mas mais um instrumento a favor da Administração para consecução do fim público desejado.

15 A função social dos bens públicos e o mito da imprescritibilidade, p. 117. 16 Função Social da Propriedade Pública, p. 125.17 Ob. cit., p. 127

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182 temas atuais de direito

Em uma comparação mais que forçada, a função social da propriedade dos bens públicos, seria para administração, o mesmo que as ações afirmativas a exemplo da Lei de Cotas, seria para o princípio da igualdade. Quem é favorável ao discrímen consegue entender que, mormente à igualdade formal prevista na Constituição, o Legislador deve promover a igualdade material, com medidas pontuais, compensatórias e inclusivas dos grupos alijados. Assim as ações afirmativas não seria “chover no molhado”, mas a quitação do débito social.

No caso da função social da propriedade pública a ideia é a mesma. Que o Poder Público deve perseguir a finalidade pública ninguém contesta. Mas, seriam incoerentes medidas que o auxiliasse nesse intento? A resposta por óbvio é nega-tiva, pois em nome do interesse coletivo qualquer medida nesse sentido deve ser recepcionada.

Assim, a função social da propriedade pública, como é instrumento que se destina ao atendimento do fim público, é legítima.

Por evidente que esse princípio não pode ser aplicado, aleatoriamente, precisa ser ponderado e contextualizado. O que se defende é sua existência, de modo a inspirar os aplicadores do direito.

Ademais, o estágio atual de nosso ordenamento jurídico reflete de forma ine-xorável que o Estado não somente é senhor de direitos, mas também é detentor de obrigações, dentre elas submeter seu patrimônio às mesmas diretrizes do que a dos seus cidadãos.

Essa questão se reporta diretamente aos direitos de solidariedade, assim cha-mados os direitos humanos de terceira geração, levando-se em consideração a histo-ricidade de seu reconhecimento, como nos dá exemplo o direito ambiental, um dos integrantes da unidade de proteção da dignidade humana, em que o Poder Público assume tanto polaridade ativa quanto à passiva, em se tratando da defesa desses in-teresses comuns a todos.

Assim é que o Poder Público está obrigado como sujeito de direito a cumprir os novos ditames exigidos para utilização dos bens sob sua égide, desempenhando em primeiro lugar a missão de agir de conformidade com a função socioambien-tal da propriedade determinada também pela proteção do equilíbrio ecológico, na dicção dos artigos 5º, XXII e XXIII, 170, VI, 186, II, 225 da Constituição Federal.

4. FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE E A LEI DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DA AMAZÔNIA LEGAL

A Lei de Regularização que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal, confor-me inserto na exposição de motivos, visa regularizar 67 milhões de hectares (13,42% da área total da região) e assim implantar uma política de regularização fundiária, re-duzindo os conflitos e permitindo segurança jurídica, inserção produtiva e acesso às políticas públicas para aqueles que hoje a ocupam.

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No caso específico da Amazônia Legal, que o próprio o Estado foi o mentor, pro-motor e financiador do débito social,18 do qual decorreu um vácuo de sentido na história da Amazônia, cuja ocupação pode ser sintetizada em exploração e esquecimento, e bem definida na expressão cunhada por Alex Fiúza Mello, como a periferia da periferia:

Se o Brasil é esse país dividido por apartheides sociais e econômicos de toda ordem, ainda não superados, a Amazônia, a seu turno, é a periferia de toda essa periferia, a última região que se tornou brasileira no Império, um anexo da República, um “espaço exótico” ao olhar estrangeiro do Centro-Sul, a última fronteira dos bandeirantes, condenada, pelo estado nacio-nal e pela sociedade brasileira, a cumprir a função de simples almoxarifado do país, tomada ora como terra-de-ninguém, ora como vazio demográfico, “inferno verde”, “eldorado” ou santuário intocável, ignorada nas suas riquezas e potencialidades, expropriada dos fatores de sua autodeterminação, Brasil tardio, pária do pacto federativo.19

O resultado foi um quadro de incoerência. De um lado, a entidade estatal, que tem a finalidade no bem comum, tendo capacidade de direito para adquirir bens para desem-penhar suas atividades em busca de realizar sua finalidade, tendo domínio quase que integralmente sobre a região. D outro lado, o povo, que mormente seja o legitimador do Estado, deparou-se sendo vilipendiando por ele, já que muitos cidadãos, não obstante tendo a posse de terras nessas região esquecida, eram vistos como esbulhadores.

Assim, a Lei de Regularização é a representação dos papéis por quem de fato de-veriam ser os atores. E para nós, afigura-se com clareza, a sua conformação ao espectro da função socioambiental da propriedade pública.

É fácil constatar que não seria razoável o Estado permanecer como proprietário das áreas ocupadas, pelo simples prazer de sê-lo, quando na verdade o quadro social mostra de maneira inequívoca, que as ocupações são irreversíveis.

A propriedade dessas áreas em nome do Estado, ao invés de estar projetada para o bem-estar público, acarretou efeitos em sentido contrário, à medida que esse domínio estatal não promoveu à segurança jurídica, ao inverso, é um dos catalisadores do caos social na região.

Assim, logram-se mais resultados com regularização do que com o anterior estado de inércia. Com a Lei, podemos ter, a um só tempo, a promoção da Política Agrária e da Política Urbana e, o que é melhor, o Estado saindo do campo da retórica e fixando medidas pontuais ao rechaçar o desordenamento das ocupações.

Com isso, amolda-se à função socioambiental da propriedade pública, à medida que a regularização se presta a melhorar o uso do bem sob a égide do Poder Público.

Temos, portanto, que a função da propriedade pública garantiu que os interesses do bem comum fossem mais bem atendidos com a Lei de Regularização ao condicionar as áreas regularizadas à função socioambiental da propriedade.

18 Quando por exemplo, durante o Regime Militar, incentivou e financiou a ocupação integracionista: “integrar para não entregar”.

19 Mello, Alex Fiúza de. Para Construir uma Universidade na Amazônia. Realidade e Utopia, pp. 42-43.

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Assim, a regularização fundiária pública inspirou o Estado a melhor destinar bem de seu domínio (áreas objetos da regularização, que apesar de serem destinados ao fim público, não estavam afetadas a nenhum interesse específico), isto é, a funcionalizá-los, para colher resultados mais favoráveis à coletividade, para tanto, exigiu o cumprimento da função socioambiental da propriedade privada, também em prol do social.

O Estado não está regularizando os bens sem nenhuma contrapartida, exige a sua conformação à função socioambiental da propriedade.

No caso dos imóveis rurais, por exemplo, o Texto Constitucional no seu artigo 186 estabelece os seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Como já dito em linhas anteriores, a regularização só será levada a efeito se o be-neficiário cumprir condições resolutivas, que na verdade, com exceção das condições de pagamento, são os mesmos requisitos estabelecidos constitucionalmente.

Pelo que se conclui que a observância das condições resolutivas também significa o cumprimento da função socioambiental da propriedade e o descumprimento desta implica em implementação daquelas.

Dessa feita, a função socioambiental da propriedade é o princípio, meio e fim da regularização: princípio, porque é o que motiva o Estado a promovê-la, é sua ins-piração e fundamento; meio, porque condiciona a regularização à exigência de seu cumprimento; c) e fim, porque humaniza e socializa o bem regularizado, que se por um lado deixou de pertencer ao Estado (coletividade) para ingressar no patrimônio do particular, por outro lado, continua a servir à coletividade, em razão da ruptura com o paradigma liberal de absolutismo e individualidade da propriedade.

A propriedade se gozada nesse prisma de funcionalidade, é muito mais exube-rante e interessante à coletividade do que como mais um bem de acervo, que embora rotulada de bem do público não desenvolve o mister a que se presta.

Na regularização fundiária urbana, a função socioambiental da propriedade públi-ca mostra ainda contornos mais nítidos, em que o Estado, em observância ao art. 182 da Constituição Federal, “deve ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

Assim, conforme inteligência do artigo 182, § 2º, da Constituição, a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordena-ção da cidade expressas no plano diretor.

O plano diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de ex-pansão urbana, aprovado pela Câmara Municipal, é obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes (art. 182, §1º da CF). Os municípios menores deverão regular ordenamento territorial mediante suas Leis Orgânicas.

De acordo com Jacinto Arruda Câmara, o plano diretor presta-se a dar contornos de precisão ao conceito fluído de função social da propriedade urbana, pois esta a cum-pre quando atende às exigências fundamentais expressas no plano diretor; desempenha importante papel institucional, por ser considerado instrumento básico da política de

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desenvolvimento e expansão urbana, apresentando-se como condição necessária para o implemento de diversos instrumentos de construção de uma política urbana como direito de perempção, outorga onerosa do direito de construir, operações urbanas con-sorciadas e transferência do direito de construir.20

Nessa esteira, a Lei de Regularização em seu art. 22, também se mostra alinhada com o princípio da função aqui referenciada, ao exigir o ordenamento territorial urbano como requisito para receber área objeto de regularização:

Art. 22. Constitui requisito para que o Município seja beneficiário da doação ou da conces-são de direito real de uso previstas no art. 21 desta Lei ordenamento territorial urbano que abranja a área a ser regularizada, observados os elementos exigidos no inciso VII do art. 2º desta Lei. § 1º Os elementos do ordenamento territorial das áreas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica constarão no plano diretor, em lei municipal específica para a área ou áreas objeto de regularização ou em outra lei municipal. § 2º Em áreas com ocupações para fins urbanos já consolidadas, nos termos do regulamento, a transferência da União para o Município poderá ser feita independentemente da existência da lei municipal referida no § 1o deste artigo. § 3º Para transferência de áreas de expansão urbana, os municípios deverão apresentar justificativa que demonstre a necessidade da área solicitada, considerando a capacidade de atendimento dos serviços públicos em função do crescimento populacional previsto, o déficit habitacional, a aptidão física para a urbanização e outros aspectos definidos em regulamento.

Os municípios, na qualidade de beneficiários da Lei, receberão através de alie-nação gratuita (doação) ou através concessão de direito real de uso também gratuita, as áreas, sob a condição de que sejam realizados pelas administrações locais os atos necessários à regularização das áreas ocupadas em favor dos beneficiários urbanos. (§§1º e 2º do art. 21).

São passíveis de regularização as ocupações incidentes situadas em áreas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica. (art. 21).

Constitui requisito para que o Município seja beneficiário o ordenamento territorial urbano, cujos elementos deverão constar no plano diretor, em lei municipal específica para a área ou áreas objeto de regularização ou em outra lei municipal. (art. 21, §1º).

O ordenamento territorial urbano deverá conter no mínimo, soluções para os se-guintes elementos: a) delimitação de zonas especiais de interesse social em quantidade compatível com a demanda de habitação de interesse social do Município; b) diretrizes e parâmetros urbanísticos de parcelamento, uso e ocupação do solo urbano; c) diretrizes para infraestrutura e equipamentos urbanos e comunitários; d) diretrizes para proteção do meio ambiente e do patrimônio cultural. (art. 2º, VII).

Contudo, a própria Lei excepciona as exigências acima, em áreas com ocupações para fins urbanos já consolidadas (art. 21, §2º). E não poderia ser diferente, pois a rea-

20 Jacinto Arruda Câmara. Plano Diretor, pp. 310-311. apud Sílvio Luiz Ferreira da Rocha. Função Social da Propriedade Pública, p. 87.

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lidade fática não permitiria o implemento do ordenamento territorial, pois a ocupação se deu de forma desordenada.

O Decreto nº 7.341/2010, que regulamentou a Lei nº 11.952/2009 no tocante às áreas urbanas, define em seu art. 2º ocupações para fins urbanos já consolidadas, como aquelas que apresentam os seguintes elementos: a) sistema viário implantado com vias de circulação pavimentadas ou não, que configuram a área urbana por meio de quadras e lotes; b) uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de instalações e edificações residenciais, comerciais, voltadas à prestação de serviços, industriais, insti-tucionais ou mistas, bem como demais equipamentos públicos urbanos e comunitários.

No caso de áreas de expansão urbana,21 os municípios deverão apresentar justifi-cativa que demonstre a necessidade da área solicitada, considerando a capacidade de atendimento dos serviços públicos em função do crescimento populacional previsto, o déficit habitacional, a aptidão física para a urbanização e outros aspectos definidos no Decreto nº 7.341, de 22.10.2010. (art. 21, §3º).

Enfim, todas as disposições convergem para o artigo 182 da Constituição Federal, que “deve ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

Ressalte-se que esse imperativo constitucional tem como principal destinatário o próprio Estado.

De igual forma, o Estatuto da Cidade replicou o objetivo “funcionalista” no art. 2º caput e no inciso I, assim:

Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções so-ciais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.

As diretrizes asseguradas no Estatuto foram cravadas no artigo 2º e tem por obje-tivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. Estão destinadas não somente aos proprietários particulares, mas também ao Poder Público, pois do contrário seriam inócuas.

Para Daniella Santos Dias, a função social da propriedade, enquanto princípio de aplicabilidade imediata, teve assegurada melhor efetividade do conteúdo axiológico com a edição do Estatuto da Cidade, em que houve melhor precisão, ao determinar, por meio da edição de regras legais, as hipóteses fáticas de sua aplicação, servindo de condicionadores jurídicos legítimos, impositivos e vinculativos à realização do desen-

21 Nos termos do inciso II, do art. 2º do Decreto nº 7.341/2010, área de expansão urbana, são áreas sem ocupação para fins urbanos já consolidados, destinadas ao crescimento ordenado das cidades, vilas e demais núcleos urbanos, contíguas ou não à área urbana consolidada, previstas, delimitadas e regulamentadas em plano diretor ou lei municipal específica de ordenamento territorial urbano, em consonância com a Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001.

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volvimento urbano, seja em âmbito regional, seja em âmbito estadual, seja em âmbito local.22

No olhar de Maria Sylvia Zanella Di Pietro não há porque excluir o Estado, da incidência das normas constitucionais que asseguram a função social da proprieda-de pública, quer para o submeter, na área urbana, às limitações impostas pelo Plano Diretor da Cidade, quer para os enquadrar, na zona rural , aos planos de reforma agrá-ria.23 Ainda observa:

No que diz respeito aos instrumentos da política urbana previstos no Estatuto da Cidade, não há dúvida de que grande parte deles se aplica aos bens dominicais e, às vezes, mes-mo aos bens de uso comum do povo e aos bens de uso especial. Não se pode esquecer que esse Estatuto tem fundamento constitucional. Assim, embora a competência para adoção das medidas de política urbana seja do Município, ela pode alcançar inclusive bens públicos estaduais e federais, desde que inseridos na área definida pelo plano diretor. Trata-se de com-petência municipal que decorre diretamente da Constituição (art. 182 e que pode ser exercida desde que em consonância com as “diretrizes gerais fixadas em lei”. Desse modo, se algum bem público, de qualquer ente governamental, estiver situado na área definida pelo plano diretor, ele está sujeito às “exigências fundamentais de ordenação da cidade”, indispensáveis para o cumprimento da função social da propriedade urbana, nos termos do §2º do mesmo dispositivo constitucional.

Dessa feita, escorreita à exigência do artigo 22 da Lei de Regularização, em condi-cionar a regularização no caso dos municípios, ao cumprimento do ordenamento urbano.

Essa exigência tem o mesmo efeito pedagógico, que tem as condições resolutivas na regularização rural. O que difere, é que as condições impostas ao município não são resilitórias, se descumpridas não ensejam no cancelamento da regularização, inclusive por expressa disposição do parágrafo único do art. 31, que literalmente prevê a impos-sibilidade de reversão do imóvel ao patrimônio da União em caso de descumprimento das disposições pelo Município.

Contudo, o descumprimento das obrigações por parte do Município, além de im-plicar em improbidade por quem lhe der causa, também autoriza aos legitimados a ingressarem em juízo para seu cumprimento ou reparação.

Portanto, mesmo a regularização em favor dos Municípios não está dissociada da função social, que lhe inspira e exige de todos, incluindo o Poder Público, o compro-metimento com as ordenanças urbanas, muito embora, no caso de não observância do princípio, possa haver dificuldade de responsabilização.

De toda sorte, com o reconhecimento da função socioambiental da propriedade, ter-se-á pelo menos o norte, posto que este princípio está calcado nos fundamentos do Estado Democrático de Direito e principalmente na dignidade da pessoa humana, este último, razão de existir do direito moderno.

22 Desenvolvimento Urbano: Princípios Constitucionais, p. 145.23 Função Social da Propriedade Pública, p. 11.

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5. NOTAS CONCLUSIVAS

O Brasil é um país que tem um passivo imobiliário muito grande pendente de regularização, principalmente na região Amazônia, onde em decorrência do processo de ocupação do território há necessidade de corrigir distorções históricas, uma vez que a colonização se deu de forma irregular e sem a garantia dos direitos de propriedade, o que gerou insegurança jurídica e favoreceu a grilagem, além do desmatamento.

Para mitigar essa situação, foi editada a Lei nº 11.952, de 25.06.2009, dispondo sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal.

Como o referido diploma tem por objeto a regularização de propriedades que es-tão sob o domínio do Poder Público, demonstrou-se que essas áreas também revelam o princípio da função socioambiental, em verdade, defende-se a tese de que a função socioambiental da propriedade também acomete os bens públicos, até porque estes servem de instrumento para a realização, pela Administração Pública, dos fins que está obrigada. A função social e ambiental da propriedade pública não é um pleonasmo, mas a otimização do interesse coletivo.

Assim, confrontando a concepção atual do direito de propriedade, inserindo-se aí o exercício desse direito pelo Poder Público, com a finalidade da lei de regularização fundiária, chega-se a conclusão de que com ela haverá mais ganhos sociais, coletivos e difusos, à medida que foi pensada para condicionar as áreas regularizadas também à função socioambiental da propriedade.

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14A EFICÁCIA DIRETA E IMEDIATA DOS DIREITOS SOCIAIS

FUNDAMENTAIS ÀS RELAÇõES PRIVADASIvanilson Paulo Corrêa Raiol

RESUMO: Este artigo discute sobre a eficácia dos direitos fundamentais sociais nas rela-ções privadas, apresentado parâmetros para a aplicação desses direitos no âmbito do direito privado.

PALAVRAS-CHAVE: direitos fundamentais sociais; relações privadas.

ABSTRACT: This article discusses about the effectiveness of fundamental social rights in private relations, with parameters for the application of these rights in the context of private law.

KEY-WORDS: fundamental social rights; private relations.

SUMÁRIO: 1. As teorias de direitos fundamentais. 2. A eficácia horizontal dos direitos sociais fun-damentais. 3. Balizas para a incidência dos direitos sociais fundamentais nas relações privadas

1. AS TEORIAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

A interpretação dos direitos fundamentais, de modo a torná-los diretamente aplicá-veis, efetivos, pressupõe a formulação de teorias de direitos fundamentais que exercem acentuada influência na atividade interpretativa desses direitos, determinando, inclusi-ve, algumas consequências na definição dos conteúdos das disposições concernentes aos direitos humanos. Assim, é de grande importância identificar, nas interpretações realizadas sobre o sentido, alcance e conteúdo das normas de direito fundamental, qual a teoria que está sendo utilizada no caso.

Böckenförde apresenta, então, algumas das principais teorias de direitos funda-mentais: a teoria liberal, a teoria institucional, a teoria axiológica, a teoria democrático--funcional e a teoria do Estado social.1

1 BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre derechos fundamentales. Trad. Juan Luis Pagés y Ignacio Menéndez. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1993, pp. 47-66.

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A teoria liberal entende que os direitos fundamentais são direitos de liberdade do individuo frente ao Estado. Desse modo, busca acima de tudo, impor limites às intervenções estatais na esfera privada. A eficácia dos direitos fundamentais, para essa teoria, restringe-se às ações do Estado, pois haveria tão-somente uma vinculação ver-tical dos direitos fundamentais, entendidos como limitações para os Poderes Públicos, estando fora de seu âmbito, portanto, as relações entre particulares.

A teoria institucional dos direitos fundamentais, por sua vez, concebe esses di-reitos como princípios objetivos de ordenação dos “âmbitos vitais” por eles tutelados. Dessa maneira, os direitos fundamentais guiam as regulações normativas objetivamen-te configuradas, de tal sorte que o intérprete, considerando as circunstâncias vitais que foram institucionalizadas pela ideia ordenadora dos direitos fundamentais, buscaria tanto a determinação da extensão quanto à limitação desses referidos direitos expres-sos em referidas regulações. A eficácia dos direitos fundamentais estaria, à evidência, condicionada à força interpretativa de proteção dos direitos fundamentais, capaz de compreender as regulações normativas como forma de realização de determinado di-reito fundamental já institucionalizado, indo, portanto, a uma tutela mais ampla do que aquela promovida pela teoria liberal (de tônica limitadora e antiinterventora).

A seu turno, a teoria axiológica apresenta os direitos fundamentais como fatores constitutivos do processo de integração de determinada comunidade, firmando seus valores essenciais. Dessa forma, os direitos fundamentais instaurariam uma ordem ou sistema de valores que, em última análise, já se encontraria inserida no seio estatal. Quanto à eficácia, a aplicação dos direitos no interior dessa ordem valorativa se sus-tentaria no estabelecimento de preferências e hierarquias de valores, invocando-se uma ponderação entre eles diante das colisões que ocorressem. Na opinião de Böckenförde, essa prática mantém apenas uma aparência de racionalidade encobrindo a fundamenta-ção real. Não passaria de um “decisionismo judicial”.2

A teoria democrático-funcional assenta-se na legitimação dos direitos fundamen-tais, a partir da ideia dos objetivos e da função público-política. Os direitos funda-mentais só teriam sentido quando inseridos no processo de produção democrática do Estado e de formação da vontade política.3 Portanto, em oposição ao individualismo liberal de reserva do espaço livre da intervenção estatal, apresenta-se a concepção de uma intensa participação do cidadão nos assuntos públicos, sendo os direitos funda-mentais os facilitadores desse processo político. No que tange à concretização, os di-reitos fundamentais firmariam a sua característica instrumental de “meio para facilitar e assegurar” o processo político democrático. Embora, em tese, a eficácia se mostre mais ampla, nada impedindo a extensão dos direitos fundamentais até mesmo às relações privadas, na realidade, relativiza-se o caráter voluntário dos direitos humanos, limi-tando sobremaneira seu exercício, na medida em que são reduzidos a uma verdadeira prestação de serviço público, a um dever.

2 Idem, p. 60.3 Ibidem, p. 60.

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Finalmente, a teoria do Estado social, partindo da constatação de que a teoria liberal dos direitos fundamentais com sua proposta de liberdade jurídica criou um ver-dadeiro “espaço vazio”, uma vez que as delimitações negativas impostas ao Estado não garantiram a liberdade real, entende os direitos fundamentais como instrumen-tos de facilitação das pretensões de prestação social perante o Estado. De um lado, o Estado estaria obrigado pelos direitos fundamentais a realizar os esforços necessários à transformação da liberdade jurídica em realidade constitucional (Estado-garante) e, por outro lado, estimular-se-ia a participação ativa dos membros da coletividade nos me-canismos de efetividade dos direitos fundamentais. A eficácia demonstra-se problemá-tica, para esta teoria, pois exigiria para a concretização dos direitos fundamentais uma reserva enorme de recursos financeiros e que, na prática, devido à escassez natural dos meios econômicos, limitaria a garantia desses referidos direitos. Também, como con-sequência da realidade financeira, o Estado estaria obrigado a estabelecer prioridades na realização efetiva dos direitos fundamentais, reduzindo-os diante da concorrência e eventuais conflitos dos direitos humanos fundamentais, a uma “questão de interpreta-ção”, contribuindo, destarte, para a crescente judicialização das disputas políticas.

Nessa exposição sintética, observa-se que as diferentes teorias expressam diversas concepções de Estado, com seus respectivos ordenamentos jurídicos, demonstrando a base das relações individuo-sociedade-Estado. Daí que, a opção por determinada teoria e sua consequente aplicação, imporá um modelo de interpretação dos direitos funda-mentais que levará ou à afirmação ou à mutação constitucional.

2. A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS

A questão consiste em saber se os direitos sociais fundamentais dirigem-se tão--somente aos Poderes Públicos ou será que as relações particulares, incluídas as entidades privadas, encontram-se vinculadas por esses direitos? Se se entender que apenas o Estado está limitado pelos direitos fundamentais, consagrando-se a liberdade individual como monumento sagrado do liberalismo, estar-se-ia negando a eficácia dos direitos sociais fundamentais na esfera privada e tudo ficaria reduzido a uma dimensão subjetiva entre o titular do direito e o seu destinatário estatal incumbido da prestação. Suprimidos, pois, os sujeitos dessa relação indivíduo-Estado, não restaria mais nada a tutelar.

Por essa razão é que se defende a eficácia direta e imediata dos direitos sociais fun-damentais, também, nas relações privadas. Evidente que uma postura desse tipo pode suscitar controvérsias e a principal delas diz respeito à negação da eficácia imediata dos direitos sociais fundamentais às relações privadas, por contrariar o principio da autono-mia individual. Ou seja, não pareceria correto submeter o individuo e o Estado ao mes-mo regime de vinculação aos direitos fundamentais, pois isso conduziria à supressão gradual da liberdade dos cidadãos, restringindo, com tal postura, o campo da autonomia individual a um espaço insustentável no interior dos Estados constitucionais.

Bem, no que concerne à autonomia privada, é importante que se traga a lume que tal conceito encontra-se jungido à noção que se tenha de liberdade. Não haveria espaço, aqui, para traçarem-se os contornos diferentes que foram dados a esse tema, mesmo

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quando se agrupem pensadores que guardam entre si pelo menos um traço comum no edifício teórico-político que erigiram, isto é, a reflexão sobre a época europeia criada pela Revolução Francesa e sobre a sociedade criada, primeiro na Inglaterra e depois em toda a Europa ocidental, pela primeira Revolução Industrial.4 Desse modo, opta-se por examinar o tema da liberdade à luz de dois grandes nomes da filosofia e da política: Tocqueville e Stuart Mill. Com isso, deixa-se de lado, evidentemente, outras possibi-lidades de análise da autonomia individual, como, por exemplo, aquela realizada por Immanuel kant que entendia a fundamentalidade do conceito de liberdade para com-preensão da autonomia da vontade dos seres vivos, levando os homens a se sujeitarem a obedecer às suas próprias leis de abrangência universais, o que colocaria a autonomia como o fundamento da dignidade da pessoa humana.5 Ou, então, aquela elaborada por Benjamin Constant quando, redefinindo a liberdade individual, colocando-a além da sociedade, afirmara que onde começa a independência e a existência individual ter-mina a jurisdição da sociedade, defendendo a vinculação entre representação política e propriedade, vaticinando que somente a propriedade assegura o ócio necessário à capacitação do homem para o exercício dos direitos políticos.6 Ressalte-se que não é essa liberdade apresentada por Benjamin Constant que melhor representa a autonomia individual, pois, na realidade, é limitadora da participação democrática, não autonomi-zando, mas estigmatizando o individuo pelo não-ter.

Passa-se, destarte, a analisar o conceito de liberdade em Tocqueville e Stuart Mill. Tocqueville é um daqueles teóricos difíceis de classificar, dadas as enormes contra-riedades que seguiram a sua vida e seu pensamento. Ainda que nascido de família aristocrática, isso não lhe trouxe privilégio nenhum, uma vez que seus pais foram apri-sionados como consequência da Revolução francesa, sendo, inclusive, seu avô mater-no, o marqûes de Rosambo, morto na guilhotina. Evidentemente, Tocqueville (com nascimento em Paris, em 29 de janeiro de 1805) sofrera na infância todos os efeitos no-civos das recordações desses momentos terríveis que atravessara, mas, com espantosa capacidade de superação, integrou-se às conformações da nova sociedade democrática que se desenhava em solo francês. Assim é que, em 1827, ingressa na magistratura como juiz-auditor no tribunal em Versalhes. Já no ano de 1831, mais precisamente no dia 10 de maio desse ano, Alexis de Tocqueville desembarca em Nova York, juntamente com seu amigo Gustave de Beaumont, a fim de estudar in loco o sistema penitenciário dos Estados Unidos. Esse era o pano de fundo de que necessitava o grande intelectual para desenvolver uma pesquisa voltada às inquietações políticas de seu tempo: Como os Estados Unidos formaram uma sociedade política nova e conseguiram, com êxito, resolver os problemas de liberdade e igualdade? Qual a força que regia a socieda-

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de americana rumo ao progresso e que, faltando às sociedades europeias, relegava--as aos debates acerca daqueles velhos problemas franceses de liberdade e igualdade? Tocqueville busca, desse modo, desenvolver o tema tão apaixonante de seu século, a Democracia, não sendo sem razão, portanto, que o titulo de sua obra só poderia apa-recer como “A Democracia na América”. Antes, portanto, de fazer-se uma leitura de alguns aspectos do pensamento desse escritor, convém ter sempre em mente o fato de que se está diante de um gigante, de um observador perspicaz, de um gênio da política e que qualquer conclusão sobre sua obra poderá ser modificada por outras interpretações. No prefácio de “A emancipação dos escravos”, Fani Goldfarb Figueira observa que não é fácil classificar seu pensamento [de Tocqueville], tão rico e tão mutável quanto os fatos históricos que se dedica a estudar.7 Realmente, Tocqueville é homem que não teme confessar que escreve com paixão, pois nem seria permitido a um francês não ser apaixonado quando fala de seu país e pensa no seu tempo,8 mas, por outro lado, em uma de suas Cartas (22.3.1837), diz que julgava a antiga aristocracia sem paixão!

Por tudo isso, torna-se importante conhecer as posições de Tocqueville acerca de tema até hoje presente em qualquer obra de política respeitável: a Democracia. A essência da liberdade será identificada a partir da noção correta que se tenha sobre o significado desse tema para o pensador francês.

A Democracia ou regime democrático para Tocqueville significava igualdade de condições. Dessa maneira, quando se discorre sobre Democracia em sua obra, inevita-velmente a igualdade, a liberdade e o individualismo serão temas de passagem obriga-tória, tal o entrelaçamento dessas questões na análise do regime democrático.

Para Tocqueville, a Democracia deve estar apoiada numa base sólida, capaz de proporcionar aos homens uma felicidade superior, garantindo-se a cada um dos indiví-duos que compõem o corpo da nação o maior bem-estar, resguardando-o da miséria. Essa fundamentação democrática estaria na moral, ou seja, como diz Antonio Paim, moral social de tipo consensual,9 onde a coletividade pudesse fixar consensualmente as regras básicas da convivência social. Assim, a Democracia reside no principio da igual-dade com redução da esfera da liberdade. Tal igualdade rompia com os padrões aris-tocráticos dos privilégios de nascimento, na medida em que, tanto pela fortuna quanto pela inteligência, os homens faziam ressaltar o elemento democrático em detrimento de influências de família, de grupo ou até mesmo de indivíduos.

Tocqueville entendia que não era possível um espaço de liberdade plena com re-duzida atuação estatal, caso não existisse uma disciplina moral capaz de promover a virtude cívica. Essa virtude (ou moral social) não poderia ser imposta pelo Estado, pois seriam os diversos segmentos sociais que ensinariam e propagariam no seio da família, escola, religião os postulados e bases de um sistema democrático forte e com preocu-pações desenvolvidas na sociedade.

7 TOCQUEVILLE, Alexis de. A emancipação dos escravos. Campinas (SP): Papirus, 1994, p. 10.8 TOCQUEVILLE, Alexis. De. O antigo regime e a revolução. 2ª ed. Brasília: Universidade de Bra-

sília, 1982, p. 45. 9 In: TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. 3ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, p. IV.

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Portanto, o verdadeiro sinal de um Estado democrático não estaria na identificação de seu maior ou menor grau de liberdade. Antes, seria na igualdade que residiria o traço distintivo da democracia, opondo-se às sociedades aristocráticas de cunho acentuada-mente hierárquico em favor das sociedades democráticas de fundamento igualitário. Contudo, a igualdade levada ao extremo poderia conduzir a “venenos”, uma vez que a redução das diferenças leva a sucessivas e constantes diminuições da individualidade, fazendo com que os homens mais e mais busquem apaixonadamente uma uniformida-de, de tal sorte que qualquer dessemelhança pareça como espanto na sociedade iguali-tária. Advertia Tocqueville, então, nesse sentido, que os males que a extrema igualdade produzir só se manifestam pouco a pouco; insinuam-se gradualmente no corpo social; apenas de longe em longe nos é dado vê-los e, no momento em que se tornam mais vio-lentos, o hábito já fez com que não o sintamos.10 Um desses males da igualdade, cabe mencionar, é a tirania da maioria, o risco constante e ameaçador da liberdade diante do rolo compressor da verdade da maioria. A igualdade levaria os homens a uma perda da fé uns nos outros, visto que são semelhantes, levando-os acreditarem no “juízo do público”, num poder absoluto, numa soberania do povo.

Como se vê, para Tocqueville, a sociedade democrática não pode renunciar à igualdade de condições. Porém, a ampliação dessa igualdade conduz a distorções no sistema que merecem ser contornados. O remédio ou contraveneno do despotismo pa-ternal centralizador estaria na liberdade política. Essa liberdade se desenvolveria no espaço das instituições democráticas livres. Ou seja, o comprometimento do cidadão que, rompendo com as amarras do individualismo, dirige a sua ação ao bem comum; não é uma ideia ligada ao princípio da soberania popular, é, antes, uma participação ati-va do individuo nos negócios públicos, por meio de instituições democráticas. Ora, se a Democracia como igualdade é geradora do individualismo, na concepção tocqueville-ana, e que leva os homens a uma ausência de virtudes cívicas, somente por intermédio da liberdade institucionalizada poderia fundamentar-se uma verdadeira ordem social, tonificada pelos benéficos efeitos da religião.11

Desse modo, é na tentativa de unir os pontos extremos da liberdade e da igualdade que Tocqueville pensará num governo e em suas instituições políticas, estas sustenta-das por dois pilares vigorosos: as instituições comunais (autogoverno local) e as asso-ciações livres. As instituições comunais (ou provinciais, municipais) representariam o espaço das liberdades locais, verdadeiras descentralizações administrativas onde residiria a força do povo livre, nelas estaria a essência do “espírito da liberdade”. A descentralização administrativa conduziria os homens ao auxílio mútuo, afastando os sentimentos individualistas, levando a cada homem a oportunidade de ver no outro a necessária ajuda de enfrentamento das dificuldades cotidianas, pois são nas comuns (províncias) que as pessoas desenvolvem seus interesses particulares, de tal sorte que dificilmente alguém será levado a preocupar-se pelo destino do Estado, responsável

10 Idem, pp. 384-385.11 Ibidem, p. 389.

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pelos grandes negócios da nação, se não estiver ligado a uma base política sólida de interesse particular.

Contudo, é importante ressaltar que o autor não dispensa a representação nacional. Ele acredita que o individualismo só encontraria freio se, ao lado da nação representada, existissem representações locais espraiadas pelo território, capazes de possibilitar aos cidadãos a ação em conjunto e a dependência recíproca. Eis aí, talvez, a primeira baliza da democracia social.

Todavia, garantir aos cidadãos esse fundamental espaço político não seria sufi-ciente para imunizar-se a democracia dos venenos da igualdade extremada. Assim, Tocqueville, na condição de observador atento à realidade americana que investigava, encontrou aquele segundo pilar vigoroso, acima mencionado, que seria a condição do processo civilizatório do homem, indispensável ao progresso do conjunto das produ-ções humanas, as associações livres. Logo, não se conceberia uma democracia, sem que houvesse associação na vida civil que a impulsionasse e sustentasse. Tocqueville dava enorme importância às associações americanas que se formaram na vida civil (associações não políticas).

Portanto, a Democracia é igualdade de condições, mas que, inevitavelmente, pro-duz males que afetam, sobretudo, a liberdade das pessoas. Dentre esses “venenos de-mocráticos”, a apatia social ou perda do interesse com a coisa pública, incentivadora do individualismo, como também a imposição absoluta da vontade despótica da maioria, apresentam-se como questões a serem enfrentadas no regime democrático. Tocqueville não se furta a propor uma resposta a esses problemas, principalmente por acreditar na democracia, e identifica na existência de um governo representativo nacional que, ampliando as liberdades locais, permita uma gestão pública localizada, descentralizada, de modo a alimentar no espírito do cidadão o sentimento de uma vida em sociedade. Também, paralelamente, o desenvolvimento de uma cultura associativa (arte e ciência-mãe) que leve a desenvolver a solidariedade na superação dos entraves naturais da civilização, na medida exata do crescimento da igualdade de condições, é que constitui o caminho ideal na busca dos povos por um governo democrático.

Conclui-se, desse modo, que, para o liberal Tocqueville, a autonomia da vontade encontrava-se subordinada a princípios democráticos relacionados à solidariedade so-cial consensual. Assim, não se pode falar em autonomia plena, pois os interesses fun-damentais do cidadão, no interior de uma desenvolvida cultura cívica, sobrepor-se-iam ao individualismo. Liberdade, portanto, deve ser proclamada com igualdade, de tal sorte que todos os homens posam desenvolver suas potencialidades com a diminuição sensível da miséria, gerando um bem-estar capaz de proporcionar uma vida digna aos membros da nação.

Cabem, agora, algumas considerações sobre o pensamento de outro liberal con-temporâneo de Tocqueville: John Stuart Mill (1806-1873). A vida de Mill já mereceria, por si só, um estudo aprofundado e empolgante, por todos os fatos que a cercam. Mas, neste artigo, o olhar é voltado a algumas das formulações que distinguem esse teórico inglês dos antigos liberais clássicos que o antecederam, procurando, como referencia-do anteriormente, a visão de Stuart Mill acerca da autonomia individual. Nessa linha,

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aqueles mesmos temas desenvolvidos por Tocqueville, como democracia, igualdade, liberdade e individualismo voltam a limitar o foco de análise.

Para Stuart Mill, a forma ideal de governo seria a popular, aquela que acarreta o maior número de consequências benéficas, imediatas ou futuras.12 Logo, o pensador inglês defendia o regime democrático, mas como forma de imprimir maior respon-sabilidade aos cidadãos, aproximando suas ideias dos movimentos que eclodiram na Europa no século XIX. Assim, Stuart Mill caminha de um liberalismo político clássico que clama pela redução do Estado em beneficio das liberdades individuais, para um novo liberalismo do tipo democrático e que procura incorporar a participação popular nos negócios do Estado, de maneira que o próprio Mill vislumbrara, em pequenas co-munidades, a possibilidade de um Estado com feições tipicamente populares.13

Nesse contexto, Mill verá no governo representativo, atrelado ao grau de desen-volvimento geral de um povo, o tipo ideal de governo. Entretanto, insistirá sempre na existência de um “poder do controle final” das atividades desse governo; esse poder esta-ria inserido na Constituição, pois existe em toda Constituição um poder mais forte – um poder que sairia vitorioso se os compromissos, graças aos quais a Constituição funciona normalmente, fossem e as forças viessem a se medir.14 Porém, essa força da Constituição só impõe obediência a todos, em virtude da preponderância das normas constitucionais ao poder que já predomina na realidade. Esse poder é o poder popular. Interessante que Mill escrevera isso em 1861, na obra “Considerações sobre o governo representativo”, mas, em 1863, Ferdinand Lassalle, numa conferência para intelectuais e operários da antiga Prússia, afirmara, também, que a essência de uma Constituição é a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação.15 Evidentemente que, guardadas as devidas proporções dos dois grandes pensadores, um liberal e ocupante de elevado cargo na Companhia das Índias Ocidentais, outro socialista e militante político-sindical, fica claro que Mill já per-cebera a existência de poderes reais que subjazem ao arcabouço constitucional, de tal sorte que, se as autoridades políticas, não dessem ao elemento popular na Constituição a supremacia substancial sobre todos os ramos do governo, correspondente ao seu poder real sobre o país, a Constituição não teria a estabilidade que a caracteriza.16

Nesse contexto, o governo representativo, tecido a detalhes por Mill, demonstra todo o valor que esse liberal dava à democracia. Era o povo, em última análise, que deveria preencher esse espaço das instituições democráticas e da forma de governo, na medida em que essas são criações humanas que dependem da escolha, sendo guias do povo nessa opção: o grau de cultura desse povo, o seu nível de julgamento e a sagaci-dade prática.

12 MILL, John Stuart. Considerações sobre o governo representativo. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 31.

13 Idem, p. 38.14 Ibidem, p. 48.15 LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 17.16 MILL, John Stuart, ibidem, p. 48.

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Partindo, então, dessa sua concepção de democracia como governo do povo em que todas as partes deveriam ser representadas, não desproporcionalmente, mas sim proporcionalmente,17 Stuart Mill defende o voto universal, para permitir que a minoria tenha também direito de influenciar na representação; era essa, na verdade, uma ma-neira de assegurar a ascendência da maioria, de decisões ou medidas em acordo com a porção maior da nação.

O pensador inglês avança na sua argumentação democrática, quando, ainda, quiçá por influência de seu grande amor, Harriet Taylor, sustenta a extensão do voto às mu-lheres. O sufrágio teria que ser universal (embora escalonado), não podendo ficar, por isso, as mulheres de fora dessa participação cívica: Todos os seres humanos têm o mes-mo interesse em ter um bom governo... A humanidade já há muito tempo abandonou os únicos princípios que podem apoiar a conclusão de que as mulheres não devem votar.18

Permanece Mill, portanto, fiel àquilo que nomeara de “democracia verdadeira”, onde haveria igualdade, “o governo de todos por todos” e em que todos seriam repre-sentados. Porém, na realidade, observa-se que Stuart Mill não era demasiado democrata a ponto de incluir na participação do sufrágio pessoas que não soubessem ler, escrever nem efetuar as operações básicas da aritmética. Ou seja, para Mill, analfabeto não vota! Daí que deveria a sociedade, na opinião dele, antes mesmo de cumprir a obrigação do voto universal, promover a educação universal.

Feitas as observações acima, já se pode examinar, em Mill, a liberdade e o indivi-dualismo. A liberdade representou uma das questões centrais do pensamento de Mill, tanto é assim que chegou a escrever uma obra toda sobre isso, On Liberty (1859), em que reconhece a diversidade como forma de alcançar a verdade. Liberdade, em primeiro lugar, de consciência, de pensamento, de sentimento e de opinião; depois, liberdade de gostos e de ocupações, ou seja, ser o homem dono do seu destino, de fazer o que deseja; finalmente, liberdade de associação, a liberdade “da combinação entre indivíduos”.19

Assim, o bem-estar, tanto do individuo quanto da coletividade, é critério para afe-rição de um bom governo. Caberia ao governo democrático possibilitar as condições necessárias ao desenvolvimento das potencialidades individuais. É nessa perspectiva, por exemplo, que Mill pugna pela diversidade de opinião, um espaço onde a individua-lidade pudesse desenvolver-se sem as pressões de padrões sociais; liberdade de opinião, liberdade para a privacidade e independência, livres do “despotismo do costume”, de tal maneira que uma pessoa pode, sem incorrer em censura, gostar ou não de remar, de fumar, da música ou de exercícios atléticos, do jogo de xadrez, de cartas ou do estudo.20

Stuart Mill é um liberal. Porém, um liberal que se distancia de certo modo da vi-são lockeana do liberalismo político, pois percebe-se em seus escritos uma tentativa de romper com os padrões fixos desse liberalismo de antigos conceitos, avançando em di-

17 Idem, p. 72.18 Ibidem, p. 97.19 MILL, John Stuart. Da liberdade. São Paulo: Ibrasa, 1963, p. 16.20 Idem, p. 77.

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reção a um modelo diversificado de políticas sociais que aproximam as tradições libe-rais das correntes sociais que iniciavam as suas reivindicações na Europa, cujo grande marco histórico, aliás, fora assinalado em 1848, na França, quando ainda vivia Mill, e que repercutiriam para a sedimentação das formulações do futuro Estado do Bem-Estar Social. Mill é o liberal que vê na educação realizada pelo Estado um mero artificio destinado a modelar os indivíduos exatamente pelo mesmo padrão; e como esse pa-drão é o que agrada ao poder dominante no governo.21 Se abstraído fosse o nome de Stuart Mill, qualquer leitor desavisado pensaria que o fragmento acima transcrito seria da lavra de Fourier, Marx ou Engels. Mas, não. É pensamento de um liberal, um liberal tardio e que pode perfeitamente representar um elo de transição entre um liberalismo clássico e uma concepção política renovada que amplia os níveis de participação po-pular nos negócios públicos e que compreende como condição de sobrevivência do próprio liberalismo a adoção de medidas socializantes capazes de arejarem as clausuras da política liberal.

Desse modo, a autonomia privada, num liberal como Stuart Mill, apresenta-se reduzida, limitada na força, diante da necessidade de ampliação do espaço democrático como mecanismo de sustentação do próprio liberalismo. Daí que, as restrições que se façam na autonomia, ao contrário de esvaziamento gradual da liberdade ou aniquila-mento da vontade individual, proporcionaria um crescente aumento no sentimento de solidariedade, contribuindo decisivamente para a redução das desigualdades sociais, facilitando a afirmação da dignidade da pessoa como ser humano.

Não se compreende, portanto, em que a extensão da eficácia dos direitos fun-damentais sociais às relações particulares possa agredir a autonomia individual. Na verdade, se se entende que o homem só é livre quando cumpre as leis racionais uni-versalmente criadas e sob as quais tem a autonomia de agir, não se enxerga nenhuma afetação na esfera da liberdade individual pela concretização horizontal dos direitos sociais fundamentais. Ora, se a dignidade da pessoa humana é esse valor absoluto, em oposição ao valor relativo das coisas, tornando cada ser humano uma pessoa única, por-tadora dessa singular dignidade, o homem só encontrará a realização e felicidade com o reconhecimento afirmativo de seus direitos, de tal sorte que a sua autonomia privada constitua a autonomia solidária de todos os homens. Não se pode ser feliz, mantendo-se na opressão um outro ser moral!

Feitas as considerações precedentes, concorda-se, então, com a afirmação de Daniel Sarmento, quando diz que a autonomia privada representa um dos componentes primordiais da liberdade,22 pois a concepção que se defende, aqui, é a autonomia indi-vidual como a essência da própria liberdade, sujeita esta às leis morais universais. São essas leis universais, portanto, que, na qualidade de balizadoras da dignidade da pessoa humana, devem ser observadas na concretização dos direitos sociais. Evidente que na

21 Ibidem, 119.22 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2004, p. 188.

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contraposição entre a autonomia privada (ligada aos direitos individuais) e autonomia pública (relacionada à democracia), deve-se buscar o referencial decisório na dignidade da pessoa humana, quer restringindo a primeira em beneficio da segunda quer limitan-do a segunda em nome da primeira, na medida em que nenhuma delas, isoladamente, possui o valor absoluto da dignidade da pessoa humana.

Chega-se, desse modo, à conclusão de que os direitos fundamentais são portado-res de eficácia direta e imediata nas relações privadas, não parecendo razoável rejeitar essa tese sob a alegação de proteção da autonomia privada. Toda vez que a invocação dessa autonomia colocar em risco a dignidade da pessoa humana como um fim em si mesma, numa tentativa de instrumentalização do ser humano para a obtenção das coisas, o particular deve submeter-se ou ser submetido pelo Poder Público ao direito social fundamental oponível. Isso converge, em certa medida, com o que propõe Jorge Miranda a respeito da necessidade de busca por convergências entre os direitos fun-damentais e a autonomia individual (apesar do professor português não se posicionar expressamente a favor da extensão dos direitos sociais às relações privadas). 23

A postura assumida de reconhecimento da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais (aqui incluídos os sociais) às relações privadas não desconhece a exis-tência de posicionamentos teóricos em sentido contrário. Veja-se, por exemplo, que Canaris rejeita a teoria da eficácia direta em relação a terceiros, argumentando que:

Se, porém, generalizarmos este entendimento, ele conduz a consequências dogmáticas insus-tentáveis, pois então amplas partes do direito privado, e, em especial, do direito dos contratos e da responsabilidade civil, seriam guindadas ao patamar do direito constitucional e privadas da sua autonomia. Além disso, incorre-se em grandes dificuldades de ordem prática, já que a maioria dos efeitos jurídicos a que, se consequentemente prosseguida, tal concepção forço-samente chegaria – tal como a nulidade de contratos que restringem direitos fundamentais – teria de ser afastada logo por interpretação, pela sua evidente insustentabilidade. Foi, pois, com razão que a teoria da eficácia imediata acabou por se não impor...24

Discorda-se dos argumentos e da posição do professor Canaris, pois, aceitando seus argumentos, isso representaria a aceitação de que os direitos fundamentais diri-gem-se apenas contra o Estado, ficando de fora de seu âmbito de abrangência os sujeitos de direito privado. Na realidade, a eficácia imediata não conduz à perda da autonomia do direito privado, mas, antes, impõe uma releitura do direito privado, conformando-o à Constituição. A autonomia privada encontra-se, conforme discutido anteriormente, submetida a limitações que favoreçam a igualdade material dos cidadãos. Nada me-lhor, portanto, do que reconhecer que as maiores limitações impostas ao direito privado

23 O autor lusitano, citado por Daniel Sarmento, propôs a adoção de soluções tópicas, que busquem a concordância prática entre os direitos fundamentais e a autonomia individual, mas que não per-mitam o sacrifício do núcleo essencial destes direitos, nem mesmo no caso de auto-restrições. In: SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, op. cit., p. 253.

24 CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. 1ª ed. reimp. Coimbra: Almedina, 2006, pp. 53-54.

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relacionam-se aos direitos fundamentais. No que diz respeito às “grandes dificuldades de ordem prática”, não se vê problema algum em que sejam afastados os efeitos jurí-dicos de relações privadas alicerçadas em violações de direitos fundamentais, mesmo porque a mesma “prática” demonstra que isso somente ocorre, regra geral, mediante um pronunciamento judicial. Essa questão, na verdade, poderia muito bem ser contor-nada pela ponderação dos direitos e interesses presentes nos casos concretos, sem que tal fato represente qualquer perda de autonomia individual.

Assim, no que concerne aos direitos sociais fundamentais, por serem direitos hu-manos inalienáveis , irrenunciáveis, universais e com vistas à preservação da dignidade do homem, deve, de igual maneira, ser estendida a concretização direta e imediata às relações particulares. Vale lembrar que a dignidade aqui mencionada é condição ine-rente, intrínseca da pessoa humana, não podendo ninguém concedê-la ao ser racional, pois o ser humano já a possui aprioristicamente como condição absoluta de sua exis-tência, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade.25

Mas, ainda que reconhecida a possibilidade de incidência dos direitos sociais fun-damentais às relações entre particulares, faz-se necessário enfrentar, por derradeiro, a questão de definir sob quais critérios se daria tal eficácia horizontal dos direitos sociais fundamentais. A seguir, apresenta-se uma tentativa de delimitação da eficácia direta desses direitos às relações privadas, evidentemente, sujeita a críticas e reparos, devido, sobretudo, encontrar-se o tema mergulhado em enormes controvérsias, quer na litera-tura nacional quer na estrangeira.

3. BALIZAS PARA A INCIDÊNCIA DOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇõES PRIVADAS

Mesmo quando se parte de uma Constituição escrita, persistem grandes dificul-dades na concretização das normas de direito fundamental. Canotilho chega a elaborar algumas regras básicas de aplicação das normas constitucionais, partindo da considera-ção da norma como elemento primário da interpretação, passando pelo sentido semân-tico do texto constitucional até chegar à atribuição de um significado aos enunciados linguísticos, chamando a atenção para o fato de que o âmbito de liberdade do intérprete (espaço de interpretação) encontra-se limitado pelo texto da norma.26

Uadi Lammêgo expôs, sinteticamente, as chamadas “regras de Black” para a in-terpretação constitucional. Um conjunto de proposições que serviriam de guias ao in-térprete na árdua tarefa de compreensão e apreensão do conteúdo das normas inseridas

25 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 41.

26 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1993, pp. 216-222.

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na Lei Fundamental.27 Por sua vez, Santi Romano descreveu algumas regras técnicas que integrariam o método jurídico de análise constitucional, partindo dos elementos mais evidentes expressos nas ordenações positivas até a formulação dos institutos que, agrupando-se por seus traços comuns, constituiriam “familias” que, finalmente, reuni-das formariam um sistema.28

Luís Barroso, a seu turno, demonstra a ocorrência de uma nova interpretação constitucional que estaria assentada na ideia da diversidade de sentido do texto cons-titucional e que operaria com a possibilidade de diferentes interpretações da norma, condicionadas pela realidade subjacente. A esse trabalho concorreriam os princípios, os elementos concretos do caso e os fins a realizarem-se.29

Não se pretende promover um levantamento dos diferentes modelos de interpre-tação constitucional. Mas, uma vez que se aceitou o desafio da fixação de parâmetros para a concretização dos direitos sociais fundamentais nas relações privadas, é inevi-tável a advertência acerca da complexidade dessa tarefa, mesmo quando se encontre o estudioso debruçado sobre os direitos já positivados.

Nesse contexto, levando em conta o que Bidart Campos ressalta a respeito dos direitos sociais, dizendo que são mais difíceis que os civis para adquirir vigência so-ciológica, porque normalmente requerem prestações positivas,30 a primeira baliza à efetividade desses direitos fundamentais sociais deve restar condicionada à reserva do possível, ou seja, assim como o Poder Público só pode realizar os direitos fundamentais prestacionais se existirem meios materiais para tanto (disponibilidade orçamentária), também, o particular só poderá ser submetido à eficácia dos direitos sociais fundamen-tais quando houver possibilidade material para isso, de tal sorte que a concretização de determinado direito humano fundamental não importe em total inviabilização de outros direitos, igualmente fundamentais à realização da dignidade da pessoa humana.

A segunda baliza à eficácia dos direitos sociais nas relações de âmbito privado é praticamente decorrente da primeira e resulta do fato de que não se pode atribuir tão somente à reserva do possível a possibilidade de aplicação dos direitos sociais fundamentais. A razão é duplamente lógica. Primeiro é porque os direitos humanos fundamentais sociais, nessa condição, estariam relegados a uma segunda categoria po-litico-econômica, pois competiria, em última análise, ao Legislativo “escolher” qual o direito fundamental social que seria contemplado com a prestação da reserva orçamen-tária, reduzindo os direitos humanos, destarte, a uma questão de mera opção política.

27 BULOS, Uadi Lammêgo. Manual de interpretação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, pp. 58-90. O leitor encontrará nessa obra um excelente resumo da concepção de Black a respeito das regras de interpretação do texto constitucional.

28 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, pp. 24-28.

29 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 286-310.

30 BIDART CAMPOS, Germán J. Teoria general de los derechos humanos. México: Universidad Na-cional Autónoma de México, 1989, pp. 196-197.

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Segundo é que, na prática, jamais os particulares ficariam submetidos à eficácia dos direitos sociais fundamentais, pois sempre se poderia invocar estrategicamente o argu-mento de que, sendo o Estado o principal obrigado ao cumprimento da norma jusfun-damental, poderá a qualquer tempo, em decorrência de conveniência e oportunidade, incluir no orçamento a prestação positiva de direito fundamental social, elidindo-se, dessa forma, a exigência em relação à esfera privada.

Logo, apresenta-se premente a necessidade desta segunda baliza: o mínimo exis-tencial. Vale dizer, como não podem os direitos fundamentais ficar entregues aos ventos do jogo politico orçamentário ou vinculados a estratégias particulares procrastinatórias, deve-se impor direitos fundamentais sociais mínimos que garantam o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana. Ou seja, é preciso que se considerem nesse aspecto os critérios de proibição de excesso e de proibição de insuficiência no alcance dos direitos fundamentais no direito privado.

Nesse espaço entre a reserva do possível e o mínimo existencial, representado em grande parte pelos direitos fundamentais sociais mínimos e suficientes à realização da pessoa humana, deve transitar a eficácia horizontal dos direitos sociais fundamentais, por meio de uma ampla atividade política (Legislativo e Executivo) e judicial. A pri-meira estabelecendo as diretrizes orçamentárias a serem executadas em direção ao con-teúdo dos direitos sociais, ao passo que, a segunda (judicial), preservando a supremacia da Constituição e atentando para a dimensão objetiva dos direitos humanos, valendo-se ainda daquela “nova interpretação constitucional”, concretizando, nos casos particu-lares, as normas de direito social fundamental de acordo com a realidade subjacente.

Para rematar, pode ser citado como um bom exemplo desse caminho de aplicação dos direitos fundamentais sociais às relações privadas, o julgamento de dissídio coleti-vo onde ficou evidente a atenuação do poder empresarial diante das dispensas coletivas, o que, sem dúvida, impôs uma obrigação ao particular (empresário) de caráter social, econômica, familiar e comunitária. Isto é, os direitos sociais fundamentais (direito ao trabalho e ao emprego) acabaram prevalecendo sobre a autonomia individual do po-der do empresário nas dispensas massivas, conforme pode ser verificado na decisão TST-RODC 309/2009-000-15-00.4. Rel. Min. Maurício Godinho Delgado. Sessão de 10.8.2009 (DEJT de 4.9.2009).

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