Genograma Familiar

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DOSSIER FAMÍLIA Rev Port Clin Geral 2007;23:309-17 309 *Médico de Família do Centro de Saúde de Alvalade (ARSLVT). Professor da Faculdade de Medicina de Lisboa LUÍS REBELO* Genograma familiar. O bisturi do Médico de Família de família como o bisturi é para o cirur- gião. O médico de família, no seu dia a dia de trabalho, com consultas de poucos minutos, pode avaliar a funcionalidade familiar mediante a aplicação de testes como o Apgar Familiar ou o Círculo Fa- miliar. O primeiro mais quantitativo, o segundo mais qualitativo, baseiam-se ambos na percepção individual do pa- ciente sobre as qualidades funcionais da sua família. O profissional, conhe- cendo as potencialidades dos dois ins- trumentos, deve utilizá-los caso a caso, em conjunto ou em separado. Para observar a família como um to- do, com o objectivo de obter apoio para determinado paciente, ou pela relevân- cia do problema de tipo familiar diag- nosticado ou ainda pelo seu impacto no seio da família, então o médico pode propor a realização de uma Entrevista Familiar. Se o médico quiser avaliar e registar, ainda num contexto mais amplo, todos os elementos do seu meio e da nature- za e qualidade das interacções entre eles, pode realizar um Eco-Mapa. Embora o médico registe informação de tipo familiar sistematicamente é re- conhecido que em certas situações clí- nicas a avaliação da funcionalidade fa- miliar é mandatória (Quadro II). 2 Em Medicina Geral e Familiar, o geno- grama familiar é o mais importante mé- todo de estudo de uma família. Ao longo MÉDICO DE F AMÍLIA E ABORDAGEM F AMILIAR O médico de família é con- frontado frequentemente com motivos de consulta e diagnósticos em que estão presentes factores familiares. A este propósito, Thomas Campbell, um influ- ente médico de família e autor america- no, faz recomendações práticas que po- dem orientar a tomada de decisão em Medicina Geral e Familiar tornando a sua acção mais eficiente (Quadro I). 1 Como é que o médico de família ou outro profissional pode conhecer o con- texto familiar de um seu paciente? Antes de mais, é útil que conheça qual é a constituição da família e o grau de parentesco e o tipo de relacionamen- to entre eles – no fundo tem de conhe- cer a estrutura familiar. Depois, é ne- cessário que o médico, em face do pro- blema de saúde que o paciente apresen- ta, se aperceba do tipo de resposta dos membros da família, ou seja, se aper- ceba se a família do paciente actua e se comporta enquanto tal, se «funciona». Por fim, é importante que saiba quando deve passar do registo indivi- dual para uma observação do sistema familiar. Na prática clínica diária o método mais usado de avaliação do contexto fa- miliar consiste na realização de um ge- nograma familiar. A construção e inter- pretação de um genograma familiar é uma competência básica de um médi- co de família. É um instrumento de trabalho tão importante para o médico GENOGRAMA FAMILIAR

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DOSSIER

FAMÍLIA

Rev Port Clin Geral 2007;23:309-17 309

*Médico de Família do Centro de Saúde de Alvalade (ARSLVT).

Professor da Faculdade de Medicina de Lisboa

LUÍS REBELO*

Genograma familiar. O bisturi do Médico de Família

de família como o bisturi é para o cirur-gião.

O médico de família, no seu dia a diade trabalho, com consultas de poucosminutos, pode avaliar a funcionalidadefamiliar mediante a aplicação de testescomo o Apgar Familiar ou o Círculo Fa-miliar. O primeiro mais quantitativo, osegundo mais qualitativo, baseiam-seambos na percepção individual do pa-ciente sobre as qualidades funcionaisda sua família. O profissional, conhe-cendo as potencialidades dos dois ins-trumentos, deve utilizá-los caso a caso,em conjunto ou em separado.

Para observar a família como um to-do, com o objectivo de obter apoio paradeterminado paciente, ou pela relevân-cia do problema de tipo familiar diag-nosticado ou ainda pelo seu impacto noseio da família, então o médico podepropor a realização de uma EntrevistaFamiliar.

Se o médico quiser avaliar e registar,ainda num contexto mais amplo, todosos elementos do seu meio e da nature-za e qualidade das interacções entreeles, pode realizar um Eco-Mapa.

Embora o médico registe informaçãode tipo familiar sistematicamente é re-conhecido que em certas situações clí-nicas a avaliação da funcionalidade fa-miliar é mandatória (Quadro II).2

Em Medicina Geral e Familiar, o geno-grama familiar é o mais importante mé-todo de estudo de uma família. Ao longo

MÉDICO DE FAMÍLIA E ABORDAGEM FAMILIAR

Omédico de família é con-frontado frequentementecom motivos de consulta ediagnósticos em que estão

presentes factores familiares. A estepropósito, Thomas Campbell, um influ-ente médico de família e autor america-no, faz recomendações práticas que po-dem orientar a tomada de decisão emMedicina Geral e Familiar tornando asua acção mais eficiente (Quadro I).1

Como é que o médico de família ououtro profissional pode conhecer o con-texto familiar de um seu paciente?

Antes de mais, é útil que conheçaqual é a constituição da família e o graude parentesco e o tipo de relacionamen-to entre eles – no fundo tem de conhe-cer a estrutura familiar. Depois, é ne-cessário que o médico, em face do pro-blema de saúde que o paciente apresen-ta, se aperceba do tipo de resposta dosmembros da família, ou seja, se aper-ceba se a família do paciente actua e secomporta enquanto tal, se «funciona».

Por fim, é importante que saibaquando deve passar do registo indivi-dual para uma observação do sistemafamiliar.

Na prática clínica diária o métodomais usado de avaliação do contexto fa-miliar consiste na realização de um ge-nograma familiar. A construção e inter-pretação de um genograma familiar éuma competência básica de um médi-co de família. É um instrumento detrabalho tão importante para o médico

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de pelo menos três gerações, o genogra-ma colecta informação, usando regras esimbologia próprias, sobre a estruturafamiliar, os dados demográficos, a histó-ria clínica e as relações entre os elemen-tos de uma família. É uma ferramentamuito útil para o trabalho clínico diário.

DefiniçãoPode definir-se como um instrumentode avaliação familiar que consiste numsistema de colheita e registo de dadose que integra a história biomédica e ahistória psicossocial do paciente e dasua família.

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Perspectiva históricaPrimitivamente utilizado por geneticis-tas no estudo de doenças de transmis-são hereditária, foi na década de 70 queos terapeutas familiares, liderados porMurray Bowen3 da Escola Americana,o passaram a usar profusamente. Maistarde, McGoldrick e Gerson4 foram deespecial importância ao sistematizaremo seu uso. Também a Medicina Fami-liar, sobretudo da América do Norte,através de nomes como Robert Rakel,5

Medalie,6 Christie-Seely,7 Rogers8 ouRevilla,9 adaptaram este método à prá-tica do médico de família. Enriquece-

QUADRO I

RECOMENDAÇÕES A APLICAR À PRÁTICA CLÍNICA DOS MÉDICOS DE FAMÍLIA*

• Contexto Familiar – sempre que um paciente apresente uma queixa numa consulta considere inquirir sobre o seu contexto familiar

• Stress Familiar – esteja de sobreaviso quanto à existência de factores de stress ou/e conflitos relacionáveis com os problemas de saúde apresentados

• Triângulo Terapêutico – estabeleça boas relações com todos os elementos de uma família e evite coligações no seu interior• Conferência Familiar – convoque uma conferência familiar sempre que for útil para o paciente, a família ou o médico• Nível de Envolvimento com as Famílias - é útil decidir o nível de envolvimento que quer manter com as famílias na sua

prática clínica • Referência e Colaboração – é necessário ter presente como e quando referenciar famílias para a terapia familiar e estar

capacitado a trabalhar em equipa com os profissionais de saúde mental

*Campbell TL. Family Systems Medicine. In: Saultz JW (editor). Textbook of Family Medicine. Mc Graw-Hill. 2000:739-50.

QUADRO II

INDICAÇÕES CLÍNICAS PARA A AVALIAÇÃO FAMILIAR*

• Saúde Materna (1º trimestre)• Saúde Infantil• Problemas de Desenvolvimento Infantil• Caso de desemprego ou de perda recente de posto de trabalho num elemento da família• Diagnóstico recente de doença crónica num elemento da família• Doença mental num elemento da família• Morte de um elemento da família ou luto na família• Consumo de drogas ilícitas num elemento da família• Suspeita de violência na família• Depressão ou ansiedade crónica num elemento da família• Um ou vários elementos da família com consumo de consultas desajustado• Falta de adesão aos planos terapêuticos

* Saultz JW. The contextual care. In: Saultz JW (editor). Textbook of Family Medicine. Mc Graw-Hill. 2000:135-59.

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ram-no incluindo informação biomédi-ca e psicossocial, propondo a estandar-dização da simbologia abrindo caminhoao seu uso na clínica, investigação eensino.

JustificaçõesA família continua a ser o mais consis-tente apoio social do indivíduo. Existeuma clara interdependência entre oselementos de um agregado familiar. Éconhecido que as interacções e relaçõesfamiliares são altamente recíprocas, pa-dronizadas e repetitivas. Já Murray Bo-wen dizia que «as famílias repetem-se asi próprias» e teorizou sobre o fenóme-no da «transmissão multigeracional dospadrões familiares» e, de um modo maisgenérico, sobre a «teoria sistémica apli-cada ao estudo das famílias». A teoriasistémica é uma das quatro teorias quetêm sido apresentadas como relevantespara a compreensão e processo inter-pretativo do genograma, assim comojustificam o seu uso em aspectos dediagnóstico, de prevenção e de contro-lo clínico. Ramsey10 foi o autor da teo-ria do ciclo de vida familiar ou de de-senvolvimento familiar em que especi-ficou as «tarefas de desenvolvimento»por que toda a família passa, desde asua formação – o casamento – até aoseu fim – morte de um dos cônjuges. Ta-refas que podem ser cumpridas ou nãoe «fases de transição» que podem seracompanhadas por sintomatologia.Esta teoria é útil pois possibilita a pres-tação de cuidados preventivos. Tam-bém Smilkstein11 e Medalie12 teorizaramsobre a relação entre o stress e o supor-te social na ocorrência da doença. As-sim, existiriam acontecimentos de vidaprodutores de stress, mesmo de doen-ça, a não ser que existisse suporte socialcompensador. Por fim, com a teoria ge-nética é possível compreender como sãotransmitidas entre gerações múltiplascaracterísticas e doenças partindo defactores familiares e ambientais.

São fundamentos teóricos, como os

que aqui se anunciam, que estão nabase da possibilidade que hoje temos deinterpretar um genograma familiar e deaceitar um certo valor preditivo nestemétodo de avaliação. O desafio será ga-nho na medida em que essa interpreta-ção contribua para que clinicamente re-solvamos satisfatoriamente os proble-mas dos pacientes.

IndicaçõesO genograma familiar tem indicaçõespara a sua realização, tal como qual-quer outra técnica ou exame comple-mentar. Assim, a sua realização estáindicada nas seguintes situações:• Nas consultas de 1.a vez, como mé-

todo de diagnóstico apoiando o racio-cínio e decisão clínica. Deve ser com-pletado em próximas consultas, sem-pre que surja informação nova e re-levante;

• Quando o modelo biomédico não dáresposta satisfatória aos problemasdos pacientes – por dificuldade dediagnóstico, por falta de adesão aoplano de acção, na alta frequência dedoenças agudas ou quando ocorredoença crónica terminal;

• Em particular, tem interesse nas se-guintes situações clínicas – ansieda-de crónica, depressão e ataques de pânico, consumo de drogas, vio-lência doméstica e sexual, proble-mas de comportamento infantil,«doente difícil» ou de quem o «médi-co não gosta».

LimitaçõesTem algumas limitações que convêmconhecer.• A sua realização aumenta o tempo de

consulta e pode demorar anos a com-pletar;

• É estático no tempo, como uma foto-grafia com data;

• Existe o «Efeito Rashomam», em quenuma família o mesmo acontecimen-to suscita várias versões;

• Não avalia a dinâmica nem a funcio-

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nalidade familiar;• Existem problemas de fiabilidade

(grande diversidade de dados anota-dos, diagnósticos realizados por ter-ceiros, falibilidade da memória, Efei-to Rashomam, etc.);

• Tem baixa aplicação nas famílias depoucos elementos e o seu interesse édiminuto nas «pessoas sós»;

• Certos pacientes são relutantes ouresistentes a prestarem informaçãode índole familiar.Fazer diagnósticos ou extrair impli-

cações clínicas ou terapêuticas só pelainterpretação de um genograma, pormais completo que ele seja, será comcerteza um erro.

O genograma familiar deve ser con-siderado pelo médico como mais umelemento a ter em conta quando avaliaclinicamente qualquer sintoma ou pro-blema de saúde de um paciente. O seuuso sistemático contribui para que omédico preste cuidados de saúde maiscompreensivos e longitudionais.5,6,7 Ro-gers e Cohn,13 num estudo, concluíramque os médicos que utilizam rotineira-mente o genograma obtêm mais dadossobre a estrutura das famílias, os acon-tecimentos vitais, as doenças de trans-missão hereditária, e o relacionamentofamiliar do que os médicos que colhemesta informação sem usar o genograma.Mas também concluíram que o geno-grama não avalia a disfunção familiar.

Componentes do genograma Existe consenso sobre um conjunto decomponentes que devem estar presen-tes na realização de qualquer genogra-ma.• Símbolos e regras – descrição dos ele-

mentos da família e sua estrutura fa-miliar– Primeiros nomes e ano de nasci-

mento dos elementos da família;– Relações biológicas e legais do ca-

sal;– Anos de casamento, separação e

divórcio;

– Filho mais velho inscrito sempre àesquerda, os outros a partir dele,por ordem de nascimento;

– Falecimentos com ano e causa demorte;

– Indicação dos elementos que vi-vem na mesma casa;

• História clínica – doenças crónicasou graves e problemas de saúde, es-pecialmente de transmissão heredi-tária, segundo abreviaturas, catego-rias da ICPC e à direita do símbolo aque se refere;

• Padrões de relações familiares –opcional, se for complexo registar emseparado– Padrões de dominância;– Relações próximas ou distantes;– Relações conflituais;– Relações com triangulações ou

alianças;• Outra informação familiar – caso seja

de especial importância– dados étnicos, profissionais, de es-

colaridade, de migração, de vio-lência física ou sexual, abuso ál-cool e drogas, tabaco, etc.;

• Chave de símbolos utilizados e nãoestandardizados;

• Data de realização do genograma fa-miliar.

Construção do genogramaA construção de um genograma tempor base um conjunto de componentese regras e uma simbologia própria. As-sim, convencionou-se que as mulheressão representadas por círculos e os ho-mens por quadrados e, na representa-ção gráfica da família, o pai/marido vemà esquerda e a mulher/mãe é colocadaà direita, unidos pela linha de casamen-to ou geracional. O primeiro filho quenasce em cada geração é colocado à es-querda, seguindo-se os irmãos por or-dem de nascimento. Cada geração é re-presentada na mesma linha e os seussímbolos devem ter o mesmo tamanho.Devem registar-se três ou mais gera-ções, representando a família de origem

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de cada um dos cônjuges, e cada umadestas pode ser identificada por um nú-mero romano. É útil começar pela ge-ração intermédia e depois recolher in-formação sobre as outras.

Sempre que vivam na mesma casaoutras pessoas não pertencentes à fa-mília, estas devem ser representadaspelos respectivos símbolos e colocadasno genograma mas não ligadas por li-nhas contínuas, de sangue. Todos osindivíduos que coabitam serão circun-dados por uma linha a tracejado, repre-sentando o agregado familiar. O pa-ciente ou casal que justificaram a cons-trução do genograma devem ser indica-dos com um símbolo duplo ou umaseta. Se o médico utilizar símbolos paraalém dos estandardizados deve anotara «chave» da simbologia usada.

O genograma pode ser desenhadopelo paciente, pelo médico ou com ocontributo dos dois, que é o mais habi-tual. Sempre que possível deve ser ini-ciado na 1a consulta, pelo menos, ao ní-vel da estrutura da família. Se o médi-co usa o processo clínico em tamanhoA4, o genograma deve ser desenhado nacontracapa da ficha familiar. Se tem umsoftware clínico que o permita registarinformaticamente deve fazê-lo.

Os símbolos a utilizar na construção deum genograma podem diferir segundoo autor. Optou-se por apresentar a sim-bologia apresentada por Robert Rakelno seu tratado de Medicina Familiar5

(Quadro III).5

McGoldrick, Gerson e Shellenbergerpropuseram quatro categorias para a interpretação de um genograma.4,14

Categorias fundamentadas na teoriasistémica aplicada ao estudo das famí-lias, em particular à solução dos seus problemas de saúde. As categorias sãoa composição e a estrutura fami-liar, o ciclo de vida familiar, os padrõesde repetição ao longo das gerações e oequilíbrio/desequilíbrio familiar (Qua-dro IV).

É proposto que o genograma seja en-carado como um «teste de diagnóstico»e que a sua leitura seja sistemática, decategoria a categoria, de um nível maissimples a um nível mais complexo eprofundo, tal como se faz com a leitura

QUADRO III

CATEGORIAS DE INTERPRETAÇÃO DO GENOGRAMA*

1. Composição e Estrutura Familiar– Tipologia familiar– Subsistema fraterno

2. Ciclo de Vida Familiar– Fase do CVF– Crise normativa/acidental

3. Padrões de Repetição ao Longo das Gerações– Repetição de padrões de morbilidade– Repetição de padrões de funcionamento– Repetição de padrões de relacionamento– Repetição de padrões estruturais

4. Equilíbrio / Desiquilíbrio Familiar

Adaptado de McGoldrick M, Gerson R, and Shellenberger. Genograms. Assessment and Intervention. 2nd edition.WW Norton&Company. 1999.

SÍMBOLOS DO GENOGRAMA

INTERPRETAÇÃO DO GENOGRAMA

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de um electrocardiograma.O primeiro nível de interpretação per-

mite-nos responder à questão: quem équem na família? Avalia a composiçãoda família, em particular interessa-nosinformação sobre a descendência: o nú-mero, o sexo, a ordem de nascimento,o intervalo entre os nascimentos e ou-tros dados relevantes sobre os filhos. Eavalia também a estrutura familiar, de-terminando a sua tipologia. Trata-se deuma família nuclear íntegra (1o casa-mento com filhos biológicos), de uma fa-mília nuclear com parentes próximos(casal com filhos biológicos mas, porexemplo, com o apoio de avó que viveperto), uma família nuclear extensa (ca-sal com filhos biológicos e avó ou em-pregada que vive na mesma casa), fa-mília extensa ou alargada (várias gera-ções na mesma casa num esforçocomum e com patriarca), família bino-cular ou recombinada (quando um ouos dois pais se voltam a casar e podemter filhos – «os meus, os teus e os nos-sos») ou de uma família monoparental(pai ou mãe só com os filhos).

O segundo nível de interpretaçãocentra-se no ciclo de vida familiar. Emque fase do ciclo de vida familiar se en-contra a família (família de recém-casa-dos, família com adolescentes, etc.) e seestão a passar por alguma crise norma-tiva (saída do único filho de casa, etc.)ou acidental (morte prematura de umelemento da família nuclear, diagnósti-co de neoplasia, divórcio, etc.), ou setêm que cumprir mais do que uma faseem simultâneo.

O terceiro nível avalia a eventual exis-tência de padrões de repetição nas diferentes gerações da família. Padrõesde funcionamento como no caso depacientes com alcoolismo, com con-sumo de drogas ilícitas ou de tabaco,com comportamentos violentos ou sui-cidários ou padrões de relacionamentoquando se repetem alianças ou trian-gulações em duas ou três gerações, ouainda repetição de padrões estruturais

quando nas famílias surgem casos dedivórcio ou de casamentos múlti-plos. Por fim, é possível observar a re-petição de padrões de morbilidade,como a doença cardiovascular nos ho-mens, ou enxaquecas nas mulheres dafamília.

Por fim, o quarto nível de interpreta-ção que é o mais difícil de realizar. Pre-tende avaliar até que ponto a famíliatem um nível de funcionamento ade-quado às suas necessidades. Se o ba-lanço equilíbrio/desequilíbrio familiartem uma resultante favorável em que afamília cumpre os desafios de sobrevi-vência e crescimento.

• Combinar informação biomédica epsicossocial de determinada família;

• Compreender o indivíduo no contex-to da família e o impacto da famíliano indivíduo;

• Localizar o problema de saúde apre-sentando-o no seu contexto histórico;

• Clarificar padrões transgeracionaisde doença, de comportamento e deuso dos serviços de saúde;

• Permite ao clínico e ao paciente olhare explorar os mitos familiares e mu-dar os seus guiões;

• Permite o aconselhamento nos con-flitos conjugais e de pais/filhos;

• Tem não só certo valor diagnósticocomo terapêutico.

O genograma pode ser usado em con-junto com o círculo familiar ao estudar-mos uma família.

Susan Trower, a autora do círculofamiliar, defende que quando usadosem conjunto os dois instrumentos per-mitem que o médico avalie o sistema fa-miliar de um paciente.15 A autora pro-põe que numa entrevista de avaliação

O QUE PERMITE O GENOGRAMA

GENOGRAMA E CÍRCULO FAMILIAR

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QUADRO IV

SÍIMBOLOS GENOGRAMA

Morte e ano1969

2.

ouCasamento e ano1960

3.

Filho adoptado5.Separação e ano1961

4.

Divórcio e ano1962

6.

Filha a viver com a mãe8.Juntos7.

1960 196510.Casamentosmúltiplos

Relação conjugal conflituosa11.

Conflito conjugale amante

12.

Agregado familiar(vivendo na mesma casa)

14.

Mulher Homem1.

1ºfilho

2ºfilho

3ºfilho

4ºfilho

5ºfilho

6ºfilhoAP AE

9.

AbortoProvocado

(AP)

AbortoEspontâneo

(AE)

GémeosDizigóticos

GémeosMonozigóticos

13. Relação Conflituosa

Relação Pobre

Relação Escassa

Relação Boa

Relação Excelente

Relação Dominante

Adaptado de Rakel RE: Principles of Family Medicine. Philadelphia. W. B. Saunders C.O. 1979

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familiar se comece pelo círculo e só de-pois se realize o genograma. Enquantoque o primeiro permite avaliar o «aquie agora» percepcionado pelo paciente, osegundo dá-nos informação ao longodas gerações (Quadro V).

O genograma existe disponível na ver-são de «auto-genograma».16 Este forma-to permite que o médico, ou outro ele-mento da equipa, proponha ao pacien-te que colija informação sobre a sua fa-mília e assim seja possível construiruma «história clínica familiar» a comple-tar pelo médico durante uma próximaconsulta, discutindo-o com ele.

Também o aluno de Medicina ou o in-terno de especialidade de Medicina Ge-ral e Familiar, no âmbito dos seus pro-gramas de formação, pode trabalhar ogenograma da sua própria família. Maisimportante que a correcção da repre-sentação é o valor interpretativo que lhe

é atribuído e o seu contributo para aaquisição de «um pensamento e umaprática sistémica».17

O genograma também é usado em te-rapia familiar e terapia de casal. É degrande utilidade (re)conhecer, de umaforma rápida, os elementos de uma fa-mília, em particular a constituição dafamília de origem. Assume-se que, nu-ma família, o passado explica muito dopresente. Magnuson e Shaw18 fizeramuma detalhada revisão das várias apli-cações do genograma em terapia fami-liar – nas famílias com doentes alcoóli-cos, com problemas sexuais, com lutospatológicos ou nas famílias recombina-das complexas, ainda na formação e nasupervisão.

A informatização crescente da práti-ca médica fez com que surgissem soft-wares de desenho de genograma que fa-cilitam a realização, armazenamentodos dados e apresentação de casos clí-nicos e apoio à formação e treino gra-duado e pós-graduado em Medicina Ge-ral e Familiar.19,20

QUADRO V

DIFERENÇAS ENTRE O CÍRCULO FAMILIAR E O GENOGRAMA*

CÍRCULO FAMILIAR GENOGRAMA• Realizado pelo paciente • Realizado pelo médico• Demora minutos a realizar • Demora anos a completar• É datado • É progressivo• Mais confidencial • Mais despersonalizado• Mais subjectivo e opinativo • Mais objectivo e factual• Informação mais mutável • Informação mais estável• Foca «o aqui e o agora» • Foca «o presente e o passado»• Mais emocional que cognitivo • Mais cognitivo que emocional • É projectivo e introspectivo • É vertical e horizontal• Não julga o paciente • É um método diagnóstico• Melhor na dinâmica, pior na estrutura • Melhor na estrutura, pior na dinâmica• Dá resposta mais às necessidades do paciente • Dá resposta mais às necessidades do médico• Centrado na opinião do paciente sobre • Centrado nos conhecimentos do médico sobre a estrutura,

a sua família e rede social história clínica e relações da família • Difícil de valorizar por observação exterior • Valorizável por observador exterior

*Adaptado de Thrower SM. Family systems tools for assessing families. In: Sloane PD, Slatt LM, Baker RM (eds). Essentials of family Medicine.Baltimore, Maryland:Williams e Wilkins, 3-13, 1988.

NOVOS DESENVOLVIMENTOS DO GENOGRAMA

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1. Campbell TL. Family Systems Medici-ne. In: Saultz JW, editor. Textbook of FamilyMedicine. New York: McGraw-Hill; 2000. p.739-50.

2. Saultz JW. The Contextual Care. In:Saultz JW, editor. Textbook of Family Medi-cine. New York: McGraw-Hill; 2000. p. 135--59.

3. Bowen M. Key to the use of the geno-gram. In: Carter EA, McGoldrick M, editors.The family life cycle: a framework for familytherapy. New York: Gardner Press; 1980. p.xxiii.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS