Generosidade e Juizo Moral

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Generosidade e Juizo Moral

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    A Importncia da Generosidade no Incio daGnese da Moralidade na Criana

    The Importance of Generosity at the Begining of Moral Development in Childhood

    Yves de La Taille*Universidade de So Paulo

    ResumoNo presente artigo, apresentamos uma anlise do papel da generosidade no universo moral da criana.Comeamos por definir a generosidade enquanto virtude moral, comparando-a com a justia. Em seguida,fazemos uma reviso da literatura psicolgica que nos traz dados sobre elementos relacionados a ela (tica docuidado, atitudes pr-sociais e simpatia) e apresentamos a hiptese segundo a qual a generosidade melhorassimilada do que a justia por parte de crianas de 6 anos. Para testar esta hiptese, apresentamos osresultados de 2 pesquisas com crianas de 6 e 9 anos, nas quais pedimo-lhes que atribuem sentimentos apersonagens no justas e no generosas. Coerentemente com resultados de estudos anteriores, a maioria dascrianas de 6 anos atribui sentimentos positivos personagem no justa. Em compensao, elas atribuemsentimentos negativos s personagens no generosas. Estes dados so discutidos para defender a hiptesesegundo a qual a generosidade, por ser menos dependente de regras e imposies adultas, tem razes maisprofundas do que a justia na conscincia moral infantil.Palavras-chave: Moral; generosidade; justia; desenvolvimento.

    AbstractIn the present research, we analyse the role of generosity in the moral universe of childhood. We begin bydefining generosity as a moral virtue, comparing it with justice. Then, we present a literature review ofgenerosity-related psychological elements (ethics of care, pro-social attitudes, sympathy) and establish thehypothesis that this virtue is better understood than justice by subjects who are six and nine years of age. Totest this hypothesis, we present the results of two empirical studies with 6 and 9 year old children, in which weasked that they attribute feelings to people acting unjustly and ungenerously. While we confirm previousstudies showing that six year olds have the tendency to attribute positive feelings to unjust people, the resultsshow that negative feelings are attributed to ungenerous people. The discussion of this data defends thehypothesis according to which generosity, being less dependent ofadult rules and impositions, has deeper roots than justice in the childs moral conscience.Keywords: Moral; generosity; justice; development..

    Colaboradoras: Eliana Cristina Bulgarelli, Fernanda Coppeli VilasBoas de Almeida, Helena Amstalden Imanischi e Prislaine Krodidos Santos. Financiamento: Fapesp e Cnpq.* Endereo: IP-USP, Av. Prof.Mello Moraes,721,05508900,SoPaulo,SP. [email protected]

    O presente artigo apresenta reflexes e duas pesquisassobre o papel e importncia da virtude generosidade nodesenvolvimento moral, notadamente na fase do despertardo senso moral (Tugendhat, 1998), ou seja, no incio dagnese da moralidade na criana. Comearemos por definiro que generosidade, comparando-a a esta outra virtudeessencial moral que a justia, objeto da grande maioriadas pesquisas. Em seguida, retomando algumas teorias dePsicologia Moral, analisaremos a possvel presena dagenerosidade no universo moral das crianas pequenas,fazendo a hiptese de que no somente esta presena realcomo tem razes mais profundas, na conscincia infantil, doque a justia. Para dar verossimilhana a esta hiptese ejustificar o mtodo de pesquisa empregado, abordaremos o

    tema dos sentimentos morais, notadamente no que tange spesquisas sobre o feliz vitimizador (happy victimiser).Procuraremos mostrar que, se nossa hiptese for correta, ascrianas que atribuem sentimentos positivos a algum queinfringe uma regra de justia no fazem mesma atribuioquando se trata de uma ao no generosa. Aps estasconsideraes de ordem terica, apresentaremos aspesquisas e analisaremos os dados encontrados.

    A GenerosidadeO Dicionrio Houaiss assim define generosidade: virtude

    daquele que se dispe a sacrificar prprios interesses embenefcio de outrem. Outros dicionrios (Aurlio, Lexis)do, grosso modo, a mesma de definio e colocam comosinnimas outras virtudes, que se encontram em diversosfilsofos: magnanimidade (Aristteles, 1965), caridade(teologia crist), benevolncia (Spaemann, 1997), entreoutros.

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    Trs aspectos da generosidade devem ser sublinhados,pois, como veremos, singularizam-na em relao justia. Oprimeiro o altrusmo: no ato generoso, outrem que obeneficirio da ao. O segundo: na generosidade h umsacrifcio, ou seja, um dom de si, para retomar a expressode Comte-Sponville (1995). O terceiro aspecto: nagenerosidade, d-se a outrem, no o que lhe cabe de direito,mas sim o que corresponde a uma necessidade singular.

    Isto posto, no parece levantar dvidas a afirmao deque a generosidade uma virtude pertencente ao campomoral. Com efeito, vmo-la tratada e admirada por filsofosda tica como Aristteles (s.d./1965), Adam Smith (1723/1999), Kant (1785/1994), Schopenhauer (1840/1995), e,mais perto de ns, Spaemann (1997), Tugendhat (1998),MacIntyre, (1997), Savater, (2000), Flanagan (1996). Todoo problema filosfico reside em situ-la, no campo da moral,e todo problema psicolgico consiste em saber sedesempenha algum papel, e qual, na formao do sujeitomoral.

    Como nosso objetivo no o de escrever um texto deaxiologia, limitamo-nos em sublinhar o fato de que, nosdebates filosficos, as reflexes sobre a generosidade quasesempre visam situ-la em relao justia. Para alguns, ajustia ocupa o topo da hierarquia das virtudes morais. ocaso de Aristteles, que a ela deu destaque por ser virtudecompleta porque sempre boa. Tambm o caso de AdamSmith, que dedicou todo um captulo de seu clebre textodedicado anlise dos sentimentos morais a tal comparao(ele emprega o conceito de benevolncia). Ele observavaque a falta da generosidade no sancionada por nenhumcastigo enquanto o ato injusto recebe tal sano. Segundo ele,isto se deve ao fato de que, enquanto a ausncia de generosidadeno acarreta, por ela mesma, nenhum mal positivo, o ato injustotraz um mal pessoa injustiada. Em poucas palavras,enquanto a generosidade esperada, a justia exigida. Noque diz respeito importncia humana e social de ambas asvirtudes, o filsofo pondera que a benevolncia menos essencial existncia da sociedade do que a justia. A sociedade pode manter-se sem benevolncia, embora num estado no confortvel; mas apredominncia da injustia a destruir absolutamente (1999,p.141). Para outros autores, ou a generosidade virtudesuperior (Schopenhauer, 1840/1995) ou, pelo menos, toimportante quanto a justia (Flanagan, 1996; Gilligan, 1982;MacIntyre, 1997; Ricoeur, 1990). Como veremos a seguir,reencontramos a mesma discusso no campo da psicologiamoral, embora o conceito de generosidade seja nele poucoempregado (fala-se em cuidado, simpatia ou atitudes pr-sociais). Mas antes, vamos detalhar as trs diferenas bsicasque diferenciam generosidade de justia.

    Em primeiro lugar, dissemos que a generosidade intrinsecamente altrusta. claro que, sendo a justia umatraduo de uma preocupao com o outro, ela tambm podefigurar entre as virtudes altrustas. Porm, este fato nodeve nos impedir de notar dois aspectos essenciais queseparam justia da generosidade. O primeiro o fato de ajustia poder ser objeto legtimo de reivindicao pessoal,no sentido que uma pessoa exigir ser tratada de forma justa.

    evidente que, neste caso, no se trata de atitude altrusta,mas este fato em nada amputa sua legitimidade moral. Ora,o mesmo no acontece com a generosidade, pois ningumpode, com legitimidade, exigir ser tratado de forma generosa,somente pode desej-lo. Em suma, a generosidade sempregenuinamente altrusta, a justia no. O segundo aspecto ofato de a justia sempre visar o bem comum,portanto, tambmo da pessoa que age de forma justa. Por exemplo, se umapessoa de cor branca denuncia a discriminao racial contraos negros, ela est, obviamente, preocupando-se com outrem-pois ela no sofre tal discriminao - mas, ao mesmo tempo,est exigindo um regra justa que tambm a beneficia - nembrancos, nem negros devem ser discriminados. Em resumo,o auto-interesse, ao lado do interesse pelo outro, est semprepresente na justia, mas no no caso da generosidade, poisnela apenas o interesse pelo outro est em jogo.

    Em segundo lugar, afirmamos que a generosidadepressupe um sacrifcio, ou um dom de si. Ser justo noimplica necessariamente em privao. Dizemos nonecessariamente por h casos em que as aes inspiradaspela justia implicam, de fato, abnegao. o caso de algumasformas de solidariedade nas quais uma pessoa luta para quea justia social se torne realidade para grupos aos quais nopertence. Neste casos, h, de fato, um dom de si (do tempogasto na militncia at, dependendo do regime polticovigente, o risco de perder a vida). Porm, quando uma pessoaage de forma justa, portanto respeita um direito alheio, noh real dom de si, mas sim o estrito cumprimento do dever.

    A dimenso do direito, decorrente do conceito de justiabaseado na igualdade e na eqidade, corresponde terceiradiferena entre ela e a generosidade. No ato generoso d-sea outrem o que corresponde a uma necessidade singular, eno a um direito. Em outras palavras, enquanto a justiaconsidera o sujeito de direito, portanto, todos os sereshumanos, a generosidade contempla o sujeito singular,portanto, outrem na sua concretude (ver Ricoeur, 1990).

    Isto posto, vamos agora ver o que a Psicologia Moral tema nos dizer sobre generosidade.

    Generosidade e Psicologia MoralO mnimo que se pode afirmar que a virtude

    generosidade no tem inspirado pesquisas psicolgicas. pelo menos o que nossa reviso bibliogrfica mostrou. NoBrasil, Dias (2002), Tognetta (2003) e Lima (2003)realizaram trabalhos nos quais explicitam a referida virtude.No exterior, no encontramos trabalhos que coloquem agenerosidade como foco das investigaes. Em compensao,h reflexes e pesquisas que, embora no incidamnominalmente sobre esta virtude, no lhe so estranhas. ocaso dos trabalhos sobre tica do cuidado, sobre condutaspr-sociais e sobre simpatia (ou empatia).

    sabido que Carol Gilligan (1982) causou um certo abalo,na Psicologia Moral, contestando a abordagem tericainaugurada por Piaget (1932/1992), seguida e ampliadapor Kohlberg (1981). Duas so suas teses centrais. Aprimeira: haveria diferenas de gnero nas formas de se

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    conceber a vida moral. A segunda: haveria no apenas atica da justia, mas tambm outra, a tica do cuidado, estamais desenvolvida pelas mulheres. No contexto do presentetrabalho, apenas a segunda tese nos interessa, pois, emborano fale em generosidade, a tica do cuidado a contempla.Com efeito, quando Gilligan afirma que tal tica correspondea uma voz que fala de conexo, de no ferir, de cuidar, decorresponder (1988, p.8), verifica-se que ela pensa em aesque levam em conta as necessidades alheias. Quanto aosdireitos alheios, sua definio de tica da justia a colocacomo uma voz fala de igualdade, reciprocidade, justia e direitos(1988, p.8). Encontramos, portanto, nos trabalhos deGilligan um abordagem que, se no se restringe generosidade, pelo menos abre um campo de reflexes noqual ela tem lugar. Dizemos que ela no se restringe generosidade porque a tica do cuidado tambm remete adimenses morais outras, como a riqueza das relaesinterpessoais, e por conseguinte, poderia abarcar outrasvirtudes, como a fidelidade e a gratido (ver La Taille,2002c). Todavia, devemos ressaltar o fato de a abordagemde Gilligan permitir pensar a generosidade enquantovirtude moral relevante, relevncia esta afirmada nopresente artigo. Todavia, como nossa inteno no a de,como referido acima, colocar a generosidade em hierarquiaigual da justia, mas sim avaliar sua importncia na gneseda moralidade, as hipteses genticas de Gilligan pouconos ajudam nesta empreitada, pois esto intimamenterelacionadas a diferenas de gnero na qualidade da relaofilho(a)/me.

    Outra abordagem terica que abre espao para reflexese pesquisas sobre generosidade, embora tambm no serefira a ela, aquela que responde pelo nome de estudo deatitudes pr-sociais (ver Eisenberg-Berg, 1979, Eisenberg& Lennon, 1983, Kahn, 1992). Enquanto Gilligan procuroudeslocar o eixo das pesquisas da justia para o cuidado, talabordagem, que tem na figura de Eisenberg sua principalautora, traz a oposio entre deveres negativos e deverespositivos. Esta oposio tambm configura uma soluo decontinuidade em relao aos trabalhos de Piaget e Kohlberg.Conflitos interpessoais e transgresses a regras, eis os temasque os dois autores incessantemente trazem nas entrevistasclnicas que realizaram com seus sujeitos. Ajudar a quemprecisa, eis o tema central dos estudos sobre condutaschamadas de pr-sociais. Embora no restritas generosidade, tais atitudes compartilham pelos menosquatro caractersticas com esta virtude.

    A primeira diz respeito s regras. Sabe-se que Piaget(1932/1992) definiu a moral com um conjunto de regras,mas tal definio est longe de fazer unanimidade entre osfilsofos da tica, como o demonstra a leitura de autorescomo Flanagan (1996), Tugendhat (1998), MacIntyre(1997) e Ricoeur (1990), entre outros. Este debate gira emtorno da oposio entre deveres negativos e positivos. Paraos primeiros, h regras, mas nem sempre para os segundos.Ora, a generosidade, assim como outras atitudes pr-sociais,consiste, evidentemente, em um dever positivo.

    Porm, pode-se dizer que a generosidade consiste numdever? Esta pergunta corresponde segunda caractersticaque queremos destacar. Para respond-la preciso fazer adiferena entre o sentimento pessoal de obrigatoriedade e aexigibilidade social. No caso dos deveres negativos (comono matar, no mentir, no roubar), a sociedade exige deseus membros sua obedincia, e pune a desobedincia. Talno costuma acontecer para os deveres positivos: eles soadmirados, esperados, desejados, mas no exigidos. Vimosacima que Smith aponta para esta caracterstica de noexigibilidade da generosidade. O sentimento pessoal dodever moral no coincide com a exigibilidade exterior, poisse traduz por um querer fazer, por uma vontade boa, paraempregar um termo kantiano. Prosseguindo com este autor, moral aquilo que se faz por dever e no apenas conformeo dever. Ora, assim definido, o sentimento pessoal de deverpode tanto incidir sobre condutas passveis de exignciasocial quanto para aquelas no regidas por leis. Assim, agenerosidade, embora no exigida socialmente, pode mesmoassim corresponder, para determinadas pessoas, a um devermoral.

    A terceira caracterstica das atitudes pr-sociais e, logo,da generosidade, sua tnue relao com a autoridade.Trata-se agora, no de uma anlise axiolgica, mas simpsicolgica, atinente educao moral. Eisenberg sugereque, nas prescries morais que os adultos fazem s crianas,as atitudes pr-sociais ficam em segundo plano, atrs dasregras que traduzem os deveres negativos. No conhecemospesquisa que ateste este fato, mas o bom senso parececomprov-lo. Sendo as atitudes pr-sociais, entre elas agenerosidade, menos relacionadas com as ordens advindasde autoridade, elas devem ser mais espontneas nascrianas menores e, acrescentaramos, mais autnomas. Esta a tese de Eisenberg (1993), que, como veremos abaixo,nos ajuda a formular a hiptese de que a generosidadecumpre papel no desenvolvimento moral. Mas de onde viriaa precocidade do valor atribudo s condutas pr-sociais esua relativa independncia em relao autoridade? Algunsautores pensam encontrar a resposta na capacidade desimpatia (ou empatia).

    Alm dos trabalhos com a tica do cuidado e com as condutaspr-sociais, aqueles realizados sobre a simpatia (ou empatia)no so estranhos s reflexes sobre generosidade.Eisenberg diferencia empatia de simpatia, definindo aprimeira como estado emocional proveniente da apreenso do estadoemocional de outra pessoa, e que congruente com este (Eisenberg,1987, p.91), e a segunda como resposta emocional provenientedo estado emocional de outra pessoa, que no idntico a tal estado,mas consiste em sentimentos de pena ou interesse pelo bem-estar deoutrem (pp.91-92). Esta diferenciao entre os dois conceitosno faz unanimidade. Adam Smith limita-se a empregar oconceito de simpatia definido como afinidade com toda paixo(1723/1999, p.27), definio esta mais prxima daqueladada por Eisenberg empatia. Tal proximidade tambmencontra-se no Dicionrio Houais, no qual simpatia definida como faculdade de compenetrar-se das idias ou

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    sentimentos de outrem e tambm nos trabalhos de Hoffman(1978).

    A despeito da preferncia por um conceito ou outro, etambm a despeito das nuanas que separam definies, oessencial sublinhar que simpatia e empatia designam acapacidade humana de perceber os estados emotivos deoutrem e se afetar emocionalmente por eles. Dito de outraforma, ambos os conceitos dizem respeito a um operadoremocional, passvel de motivar uma pessoa a preocupar-secom outrem. Da sua ntima relao com a moral,notadamente com o altrusmo. Adam Smith, por exemplo,conduz sua reflexo moral a partir do conceito de simpatia,e Schopenhaeur elege a compaixo (simpatia no caso da doralheia) como fonte de todas as aes justas e caridosas. Narea da Psicologia Moral, encontramos a relao entreempatia e condutas pr-sociais- embora esta relao noesteja, segundo a reviso feita por Eisenberg (1987),claramente estabelecida em razo da grande variao demtodos por intermdio dos quais se mede a empatia. Doponto de vista do desenvolvimento, Hoffman afirma que aempatia ocorre muito antes que os controles morais da criana estejamfirmemente estabelecidos (Hoffman, 1978, p.123). Note-se quePiaget (1954) tambm recorreu ao conceito de simpatia paraanalisar a dimenso afetiva do desenvolvimento moral,definindo-a como sentimento fonte de atribuio de valorpositivo a outrem em razo de suas aes (seu contrrio aantipatia). A simpatia participaria, portanto, do jogo dasvalorizaes mtuas que dirige a criana ao respeito mtuo.

    No que tange relao entre generosidade e simpatia (ouempatia), ela clara, uma vez que o exerccio da referidavirtude pressupe perceber-se a necessidade singular deuma determinada pessoa (ou grupo de pessoas), e contempl-la por intermdio de um dom de si. Uma pessoa por venturaincapaz de simpatia talvez nem percebesse a necessidadealheia, certamente no se comoveria com ela, e, porconseguinte, no agiria de forma generosa.

    Hipteses da PesquisaAps termos verificado a relevncia axiolgica da

    generosidade (item 1) e a existncia de pesquisas eabordagens tericas em Psicologia Moral que a contemplem,nem que seja indiretamente (item 2), devemos agora aapresentar as idias mestras que do base nossas hiptesese nossa pesquisa. Vamos faz-lo em quatro momentossucessivos e complementares: 1) no incio da gnese da moral,nem tudo relao com autoridade, hedonismo instrumentale medo do castigo; 2) a generosidade virtude presente noincio da gnese da moralidade; 3) ela melhor assimiladae, portanto, integrada conscincia moral do que a justia; e4) tal integrao deve traduzir-se por uma respostaemocional superior quela relacionada justia. Vamosexplicitar as quatro afirmaes:

    a) No seu texto fundador da Psicologia Moral, Piaget(1932/1992) consagrou a idia segundo a qual h duasmorais, uma da coao, outra da cooperao, sendo a ltimasuperao gentica da primeira. A moral da coao, tambmchamada de moral heternoma (ou heteronmica), traduz-

    se essencialmente pelo respeito unilateral pelas ordens defiguras de autoridade. Trata-se, portanto, de uma moral daobedincia, obedincia esta motivada pela fuso dossentimentos de amor e medo experimentados pela crianapequena em relao a seus pais e demais figuras adultasafetivamente significativas de seu entorno. Verifica-se que,nesta concepo terica, h pouco espao para pensar queexistam, no universo moral da criana, regras e virtudesoutras que aquelas coercitivamente impostas pelos adultos.Veremos logo abaixo que Piaget, em alguns trechos de seulivro Le Jugement Moral Chez lEnfant (1932/1992), sugereque a vida moral da criana mais rica e mais complexa,mas o fato que tal dependncia da autoridade configura oeixo de sua interpretao da conscincia moral infantil. Istose deve ao fato de Piaget, em toda sua obra, sempre sacrificaro estudo da complexidade do sujeito psicolgico identificao das estruturas universais do sujeito epistmico,ou do sujeito tico. Com efeito, no caso do desenvolvimentodo juzo moral, no importava tanto a Piaget descrever ariqueza do mundo moral infantil, mas sim identificar o fiocondutor do desenvolvimento subseqente, a saber, o aprogressiva superao da heteronomia pela autonomia.

    Kohlberg, como se sabe, inspirou-se em Piaget, ao buscaridentificar no progressivo desenvolvimento dareversibilidade o fio condutor do desenvolvimento moral.Ele assim define o primeiro estgio da gnese damoralidade, o nvel pr-convencional:

    Neste nvel, a criana responde a regra culturais e rtulos debom e ruim, de certo e errado, mas interpreta tais rtulos emtermos conseqncia, sejam fsicas ou hedonsticas da ao(punio, recompensa, troca de favores), ou em termos dafora fsica de quem enuncia as regras e rtulos. (Kohlberg,1981, pp.17-19)

    Kohlberg guarda de Piaget a referncia autoridade(embora ressaltando mais do que ele o medo da punio-neste sentido ficando mais prximo de Freud (1991) para adescrio da primeira etapa do desenvolvimento moral), mastambm coloca a dimenso do hedonismo, pouco enfatizadapelo psiclogo suo.

    Verifica-se que, na interpretao destes dois autores,principais figuras das teorias de desenvolvimento moral,para a criana menor, seria moral aquilo que corresponde obedincia, seja ela motivada pela autoridade ou pelacorrelao de foras. Todavia, tal interpretao tem sidocontestada. Eis o que pondera Tugendhat:

    O respeito moral somente pode desenvolver-se em todas assuas sutilezas, no seio de relaes estreitas, e ele essencial aestas relaes. Portanto, podemos tomar como poucoconvincente a tese defendida por Piaget no Le Jugement Moralchez lEnfant, segundo a qual as crianas somente desenvolvemum respeito unilateral em relao a seus pais respeito quePiaget concebe como uma mistura de medo e amor, o queimplica uma atitude pr-moral -, e que o respeito mtuo comnossos pares apenas desenvolve-se numa idade ulterior. Seisto talvez for verdade para numerosos mandamentos quepermaneceram incompreendidos, tal tese parece duvidosa no

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    que se refere a fenmenos morais to fundamentais como osenso de justia, o respeito pelas promessas e a espera de queos pais respeitem, eles mesmos, as normas que impem.(Tugendhat, 1998, p.288)

    Com relao ao valor da teoria piagetiana, tal crtica podeser considera duplamente injusta. Em primeiro lugar: comocomentado acima, se Piaget destacou as relaes de coao eobedincia no cenrio das relaes sociais infantis, porquepretendia sublinhar o fato de que o eixo central dodesenvolvimento moral a passagem da heteronomia paraa autonomia. Em segundo lugar: como veremos mais abaixofalando de generosidade, Piaget no se furtou de comentarque a descentrao psicolgica responsvel pela construoda autonomia deve-se a fatores que, justamente, soestranhos as relaes de coao. Todavia, o que nos importadeixar claro aqui que autores, como Tugendhat, tmchamado a ateno sobre a riqueza da vida moral da crianamenor.

    No campo da Psicologia Moral, pesquisas mais recentestm mostrado que o ponto de vista de Tugendhat plausvel.Laupa e Turiel (1986) verificaram que crianas de pr-escolano pensam ser correto acatar ordens como roubar e ferir,mesmo elas vindo de figuras de autoridades, como os pais.Nem tudo, portanto, no universo moral infantil parece serobedincia a fontes exteriores. Haveria uma certaprecocidade gentica na capacidade de avaliao do justo edo injusto decorrente, no de uma misteriosa predisposiopara o bem, mas, por um lado, de uma capacidade precoce deabstrao de regras necessrias mnima harmonia dasrelaes interpessoais e, por outro, de uma sensibilidade,tambm precoce, ao bem estar alheio (Hoffman, 1978; LaTaille, 2002c). Para designar estas caractersticas infantis,insuspeitas se a virmos apenas como ser obediente, Turiel(1983, 1993) elaborou a hiptese de que as crianas cedoidentificam e diferenciam os Domnios Moral, Convencionale Pessoal, universalizando a legitimidade e aobrigatoriedade das regras pertencentes ao primeiro.

    Como acontece com todas as teorias e dados empricosoriundos das reflexes psicolgicas- e talvez mais ainda nocampo da Psicologia Moral- as teses de Turiel foram e soconstestadas. Elas podem ser contestadas tanto no mbitoda oposio entre as abordagens universalistas e relativistasquanto no campo emprico (ver Biaggio, 1999). A primeirahiptese que vamos assumir no presente artigo que ouniverso moral da criana pequena no se resume a uma moral daobedincia, nem predominncia de tendncias hedonistas.Concordamos, portanto, com Tugendhat e Turiel no que dizrespeito riqueza do referido universo. Porm,diferentemente deles, destacamos a generosidade comovirtude dominante, em fase de despertar do senso moral.

    b) Um possvel problema na conceituao do DomnioMoral, e, consequentemente, das pesquisas que visamavaliar seu destaque na moralidade infantil, sua definioessencialmente a partir da noo de direitos. Com efeito,para verificar se as crianas pequenas distinguem estedomnio, costuma-se lhes perguntar o que pensam de atos

    como ferir, bater, roubar, etc. Ora, vimos que agenerosidade diferencia-se pelo fato de ela no contemplardireitos, mas sim necessidades. Mas cabe a generosidade noDomnio Moral? No ser ela do Domnio Pessoal? Aresposta no evidente. Por um lado, por ser altrusta eimplicar o bem para outra pessoa, a generosidade cabeperfeitamente no Domnio Moral, como vimos acima. Mas,por outro, por ela no corresponder a uma exigncia social,como tambm j analisamos, ela tambm cabe no DomnioPessoal, pelo menos no que tange a uma caractersticaessencial deste: a liberdade de escolha atestada socialmente.Em estudos mais recentes, Nucci (2000) admitesobreposies dos trs Domnios, e sem dvida este o casodos Domnios Moral e Pessoal quando se trata dagenerosidade. Portanto, podemos legitimamente fazer ahiptese de que a generosidade uma virtude relevante do DomnioMoral das crianas menores. As anlises e dados levantados noitem 2 dotam esta hiptese de plausabilidade. Se houverduas ticas, uma da justia e outra do cuidado, e se apredominncia de uma sobre a outra depende da qualidadedas primeiras interaes criana/pais e criana/me(Gilligan, 1982), no se v porque a tica do cuidado (queremete em parte generosidade) no teria suas primeirasrazes na pequena infncia. Vimos tambm que Eisenbergafirma que as atitudes pr-sociais, que tambm remetem emparte generosidade, so mais precoces que aquelasbaseadas na justia, por serem menos dependentes demandamentos adultos e pouco balizveis por regras.Finalmente vimos que Hoffman considera a empatia,sentimento necessrio generosidade, precoce.

    c) Todavia, no fazemos apenas a hiptese de que agenerosidade est presente no universo moral infantil, mastambm de que ela melhor assimilada e, portanto, integrada conscincia moral do que a justia. Vejamos as razes que noslevam a considerar esta hiptese.

    Em primeiro lugar, devemos lembrar que a justia, queimplica equilbrio entre direitos e deveres, pressuperelaes de reciprocidade e o conceito de igualdade (tambmo de eqidade, num nvel superior). Ora, como poderiamcrianas pr-operatrias conceber por inteiro tal virtude, sejustamente lhes faltam as operaes mentais necessrias parapensar o mundo social pela reciprocidade e a igualdade. Asdescries do universo moral da pequena infncia feitas porPiaget e Kohlberg so coerentes com a leitura que fazem dodesenvolvimento cognitivo. Como ento interpretar os dadoscolhidos por Turiel (1993), admitindo que sejam de fatorepresentativos da fase do despertar do senso moral nacriana? A questo difcil e controversa. Pode-se levantara hiptese de que o reconhecimento da dor alheia leve ossujeitos a condenar os atos de agresso. Com efeito, osexemplos do Domnio Moral sempre tratam de formas deagresso, e a simpatia pela vtima pode bastar para levar condenao categrica de tais atos, sem que uma operaode reciprocidade seja necessria. Tratar-se-ia mais desimpatia do que de conceito de justia. A generosidade,quanto a ela, no pressupe nem igualdade nemreciprocidade, e como tambm pertence ao Domnio Moral,

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    faz sentido pensar que seja presente no universo moral dascrianas menores e que, inclusive, motive as crianas acondenar diversas formas de agresso.

    Em segundo lugar, lembremos que a simpatia correspondea uma capacidade emocional precoce, e como a generosidadetem ntima relao com ela, sua presena e fora precoces nodesenvolvimento moral no podem ser descartadas.

    Em terceiro e ltimo lugar, no seio da prpria teoriapiagetiana, a generosidade no esquecida enquantocomponente importante, no processo de descentrao queleva a colocar a justia no centro do universo moral. Eis oque escreveu Piaget: quando a criana habitua-se a agir doponto de vista dos prximos, e preocupa-se mais em corresponder aosanseios dos outros do que a eles obedecer, que ela chega a julgar emfuno das intenes (Piaget, 1932/1992, p.105). Sabe-se quea capacidade de julgar em funo das intenes um traocaracterstico da autonomia moral, assim como definida porPiaget, e, portanto, capacidade contempornea daprevalncia da justia sobre a obedincia. Na citao queacabamos de transcrever, fica clara a tese piagetiana segundoa qual um dos fatores que leva uma criana pequena adesenvolver-se moralmente sua capacidade e motivaoem corresponder s expectativas singulares das pessoas deseu entorno. Eis exatamente o que se faz nos atos generosos. possvel re-escrever a citao de Piaget da seguinte forma:os atos generosos das criana menores testemunham de suacapacidade e vontade de levar em conta o ponto de vistaalheio (descentrao) e, logo, abrem o caminho para asrelaes de reciprocidade sobre as quais repousam os ideaisde justia. Em resumo, pelo fato de a generosidade nopressupor reciprocidade e igualdade, pelo fato de estarrelacionada capacicade de simpatia, e pelo fato de ela serum elemento desencadeador de progressivas descentraes,tal virtude deve ocupar um lugar de destaque no universomoral da criana pr-operatria e ser melhor assimiladaque as demais, entre as quais a justia.

    Mas como aquilatar este suposto lugar da generosidadeno universo moral da pequena infncia? Nossa opo recaisobre os estudos dedicados aos sentimentos morais.

    d) So conhecidos os estudos sobre o tema batizado dehappy victimiser (ver Arsenio & Lover, 1996, para umareviso das pesquisas realizadas sobre este tema). Elesevidenciaram que as crianas pr-operatrias atribuemsentimentos positivos (Ex.: satisfao) a agressores, ou seja,queles que transgridem regras que probem causar algumdano a algum, atribuio esta que desaparece por volta dosnove anos de idade, sendo substituda por atribuio desentimentos negativos (Ex.: vergonha). Faz todo sentido aindagao de Loureno (1997): por que, se Turiel tiverrazo, as crianas menores no tm a moralidade emocional altura da sofisticao de seus juzos?. Acrescenta ele queos dados encontrados so mais coerentes com a teoria deKohlberg.

    Qual o significado psicolgico destes dados? Se eles foreminterpretados de um ponto de vista exclusivamentecognitivo- como, por exemplo, pensar que traduzem adificuldade de as crianas menores assimilarem o fato de

    que as aes humanas nem sempre so coerentes com ossentimentos - eles apresentam pouco interesse para aPsicologia Moral. Em compensao, se avaliarmos quetraduzem a articulao entre juzo moral e sentimentosmorais, eles so do maior interesse. E evidentemente estaa perspectiva de anlise daqueles que pesquisaram os relatosinfantis e adolescentes sobre este tipo de sentimento. Soincapazes as crianas menores de experimentar remorso,culpa, vergonha e outros sentimentos relacionados ao agirde forma errada? A rigor, nunca saberemos ao certo, poissempre dependemos de relatos verbais, que, eles mesmos,podem no ser fidedignos. Mas o fato que se encontramdiferenas genticas notveis quanto as estes relatos, sejameles referentes a sentimentos negativos vagos (como sentir-se mal, ver Arseni, 1996; Loureno, 1997; Nunner-Winkler& Sodian, 1988), ou a sentimentos precisamente nomeados,como a vergonha (La Taille, 2002a,2002b). A interpretaoque nos parece a mais adequada incide sobre o conceito deheteronomia.

    Piaget sublinhou freqentemente que, nas relaesassimtricas de autoridade (coao), as noes e regras soassimiladas superficialmente pelo plo dominado. Piaget(1954) empregou a expresso francesa de plaqu sur laconscience para falar do fenmeno: as noes e regras poucopenetram na conscincia e, portanto, no configuram novasestruturas, novas redes de significados. Em uma palavra,ficam isoladas. Em compensao, as relaes de reciprocidade(cooperao) promovem o enraizamento das noes (que setornam conceitos, na terminologia piagetiana) e das regras(que passam a ser entendidas por intermdio de seu esprito)na conscincia, fato que no somente permite uma ricaassimilao das mesmas, como sua articulao em redes designificado mais amplas. Isto explicaria porque a crianamenor, ainda submetida a relaes coercitivas, no articulariaa dimenso judicativa das transgresses e a dimenso afetiva.J em fase de autonomia, tal articulao aconteceria.

    Voltemos ento ao argumento de Loureno, que vcontradio entre as afirmaes de Turiel a respeito dariqueza do universo moral infantil e as atribuies desentimentos positivos a agressores. Como pode uma criana,do ponto de vista judicativo, pregar a legitimidade universalde determinadas regras, e ainda negar o fato de que suatransgresso pode causar sentimentos negativos? Ainterpretao que damos deste fato a que segue. Colocamosacima que a condenao precoce de atos que ferem direitosalheios, portanto, de atos injustos, pode ser explicada pelosentimento de simpatia. Porm, como as regras que probemtais atos tambm provm de figuras de autoridade, temosque as primeiras noes de justia tm duas fontes diferentes.Temos tambm que, quando os sujeitos devem avaliar ossentimentos de um transgressor, pensam, por um lado, nosentimento negativo da vtima (todos os sujeitos inferem atristeza da vtima, ver Arsenio, 1996) e por outro, nadesobedincia a uma autoridade. Ora, tudo leva a crer que,neste caso, domina a dimenso heternoma, com asconseqncias j apontadas. Mas imaginemos que aagresso no tenha sido fruto de uma transgresso

  • La Taille, Y. (2006). A Importncia da Generosidade no Incio da Gnese da Moralidade na Criana.

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    voluntria, mas sim de uma ao no intencional.Imaginemos, portanto, que seja retirada a dimensoheternoma da obedincia e perguntemo-nos se as crianasmenores ainda vo atribuir sentimentos positivos aoresponsvel por danos a outrem. Nunner-Winkler, e Sodian(1988) debruaram-se sobre esta questo e encontraram que,neste caso, as crianas menores atribuem sentimentosnegativos ao agressor involuntrio. Logo, parece queobedecer ou desobedecer permanece critrio central nouniverso das crianas menores, fato que coerente com aabordagem terica de Piaget e Kohlberg.

    Quanto generosidade, sendo ela relacionada empatia,pouco regrada e pouco imposta por autoridade, e, comoescreve Piaget, desencadeadora espontnea de descentraesque levam reciprocidade, faz todo sentido fazer a hiptesede que as crianas menores atribuiro sentimentos negativos apessoas que agem de maneira no generosa. As duas pesquisasque agora passamos a descrever procuram testar estahiptese. Se confirmada, as anlises que fizemos dagenerosidade (os sub-itens a, b, e c) sairo fortalecidas.

    Mtodo

    Realizamos duas pesquisas (Estudo 1 e Estudo 2). Naprimeira, verificamos se crianas de 6 e 9 anos atribuemsentimentos positivos ou negativos a uma personagem que nofoi generosa, fazendo a hiptese de que as crianas menoresno atribuiriam sentimento positivo a tal personagem. Nasegunda, submetemos outros sujeitos das mesmas faixasetrias a duas situaes, uma envolvendo injustia, outraconduta no generosa (idntica do Estudo 1), para verificarmosse h diferenas nas atribuies de sentimentosexperimentados pelo agressor e pela personagem nogenerosa. Para este Estudo, fizemos a hiptese de que ossujeitos de 6 anos atribuiriam sentimento positivo ao injusto,mas no personagem no generosa, enquanto os sujeitosde 9 anos no atribuiriam sentimento positivo em ambos oscasos. Vamos agora descrever os dois Estudos e apresentaros resultados obtidos.

    Estudo 1Nossa amostra foi composta de 30 participantes de 6 anos

    e 32 de 9 anos, alunos de uma escola particular da cidade deSo Paulo (Escola A). A eles foi contada a seguinte histria(Histria 1 - no generosidade):

    Histria 1: Paulo e Mrcio so vizinhos e costumam brincarjuntos Um dia, Paulo ficou doente e estava muito triste porque nopoderia sair de casa. Ento, Paulo pediu a seu amigo Mrcio quefosse at sua casa para que pudessem brincar. Mrcio no estavacom vontade e no foi.

    Aps nos certificarmos da compreenso da histria, fizemosa nossos sujeitos as seguintes perguntas:

    1) Mrcio agiu certo?2) Como Mrcio se sentiu?

    Estudo 2Nossa amostra foi composta de 32 participantes de 6 anos

    e 36 de 9 anos, alunos de uma outra escola particular dacidade de So Paulo (Escola B). Com eles foi, num primeiromomento, replicado o Estudo 1. Em seguida, ouviram aHistria 2 (no justia).

    Histria 2: Um dia, a professora de Alice distribuiu massinha demodelar para os alunos e pediu que fizessem algo. Alice e maisduas amigas resolveram fazer uma casinha. O combinado eradeixar a casinha na escola, pois era das trs. Quando ficou pronta,Alice achou muito bonita e acabou levando-a para sua casa.

    Aps nos certificarmos da compreenso da histria, fizemosa nossos sujeitos as seguintes perguntas:

    1) Alice agiu certo?2) Como Alice se sentiu?

    Resultados

    Estudo 1O resultados obtidos para as perguntas encontram-se na

    Tabela 1. Verifica-se que no se encontra gnese naatribuio de sentimento negativos (c2=4,43; p=ns, gl=1).

    Estudo 2A Tabela 1 apresenta tambm as repostas dadas Histria

    1 (no generosidade). Verifica-se que no se encontra gnesena atribuio de sentimento negativos (c2=0,041; p=ns,gl=1). Ainda na Tabela 1, encontram-se as respostas dadaspara a Histria 2 (no justia). A atribuio de sentimentopositivo decai de 71,87% aos 6 anos para 11,11% aos 9 anos,diferena estatisticamente significativa (c2=16,74; p

  • Psicologia: Reflexo & Crtica, 19(1), 09-17.

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    sentimento negativo, e no Estudo 2, o nmero departicipantes que faz tal atribuio ainda maior (84,37%dos de 6 anos e 86,11% dos de 9 anos), fato que tambm noconfigura gnese.

    Em suma, podemos afirmar que nossos dados mostramque: 1) crianas de 6 anos, em sua grande maioria, no atribuemsentimentos positivos a quem falta com a generosidade, mas o fazemquando se trata de ato injusto, 2) as crianas de 6 anosatribuem sentimentos negativos aos no generosos tanto quantocrianas de 9 anos. Portanto a presente pesquisa leva a crerque, diferentemente da justia, a generosidade ocupa lugardiferenciado no universo moral das crianas menores. luzdestes dados, e para finalizamos o presente texto, vamosretomar duas hipteses de psicologia gentica apresentadasno item 3.

    A primeira delas era: a generosidade virtude presente noincio da gnese da moralidade. Para elabor-la, comeamos pordefender, atravs de reviso de literatura psicolgica, quenem tudo relao com autoridade, hedonismo instrumentale medo do castigo, no incio da vida moral infantil, e, emseguida, destacamos a importncia da generosidade. Nossosdados do verossimilhana nossa hiptese. Por um lado, aquase totalidade das crianas de 6 anos condena a atitudeno generosa. Por outro, j concebe o desconfortoexperimentado pela personagem no generosa. Logo, no

    vemos como pensar que a referida virtude no seja um temado universo moral infantil.

    Nossa segunda hiptese vai mais longe: a generosidade nosomente virtude presente no incio da gnese da moralidade, como melhor assimilada e, portanto, integrada conscincia moral, do quea justia nesta mesma fase de desenvolvimento. Aqui, so os dadossobre atribuio de sentimentos que parecem decisivos. Comefeito, como explicar o fato de crianas da mesma faixaetria, 6 anos, pensarem que quem fere um direito alheiosente-se bem e que quem falta com a generosidade sente-se mal? Em ambos os casos, os protagonistas agiram porinteresse egosta. No portanto este o diferencial entre asduas situaes. Em ambos os casos h uma pena causada aum terceiro. Logo, tambm no reside neste ponto a diferenaentre as duas histrias contadas. A diferena deve estar nofato de a generosidade, por ser menos relacionada simposies das figuras de autoridade do que as regras dejustia, e mais a relaes sociais simtricas despertadas pelasimpatia, ser produto de uma construo mais autnticaporque, decorrente de relaes de cooperao.

    Somente falta avaliar a relevncia de nossas reflexes edados para a Psicologia do Desenvolvimento Moral:

    1) Para compreender tal desenvolvimento, notadamenteno seu incio, deve-se levar em conta o sentimento desimpatia, que certamente precede os de culpa e vergonha(Hoffman, 1978; La Taille, 2002c);

    Tabela 1 Respostas dos Participantes dos Estudos 1 e 2 s Perguntas Mrio Agiu Certo? e Como Mrio se sentiu e dos Participantes do Estudo 2 s Perguntas Alice Agiu Certo e Como Alice se Sentiu Estudo 1 Estudo 2

    6 anos (n=30) 9 anos (n=32) 6 anos(n=32) 9 anos (n=36)

    Resposta Pergunta Mrio Agiu Certo?

    agiu errado 93,3% (n=28) 71,9% (n=23) 81,25% (n=26) 86,11% (n=31)

    agiu certo 3,3% (n=1) 12,5% (n=4) 15,62% (n=5) 5,55% (n=2)

    no sei 3,3% (n=1) 12,5% (n=4) 3,3,1% (n=1) 8,32% (n=3)

    Resposta Pergunta Como Mrio se Sentiu?

    sentimento negativo

    53,3% (n=16) 53,1% (n=17) 84,37% (n=27) 86,111% (n=31)

    sentimento positivo

    3,3% (n=1) 6,2% (n=2) 12,5% (n=4) 11,11% (n=4)

    indiferena 6,7% (n=2) 9,4% (n=3) - -

    no sei 36,7% (n=11) 31,25% (n=10) 3,12% (n=1) 2,77% (n=1)

    Resposta Pergunta Alice agiu certo?

    agiu errado 96,87% (n=31) 97,23% (n=35)

    agiu certo 3,15% (n=1) 12, 5% (n=1)

    no sei 0% 0%

    Resposta Pergunta Como Alice se Sentiu?

    sentimento negativo

    28,12% (n=9) 55,55% (n=20)

    sentimento positivo

    71,875% (n=23) 11,11% (n=4)

    no sei 0% 33,33% (n=12)

  • La Taille, Y. (2006). A Importncia da Generosidade no Incio da Gnese da Moralidade na Criana.

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    2) Os deveres ditos positivos, que presidem as condutaschamadas de pr-sociais e que so pouco normatizados,fazem parte das inquietaes morais infantis, assim como oconcebe Eisenberg;

    3) A teoria de Kohlberg, que prev um incio dedesenvolvimento moral restrito ao egosmo, ao medo docastigo e referncia autoridade deve ser revista, oumelhor, ampliada. Nossos dados em nada levam a contestarque tais sejam caractersticas das crianas menores, masmostram que h mais elementos, e que estes so maispositivos e coerentes com o desenvolvimento posterior damoralidade infantil; e,

    4) A afirmao acima nos leva de volta abordagempiagetiana. Se Piaget enfatizou a heteronomia das crianasmenores, que estava preocupado com o sujeito tico cujodesenvolvimento crucial implica a superao da moral daobedincia para uma moral da cooperao. Porm, verifica-se em vrios trechos de sua obra Le Jugement Moral chezlEnfant que ele estava atento riqueza do sujeito moralinfantil, identificando a vontade de corresponder aosanseios alheios como motor das descentraes necessrias vitria do ideal de justia sobre a submisso autoridade.Nossos dados lhe do razo.

    Ao propor que se leve em conta a generosidade, paracompreender a moralidade, estaremos concebendo o serhumano como um saco de virtudes? De modo algum. Umateoria do saco de virtudes pressupes justaposio entrediversas virtudes. Quanto a ns, propomos uma integraoentre elas, e no presente texto explicitamos a importnciada generosidade como motor do desenvolvimento moralcujo eixo a justia, a mais racional de todas as virtudes,como dizia Piaget, e aquela sem a qual uma sociedade sedestri, como pensava Adam Smith.

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    Submisso: 19/03/20041 reviso: 18/06/2004

    Aceite final: 22/11/2004