gêneros híbridos

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206 Bakhtiniana, São Paulo, 9 (2): 206-216, Ago./Dez. 2014. Gêneros discursivos híbridos na era da hipermídia / Hybrid Discursive Genres in the Hypermedia Era Lucia Santaella * RESUMO A pluralidade em devir dos gêneros discursivos foi enfatizada por Bakhtin. Para ele, os gêneros do discurso tendem a crescer à medida que se desenvolvem e se complexificam as esferas da práxis humana. Em função dessa antecipação já anunciada por Bakhtin, o objetivo deste artigo é ampliar a noção de gêneros discursivos para as manifestações que ocorrem nas redes sociais digitais, batizando esse gênero de híbrido, dado o fato de que, nas redes, a discursividade estritamente verbal vaza as fronteiras não só da linearidade típica do verbo, no hipertexto, quanto também da exclusividade do discurso verbal nas misturas que este estabelece com todas as formas das imagens fixas e em movimento e com as linguagens sonoras, do ruído, à oralidade e à música, na multimídia. PALAVRAS-CHAVE: Gêneros discursivos; Hipertexto; Hipermídia; Gêneros híbridos ABSTRACT The future plurality of discursive genres was emphasized by Bakhtin. For him, the discursive genres tend to grow as the spheres of human praxis develop and become complex. Due to this anticipation already announced by Bakhtin, the purpose of this paper is to extend the notion of discursive genres for occurrences in digital social networks, baptizing them as hybrid genres, given the fact that in the web, the strictly verbal discourse leaks the borders not only of the typical linearity of verbal language, in hypertext, but also of the exclusivity of verbal discourse in its mixtures with all forms of fixed and moving images and also with sound, music, noise, and speech, in multimedia. KEYWORDS: Discursive Genres; Hypertext; Hypermidia; Hybrid Genres * Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP, São Paulo, São Paulo, Brasil; CNPq; [email protected]

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  • 206 Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 206-216, Ago./Dez. 2014.

    Gneros discursivos hbridos na era da hipermdia / Hybrid Discursive

    Genres in the Hypermedia Era

    Lucia Santaella*

    RESUMO

    A pluralidade em devir dos gneros discursivos foi enfatizada por Bakhtin. Para ele, os

    gneros do discurso tendem a crescer medida que se desenvolvem e se complexificam

    as esferas da prxis humana. Em funo dessa antecipao j anunciada por Bakhtin, o

    objetivo deste artigo ampliar a noo de gneros discursivos para as manifestaes

    que ocorrem nas redes sociais digitais, batizando esse gnero de hbrido, dado o fato de

    que, nas redes, a discursividade estritamente verbal vaza as fronteiras no s da

    linearidade tpica do verbo, no hipertexto, quanto tambm da exclusividade do discurso

    verbal nas misturas que este estabelece com todas as formas das imagens fixas e em

    movimento e com as linguagens sonoras, do rudo, oralidade e msica, na

    multimdia.

    PALAVRAS-CHAVE: Gneros discursivos; Hipertexto; Hipermdia; Gneros hbridos

    ABSTRACT

    The future plurality of discursive genres was emphasized by Bakhtin. For him, the

    discursive genres tend to grow as the spheres of human praxis develop and become

    complex. Due to this anticipation already announced by Bakhtin, the purpose of this

    paper is to extend the notion of discursive genres for occurrences in digital social

    networks, baptizing them as hybrid genres, given the fact that in the web, the strictly

    verbal discourse leaks the borders not only of the typical linearity of verbal language,

    in hypertext, but also of the exclusivity of verbal discourse in its mixtures with all forms

    of fixed and moving images and also with sound, music, noise, and speech, in

    multimedia.

    KEYWORDS: Discursive Genres; Hypertext; Hypermidia; Hybrid Genres

    * Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC/SP, So Paulo, So Paulo, Brasil; CNPq;

    [email protected]

  • Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 206-216, Ago./Dez. 2014. 207

    Ningum pode duvidar que, desde a emergncia da cultura digital, nos anos

    1980-90 e cada vez mais crescentemente, estamos imersos em ambientes interativos, de

    natureza dialgica.

    A tecnologia digital, em geral, e a rede digital, que chamamos de

    internet, em particular, mediando o uso, por exemplo, da telefonia

    mvel e os tablets eletrnicos, assim como a grande quantidade de

    programas (apps) e de formas de comunicao e informao digitais,

    como so as redes sociais ou os blogs, tm alterado as possibilidades

    de interao de milhares de pessoas a nvel poltico, econmico,

    cultural, industrial e, sobretudo, no nvel da vida diria (CAPURRO,

    2013, p.8).

    Nunca, tanto quanto agora, a teoria dialgica de Bahktin se fez to presente e

    relevante. Em um trabalho anterior (MITTERMEYER e SANTAELLA, no prelo),

    realizamos, luz da dialogia bakhtiniana, o estudo dos principais recursos oferecidos ao

    usurio pela plataforma Facebook: curtir, comentar, compartilhar. Curtir serve para o

    usurio aprovar a informao publicada e para conectar-se com a informao,

    acompanhando assim os desdobramentos da informao pelo recurso Notificaes.

    Comentar possibilita agregar informao publicada um comentrio, que pode conter

    textos, links; estes podem remeter a outros sites, textos, imagens, vdeos, em qualquer

    lugar da web. Compartilhar permite que o usurio divulgue uma determinada

    informao, fazendo com que ela se movimente e se espalhe pela plataforma e pela web

    em geral.

    Trao primordial dos processos de comunicao na web, a interatividade alcana

    seu clmax nas redes sociais digitais e nos games. Embora Bahktin tenha elegido o

    romance como locus privilegiado do dialogismo, seus conceitos, tais como

    heteroglossia, dialogismo e polifonia se prestam perfeio para a anlise da

    interatividade nas redes sociais digitais.

    A heteroglossia definida por Bahktin (1982) como a coexistncia, o confronto

    e mesmo o conflito entre diferentes vozes. No caso do Facebook, a heteroglossia se faz

    sentir com mais nfase quando concordncias e discordncias so justapostas sem que

    umas preponderem sobre as outras. O dialogismo comunicao interativa em que cada

    um se v e se reconhece atravs do outro. A dialogia o ato do dilogo, modo como os

    sujeitos se relacionam, movimento entre o eu e o outro. No Facebook, a dialogia fica

  • 208 Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 206-216, Ago./Dez. 2014.

    clara quando o usurio publica uma mensagem e esta desencadeia reaes discursivas

    nos participantes. A polifonia a forma suprema do dialogismo, pois se define pela

    convivncia e pela interao, em um mesmo espao, de uma multiplicidade de vozes.

    Isso se manifesta no Facebook quando a publicao recebe comentrios dos usurios e

    diversas vozes confluem na construo do dilogo. Quando o assunto fica sujeito a

    controvrsias, no raro a polifonia se transformar em cacofonia.

    O dialogismo nos gneros discursivos

    sabido que Bahktin expandiu o dialogismo dos processos comunicativos para

    o campo dos gneros discursivos. Segundo Machado (2005, p.152), os gneros

    discursivos bakhtinianos no consideram a classificao das espcies, mas sim o

    dialogismo que se efetua nos processos de comunicao. As prticas prosaicas que

    diferentes usos de linguagem fazem do discurso, oferecem-no como manifestao da

    pluralidade. Ao valorizar os estudos dos gneros, o dialogismo encontrou um

    excelente recurso para radiografar o hibridismo, a heteroglossia e a pluralidade de

    sistemas de signos da cultura (MACHADO, 2005, p.153). Conforme ainda lembrado

    por Machado, exatamente porque surgem na esfera prosaica da linguagem, os gneros

    discursivos incluem toda sorte de dilogos cotidianos bem como enunciaes da vida

    pblica, institucional, artstica, cientfica e filosfica (2005, p.155).

    Tendo isso em vista, Machado recorre aos dois tipos principais de gneros

    levantados por Bahktin: os primrios e os secundrios que, longe de serem excludentes,

    so complementares. Os primeiros referem-se comunicao cotidiana. Os segundos,

    comunicao produzida por meio de cdigos culturais elaborados, como a escrita.

    Assim, enquadram-se nos secundrios os romances, gneros jornalsticos, ensaios

    filosficos. So formaes complexas porque so elaboraes da comunicao cultural

    organizada em sistemas especficos como a cincia, a arte e a poltica (2005, p.155). A

    pluralidade em devir dos gneros discursivos enfatizada por Bahktin ele mesmo.

    A riqueza e diversidade dos gneros discursivos so imensas, porque

    as possibilidades da atividade humana so inesgotveis e porque em

    cada esfera da prxis existe todo um repertrio de gneros discursivos

  • Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 206-216, Ago./Dez. 2014. 209

    que se diferenciam e crescem medida que se desenvolve e se

    complexifica a prpria esfera (BAJTN, 1982, p.248)1.

    Em funo dessa antecipao j promovida por Bakhtin, o objetivo deste artigo

    ampliar a noo de gneros discursivos para as manifestaes que ocorrem nas redes

    sociais digitais, batizando esse gnero de hbrido, dado o fato de que, nas redes, a

    discursividade estritamente verbal vaza as fronteiras no s da linearidade tpica do

    verbo, no hipertexto, quanto tambm da exclusividade do discurso verbal nas misturas

    que este estabelece com todas as formas das imagens fixas e em movimento e com as

    linguagens sonoras, do rudo, oralidade e msica, na multimdia.

    Letramento digital e hipermdia

    Vale ressaltar que o caminho para a proposta acima enunciada foi devidamente

    aberto tanto por Brait (2006, p.12-13) quanto por Machado (2005, p.163; p.165). Para

    Brait, as particularidades discursivas apontam para contextos mais amplos que incluem

    o extralingustico. Isso permite esmiuar campos semnticos, descrever e analisar

    micro e macro-organizaes sintticas, reconhecer, recuperar e interpretar marcas e

    articulaes enunciativas que caracterizam o(s) discurso(s) e indicam sua

    heterogeneidade constitutiva, assim como a dos sujeitos a instalados.

    Machado avana ao afirmar que os gneros discursivos invadem tambm as

    linguagens da comunicao, seja dos ritos ou das mediaes tecnolgicas. Do ponto de

    vista do dialogismo, a polifonia urbana, por exemplo, resulta de gneros discursivos

    marcados pela diversidade: sinalizaes de trnsito, anncios, placas de ruas e de casas

    comerciais, alm de rdio, televiso e mdia digital para reproduzir os gneros bsicos

    da programao como jornalismo, publicidade, videoclipe, charges, slogans, banners,

    gingles e vinhetas. A partir disso, Machado prope que os gneros discursivos podem

    ser vistos sob o ponto de vista ontogentico e filogentico. Os primeiros realizam-se nas

    interaes produzidas na esfera da comunicao verbal. Os segundos expandem-se para

    1 Verso em espanhol: La riqueza y diversidade de los gneros discursivos es inmensa, porque las posibilidades de la actividad humana son inesgotables y porque en cada esfera de la praxis existe todo un

    repertorio de gneros discursivos que se diferencia y cresce a medida de que se desarolla y se complica la

    esfera misma. Cf. BAKHTIN, 2006, p.261-306.

  • 210 Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 206-216, Ago./Dez. 2014.

    outras esferas da comunicao realizada graas dinmica de outros cdigos

    culturais.

    Na esteira de Machado, aqui proponho que a hibridizao discursiva atinge seu

    pice nos ambientes das redes sociais. bem lembrado por Machado (2005, p.164) que

    o ambiente a condio sem a qual o dilogo simplesmente no acontece. Ora, mais

    do que sabido que as redes sociais se constituem em ambientes virtuais programados

    muito justamente para promover o dilogo no seu mais alto grau de intensificao.

    Nesses ambientes, impera a hibridizao discursiva que tem sido chamada de

    letramento digital ou alfabetizao informacional. Em 2002, Soares (p.151) j

    chamava ateno para o letramento digital emergente, ou seja, um certo estado ou

    condio que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem

    prticas de leitura e de escrita na tela, diferente do estado ou condio do letramento

    dos que exercem prticas de leitura e de escrita no papel. Embora essa declarao seja

    aguda, a autora parece estar se referindo a meramente ao texto verbal, sem que seja

    levado em considerao o fato de que, desde meados dos anos 1990, as interfaces

    grficas de usurio j povoavam as redes e os processos de navegao de seus usurios

    com grficos, imagens, diagramas e rotas que nada tinham de exclusivamente verbal.

    Poucos anos depois de Soares (2002), Santos (2006, p.81) apontava para a

    alfabetizao informacional, audiovisual, tecnolgica, multimdia, necessria

    interao nas redes digitais.

    A alfabetizao informacional, designao resultante da traduo e

    interpretao da expresso americana information literacy, requer uma

    alfabetizao no sentido tradicional (saber ler e escrever verbalmente),

    mas tambm uma alfabetizao visual (saber ler e escrever mensagens

    visuais), uma alfabetizao audiovisual (saber ler e escrever

    mensagens audiovisuais) e ainda competncias informticas.

    Eshet (2004 apud COLL et al., 2010) foi ainda mais longe na constatao da

    complexidade envolvida pelos meios digitais. A alfabetizao digital, para Eshet,

    um modo especial de pensar, uma mentalidade (mindset) com um

    componente fotovisual (photo-visual literacy), relacionado leitura de

    representaes visuais; um componente de reproduo (reproduction

    literacy), relacionado reciclagem criativa de materiais existentes; um

    componente de pensamento ramificado (branching literacy),

    relacionado hipermdia e ao pensamento lateral; um componente

  • Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 206-216, Ago./Dez. 2014. 211

    informacional (information literacy), relacionado capacidade para

    avaliar e utilizar inteligentemente a informao; e um componente

    socioemocional (socio-emotional literacy), relacionado capacidade

    para compartilhar informaes e realizar aprendizagens colaborativas

    mediante o uso de ferramentas e plataformas de comunicao digital.

    (COLL et al., 2010, p.299)

    Para fazer jus riqueza semitica do hibridismo discursivo, que est presente

    nos dilogos mediados pelas plataformas de relacionamento, tenho preferido a

    utilizao do termo hipermdia em lugar de letramento digital ou informacional.

    Penso que hipermdia, de sada, nos livra de qualquer resduo de linguocentrismo.

    O termo em ingls literacy j vem suficientemente marcado por uma tendenciosidade

    lingustica. Quando traduzido para o portugus, letramento ou alfabetizao, seu

    sentido fica ainda mais marcado pela parcialidade do verbal. Bem longe dessa

    parcialidade, a linguagem das redes digitais, tanto nos sites de relacionamento quanto na

    ao de navegar pelas redes informacionais, inteiramente nova, trazendo com ela um

    gnero discursivo eminentemente hbrido, hipermiditico.

    O hibridismo da hipermdia

    A hipermdia mescla o hipertexto com a multimdia. O prefixo hiper, na palavra

    hipertexto, refere-se capacidade do texto para armazenar informaes que se fragmentam

    em uma multiplicidade de partes dispostas em uma estrutura reticular. Atravs das aes

    associativas e interativas do receptor, essas partes vo se juntando, transmutando-se em

    verses virtuais que so possveis devido estrutura de carter no sequencial e

    multidimensional do hipertexto.

    Vrios autores tm chamado ateno para o fato de que as enciclopdias clssicas

    j apresentavam ferramentas de orientao similares ao hipertexto atual, como so os

    dicionrios, lxicos, ndices, thesaurus, atlas, quadros de sinais, sumrios e remisses ao

    final dos artigos. No suporte digital, entretanto, a pesquisa nos ndices, os usos dos

    instrumentos de orientao, a passagem de um n a outro, se realizam em fraes de

    segundos.

    Isso acontece porque o computador pode recuperar informao de qualquer parte

    de sua memria em alta velocidade. Com tanta rapidez de acesso, to fcil saltar de

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    uma pgina para outra, quanto da primeira para a ltima, de uma pgina em um

    documento para outra pgina em qualquer outro documento. Em menos de um piscar de

    olhos, qualquer elemento armazenado digitalmente pode ser acessado em qualquer

    tempo e em qualquer ordem. A no linearidade uma propriedade do mundo digital e a

    chave-mestra para a descontinuidade se chama hiperlink, quer dizer, a conexo entre

    dois pontos no espao digital, um conector especial que aponta para outras informaes

    disponveis e que o capacitador essencial do hipertexto.

    Portanto, o que o hipertexto nos apresenta um texto que, em vez de se estruturar

    frase a frase linearmente como em um livro impresso, caracteriza-se por ns ou pontos de

    interseco que, ao serem clicados, remetem a conexes no lineares, compondo um

    percurso de leitura que salta de um ponto a outro de mensagens contidas em documentos

    distintos, mas interconectados. Isso vai compondo uma configurao reticular.

    A explicao parece complicada, mas justamente o que o usurio faz ao ler um

    documento nas redes, quando clica em palavras sublinhadas ou coloridas para obter

    informaes que esto localizadas em outros documentos. Desse modo, a estrutura do

    hipertexto multilinear, passa-se de um ponto a outro da informao, com um simples e

    instantneo clique ou toque, no caso dos i-Pads e tablets. A estrutura tambm interativa,

    pois o hipertexto implica a manipulao por parte do usurio-leitor. A estrutura vai se

    compondo de acordo com os cliques e caminhos que se escolhe dar ou no.

    Em um sistema como esse, os conceitos de escrita e de texto sofrem mudanas

    substanciais. Embora um elemento textual possa ainda ser isolado, todo o sistema

    primordialmente interativo e aberto com mensagens em circuito continuamente

    variveis.

    A multimdia, por sua vez, consiste na hibridao, quer dizer, na mistura de

    linguagens, de processos sgnicos, cdigos e mdias. Infelizmente, tm sido pouco

    lembradas e trabalhadas as mudanas substanciais na constituio das linguagens humanas

    que o mundo digital introduziu e que se manifestam nas misturas inextricveis entre o

    verbal, o visual e o sonoro. O ciberespao se apropria e mistura, sem nenhum limite, todas

    as linguagens pr-existentes: a narrativa textual, a enciclopdia, os quadrinhos, os

    desenhos animados, o teatro, o filme, a dana, a arquitetura, o design urbano etc. Nessa

    malha hbrida de linguagens, nasce algo novo que, sem perder o vnculo com o passado,

    emerge com uma identidade prpria: a multimdia, esta que responsvel pelo que este

  • Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 206-216, Ago./Dez. 2014. 213

    artigo est propondo sob o conceito de gneros discursivos hbridos, o que implica

    conceber a discursividade como necessariamente multimiditica.

    Quando o usurio aperta o boto e comea a manipular, pelo mouse ou pelo toque,

    quaisquer das interfaces computacionais, grandes ou pequenas, de que hoje se dispe, o

    que aparece e escorrega pelas telas? Uma enxurrada dos mais distintos tipos de signos

    moventes, reagentes, sensveis s intervenes que neles so feitas. As telas se enchem de

    sinais de orientao, de imagens, fotos, desenhos, animaes, sons de distintas espcies e

    certamente de palavras, legendas e textos. Essas aparies dependem da interatividade do

    agente-usurio que vai conectando informaes por meio de links.

    Ao se fundir com a multimdia, o hipertexto se torna hipermdia, quer dizer, os ns,

    que remetem a outros documentos, no so mais exclusivamente textuais, mas conduzem a

    fotos, vdeos, msicas etc. Essa mistura densa e complexa de linguagens, feita de hiper-

    sintaxes multimdia -- povoada de smbolos matemticos, notaes, diagramas, figuras,

    tambm povoada de vozes, msica, sons e rudos -- inaugura um novo modo de formar e

    configurar informaes, uma espessura de significados que no se restringe linguagem

    verbal, mas se constri por parentescos e contgios de sentidos advindos das mltiplas

    possibilidades abertas pelo som, pela visualidade e pelo discurso verbal. Isso parece dar

    guarida hiptese de que, nas razes de todas as misturas possveis de linguagens,

    encontram-se sempre trs matrizes fundamentais: a verbal, a visual e a sonora, em todas as

    variaes que cada uma delas realiza, conforme defendi no livro Matrizes da linguagem e

    pensamento. Sonora, visual, verbal (SANTAELLA, 2001).

    Portanto, da fuso da estrutura hipertextual com a multimdia, brota a hipermdia.

    Para compreend-la, preciso dar o pulo do gato da superfcie das mdias digitais para

    os interiores de suas linguagens, pois neles so encontrados processos sgnicos de alta

    complexidade, misturas entre linguagens dos mais variados gneros e espcies as quais,

    desde o momento em que o computador acolheu uma pletora de linguagens em seus

    processamentos, tm sido chamadas de hipermdia. E quando a WWW, a interface

    grfica de usurios, foi incorporada s redes, a hipermdia tornou-se a linguagem que

    lhe prpria, uma linguagem tecida de multiplicidades, heterogeneidades e diversidades

    de signos que passaram a coexistir na constituio de uma realidade semitica distinta

    das formas previamente existentes de linguagem.

  • 214 Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 206-216, Ago./Dez. 2014.

    Portanto, a hipermdia composta por conglomerados de informao multimdia

    (verbo, som e imagem) de acesso no sequencial, navegveis atravs de palavras-chave

    semialeatrias. Assim, os ingredientes da hipermdia so imagens, sons, textos,

    animaes e vdeos que podem ser conectados em combinaes diversas, rompendo

    com a ideia linear de um texto com comeo, meio e fim pr-determinados e fixos.

    As mltiplas aparies de natureza multimdia, que competem na ateno do

    receptor e so acessveis por meio de hiperlinks, criam um espao heterogneo que

    consiste de camadas de programao executadas a cada clique do mouse do

    computador, ou ao toque dos dedos no tablet.

    As diferentes pginas de uma hipermdia ganham a ateno do receptor por meio

    da interpenetrao, justaposio e multiplicao da pgina anterior na pgina seguinte.

    O deslocamento constitui-se na estratgia operativa do estilo hipermdia cujos recursos

    criam um espao visual inteiramente novo.

    Desse modo, o controle das descontinuidades, na medida em que o receptor se

    movimenta no espao hipermdia, realizado pela mente do receptor que, para tal,

    desenvolve processos perceptivos e cognitivos inditos que so prprios de um novo

    tipo de leitor inaugurado pelo mundo digital, o leitor imersivo. Conforme j analisei em

    outras ocasies (SANTAELLA, 2004, 2013), o leitor imersivo implica habilidades

    perceptivo-cognitivas muito distintas daquelas que so empregadas pelo leitor de um

    texto impresso que segue as sequncias de um texto virando pginas, manuseando

    volumes. Por outro lado, so habilidades tambm distintas daquelas empregadas pelo

    receptor de imagens ou espectador de cinema, televiso. Esse leitor pratica pelo menos

    quatro estratgias de navegao:

    (a) Escanear a tela, em um processo de reconhecimento do terreno.

    (b) Navegar, seguindo pistas at que o alvo seja encontrado.

    (c) Buscar, ou seja, esforar-se para encontrar o alvo que tem em mente.

    (d) Deter-se no saiba mais, explorando a informao em profundidade, at

    chegar fonte mais especializada.

    imersivo porque, no espao informacional, perambula e se detm em telas e

    programas de leituras, num universo de signos evanescentes e continuamente

    disponveis. Cognitivamente em estado de prontido, esse leitor conecta-se entre ns e

    nexos, seguindo roteiros multilineares, multissequenciais e labirnticos que ele prprio

  • Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 206-216, Ago./Dez. 2014. 215

    ajuda a construir ao interagir com os ns que transitam entre textos, imagens,

    documentao, msicas, vdeo etc. Atravs de saltos que vo de um fragmento a outro,

    esse leitor livre para estabelecer sozinho a ordem informacional que lhe apetece.

    bem verdade que, cada vez mais as redes esto sendo povoadas de aplicativos que j

    entregam ao leitor aquilo que procura, sem que tenha de navegar em processos de busca.

    Alm disso, nos ltimos anos, as transformaes por que tem passado a cultura

    digital e a acelerao dessas transformaes so vertiginosas, especialmente devido

    emergncia dos dispositivos mveis. Tanto que, nesse curto espao de tempo, surgiu

    um quarto tipo de leitor que batizei de leitor ubquo (SANTAELLA, 2013, p.277-284),

    uma denominao que j est tambm aparecendo a outros pesquisadores da cultura

    digital, o que s vem comprovar sua inquestionvel presena.

    nos espaos da hipermobilidade, ou seja, a mobilidade fsica fundida

    mobilidade da informao nas redes, que emergiu o leitor ubquo com um perfil

    cognitivo indito que incorpora caractersticas do leitor imersivo, mas a elas acrescenta

    a contingncia de poder acessar informaes e trocar mensagens com seus pares ou

    mpares de qualquer lugar em que estiver.

    Portanto, ubquo porque est continuamente situado nas interfaces de duas

    presenas simultneas, a fsica e a virtual, interfaces que reinventam o corpo, a arquitetura,

    o uso do espao urbano e as relaes complexas nas formas de habitar, o que repercute nas

    esferas de trabalho, de entretenimento, nas esferas de servios, de mercado, de acesso e

    troca de informao, de transmisso de conhecimento e de aprendizado.

    Para esse tipo de leitor, a linguagem continua sendo a hipermdia, que a

    linguagem por excelncia das redes e que est longe de se limitar a programas e produtos.

    Ela , na realidade, uma nova configurao das linguagens humanas, assim como o livro, o

    jornal, o cinema e o vdeo foram e continuam sendo configuraes de linguagens com

    caractersticas prprias. Trata-se de uma dinmica de linguagem que modifica

    substancialmente a condio do receptor. Este se transforma em cocriador de mensagens

    que se constroem por meio de sua interao. Alm disso, as plataformas atuais, como os

    blogs, as redes sociais -- e mesmo as wikis -- permitem que o antigo receptor se converta

    em produtor e divulgador de suas prprias mensagens, trao fundamental desse novo tipo

    de gnero discursivo que, alm de hbrido, coloca nas mos do usurio o destino de suas

    viagens e perambulaes pelas redes, suas trocas e compartilhamentos no dilogo com o

  • 216 Bakhtiniana, So Paulo, 9 (2): 206-216, Ago./Dez. 2014.

    outro. Trata-se, portanto, de um gnero discursivo que torna cada participante responsvel

    por aquilo que deseja expor de si mesmo e do outro e por aquilo que deseja manter no

    silncio de sua privacidade, embora, preciso convir, existam cmeras e streetviews que

    podem tornar presentes nas redes mesmo aqueles que preferem se retrair na sua discrio.

    Em suma, nunca tanto quanto agora as ambivalncias e contradies dos processos

    comunicativos humanos gritaram tanto na face dos nossos olhos.

    REFERNCIAS

    BAJTN, M. M. El problema de los gneros discursivos. In: Esttica de la creacin

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    Recebido em 16/05/2014

    Aprovado em 20/09/2014