GÊNERO, AUTONOMIA E POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO … · RESUMO: O objetivo deste trabalho é...
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GÊNERO, AUTONOMIA E POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO À POBREZA NO BRASIL:
reflexões sobre o Programa Bolsa Família.
Mara Regina A. da Costa Farias1 Maria Ivonete Soares Coelho2
RESUMO: O objetivo deste trabalho é refletir sobre a relação do Programa Bolsa Família no desenvolvimento da autonomia das mulheres usuárias, trazendo, de antemão, os conceitos de ideologia e autonomia, bem como suas implicações nas relações de gênero. A partir de tais conceitos e considerando alguns aspectos e limites do programa, conclui-se que, mesmo contribuindo para o processo de autonomia das mulheres, ao possibilitar renda e participação em espaços de construção coletiva, o Bolsa Família não é capaz de romper com as relações desiguais de gênero. Palavras-chave: Gênero; ideologia; autonomia; Programa Bolsa Família.
ABSTRACT The purpose of this paper is to reflect on the relation of the Bolsa Família Program in the development of the autonomy of women users, bringing beforehand the concepts of ideology and autonomy, as well as their implications in gender relations. Based on these concepts and considering some aspects and limits of the program, it is concluded that, even contributing to the process of women's autonomy, by enabling income and participation in collective construction spaces, Bolsa Família is not able to break with the Unequal gender relations. Key words: Gender; ideology; autonomy; Family Grant Program.
1 Assistente Social. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos Sociais
da UERN. 2 Professora adjunta IV da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN). Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UERN. Doutora em Ciências Sociais pela UFRN.
I. INTRODUÇÃO
Tratar sobre a temática da autonomia num contexto de regressão de direitos é
um grande desafio, que se torna maior quando é pensada no contexto social das relações
de gênero, as quais historicamente tende a negar essa conquista, por meio da perpetuação
da dominação e da discriminação.
Esse assunto têm incomodado à sociedade e principalmente os governos que
como tentativa de minimizar os impactos da pobreza decorrente das relações desiguais de
gênero e, como uma forma de nutrir o mínimo de condições possíveis para que as mulheres
superem essa situação, têm implementado políticas de enfrentamento à pobreza, em
especial programas de transferência direta de renda, que atrelam a transferência de um
benefício monetário à oferta de serviços e políticas de inclusão social e nesse caso o Bolsa
Família ganha destaque.
Um aspecto importante desse programa é a identificação das mulheres como
público alvo de suas ações, sob o argumento primordial de colocar em primeiro plano a
independência e a autonomia das mulheres usuárias.
O objetivo desse artigo é refletir sobre a relação do Programa Bolsa Família no
desenvolvimento de autonomia das mulheres alvo de suas ações, fazendo de antemão uma
reflexão sobre o conceito de ideologia e as implicações para a conquista da autonomia no
âmbito das relações de gênero.
II. AS RELAÇÕES CAPITALISTAS DE GÊNERO E A IMPLICAÇÕES PARA A
AUTONOMIA DAS MULHERES
As relações sociais de gênero, ao longo da história, conduziram às mulheres à
situação de subordinação frente ao seu papel na sociedade, bem como no seio familiar. Tais
relações são atravessadas por um elo de poder e dominação do sexo masculino sobre o
feminino, sendo o ambiente doméstico o lugar mais propício para o germinar de tais
relações.
Rêgo e Pinzani (2014) ao discorrerem sobre a relação autonomia e gênero
recorrem às reflexões de John Stuart Mill (1911), no sentido de compreender a dominação
masculina sustentada por um arcabouço de ideias e valores difundidos por instituições
políticas, sociais e culturais, as quais incutem na consciência dos sujeitos, nesse caso, das
mulheres, o comportamento da subserviência e da sujeição como sendo natural à sua
própria existência biológica e social. Nesse contexto “as mulheres não são treinadas apenas
para servirem aos homens (maridos, pais, irmãos mais velhos, sogros, cunhados); mais do
que isso, são treinadas para “desejarem servi-los”” (REGO E PINZANI, 2014, p. 58 apud
MILL, 1911).
Tem-se a favor de tal realidade a difusão de uma ideologia propícia ao processo
de dominação e exploração da sociedade capitalista, a qual falseia as relações sociais,
agindo diretamente na formação da consciência dos sujeitos e como estes se organizam em
sociedade, chegando a determinar todo o conteúdo de uma época histórica (MARX, 2009).
Não cabe nos limites desse texto explorar amplamente o conceito de ideologia,
haja vista as várias definições que lhe são atribuídas dentro da filosofia e da sociologia,
porém cabe-nos compreendê-lo ao menos genericamente e sob a perspectiva marxiana,
para assim relacionarmos à categoria autonomia no universo feminino.
Comumente, o conceito de ideologia está relacionado às formas de consciência
social, o que abrange o sistema de ideias que legitima o poder econômico da classe
dominante. Esse entendimento parte do conceito de ideologia tratado por Marx e Engels na
obra clássica A Ideologia Alemã, em que tais autores afirmam serem as ideias da classe
dominante em todas as épocas, as ideias dominantes. Assim:
As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio (2009, p. 67).
Portanto, a noção de ideologia para Marx está profundamente ligada à divisão
da sociedade em classes e nas estratégias que a classe dominante utiliza para difundir sua
visão de mundo, tornando-a universal (IASI, 2007).
Ainda sobre a concepção de ideologia, Iasi (2007) afirma que esta não pode ser
compreendida apenas como um conjunto de ideias impostas pelas instituições sociais,
culturais, religiosas, ou pelos meios de comunição, mas pressupõe um arcabouço de
sustentação para a garantia da dominação econômica, essa exercida por aquela classe que
detêm os meios de produção.
É justamente no cotidiano das relações materiais, fruto da divisão social do
trabalho que a ideologia dominante se dissemina, invertendo, naturalizando e justificando as
relações de dominação. Para isso, necessita de uma base, um solo em que possa germinar
e, no entendimento de Marx, esse solo é a alienação.
De acordo com Iasi (2007) a alienação se diferencia substancialmente da
ideologia. A mesma se manifesta na primeira forma de consciência e é baseada em
modelos de fundo psicológico, ou seja, nas percepções superficiais que o ser humano tem
do mundo, nas relações afetivas, do círculo social que o rodeia. Nesse contexto:
Antes mesmo que a criança venha a receber qualquer informação sistematizada, já possui um conjunto de valores interiorizados que para ela são verdadeiros e naturais, pois estabelece com eles profundos vínculos afetivos e percebe uma correspondência com as relações concretas em que está inserida (IASI, 2007, p. 22).
Dessa forma, a alienação pode ser compreendida como a forma de
manifestação inicial da consciência, sua forma mais elementar, onde a realidade é
naturalizada e vista como imutável, velando assim o caráter contraditório e desigual das
relações sociais.
Partindo desses pressupostos, compreendemos que a ideologia, sobre a base
da alienação, incide diretamente na vida das mulheres ao passo que sobre estas vigora um
padrão social de conduta voltado para a valoração suprema das virtudes e valores ligados à
vida privada e destituídos dos princípios de autonomia e autogoverno. Nesse contexto, a
educação feminina está mais voltada para a reprodução de sujeitos privados do que para a
formação de cidadãos. “O resultado histórico disso é, como bem se sabe, a reprodução de
sujeitos modelados para a dominação, no caso masculino, e para o servilismo no caso das
mulheres” (REGO E PINZANI, 2014, p. 60).
Papel importante assume a família no âmbito das relações de dominação e
exploração, pois tal instituição assume o poder de atribuir papéis e funções aos seus
membros, precedendo uma divisão de trabalho no lar, em que a mulher se delimita ao
privado e o homem, por sua vez à vida pública. Isso destitui a mulher da capacidade de ver-
se como cidadã, perpetuando assim “um círculo vicioso de não direitos, de não cidadania e
de não participação igualitária na vida pública” (idem, p. 62). Destarte, destituídas da
capacidade de tornarem-se sujeitos autônomosi.
O conceito de autonomia é complexo e denso, principalmente quando se trata da
autonomia no universo feminino. Por tal motivo, tentaremos compreendê-lo em seu sentido
mais amplo a partir de sugestões simples, porém não simplistas.
A noção de autonomia (auto = próprio, nomos = norma, regra lei) sugere a ideia
de capacidade do exercício ativo de si, ou seja, capacidade de o sujeito decidir sobre suas
próprias ações e agir conforme um projeto pessoal de vida, reconhecendo a si e a outros
sujeitos como capazes de estabelecer relações de direitos e de deveres (REGO E PINZANI,
2014). Portanto a autonomia pressupõe atividades individuais e coletivas.
No universo do que compreendemos como autonomia, a mulher a adquire sob
dois aspectos, o primeiro quando consegue construir seu próprio projeto de vida, por ela
considerado “bom”, independente dos modelos ideologicamente fornecidos, e o segundo,
quando consegue atribuir a si e aos outros direitos e deveres, não com base em princípios
individuais, mas universais, ou seja, coletivos (ibdem, 2014).
Bem, para esclarecermos o raciocínio ora exposto, contamos com a contribuição
de Marques e Maia (2007). Tais autoras, à luz de outros como Cooke (1999), Held (1987) e
Warren (2001) defendem a existência de dois tipos de autonomia que são interligadas e
interdependentes: a autonomia individual e a autonomia política.
Em relação à autonomia individual/pessoal, trata-se não do individualismo ou da
autossuficiência, mas da capacidade de o sujeito realizar um exame crítico de si mesmo e
dos outros, no âmbito das relações sociais, ou seja, “no âmbito da autonomia pessoal,
destaca-se a capacidade de avaliação dos indivíduos diante do leque de escolhas de que
dispõem para seguir aquilo que entendem por “bem-viver”” (MARQUES E MAIA, 2007, p.
63). Ainda para essas autoras e sob a ótica de Cooke (1999), a autonomia individual
envolve:
a) adoção de uma atitude reflexiva com relação às próprias necessidades e desejos; b) decidir entre alternativas de expressar suas necessidades aos outros mediante a troca de pontos de vista; c) elaborar os próprios meios e estratégias de encontrar e propor soluções para suas próprias ações cotidianas; d) eleger e perseguir objetivos sustentando-os publicamente, desde que orientem seus planos e ações futuras a partir de suas próprias avaliações (ibdem).
Portanto, a autonomia individual envolve um autoexame e ainda o
reconhecimento de suas próprias necessidades, bem como a possibilidade de defendê-las,
inclusive publicamente e, por vezes, sob condição de adversidade ou contraditoriedade, às
quais se manifestam nas relações sociais de classe. Ao avaliar-se a si mesmo e ao se
autoexaminar criticamente o sujeito pode romper com o processo de alienação que o
subjuga, por sua vez minimizando a condição de oprimido, explorado (MARX, 2009).
No que tange à autonomia política, estaria atrelada aos processos de formulação
dos direitos e das políticas sociais, ou seja, ocorre quando os indivíduos, enquanto sujeitos
de direitos se reconhecem como tal e num processo de solidariedade mútua tornam-se
capazes de agirem como “autores dos direitos aos quais desejam submeter-se como
destinatários” (MARQUES E MAIA, 2007, apud HABERMAS).
O desenvolvimento da autonomia política pressupõe participação social na
esfera dos interesses coletivos, isto é, que os indivíduos sejam capazes de elaborar
publicamente suas demandas, num processo de comunicação interativa com outros sujeitos,
considerando o contexto econômico, cultural e social de tais relações. Portanto, autonomia
política tem a ver com a vida pública.
É importante frisar que a autonomia política não sobrepõe a autonomia individual
ou vice-versa, ao contrário, são interdependentes, ou seja, não há conquista de autonomia
política sem o desenvolvimento da autonomia individual e assim reciprocamente. Marques e
Maia (2007) sintetizam os conceitos de autonomia individual e política da seguinte forma:
Assim, a autonomia individual – a capacidade coletiva de identificar-se como indivíduo, localizando-se em termos de projeção biográfica, “interpretando,
transformando, censurando, proporcionando denominações para necessidades, impulsos e desejos, bem como expressando-os aos outros como interesses e compromissos” (warren, 2001:63) – e autonomia política – a capacidade de produzir julgamentos coletivos e dar razões para sustentar compromissos recíprocos – pressupõem-se mutuamente. A autonomia individual e a autonomia política são co-determinantes, e ambas precisam ser realizadas para assegurar um processo de produção de lei legítimo (p. 63).
Partindo desse entendimento, compreendemos que no caso particular das
mulheres, não é fácil o processo de desenvolvimento da autonomia, haja vista
historicamente estas serem privadas de uma participação mais plena da vida pública ou dos
processos decisórios que implicam na condição de vida das mesmas.
Um dos obstáculos para o desenvolvimento da autonomia é a ausência de bens
materiais primários e essenciais para a sobrevivência humana como o alimento, o vestuário,
a moradia digna, dentre outros elementos. Marx e Engels, no já citado clássico A Ideologia
Alemã corroboram com esse entendimento afirmando:
O pressuposto de toda a existência humana, e portanto, também, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poderem “fazer história”. Mas da vida fazem parte sobretudo comer e beber, habitação, vestuário e ainda algumas outras coisas” (2009, p. 40)
Isso nos leva a inferir que a ausência dos bens materiais supracitados ou a falta
de oportunidades para adquiri-los implica num conjunto de privações objetivas e subjetivas
que quase sempre estão presentes nas relações desiguais de gênero e se expressam,
sobretudo, nos espaços onde a pobreza é predominante, fazendo emergir uma classe de
pessoas que possuem duas características em comum: ser do sexo feminino e ser carente,
ou seja, a mulher pobre.
No universo da pobreza, que não se traduz somente na ausência de condições
materiais básicas de subsistência, “mas está atrelada à ausência à informação; ao trabalho;
à renda digna e ainda à não participação social e política” das mulheres (SILVA, 2014), o
processo de conquista da autonomia individual e coletiva vê-se limitado e por vezes
inexistente, pois carece de um conjunto de mecanismos e estratégias de base econômica,
política, social e cultural para o seu desenvolvimento.
Isto posto, compreendemos que cabe ao Estado, por meio de políticas sociais
públicas fornecer os subsídios necessários para que os cidadãos se desenvolvam, mesmo
que primariamente, como sujeitos autônomos. Nesse contexto, as políticas de
enfrentamento à pobreza, em especial o programa brasileiro de transferência de renda
Bolsa Família tem apresentado resultados interessantes no que tange a autonomia das
mulheres beneficiárias.
III. POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO À POBREZA E AUTONOMIA: um olhar sobre o
Programa Bolsa Família
Conforme já explicitado, historicamente as relações de gênero são desiguais e
marcadas pela dominação e pela privação de condições materiais e sociais básicas,
necessárias à conquista da autonomia das mulheres. A ausência dessas condições não se
resume ao ambiente privado doméstico, mas é refletida também no mercado de trabalho,
onde, via de regra, as mulheres recebem rendimentos menores por desempenharem
atividades “menos qualificadas”.
Diante desse quadro, um percentual gigantesco de mulheres encontra-se em
situação de dependência e vulnerabilidade, fazendo emergir na contemporaneidade,
principalmente a partir da década de 1990, o fenômeno da feminização da pobreza, e sendo
as mulheres responsáveis pelo processo de reprodução social, a pobreza não as atinge
somente, mas reflete diretamente no desenvolvimento econômico, político e social de um
país.
Tal conjuntura tem levado os governos a formularem políticas de combate à
pobreza, que contemplem a dimensão de gênero e priorizem as mulheres como principais
favorecidas. Os Programas de Transferência Condicionada de Renda são exemplos dessas
políticas que ganham destaque no âmbito do Estado; no Brasil o Programa Bolsa Família
contempla fortemente a dimensão de gênero e tem sido a principal estratégia de combate à
pobreza.
Alocado na política pública de assistência social, o Programa Bolsa Família é um
programa de transferência de renda com condicionalidades, destinado às famílias em
situação de pobreza e extrema pobreza e assume a centralidade do Sistema de Proteção
Social Brasileiro. Foi criado em 2003, mas regulamentado somente em 2004, pelo Decreto
5.509, de 17 de janeiro de 2004. Atualmente esse programa, juntamente com dezenas de
outras políticas, integra o Plano Brasil sem Miséria (BSM), instituído pelo Decreto 7.492, de
2 de junho de 2011ii.
O principal objetivo do programa é prover as necessidades básicas e garantir o
acesso e a permanência na escola. Conforme Brasil (2006) apud Silva (2014), o Programa
Bolsa Família visa ainda combater a fome, a pobreza e as desigualdades, bem como
promover a inclusão social, corroborando assim para a emancipação das famílias
beneficiárias. O mesmo é compreendido por seus formuladores como:
Proposta para erradicar a pobreza e emancipar as famílias mais pobres do país e possui metas de curto e longo prazo. De curto prazo seria aliviar a fome através das transferências de renda associada à garantia de acesso aos direitos sociais básicos (saúde, educação, segurança alimentar) e em longo prazo por meio das condicionalidades (o acompanhamento das gestantes bem como a vacinação das crianças e suas respectivas presenças em sala de aula) que visam alterar estruturalmente a situação socioeconômica dos beneficiados. (TESSAROLO E
KROHLING (2011, apud SANTOS et al., 2012, p. 15).
Portanto, o Programa Bolsa Família, ora administrado pelo Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate a Fome - MDS, do governo brasileiro, assume um
caráter focalizado em segmentos específicos da população, que recebem diretamente do
governo uma renda monetária que seja capaz de satisfazer suas necessidades básicas,
com vistas à superação das vulnerabilidades e contingências socioeconômicas (SILVA,
2014).
Além disso, tais programas estão sujeitos a determinadas condicionalidades,
que são compromissos assumidos pelas famílias, como uma das condições para o
recebimento do benefício monetário, sendo que o descumprimento pode implicar no
bloqueio ou mesmo na exclusão definitiva do programa.
Em relação às condicionalidades, estão ligadas à educação e à saúde, sendo
que na educação as famílias têm a obrigação de matricularem na escola as crianças e
adolescentes de 6 a 17 anos garantindo a frequência mínima de 85% mensalmente para as
crianças de 6 a 15 anos e de 75% para os adolescentes de 16 a 17 anos. Quanto aos
compromissos com a saúde, as famílias devem obedecer ao calendário de vacinação das
crianças menores de 7 anos, realizando o acompanhamento do crescimento e
desenvolvimento. Além disso, caso haja gestantes no núcleo familiar, estas devem realizar o
pré-natal nas unidades básicas de saúde (BRASIL/MDSA, 2017).
Feita a breve caracterização do Programa Bolsa Família, cabe refletirmos sobre
a sua relação com a autonomização das mulheres, que é o principal objetivo deste trabalho,
haja vista que o referido programa, ao ser apresentado à sociedade brasileira, trouxe como
principal argumento a promoção da independência e da autonomia das mulheres usuárias.
Um dos primeiros pontos a ser destacado é o fato de o governo primar pela
mulher como principal responsável pelo benefício, “sob a justificativa de que a transferência
dos recursos para as mulheres aumenta seu empoderamento, propiciando-lhe maior
autonomia decisória na família e com melhor qualidade na aplicação dos recursos para os
filhos” (SILVA, 2014, p. 139).
Assim, ao receber a transferência monetária e controlar a sua utilização, a
mulher passa a adquirir maior poder de barganha e maior capacidade de fazer escolhas e
tomar decisões. Nessa perspectiva, estudos empíricos (Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas, 2008 apud Silva, 2014) demonstram que as mulheres se sentem
mais independentes financeiramente ao receberem o benefício e que houve um aumento no
poder de decisão em relação ao dinheiro da família, apresentando assim um aspecto
positivo do ponto de vista das relações de gênero na esfera privada.
Consoante ao exposto, Sen (2000) argumenta que a auferição de renda por
parte da mulher pode alterar as relações de poder no interior do ambiente doméstico e até
mesmo na distribuição da autoridade familiar, contribuindo assim para melhorar a sua
posição e as relações de dominação no seio da família.
Em contraponto, Nascimento (2016) afirma que conceber autonomia e
empoderamento às mulheres com base na administração do benefício e/ou cartão do Bolsa
Família constitui-se numa “visão simplista e imediatista da realidade, posto que não altera as
relações desiguais de gênero [...]” (p. 388). A autora ainda reporta-se à Carloto e Mariano
(2010) para esclarecer que a condição de principais responsáveis pelo benefício e
consequentemente pelas contrapartidas exigidas reforça o papel supostamente considerado
feminino e contribui com a manutenção das relações desiguais entre homens e mulheres
(CARLOTO E MARIANO apud NASCIMENTO, 2016).
Outro aspecto que merece destaque é o fato de o benefício do Bolsa Família ser
em dinheiro e não em alimentos ou outros tipos de bens materiais, o que reforçaria o caráter
paternalista e assistencialista das políticas sociais. Ter acesso ao dinheiro, através de um
cartão magnético torna impessoal a relação entre aquele que dá e aquele que recebe.
Portanto concordamos que:
Distribuir renda monetária aos indivíduos visa precisamente emancipá-los não somente da miséria ou da pobreza, mas também de um ambiente social que pode ser causa ulterior de sofrimento. [...] sendo o dinheiro um elemento necessário para a construção de uma base de autonomia (REGO E PINZANI, 2014. p. 79).
Vê-se, portanto, o papel do dinheiro no processo de construção da autonomia, e,
nesse contexto, o recebimento de um beneficio, que vem em forma de pecúnia, pode
contribuir para minimizar a condição de dependência e humilhação a que são expostas as
mulheres no ambiente doméstico. Por outro lado, aumentam a capacidade enquanto
consumidoras, tendo a “possibilidade de adquirir bens, fazer crédito e programar gastos”[...]
(TEIXEIRA RODRIGUES, 2009).
O terceiro ponto de destaque no que se refere a possibilidade de autonomia das
mulheres é que o Programa Bolsa Família tem como um dos seus objetivos a inclusão social
das famílias usuárias, no sentido de que estas ampliem sua cidadania, que vai desde a
melhoria no atendimento à saúde e à educação à participação nos espaços públicos
decisórios e de defesa dos direitos.
Nesse contexto, ganha destaque as prefeituras, em especial as Secretarias
Municipais de Assistência Social, através dos Centros de Referência da Assistência Social,
os quais ofertam espaços de discussão e interação coletiva, por meio de vivências e troca
de experiências. Se a conquista da autonomia política depende da participação na vida
pública, conforme defendida nesse texto, esses espaços são ao certo importantes para o
desenvolvimento de habilidades políticas e críticas, em relação a si enquanto sujeito singular
e em relação aos outros enquanto sujeito coletivo. Marques e Maia (2007, p. 81) sintetizam
esse pensamento:
Acreditamos que o movimento de “sair de casa” para associar-se aos outros por intermédio de conversações e do trabalho conjunto é a grande contribuição que o Bolsa Família pode oferecer à dissolução da imagem do “pobre carente”, para que possa revelar-se como cidadão. Esse movimento permite também que as beneficiárias vislubrem nova alternativas para suas vidas, inclusive de integração em projetos coletivos, o que lhes abre um novo leque de direitos e possibilidades de conquista de autonomia.
Retomando as reflexões de Iasi (2007) é na vivência de novas relações, quando
há a contradição entre antigos valores e uma nova realidade vivida, que o sujeito pode
iniciar o processo de superação da alienação. O referido autor chama esse processo de
consciência em si, o qual tem por condição fundante a convivência em grupo. Sobre esse
aspecto, ele declara:
Quando uma pessoa vive uma injustiça solitariamente, tende à revolta, mas em certas circunstancias pode ver em outras pessoas sua própria contradição. Esse também é um mecanismo de identificação da primeira forma, mas aqui a identidade com o outro produz um salto de qualidade (p. 29).
Isto posto, mesmo longe do ideal, o Programa Bolsa Família, por intermédio das
ações socioeducativas promove às mulheres usuárias um tipo de inclusão política, dando-
lhes a oportunidade de se reconhecerem como cidadãs de direitos e sujeitos de um luta que
não pertence somente a elas enquanto pessoas individuais e isso, ao nosso ver, contribui
para a conquista de autonomia.
Além disso, a oferta de um benefício monetário, atrelado à serviços básicos de
educação, saúde, assistência social e demais políticas públicas, contribui para a ampliação
da cidadania das mulheres usuárias, estas que historicamente foram excluídas de possuir
quaisquer direitos.
IV. CONCLUSÃO:
Mediante as reflexões expostas nesse trabalho, é inegável que o Programa
Bolsa Família traz inúmeros benefícios, principalmente para as mulheres que são as
principais protagonistas nesse contexto, contrariando uma cultura de resignação,
subordinação e ausência de direitos.
Considerando o que já foi explicitado, isto é, que a ausência de condições
materiais objetivas dificultam o processo de aquisição de autonomia, o programa Bolsa
Família, através da transferência de renda é capaz de fornecer essas condições, mesmo
que minimamente, o que já é um começo para a tomada de consciência das mulheres
beneficiárias.
No entanto, em detrimento do alcance do programa, não deixamos de perceber
os limites e desafios que dificultam a sua plena efetividade. O fato de ser um programa de
governo e não um direito garantido constitucionalmente é um dos limites “em que a condição
de beneficiária tende a ser um componente a mais no conjunto de estigmas com os quais a
mulher lida diariamente” (RODRIGUES, 2009, p. 222)
Outro limite é o recebimento do benefício atrelado ao cumprimento de
determinadas condicionalidades, responsabilizando tais mulheres pelo cumprimento de
certas obrigações, que se não cumpridas implica na perda do benefício. Assim “ainda que
associado a uma questão fundamental de cidadania, que é o acesso à renda, a
possibilidade de sua perda, por não cumprimento das condicionalidades, dificulta seu
reconhecimento com direito” (RODRIGUES, 2009, p.231).
Entendemos que as condicionalidades não devem servir para a
responsabilização ou punição das famílias, mas devem ser um mecanismo que provoque o
poder público a investir na ampliação de na qualidade dos serviços prestados, de modo a
facilitar acesso das famílias aos direitos sociais básicos de cidadania.
Silva (2014) aponta ainda outros limites do Programa Bolsa Família. Segundos
os seus estudos um desses limites é o baixo valor do benefício, ou seja, o valor que é
repassado, embora de importância inestimável para quem o recebe, não é suficiente para
alterar de forma significativa as condições de vida das famílias. A mesma autora ainda
aponta como limites a focalização e o baixo investimento em políticas complementares de
inserção da mulher no mercado de trabalho.
Compreendemos que a transferência de renda, a oferta de políticas
complementares ou mesmo a abertura de espaços de discussão, embora essenciais, não
são suficientes e não conduzem instantaneamente o desenvolvimento ou fortalecimento da
autonomia individual e política das mulheres. É necessário garantir condições de ampla
participação social na formulação das políticas sociais, assim como na avaliação destas, no
sentido de dar voz e visibilidade às necessidades humanas e sociais.
Por fim, mesmo contribuindo para o processo de autonomia, o Bolsa Família não
é capaz de romper com as relações desiguais de gênero, e eis aí o grande desafio: “torná-lo
uma “política de gênero”, que considere a diversidade dos processos de socialização de
homens e mulheres e suas consequências, nas relações, individual e coletiva, ao longo de
suas vidas” (TEIXEIRA RODRIGUES, 2009, P. 223).
REFERÊNCIAS:
IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo: Ed. Expressão Popular, 2007. MARX, Karl.; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Ed. Expressão Popular, 2009. MARQUES, A. S. M.; MAIA, R. C. Dimensões da autonomia no combate à pobreza: o Programa Bolsa Família sob a perspectiva das beneficiárias. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 92, ano XXVII, p.58-84, nov. 2007. NASCIMENTO, Antonia Camila de Oliveira. Mulheres e papéis de gênero no Programa Bolsa Família. O Social em Questão, Rio de Janeiro, ano XIX, n. 35, p. 375-400, 2016. Disponível em: http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/media/OSQ_35_3_SL_Nascimento.pdf. Acesso em: 01 fev. 2017. PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1977 (Pensamento Crítico, v. 7). REGO, Walquiria Leão.; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. 2 ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2014. SANTOS, Francisco Waleison dos. et al. Análise crítica acerca do Programa de Transferência de Renda Bolsa Família na ofensiva neoliberal. In: COLÓQUIO SOCIEDADE, POLÍTICAS PÚBLICAS, CULTURA E DESENVOLVIMENTO, 2., 2012, Crato. Anais... Crato: Universidade Regional do Cariri-URCA, 2012. Disponível em: <http://www.urca.br>. Acesso em: 29 de nov. 2014. SEN, Amartya. A condição de agente das mulheres e a mudança social. In: ______. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 220-235. SILVA, Maria Ozanira da Silva e (coord). Avaliando o Bolsa Família: unificação, focalização e impactos. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2014. TEIXEIRA RODRIGUES, Marlene. Equidade de gênero e transferência de renda – reflexões a partir do programa Bolsa Família. In: BOSCHETTI Ivanete; BEHRING, Elaine Rosseti; SANTOS, Silvana Mara de Moraies dos; MIOTO, Regina Célia Tamaso (orgs.). Política Social no Capitalismo: tendências contemporâneas. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2009, p. 220-239.
i Além da família outros aparelhos idológicos como escola, comunidades religiosas, grupos políticos,
dentre outros, exercem uma função precípua na reprodução de valores ético-morais. Na visão de Gramsci (1977), essas instituições, em sua maioria controladas pelo Estado, funcionam a cargo da classe dominante para a reprodução de suas doutrinas. ii O Programa Bolsa Família partiu da unificação de alguns programas federais de transferência de
renda já existentes, a saber: o Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação, o Auxílio Gás e o Cartão Alimentação.