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FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO FACULDADE DE ECONOMIA GENOCÍDIO E SEUS FANTASMAS ISABEL LORCH ROTH Monografia de Conclusão do Curso apresentada à Faculdade de Economia para obtenção do título de graduação em Relações Internacionais, sob a orientação do Prof. Antonio Sergio Bichir. São Paulo, 2012

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FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO FACULDADE DE ECONOMIA

GENOCÍDIO E SEUS FANTASMAS ISABEL LORCH ROTH

Monografia de Conclusão do Curso apresentada à Faculdade de Economia para obtenção do título de graduação em Relações Internacionais, sob a orientação do Prof. Antonio Sergio Bichir.

São Paulo, 2012

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ROTH, Isabel Lorch. Genocídio e seus fantasmas. São Paulo, FAAP, 2012, 111 p. (Monografia apresentada ao curso de graduação em Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Fundação Armando Alvares Penteado). Palavras chave: 1. Genocídio. 2. Dominação. 3. Violência de Estado. 4. Totalitarismo. 5. Direitos Humanos.

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III  

AGRADECIMENTOS

A realização deste trabalho não seria possível sem a excelente orientação realizada

pelo Prof. Antonio Sergio Bichir. Agradeço a ele pela paciência e atenção com que

me auxiliou, e, acima de tudo, por todo o conhecimento que me transmitiu ao longo

do último ano. Aproveito para manifestar o mais profundo respeito e admiração pelo

seu profissionalismo e ética.

Agradeço ao Dr. Antônio Bias Bueno Guillon e ao Prof. Raul Martinez por

acreditarem no meu potencial, e marcarem permanentemente minha história

acadêmica e profissional.

Agradeço ao Embaixador Rubens Ricupero, que ao longo dos últimos anos me

proporcionou memoráveis conversas e enriquecedoras palestras, e ao vice-diretor da

Faculdade de Economia e Relações Internacionais, Prof. Luis Alberto Machado, pelas

inúmeras oportunidades de aprendizagem e crescimento. Por ambos tenho grande

respeito e apreço.

Agradeço aos professores Alexandre Hage, Carla Corte, Georges Landau, Guilherme

Casarões, Hélio Pellaes Neto e tantos outros professores da FAAP que contribuíram

ao longo dos últimos quatro anos para a minha formação como internacionalista.

Aproveito também para agradecer aos meus professores de colégio Laércio Furquim e

Noemi Jaffe. Cada um deles marcou, à sua maneira, a minha formação intelectual e

pessoal.

Agradeço à querida Claudia Levental por todo o carinho e ajuda dos últimos anos e

aos demais funcionários da FAAP pelo profissionalismo e gentileza.

Agradeço à minha mãe, Ana, e minha avó, Rilda, pelo carinho e apoio que sempre me

deram, pelos sábios conselhos e pelos adequados comentários, que tanto me ajudaram

no desenvolvimento desta monografia.

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IV  

Dedico este trabalho à minha mãe, meu porto-seguro, e à minha avó, que me

ensinaram sobre as coisinhas à toa que deixam a gente feliz e também sobre as

grandes responsabilidades.

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V  

RESUMO

Este trabalho discute o fenômeno do genocídio a partir de algumas ponderações de

caráter psicológico, antropológico, sociológico e filosófico. Com isso, o texto cumpre

o propósito de estimular a reflexão sobre a condição destrutiva do homem, que se

expressa nas relações entre dominador e dominado e é marcada pelo uso da violência

e pela propagação do medo. Assim, o objetivo maior dessa pesquisa é estimular a

promoção do debate acadêmico e político sobre formas de prevenir a ocorrência de

crimes genocidas.

Palavras-chave: Genocídio. Dominação. Violência de Estado. Totalitarismo. Direitos

Humanos.

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ABSTRACT

This paper discusses the phenomenon of genocide from some psychological,

anthropological, sociological and philosophical considerations. This work intends to

stimulate reflection on the destructive condition of men which is expressed in the

relationship between dominator and dominated, and is marked by the use of violence

and the spread of fear. Thus, the main objective of this research is to encourage the

promotion of academic and political debate about ways to prevent the occurrence of

genocidal crimes.

Key-words: Genocide. Domination. Violence of State. Totalitarism. Human Rights.

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SUMÁRIO Resumo INTRODUÇÃO..........................................................................................................01 1 A VIOLÊNCIA E A CONSTITUIÇÃO DO MEDO........................................... 04 1.1 A condição humana: ação e transformação da natureza....................................... 04 1.2 Cultura e racionalidade humana: a construção de uma moral social.................... 11 1.3 Metamorfoses do cenário sociopolítico: a formação das massas.......................... 19 1.3.1 Os cristais de massa e as maltas..................................................................... 19 1.3.2 As massas e suas características..................................................................... 22

2 A VIOLÊNCIA COMO INSTITUINTE DA POLÍTICA: FUNDAMENTOS DE UMA POLÍTICA DE EXCLUSÃO ................................................................. 26 2.1 A violência constituinte do Estado........................................................................ 26 2.1.1 Dominação sobre indivíduo e grupo: elementos do desenvolvimento

civilizatório...................................................................................................... 26 2.1.2 A força como instrumento de legitimação do poder....................................... 34 2.1.3 Medo e ordem para o estabelecimento e manutenção do controle social...... 41 2.2 O terror no Estado: uma política de aniquilamento............................................... 45

3 DOMINAÇÃO, VIOLÊNCIA E MEDO NA CONSTITUIÇÃO DO CENÁRIO GENOCIDA............................................................................................................... 60 3.1 O conceito de genocídio........................................................................................ 60 3.2 Direitos Humanos vs. soberania dos Estados-Nação: velhos cenários, novos diagnósticos?............................................................................................................... 66 3.2.1 A formulação de leis internacionais de prevenção e punição ao genocídio... 67 3.2.2 Estados Unidos, Europa e outros atores internacionais: protagonismo e

crítica na luta internacional contra os crimes de genocídio ........................ 77

CONCLUSÃO......................................................................................................... 101 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA...................................................................... 105

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INTRODUÇÃO Os estudos das relações internacionais são direcionados por correntes teóricas

que estipulam, aos analistas que as seguem, uma metodologia para a análise de

cenários e processos ocorridos em nível transnacional em um determinado momento

da história. As teorias são definidas assim, como “construções intelectuais que

auxiliam na seleção e interpretação de fatos, de forma a facilitar explicações e

previsões relativas a regularidades e recorrências ou repetições dos fenômenos

observados” 1. Embora haja diversas teorias capazes de explicar inúmeros fenômenos

e comportamentos internacionais, há certos objetos em que uma análise puramente

“internacionalista” não basta para que se compreenda o processo em sua totalidade.

Um exemplo é o genocídio.

Genocídio é definido pela comunidade internacional como a tentativa de

exterminar, na totalidade ou em parte, um grupo étnico, religioso, nacional ou racial.

Essa tentativa não se restringe ao assassinato em massa: por práticas genocidas

também se classificam as tentativas de causar dano físico ou mental aos membros de

um grupo, a negação dos recursos básicos para a sobrevivência e a imposição de

políticas que impeçam a expansão demográfica do grupo. Embora possa-se recorrer a

inúmeros episódios passíveis dessa classificação ao longo da história2, o conceito de

                                                                                                               1 Texto original: “(a theory is) an intellectual construct that helps one to select facts and interpret them in such a way as to facilitate explanation and prediction concerning 2 A história do homem é marcada, desde a Antiguidade, por conflitos etnico-raciais, conquistas territoriais, imposições culturais e massacres. Nestes episódios, o uso da violência e a promoção do medo como estratégia para subjugar o inimigo são práticas constantes. Embora nem todos esses casos sejam classificados como genocídio, caracterizam-se pela manifestação dos mesmos sentimentos e impulsos identificados nestes contextos: o uso da violência, o desejo de dominação, a instauração do medo, o desejo de destruir a cultura e os indivíduos de outro grupo étnico, religioso ou nacional. Nesta monografia serão mencionados apenas cinco casos de genocídio, ocorridos no século XX: o genocídio armênio, promovido pelos Jovens Turcos, em meados da década de 1910; o Holocausto judeu perpetrado pelo governo nazista durante a Segunda Guerra Mundial; o genocídio do Camboja, promovido pelo Khmer Vermelho na segunda metade da década de 1970; o massacre de curdos coordenado por Saddam Hussein, no final dos anos 1980; e o genocídio de Ruanda, onde cerca de 800 mil tutsis foram massacrados por hutus radicais que haviam tomado o poder, em 1994. Devemos reconhecer, contudo, a enorme importância de se estudar outros casos de genocídio ocorridos ao longo da história, assim como outros episódios de massacres e dominação que não se classificam como genocídio, mas nem por isso deixam de causar comoção. O extermínio de indígenas nas Américas, à época da colonização europeia; a escravidão de negros africanos durante séculos; a dominação dos brancos nas colônias orientais; os sucessivos episódios de barbárie ocorridos nos Bálcãs durante séculos de conflitos; e em tempos mais atuais, o grande expurgo soviético comandado por Stálin; as restrições políticas impostas ao povo palestino; os constantes conflitos étnicos ocorridos no

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genocídio só foi criado em 1944 e oficialmente reconhecido como um assunto de

relevância internacional em 1951. Ainda assim, mesmo depois desta data, muitos

analistas e observadores internacionais resistiram em conferir ao genocídio a

importância de um tema internacional. Isto porque, apesar da elevação dos Direitos

Humanos como assunto de interesse global a partir da Segunda Guerra Mundial, as

críticas a governantes genocidas continuaram a esbarrar na delicada premissa da

Soberania dos Estados-nação. Este princípio, sobre o qual se sustenta todo o Sistema

Internacional, prevê que o Estado exerça a soberania sobre seu território e sua

população, sem a interferência de forças externas. Assim, sob este pressuposto, até

mesmo violações de direitos humanos universais seriam classificadas como assuntos

internos e, portanto, fora da zona de influência e crítica de outros países.

Este debate figura como um dos mais complexos e inflamados da agenda

política contemporânea, pois contrapõe noções jurídicas e políticas consagradas no

Sistema Internacional a princípios éticos amplamente disseminados nas culturas

ocidentais. No caso de episódios genocidas soma-se ainda o forte impacto emocional,

causado tanto na população vitimada quanto naquela que assiste passivamente aos

massacres. A sobreposição desta dimensão psíquica a um fenômeno sociopolítico

demanda uma análise que leve em conta não apenas aspectos circunstanciais, como

interesses político-econômicos, mas também noções antropológicas, psicológicas e

filosóficas capazes de explicar as origens e os estímulos da violência de Estado,

direcionada a milhões de pessoas em diversos momentos da história.

Eis o propósito mais amplo do presente trabalho: refletir sobre a condição

destrutiva do homem, que se expressa nas relações entre dominador e dominado e é

marcada pelo uso da violência e pela propagação do medo. A sequência de autores e

temas trabalhados ao longo do texto evidencia aquilo que se deseja comprovar com

esta monografia: que os crimes genocidas devem ser percebidos como a consequência

de uma conjuntura de aspectos psíquicos, sociais e políticos, e não como fatalidades,

episódios isolados, desconectados de um processo histórico e de um contexto

doméstico e internacional. Com este exercício reflexivo, objetiva-se ampliar o

conhecimento sobre crimes de genocídio e estimular o debate acadêmico sobre

estratégias de prevenção de novos casos, o que pode vir a gerar mudanças positivas no

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             continente africano e os cada vez mais radicais movimentos xenófobos europeus são apenas alguns dos casos que merecem toda a atenção daqueles que se interessam pelos estudos sobre violência e dominação.

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posicionamento político de nações e organizações internacionais quanto à condenação

dos culpados e assistência às vítimas. Em suma, para desenvolver o projeto e

estimular esses resultados, escolheu-se estruturar o trabalho em duas partes: na

primeira, onde estão inclusos os capítulos um e dois, é apresentado um debate

puramente teórico, com alto conteúdo filosófico, que oferece argumentos à ideia de

que componentes psicológicos, sociais e políticos tornam fértil o ambiente para o

exercício da dominação de poucos sobre muitos; na segunda parte, o desenvolvimento

argumentativo mantém-se a todo tempo fundamentado em fatos, embora não possa

ser classificado como um trabalho empírico. Trata-se da exemplificação dos conceitos

trabalhados na primeira sessão a partir de episódios da história moderna.

Desta forma serão apresentadas no primeiro capítulo desta monografia

reflexões antropológicas e sociológicas acerca da condição humana. Serão trabalhadas

em um primeiro momento as características individuais do homem e do homem

enquanto parte constituinte da massa. Este exercício reflexivo nos dará suporte para a

construção argumentativa desenvolvida no segundo capítulo: as considerações acerca

do homem enquanto ator político e social. Neste capítulo observaremos, pois, as ações

do homem detentor de poder, tais como o exercício da dominação e a coercitividade

política por meio da violência. A compreensão destes comportamentos ajudará por

vez, a entender a estrutura de Estados em regimes totalitaristas. A partir deste

momento, seguindo o ensinamento da filósofa Hannah Arendt, serão apresentados

breves estudos de caso, a saber: o genocídio judeu, genocídio cambojano e o massacre

de curdos por Saddam Hussein. Esta revisão histórica, realizada no terceiro capítulo,

fornecerá elementos para que se compreenda a combinação de fatores internos e

externos ao Estado que facilitam e estimulam crimes genocidas, e identificar as

características e conceitos trabalhados nos capítulos anteriores da monografia que se

fazem presentes em todos os casos trabalhados. Assim, o último capítulo servirá

também como ponto de contato entre as considerações antropológicas e sociológicas

mencionadas ao longo do trabalho e os elementos de análise próprios dos estudos de

Relações Internacionais.

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1 A VIOLÊNCIA E A CONSTITUIÇÃO DO MEDO

Aqui serão tratados alguns conceitos basilares antes de se refletir sobre a

política na perspectiva da violência. Há a necessidade de pensar nas origens da

própria violência, tanto como um aspecto inerente à sociedade quanto presente na

evolução do homem enquanto ator político.

Neste capítulo, três tópicos serão sinteticamente abordados: considerações

acerca dos fatores condicionantes do homem; descrição do processo histórico de

construção da moral (ocidental); seus impactos sobre a estrutura social que se

desenvolve em seu entorno; e a caracterização do processo de formação das massas.

Os temas serão trabalhados por Friedrich Engels e Hannah Arendt; Huisman e Vergez

e Friedrich Nietzsche; e Elias Canetti, respectivamente.

1.1 A condição humana: ação e transformação da natureza

Neste subcapítulo serão abordados de forma concisa os pensamentos

desenvolvidos por Friedrich Engels e Hannah Arendt em duas obras específicas:

Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem e a primeira parte

do livro A condição humana, respectivamente.

A escolha dos autores - e dos manuscritos - é sustentada pelo entendimento de

que ambos orientam-se pela busca das origens e análise da condição humana, a fim de

melhor estruturar seus pensamentos acerca do cenário sociopolítico que lhes serve

como objeto de apreciação. Isso não significa, contudo, que suas ponderações

alcancem resultados semelhantes. Pelo contrário: suas conclusões distanciam-se, na

medida em que Engels atribui ao trabalho peso significativamente maior do que

Arendt, no que se refere ao condicionamento do homem enquanto tal. Engels diz que

o trabalho é o principal estímulo ao desenvolvimento humano, ao passo que Arendt

qualifica como principal fator condicionante a ação – a expressão política do homem

por excelência - embora não deixe de considerar também o trabalho e o labor como

fatores condicionantes fundamentais.

Em suma, a verificação das perspectivas defendidas por ambos os autores

servirá como introdução à reflexão e suporte para o desenvolvimento das demais

ideias tratadas neste capítulo.

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5  

Em Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem,

Engels defende o trabalho como sendo a condição fundamental à vida humana,

chegando até mesmo a reconhecê-lo como o estímulo “criador” do homem. Para

justificar sua tese, elucida o processo evolutivo humano, pautando-se na sua própria

interpretação sobre a teoria evolucionista elaborada por Charles Darwin e

acrescentando à explicação, suas ponderações acerca da importância ímpar do

trabalho no processo de humanização do macaco.

Segundo assinalado por Engels, a etapa evolutiva decisiva no processo de

transição do símio para o hominídeo foi a adoção da postura ereta ao caminhar, que

disponibilizou os órgãos superiores para a execução de outras tarefas que não apenas

auxiliar os movimentos de locomoção do animal, defender-se do inimigo ou recolher

a comida próxima. Estando livres as mãos, pôde empregar esforço técnico para o

contínuo desenvolvimento de novas habilidades, com maior destreza e rapidez na

execução. Assim, Engels intenta mostrar que “a mão não é apenas o órgão do

trabalho; é também produto dele” 3 , tendo em vista o caráter hereditário das

alterações anatômicas (das próprias mãos e de outras partes do corpo) e a transmissão

do aprendizado técnico através das gerações.

Há outros casos de transformações fisiológicas sofridas no processo evolutivo

humano, aos quais se aponta como principal causa a evolução do trabalho. Engels cita

o desenvolvimento das cordas vocais - e o consequente refino dos sons emitidos -

como consequência da necessidade dos indivíduos se comunicarem em frequência e

nível de detalhamento cada vez maior. O trabalho foi responsável pelo aumento na

incidência das atividades realizadas coletivamente, gerando a necessidade de maior

cooperação entre os vários membros do grupo. Estes indivíduos viram-se

confrontados com a necessidade de se expressar, a fim de demandar e oferecer auxílio

aos seus companheiros durante as atividades realizadas. Assim, por gerações, foram

exercitando e aprendendo técnicas gestuais e de expressão oral (que requerem

simultaneamente domínio sobre a projeção da voz e sobre a articulação dos músculos

faciais), até que a comunicação verbal se tornasse fluente dentre os membros da

espécie, diferenciando-os em definitivo de seus parentes primatas. Em suma,

“primeiro o trabalho, e depois dele e com ele a palavra articulada, foram os dois

                                                                                                               3 ENGELS, F. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: MARX, K.; ENGELS, F. Obras escolhidas. Rio de Janeiro: Editorial Vitória Limitada, 1961. v 2. p. 272

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estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando

gradualmente em cérebro humano” 4.

Vale ressaltar que, uma vez ramificadas as trajetórias evolutivas dos símios e

dos hominídeos, o desenvolvimento destes acelerou-se: primeiro sob o estímulo do

trabalho e da fala - que incitam a atividade cerebral, e consequentemente o

aprimoramento dos exercícios lógicos e de abstração, depois impulsionado pela

dinâmica social.

Outro fator foi decisivo ao desenvolvimento do homem: as alterações na dieta

(que passou a incluir carne - inicialmente proveniente das primeiras caças) acabaram

estimulando a utilização do fogo e a domesticação de animais, o que por sua vez

garantiu maior mobilidade ao homem, que não mais teve que preocupar-se com

variações climáticas para viajar e ocupar novos territórios.

A partir daí, dada a combinação dos fatores comunicação, habilidades técnicas

e desenvolvimento da racionalidade, o homem e sua sociedade passaram a aprimorar

cada vez mais seus processos e conquistas. O trabalho foi aperfeiçoando-se e

desdobrando-se em atividades de naturezas diversas: desenvolveram-se o comércio e

os ofícios, as manifestações artísticas, as ciências, as noções e expressões da justiça e

da política e as manifestações religiosas. Contudo, O rápido progresso da civilização foi atribuído exclusivamente à cabeça, ao desenvolvimento e à atividade do cérebro. Os homens acostumaram-se a explicar seus atos pelos seus pensamentos, em lugar de procurar essa explicação em suas necessidades (refletidas, naturalmente, na cabeça do homem, que assim adquire consciência delas). Foi assim que, com o transcurso do tempo, surgiu essa concepção idealista do mundo que dominou o cérebro dos homens, sobretudo a partir do desaparecimento do mundo antigo, e continua ainda a dominá-lo, a tal ponto que mesmo os naturalistas da escola darwiana mais chegados ao materialismo são ainda incapazes de formar uma ideia clara acerca da origem do homem, pois essa mesma influência idealista lhes impede de ver o papel desempenhado aqui pelo trabalho5.

O homem domina a natureza, modificando-a seu favor. O faz por meio do

conhecimento que possui sobre as leis naturais e da aplicação desse conhecimento

mediante o trabalho. Essa é a diferença essencial entre o homem e os outros animais:

estes podem chegar a modificar o ambiente ao seu redor, porém não fazem isso de

forma intencional, uma vez que inexiste consciência em seus atos. O homem, por

                                                                                                               4 ENGELS, 1961, p. 274 5 Ibid., p. 277

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outro lado, não tem apenas consciência de suas ações como também percebe seus

efeitos no ambiente.

De forma análoga, também promove alterações em seu meio social, por

intermédio do trabalho e de seus produtos. Tais ocorrências geram efeitos diretos e

indiretos sobre a sociedade, que se manifestam de imediato ou no decorrer do tempo.

É importante identificar e compreender tais efeitos, a fim de conseguir controlá-los ao

máximo. Porém, segundo assinalado por Engels, para que este controle total sobre os

processos e seus efeitos seja possível, tanto o modo de produção existente quanto a

ordem social vigente deveriam ser submetidos a um processo revolucionário.

Engels diz que todos os modos de produção já aplicados restringiam-se apenas

aos efeitos positivos (objetivos, imediatos e de caráter utilitário) do trabalho,

desconsiderando por completo as consequências remotas, cujos efeitos só se mostram

ao longo do tempo, e ainda assim, como fruto de processos de repetição e acumulação

gradual constantes. Em suma, A primitiva propriedade comunal da terra correspondia, por um lado, a um estágio de desenvolvimento dos homens no qual seu horizonte era limitado, em geral, às coisas mais imediatas, e pressupunha, por outro lado, certo excedente de terras livres, que oferecia determinada margem para neutralizar os possíveis resultados adversos dessa economia primitiva. Ao esgotar-se o excedente de terras livres, começou a decadência da propriedade comunal. Todas as formas mais elevadas de produção que vieram depois conduziram à divisão da população em classes diferentes e, portanto, no antagonismo entre as classes dominantes e as oprimidas. Em consequência, os interesses das classes dominantes converteram-se no elemento propulsor da produção, enquanto esta não se limitava a manter, bem ou mal, a mísera existência dos oprimidos. Isso encontra sua expressão mais acabada no modo de produção capitalista, que prevalece hoje na Europa ocidental. Os capitalistas individuais, que dominam a produção e a troca, só podem ocupar-se da utilidade mais imediata de seus atos. Mais ainda: mesmo essa utilidade – porquanto se trata da utilidade da mercadoria produzida ou trocada – passa inteiramente ao segundo plano, aparecendo como único incentivo o lucro obtido na venda6. Em outras palavras, a economia política clássica considera para fins analíticos

apenas os resultados que expressam os objetivos imediatos pretendidos pelos homens

que incentivam e coordenam a produção e o comércio (membros da burguesia). Para

o indivíduo capitalista que promove operações de produção e troca, pouco importa o

que ocorrerá durante as etapas sequenciais da cadeia produtiva ou de comércio,

contanto que obtenha seu lucro presumido dentro do prazo estimado. Este

descomprometimento refere-se simultaneamente aos impactos ambientais e

                                                                                                               6 ENGELS, 1961, p. 281

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socioeconômicos resultantes de suas atividades, como se pode verificar em inúmeros

episódios no decorrer da história moderna (a exploração extrativista, por parte de

colonos ibéricos nas Américas; a exploração da mão de obra africana por parte dos

neocolonizadores europeus; os abusos praticados contra os povos asiáticos nos

séculos XIX e XX, para citar apenas alguns exemplos).

Feita esta lacônica apresentação da opinião de Engels acerca da evolução do

homem e da sociedade, será apresentado agora o pensamento de Arendt.

Ao escrever A condição humana, Hannah Arendt buscava entender “as

origens do isolamento e do desenraizamento, sem os quais não se instaura o

totalitarismo, entendido como uma nova forma de governo e dominação, baseado na

organização burocrática de massas, no terror e na ideologia” 7.

Para compreender os fenômenos do isolamento e do desenraizamento, Arendt

volta-se às atividades que, combinadas, constituem a vita activa (“uma vida dedicada

aos assuntos públicos e políticos” 8): o labor, o trabalho e a ação.

Opõe as noções de isolamento e de ação, na medida em que este carrega a

ideia de pluralidade e expressão política, enquanto aquele destrói a capacidade

política do indivíduo e limita suas possibilidades de ação. O isolamento age

diretamente sobre o potencial político do indivíduo, impedindo-lhe a associação

política a outros homens. Paralelamente ocorre o desenraizamento, que incide sobre o

sujeito privando-lhe de sua rede social e desagregando sua vida privada. Assim, a

conjuntura desses dois fenômenos possibilita a dominação onipresente do Estado

totalitário sobre o homem, isolado e abandonado, metamorfoseado em um “simples”

animal laborans9.

Para desenvolver sua reflexão acerca do totalitarismo (evoluindo o

pensamento a partir de sua primeira obra, As origens do totalitarismo), Arendt volta-

se às definições conceituais fundamentais para sua construção argumentativa, das

quais se destacam relevantes para análise a vita activa (labor, trabalho, ação) e a

relação dicotômica entre condição e natureza humana.

                                                                                                               7 LAFER, Celso. Introdução. In: ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1981. Introdução de Celso Lafer. p. 7. 8 Ibid., p. 20. 9 Arendt emprega a expressão animal laborans para referir-se aos seres que se dedicam exclusivamente ao labor - às atividades de manutenção de suas existências (individuais e da espécie).  

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O labor é “a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo

humano”, significando que se refere àqueles movimentos intrínsecos à própria

existência, tais como os movimentos metabólicos, o crescimento e o envelhecimento

do corpo. Destarte, o “elemento essencial” ao qual está condicionado o labor é a

própria vida humana.

O trabalho compreende as atividades que produzem elementos artificiais,

externos ao ambiente natural do homem e independentes de seu ciclo vital,

significando que esse mundo de criações não se sujeita à temporalidade humana,

transcendendo a escala das vidas individuais. Neste caso, a condição humana do

trabalho é identificado como sendo a mundanidade.

A ação, por sua vez, é a única atividade desenvolvida diretamente entre os

homens, sem a interferência de outros elementos ou matérias transformadas, motivo

pelo qual possui a pluralidade como condição humana fundamental. Arendt diz que

não há aspecto da condição humana que não possua relação com a política, porém é a

pluralidade a própria condição para que se desenvolva toda a vida política tal qual a

conhecemos10. Isso se dá pois, apesar de sermos todos humanos, sempre seremos,

pensaremos e agiremos de formas distintas de nossos contemporâneos, antecessores e

descendentes.

Estas três atividades - labor, trabalho e ação, associadas às suas respectivas

condições, são indissociáveis das condições mais fundamentais à existência humana,

como o nascimento e a morte. Enquanto o labor perpetua a sobrevivência da espécie

na medida em que possibilita a vida dos indivíduos que a constituem, o trabalho e

seus produtos conferem estabilidade temporal a certas frivolidades socioculturais,

servindo também como um neutralizador da sensação de brevidade da vida humana e

uma forma de expressão das potencialidades criativas do homem. Já a ação, associada

à fundamentação política, torna possível - através do estabelecimento de instituições -

a criação de um registro comum, uma memória coletiva que constitui a história dos

homens, oferecendo paralelamente arsenal cultural e político para a expressão

individual dos membros das gerações posteriores. Ação, na obra de Hannah Arendt, é uma das categorias fundamentais e representa não só um “médium” da liberdade, enquanto capacidade de reger o próprio destino, como

                                                                                                               10 Para atestar sua perspectiva, Arendt retoma o exemplo linguístico romano, que atribuí equivalência de significado para as expressões “viver” e “estar entre os homens” e, inversamente, “morrer” e “deixar de estar entre os homens” ( ARENDT, 1981, p. 15).

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10  

também a forma única da expressão da singularidade individual. Como observa Bikhu Parekh, no labor o homem revela as suas necessidades corporais; no trabalho a sua capacidade e criatividade artesanal; na ação, a ele mesmo. A ação é a fonte do significado da vida humana. É a capacidade de começar algo novo que permite ao indivíduo revelar a sua identidade. 11 Dados esses processos, pode-se pensar na natalidade como o elo comum que

associa as três atividades ao preparo da sociedade e do “mundo” para as novas

gerações, sendo a ação a atividade de ligação mais significativa com a condição

humana da natalidade: O novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Neste sentido de iniciativa, todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade. Além disto, como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode constituir a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico12.

Arendt diz que os homens são condicionados não apenas pelas suas condições

humanas naturais, mas também pelos elementos de caráter artificial produzidos pelos

próprios homens mediante o trabalho e a ação. Isso significa que os homens possuem

a capacidade de criar as suas próprias condições, tão eficazes no condicionamento

humano quanto os elementos naturais. Essa “vulnerabilidade” aos elementos

condicionantes comprova a afirmação de que “tudo o que espontaneamente adentra o

mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da

condição humana” 13. Em suma, O impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentido e recebido como força condicionante. A objetividade do mundo – o seu caráter de coisa ou objeto – e a condição humana complementam-se uma à outra; por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas, e estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não-mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da existência humana14. Por outro lado, é fundamental destacar que, pela perspectiva filosófica,

nenhuma das condições da existência humana é capaz de condicionar o homem,

completamente. “Não somos meras criaturas terrenas” 15, não podemos ter nossa

existência explicada simplesmente pelas condições que moldam nossa vivência: as                                                                                                                11 LAFER, Celso. Introdução. In: ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1981. Introdução de Celso Lafer. p. 5. 12 ARENDT, 1981, p.16-17 13 Ibid., p. 17 14 Loc. cit. 15 Ibid., p. 19

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11  

respostas sobre quem somos não devem limitar-se às considerações sobre a nossa

condição humana, mas sim pela análise e reflexão acerca da nossa natureza16.

De toda forma, com o propósito de melhor adequar esta reflexão às

considerações incluídas nos demais subcapítulos (como complemento à análise do

processo de organização social), será importante voltar-se principalmente à ideia

concebida por Arendt de que os homens possuem a capacidade de criar as suas

próprias condições, mediante a interferência de elementos advindos do trabalho e da

ação.

Essa percepção abre espaço para a introdução das reflexões sobre a cultura e,

principalmente, sobre a construção de uma moral social doutrinária, que intenta coibir

a externalização dos instintos do homem, a fim de preservar a ordem social. Essa

consideração encaminha diretamente ao pensamento de Nietzsche, autor que será

mais cuidadosamente trabalhado a seguir, juntamente com uma breve apresentação

sobre os conceitos de cultura e civilização por Huisman e Vergez.

1.2 Cultura e racionalidade humana: a construção de uma moral social

Com o intuito de compreender a gênese da estrutura sociocultural ocidental tal

como é conhecida, neste capítulo serão estudadas as acepções tratadas por Nietzsche

em Genealogia da moral, que servirão para orientar a fundamentação teórica acerca

da consciência e da construção de uma moral social. Contudo, para que tal exercício

seja feito, faz-se necessária uma breve apresentação de outros conceitos, tais como

cultura e civilização, que servirão de base à análise do pensamento de Nietzsche. O

tratamento de tais conceitos poderia ser diretamente feito pelo próprio autor, porém,

como este momento é uma oportunidade para que o debate se expanda em outras

esferas de análise, a escolha de Huisman e Vergez para introduzir a discussão torna-se

pertinente.

A preferência por estes autores em detrimento de outros é justificável por uma

questão prática: eles atendem aos interesses, da presente monografia na medida em

que apresentam um panorama oportunamente conciso da evolução conceitual de

cultura, bem como suas principais expressões históricas. Em complemento, serão

                                                                                                               16 Arendt remonta a Agostinho para expor a intensidade da busca pelo significado da natureza humana, comentando que “A questão da natureza do homem é tanto uma questão teológica quanto a questão da natureza de Deus; ambas só podem ser resolvidas dentro da estrutura de uma resposta divinamente revelada” (ARENDT, 1981, p.18-19).  

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12  

apresentadas as considerações freudianas, a fim de aproximar uma vez mais o debate

de sua finalidade maior: sustentar a argumentação desenvolvida por Nietzsche.

Em A cultura humana, Huisman e Vergez discorrem acerca da

conceitualização da cultura em tempos modernos, perpassando pelas acepções

tradicionais de cultura e civilização, conceitos originalmente distintos que hoje

recebem tratamento equivalente nos discursos de filósofos e antropólogos

contemporâneos.

Tradicionalmente, o termo cultura expressa o desenvolvimento espiritual de

um indivíduo, ao passo que civilização remete às conquistas técnicas e materiais da

coletividade, decorrentes do conjunto de fenômenos sociais ocorridos historicamente

em um determinado meio. Contudo, com a fusão de ambos os significados em um

único termo, as expressões tradicionais acabaram caindo em desuso17. Passa-se a

perceber civilização – e cultura – pelos conjuntos de elementos materiais e espirituais

que as constituem. Em complemento a essa renovação conceitual, soma-se a noção de

costume, pela escola sociológica francesa, que compreende a cultura como um

conjunto de técnicas e comportamentos herdados por uma tradição comum,

transmitida por intermédio da educação. Em suma, o termo cultura designa aqueles

                                                                                                               17 Sigmund Freud define kultur pelas realizações de ordem espiritual e intelectual da sociedade, mas também pelas evoluções técnicas – que comumente associamos ao conceito de civilização. Paralelamente, o termo civilização remete ao conjunto de “realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si” (FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011, p.34). Em suma, em sua obra Freud confere tratamento equivalente aos conceitos de cultura e civilização, kultur e zivilisation, respectivamente. Na civilização está implícito o intuito de proporcionar utilidade e prazer ao coletivo, por intermédio de elementos e processos constitutivos. São eles: as atividades e valores úteis ao homem - como o desenvolvimento e uso de instrumentos (também chamados de órgãos auxiliares) e o domínio sobre elementos da natureza (como o manuseio do fogo), que viabilizam e otimizam a exploração da terra pelo homem e garantem sua proteção contra a própria natureza; a promoção da limpeza; da ordem - que permite a otimização de espaço e tempo e a economia de energia psíquica humana; a veneração e geração de beleza; a estima e o culto às atividades psíquicas de alto nível - tais como as realizações intelectuais, científicas e artísticas, os sistemas religiosos, as especulações filosóficas e as “construções ideais do homem”; e o estabelecimento e institucionalização da justiça, capaz de garantir a prevalência da ordem legal sobre a liberdade instintual do indivíduo - ainda que isso gere uma frustração cultural verificável nas mais diversas esferas sociais, causadora de um sentimento de hostilidade que vem se perpetrando em todas as culturas no decorrer da história.

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13  

comportamentos adquiridos e transmitidos pela educação, ou ainda aquilo que “se

acrescenta à natureza” 18.

Apenas ao homem pode-se aplicar a noção de história, pois esse não é

exclusivamente passivo no processo evolutivo, mas também colaborador. É, pois,

inventor e herdeiro de suas próprias tradições, o que, por uma perspectiva, permite o

desenvolvimento progressivo, porém simultaneamente limita as novas ideias ao

“quadro geral do patrimônio herdado”. Diferentes sociedades apresentarão

desenvolvimentos diversos no transcorrer da história. Suas distinções serão evidências

expressas de suas culturas, ao passo que os traços universais serão atribuídos à

natureza humana.

Relativo ao desenvolvimento do homem, os autores remontam aos tempos

primitivos, quando as primeiras práticas de feitiçaria marcam o início de

manifestações de pensamento racional, a partir do qual derivarão outras atividades,

ligadas à cultura, religião, técnica, ciência e arte.

Toda a cultura humana origina-se na magia primitiva, que pela primeira vez

expõe o homem ao uso do raciocínio lógico (como a ideia de causalidade, implicada

no ritual mágico), o introduz ao misticismo (preparação inegável para a fé e a

religiosidade), à ideia de determinismo científico (“a magia supõe a afirmação de um

determinismo imaginário, que em certa medida prepara o conhecimento do

determinismo real” 19) e às primeiras manifestações artísticas (pinturas rupestres, por

exemplo). Em suma, O caráter imaginário das ideias primitivas acentua o dinamismo do espírito humano, que projeta diante do espetáculo do universo e diante de seus próprios atos, concepções a priori. O homem é o único ser que, não contente em ver e experimentar, imagina, inventa, procura além das aparências o segredo das mesmas. Assim a magia – em suas piores extravagâncias – esboça já a autonomia da razão20. Deve-se considerar, ainda, a influência da feitiçaria no processo de

enriquecimento das fórmulas técnicas, até a “substituição” daquela por esta e

posteriormente de ambas pela ciência. Note-se que se trata de influência da magia

sobre a técnica, e não de relação de origem: a técnica possui uma origem biológica,

sendo “o desabrochar espontâneo, em um ser inteligente, de processos naturais de

                                                                                                               18 HUISMAN, Denis; VERGEZ, André. Compêndio moderno de filosofia: a ação. 4ª ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Universitária Freitas Bastos, 1982. 1 vol. p. 7- 9. 19 Ibid., p.11 20 Ibid., p. 11-12

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14  

adaptação ao meio, próprios a todos os seres vivos” 21 . E estes processos são

indubitavelmente essenciais ao progresso humano: o desenvolvimento do “complexo

técnico agricultura-pecuária” foi um divisor de águas no processo evolutivo da

sociedade antiga. Foi a partir do cultivo agrícola e da cultura pecuária que o homem

passou a transformar a natureza, e a demandar uma cada vez mais complexa rede de

estruturas e técnicas que lhe possibilitassem executar suas tarefas de forma

sistemática, prática e eficiente. Em suma, o progresso técnico exprime uma aspiração

prática do homem, que intenta agir sobre a natureza, manipulando-a e transformando-

a. Daí emerge o campo científico, que combina tais aspirações à demanda teórica do

espírito humano (primeiramente tratada pela religião, que busca suprir o desejo de

construir uma representação do mundo, preenchendo a lacuna ideológica e teórica por

meio de símbolos). As ciências tornam-se, assim, a experiência mais bem sucedida na

busca do homem por respostas, ao reunir, simultaneamente, a “inteligibilidade teórica

e a eficácia prática” 22. Em paralelo ocorre o desenvolvimento das belas-artes, que

negam o utilitarismo, buscam o belo e refinam as qualidades sensíveis da própria

busca. Diferem da ciência no que se refere às qualidades dos resultados. Segundo

Huisman e Vergez, A arte é concreta, a ciência é abstrata. Por isso a finalidade da arte é subjetiva, enquanto a ciência busca atingir a objetividade. É a oposição entre a ilusão e a verdade, mas é também a oposição entre as riquezas subjetivas e a impessoalidade fria [...] ‘A arte é ser absolutamente si mesmo’ 23. Em síntese, a diferenciação se dá na medida em que a ciência resulta da obra

conjunta de resultados somados, que oferecem suporte aos avanços seguintes. A arte,

em contrapartida, não possui esse caráter acumulativo como premissa de qualidade:

embora haja sim a influência artística de uns sobre os outros, tal influência não basta

para garantir o aprimoramento ou refino das gerações subsequentes.

Feita essa lacônica apresentação da concepção de cultura e suas principais

expressões pelos olhos de Huisman e Vergez, serão retomadas- as acepções

apresentadas por Nietzsche em Genealogia da moral, a fim de refletir sobre a

construção de uma moral social e pensar sobre sua influência em nossa herança

cultural e política.

                                                                                                               21 HUISMAN; VERGEZ, 1982, p. 12 22 Ibid., p. 16  23 Ibid., p.18

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15  

Com a formação dos primeiros agrupamentos sociais, intrínseca às adaptações

do indivíduo às normas coletivas, há necessidade do despertar do senso de

responsabilidade individual em cada membro do grupo. Tal responsabilidade,

traduzida em linhas gerais pelo “fazer promessas”, é o que garante a confiabilidade do

indivíduo, autorizando-lhe não apenas o convívio social mas, principalmente,

garantindo-lhe uma liberdade e autonomia supramoral. Tal liberdade é a expressão da

consciência de si próprio desenvolvida pelo indivíduo: como consequência da

imposição de uma moralidade do costume e de uma força disciplinadora de natureza

social, o indivíduo amadurece, torna-se responsável e, consequentemente, confiável.

Neste estágio o indivíduo emancipa-se da própria estrutura disciplinadora,

conquistando sua soberania, seu livre-arbítrio, seu poder em fazer promessas e ter a

confiança de que poderá vir a cumpri-las24.

Mas como se dá o processo de responsabilização do indivíduo? Nietzsche dirá

que a responsabilidade opõe-se ao esquecimento (das consequências de uma ação

ilícita ou irresponsável), motivo pelo qual se torna necessário o desenvolvimento de

uma memória inerente à mente. Quanto ao processo que originará tal memória, é

pautado substancialmente nos princípios do medo e do sofrimento: Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos sacrifícios e penhores, as mais repugnantes mutilações, os mais cruéis rituais de todos os cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de crueldade) – tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o mais poderoso auxiliar da mnemônica. Em determinado sentido isso inclui todo o ascetismo: algumas ideias devem se tornar indeléveis, onipresentes, inesquecíveis, “fixas”, para que todo o sistema nervoso e intelectual seja hipnotizado por essas “ideias fixas”- e os procedimentos e modos de vida ascéticos são meios para livrar tais ideias da concorrência de todas as demais, para fazê-las “inesquecíveis” 25.

Verifica-se a adoção de costumes severos, combinados a uma legislação e

código punitivo rigorosos, impostos com a finalidade de preservar o respeito às

exigências elementares ao convívio social. Nietzsche recordará do caso germânico: Esses alemães souberam adquirir uma memória com os meios mais terríveis, para sujeitar seus instintos básicos plebeus e a brutal grosseria destes: pense-se nos velhos castigos alemães, como o apedrejamento, a roda, o empalamento, o dilaceramento ou pisoteamento por cavalos, a fervura do criminoso em óleo ou vinho, o popular esfolamento, a excisão da carne do peito...Com ajuda de tais imagens e procedimentos, termina-se por reter na memória cinco ou seis “não-quero”, com

                                                                                                               24 NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 43-45. 25 Ibid., p. 46-7

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16  

relação aos quais se fez uma promessa, a fim de viver os benefícios da sociedade – e realmente! Com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente “à razão”!26 A psicologia das “sociedades antigas” legitimava a aplicação de tais

penalidades. Não se trata de um pensamento refinado, que pretende a punição àquele

que agiu de forma desonesta, mesmo tendo o arbítrio para tomar a decisão correta,

mas sim da legitimação do sentimento de vingança do indivíduo que se sente lesado

pela ação do infrator. Em outros termos, entende-se que a penalidade era aplicada

“por raiva devida a um dano sofrido, mas mantida em certos limites, e modificada

pela ideia de que qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser realmente

compensado, mesmo que seja com a dor do seu causador” 27.

Tal relação de equivalência entre prejuízo e sofrimento, originária da relação

contratual existente entre credor e devedor, propõe a substituição da compensação

material diretamente ligada ao dano por uma satisfação íntima, de natureza sádica,

daquele que expressa seu poder sobre o outro de forma cruel. Essa situação é

perfeitamente aplicável à condição pré-estabelecida entre comunidade e membro: a

comunidade é o credor, que fornece ao indivíduo a segurança para que este viva com

tranquilidade, ao passo que o membro contrai uma dívida moral e social para com a

coletividade. Se o membro torna-se infrator das regras sociais pré-estabelecidas,

enfrentará o castigo imediato – aquela penalização proporcional ao delito cometido –

e o castigo duradouro – será definitivamente excluído do convívio social e dos

benefícios oferecidos pela sua estrutura. Decorre que qualquer tipo de desgraça torna-

se potencial agressora daquele indivíduo excluído, que volta ao “estado selvagem e

fora da lei do qual ele fora até então protegido”. Este quadro se altera conforme

ocorra aumento do poder da comunidade: quanto mais fortalecida ela for, menos mal

poderá fazer um único indivíduo contra ela. Assim, também varia o grau da

penalização aplicada: o infrator não será mais expulso do convívio social, “a ira

coletiva já não pode se descarregar livremente sobre ele – pelo contrário, a partir de

então ele é cuidadosamente defendido e abrigado pelo todo, protegido em especial da

cólera dos que prejudicou diretamente” 28. Desse fenômeno refina-se a coerência

estruturante do código penal:

                                                                                                               26 NIETZSCHE, 2009, p. 47 27 Ibid., p. 48  28 Ibid., p. 56

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17  

Se crescem o poder e a consciência de si de uma comunidade, torna-se mais suave o direito penal; se há enfraquecimento dessa comunidade, e ela corre grave perigo, formas mais duras desse direito voltam a se manifestar. O “credor” se torna sempre mais humano, na medida em que se torna mais rico; e o quanto de injúria ele pode suportar sem sofrer é, por fim, a própria medida de sua riqueza29. Seja em sua forma mais branda ou severa, o castigo no âmbito do direito penal

recebe tratamento, via de regra ingênuo, dos genealogistas da moral: estes percebem

alguma das finalidades do castigo – vingança, exercício do poder, intimidação – como

a sua verdadeira causa de origem, distorcendo a real relação existente entre sua

utilidade e gênese: Assim se imaginou o castigo como inventado para castigar. Mas todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função; e toda a história de uma coisa, um órgão, um uso, pode desse modo ser uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas interpretações e ajustes, cujas causas nem precisam estar relacionadas entre si, antes podendo se suceder e substituir de maneira meramente casual. Logo, o desenvolvimento de uma coisa, em uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus em direção a uma meta, menos ainda um progressus lógico e rápido, obtido com um dispêndio mínimo de forças – mas sim a sucessão de processos de subjugamento que nela ocorrem, mais ou menos profundos, mais ou menos interdependentes, juntamente com as resistências que a cada vez encontram as metamorfoses tentadas com o fim de defesa e reação, e também os resultados de ações contrárias bem-sucedidas. Se a forma é fluida, o sentido é mais ainda30. Nietzsche distingue o aspecto duradouro do castigo – o costume, o ato em si, a

sequência de procedimentos que se repete a cada vez – daquilo que é fluido – o

significado e a finalidade da aplicação do castigo – preocupando-se em dissociar

ambos os aspectos da relação causal ao qual ingenuamente incorrem os genealogistas

da moral. Explica que é falacioso assumir o procedimento (a punição aplicada) como

resposta à necessidade de se castigar (tais condutas já eram anteriormente aplicadas

contra indivíduos do grupo, porém foram oportunamente reelaboradas como forma

legítima de castigo). Paralelamente, o significado do castigo torna-se mais complexo,

quão mais evoluída for a sociedade que o define. Tal significado passa a incorporar

novos sentidos, dificultando a análise e a percepção clara do porque se castiga. Dentre

as possíveis causas, Nietzsche considera o castigo como forma de impedir novos

danos e prejuízos, de isolar um elemento que perturba o equilíbrio (servindo também

de exemplo a outros potenciais criminosos), como forma de pagamento de um dano

causado ou compensação pelas vantagens que o infrator desfrutou ilicitamente, como                                                                                                                29 NIETZSCHE, 2009, p. 57 30 Ibid., p. 61

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18  

“festa e escárnio de um inimigo finalmente vencido”, como a mais pura manifestação

do sentimento de vingança, ou “como declaração e ato de guerra contra um inimigo

da paz e da ordem” 31.

Em todos os casos, contudo, não se perde a intenção de despertar o sentimento

de culpa do infrator, embora essa reação psíquica seja raramente verificada entre os

criminosos penalizados. Pelo contrário, o castigo é comumente percebido como o

causador do enrijecimento emocional do castigado em relação à sociedade que o

penaliza, na medida em que o condenado enxerga o cinismo do sistema que o condena

e pune: Não subestimemos em que medida a visão dos procedimentos judiciais e executivos impede o criminoso de sentir seu ato, seu gênero de ação, como repreensível em si: pois ele vê o mesmo gênero de ações praticado a serviço da justiça, aprovado e praticado com boa consciência – ações de modo algum reprovadas e condenadas em si pelos juízes, mas apenas em certo aspecto e utilização prática32. E mais ainda: o costume de castigar força e condiciona o indivíduo a não mais

externalizar seus instintos de forma livre – como outrora fizera em seu estado natural

de liberdade, fora da tutela social – e sim interioriza-los, preenchendo seu mundo

interior com sentimentos que se confrontam com sua própria existência. Assim,

sentimentos como a hostilidade, a destruição e a crueldade, não podendo ser

expressos contra o outro, voltam-se contra os próprios indivíduos que os possuem.

Desenvolve-se uma espécie de doença psíquica, definida por Nietzsche como a “má

consciência”, que gera o sofrimento do homem consigo, resultante da abrupta

separação do seu passado selvagem, no qual até então era expressa sua força, seu

poder e a satisfação de seus prazeres.

A origem da má consciência é percebida por intermédio de dois pressupostos.

Primeiro, a anteriormente citada noção de que a passagem do estado selvagem para o

da sociedade ordenada não fora nem gradual nem voluntária, mas sim coercitiva e

violenta, uma “fatalidade inevitável”, contra a qual não era possível resistir. Segundo, Que a inserção de uma população sem normas e sem freios numa forma estável, assim como tivera início com um ato de violência, foi levada a termo somente com atos de violência – que o mais antigo “Estado”, em consequência, apareceu como uma terrível tirania, uma maquinaria esmagadora e implacável, e assim prosseguiu seu trabalho, até que tal matéria-prima humana e semianimal ficou não só amassada e maleável, mas também dotada de uma forma33.

                                                                                                               31 NIETZSCHE, 2009, p. 64 32 Ibid., p. 65  33 Ibid., p. 69

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19  

Em suma, a ação coercitiva do Estado reprimiu o instinto de liberdade inerente

à natureza humana, obrigando os indivíduos a internalizarem seus instintos –

agressivos ou não – e propiciando o surgimento e desenvolvimento da má

consciência. A expressão daquela força ativa que institucionaliza o poder e constitui

o Estado é a mesma que aprisiona o homem em seus próprios pensamentos e o enche

de ideais negativos.

Em complemento a essas forças – advindas do Estado e da própria consciência

- há a força inerente à forma assumida pelo grupo. Este tipo de força que impele os

indivíduos a agirem em conformidade com o coletivo é amplamente analisado por

Elias Canetti em Massa e poder, no qual discorre sobre o comportamento do grupo

sob diferentes estímulos internos e externos à própria massa. O próximo subcapítulo

tratará justamente dessa temática, a fim de concluir o conjunto de análises sobre a

condição humana individual e social.

1.3 Metamorfoses do cenário sociopolítico: a formação das massas

Em Massa e Poder, Elias Canetti apresenta e esmiúça a definição de massa,

suas variáveis, origens e impactos. Fala ainda de sua interdependência conceitual aos

estudos sobre força e poder. Sua abordagem compreende reflexões à luz da filosofia,

sociologia, política e psicologia humana. Alguns dos conceitos trabalhados pelo autor

serão aqui apresentados, pois ilustram com clareza a metamorfose sociopolítica

sofrida pela população que testemunha e participa – como agressora ou como vítima –

da política genocida.

1.3.1 Os cristais de massa e as maltas

Por cristais de massa, Canetti refere-se a pequenos e bem definidos grupos de

homens, que permanecem unidos durante um longo período de tempo e que

desenvolvem atividades de conhecimento geral. Constituem unidade, ocupando um

determinado espaço, se destacando por certa forma de vestir ou agir. Sua ação

desencadeia as massas, contudo o cristal jamais se mistura a elas: mantém-se claro,

isolado e constante, ainda que a massa dele originária tenha crescido ou se extinguido.

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Define-se basicamente pelo caráter estático e pela constância histórica com que é

percebido em diferentes culturas34.

Os cristais de massa derivam de uma estrutura anterior, a malta35. A malta é

um pequeno agrupamento de animais ou homens, que se caracteriza pela igualdade e

direcionamento das ações individuais, e simulação dos processos de crescimento e

adensamento do grupo. Assim como os cristais, a malta é duradoura: constitui-se de

indivíduos familiares uns aos outros, o que possibilita o reencontro certo e recorrente.

Trata-se de “uma unidade de ação que se manifesta de forma concreta”, figurando

como a mais antiga forma de massa assumida entre os homens. Subdivide-se nas

categorias de caça, guerra, lamentação e multiplicação36.

A malta de caça é movida pelo desejo de abater um indivíduo ou um grupo

específico de seres vivos, que, indefeso, se encontra em movimento de fuga. A caçada

estende-se por um amplo espaço e a malta seguirá existindo até que o objetivo – a

captura e abate da caça – seja alcançado.

A malta de guerra trata-se fundamentalmente da duplicidade da malta de caça,

ou seja, o enfrentamento de duas maltas constituindo uma situação de guerra. A

distinção da malta de caça deriva do fato de que o “alvo” possui a mesma intenção de

caçar e abater seu adversário. Ademais, encontra-se em circunstância mais ou menos

semelhante de ataque e defesa, diferente da situação de caça, em que a vítima

encontra-se de tal forma desprotegida que não lhe sobra alternativa senão fugir37.

Ambos os elementos, cristais de massa e maltas de caça, são percebidos no

processo de metamorfose da estrutura social que precede e constitui o genocídio. Os

cristais de massa podem ser identificados em grupos militares, pequenos grupos de

representação política, religiosa ou étnica, que primeiramente estimulam a segregação

e hostilidade entre dois grupos étnicos, culturais ou religiosos distintos que coexistem.

No caso ruandês 38 , por exemplo, o núcleo fundador do Hutu Power,

movimento de libertação hutu que promoveu campanha nacional de ódio contra

                                                                                                               34 CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 72-4. 35 Do latim médio, movita, “movimento”.  36 CANETTI, 1995, p. 93-7 37 Ibid., p. 99-100 38 O genocídio de Ruanda ocorreu entre 6 de abril a 4 de julho de 1994, e resultou na morte de mais de 800 mil membros da etnia tutsi e hutus moderados, massacrados majoritariamente a golpes de facões e barras de ferro por militantes extremistas da etnia hutu, sob o comando dos milicianos do Hutu Power, movimento extremista que vinha ganhando projeção política desde meados da década de 1980. Embora os conflitos entre tutsis e hutus tenham se iniciado

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membros da etnia Tutsi, figura como o cristal de massa que desencadeou o processo

genocida no país. Já no caso sudanês, o cristal de massa derivou do poder político

central: do ditador Omar al-Bashir e de seus aliados39.

Já as maltas de caça são correntemente descritas em depoimentos de

testemunhas. Em Ruanda, por exemplo, os interahamwe (líderes da militância Hutu

Power) estimulavam o agrupamento de homens Hutus do mesmo bairro para que,

juntos, fossem à perseguição de Tutsis nas colinas próximas. Essa estratégia de agir

em um bairro diferente daquele de origem intencionava evitar a confrontação de

indivíduos conhecidos ou familiares (em depoimento, Fulgence Bunani, camponês

habitante da floresta de Kiganwa fala da preferência por matar desconhecidos, cujo

olhar “penetrava mais dificilmente na memória” 40).

As perseguições estendiam-se por horas, até que todas as vítimas fossem

abatidas. Os assassinos utilizavam facões, pedras e barras de ferro para desferir os

golpes. Encontravam-se em constante estado de excitação e euforia; quando

terminadas as atividades do dia, reuniam-se para beber e comemorar.

Em Uma temporada de facões, Jean Hartzfeld concentra testemunhos de

assassinos que bem descrevem essa estrutura organizacional, como os relatos de

Pancrace Hakizamungili, habitante de Ruhengeri e Ignace Rukiramacumu, habitante

da colina de Kibungo, respectivamente: Durante essa temporada das matanças, a gente se levanta mais cedo que de costume, para comer bastante carne; e subíamos para o campo de futebol lá pelas nove ou dez horas. Os chefes esbravejavam com os retardatários, e a gente ia para os ataques. A

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             antes da chegada dos colonos europeus ao continente africano, a interferência belga nos processos de distribuição sociopolítica do país (beneficiando a minoria tutsi com o controle sobre a administração pública e, principalmente, a arrecadação tributária) certamente colaborou para a intensificação da animosidade entre as etnias. Após a conquista da independência a elite tutsi foi deposta, passando a ser alvo de políticas discriminatórias por parte do governo e práticas hostis por parte da população Hutu (cerca de 80% da população total do país). A situação foi agravando-se gradativamente, até o momento em que um golpe de Estado promovido pelo grupo radical Hutu Power (o assassinato do então presidente ruandês Juvénal Habyarimana e do presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira) inaugurou um processo genocida que se estenderia pelos três meses subsequentes. 39 A saber: o genocídio ocorrido no Sudão foi denunciado internacionalmente em 2003, através de relatórios da ONU, que apontaram casos sistemáticos de estupro como instrumento de guerra, bombardeios a campos de deslocados, ondas de saques e deslocamento forçado de refugiados, resultando na morte de mais de 200 mil civis e aproximadamente 2,5 milhões de refugiados.  40 HATZFELD, Jean. Uma temporada de facões. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 140.

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regra número um era matar. A regra número dois, não havia. Era uma organização sem complicações41.

A gente se reunia numa multidão de mil pessoas no campo, partia para as matas em companhia de cem ou duzentos caçadores, éramos levados por dois ou três homens armados de fuzil, militantes ou intimidadores. Na borda lamacenta das primeiras fileiras de papiro, a gente se separava em grupos de conhecidos42.

Através destes relatos, faz-se clara a caracterização das maltas de caça. Por

outro lado, os depoimentos também dão elementos para se analisar o fenômeno de

formação das massas, conforme se verá no próximo item.

1.3.2 As massas e suas características

O maior medo do homem é o contato com o que lhe é desconhecido. Somente

na massa o homem vê-se livre desse temor, uma vez que a compressão dos corpos

cria a sensação de unificação e adensamento psíquico entre os indivíduos que a

constituem. A massa deseja libertar-se tão completamente quanto possível do temor

individual do contato, e por isso busca incessantemente concentrar-se de forma densa.

Canetti chama a esse processo de inversão do temor do contato, ou seja,

“quanto mais energeticamente os homens se apertarem uns contra os outros, tanto

mais seguros eles se sentirão de não se temerem mutuamente” 43. É em meio a esse

processo de adensamento que se dá a descarga: quando deixam de importar as

diferenças individuais entre as pessoas e todos se sentem iguais. Neste momento

quase não há espaço entre um e outro indivíduo e cada um percebe o outro como

extensão de si próprio: assim, constitui-se a massa44.

Este fenômeno é, pois, fundamental para se compreender as principais

propriedades da massa (e essencial para a sustentação argumentativa dos capítulos I e

II dessa monografia): o permanente desejo de crescer; o desejo de adensar-se cada vez

mais (o sentimento de densidade máximo será sentido quando no momento da

descarga); a igualdade que predomina no interior da massa e a necessidade de

direcionamento (“uma meta exterior aos indivíduos e idêntica para todos soterra as

metas particulares e desiguais que significariam a morte da massa” 45).

                                                                                                               41HATZFELD, 2005, p. 20 42Ibid., p. 23  43CANETTI, 1995, p. 14 44 Ibid., p. 17 45 Ibid., p. 28

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Existem diferentes classificações de massa, como as massas abertas e

fechadas, lentas e velozes, rítmicas, estanques e invisíveis. Contudo, aquelas que

merecem particular atenção são as classificadas segundo o afeto dominante: as massas

de acossamento, de fuga, de proibição, de inversão e a massa festiva46.

Originária da malta de caça, a massa de acossamento constitui-se com o claro

objetivo de matar. Todos os indivíduos que a constituem desejam desfechar, eles

próprios, o golpe fatal na vítima, e por esse motivo é que ao entorno dela se

aglutinam: ao concentrar em torno de si as ações de todos, o espaço ocupado pela

vítima torna-se simultaneamente a meta e a densidade da massa47.

Dadas as avantajadas dimensões da massa frente à vítima indefesa, constata-se

a inexistência de perigo para a primeira: nem contragolpe, nem sanções posteriores

são esperadas. Assim, os indivíduos sentem-se estimulados a libertar seus instintos

sem temer quaisquer medidas punitivas posteriores: agem coletivamente, e, portanto,

não poderão ser responsabilizados de forma individual. Ademais, o impulso de

destruir o outro é influenciado por um mecanismo psíquico do homem: com o

objetivo de defender-se e escapar da permanente ameaça de morte a que está sujeito

todo ser vivo, o indivíduo busca desviar a morte para os outros, através da

constituição da massa de acossamento. Como descrito por Canetti (1995), “a massa

caminha rumo ao sacrifício e à execução, e o faz com o intuito de, repentinamente e

para sempre, livrar-se da morte de todos os que a compõe” 48; o faz com pressa,

euforia e êxtase, porém tão logo o concretiza, é dominada pelo sentimento de ameaça

à própria vida e corre para dissolver-se49. É por conta dessa rápida reação de

desagregação da massa de acossamento que as lideranças políticas ou religiosas

detentoras de poder arquitetam a perpetração do processo de perseguição e destruição

de vítimas: quanto mais tempo perdurar o processo, mais eufórica e poderosa se

constituirá a massa50.

                                                                                                               46 CANETTI, 1995, p. 46-7 47 Ibid., p. 48  48  Loc. cit.  49 Ibid., p. 48 50 Em episódios contemporâneos de genocídio, como, por exemplo, os casos ruandês e sudanês, a constituição das massas de acossamento e maltas de caça alternam-se conforme a região – vila, tribo, província ou cidade - em que ocorrem, número de pessoas que reúnem e poder exercido pelos cristais de massa que as guiam. Contudo, além dessas variações regionais, há ainda uma nova expressão da massa de acossamento, que deriva da modernização dos veículos de comunicação e imagem em escala global.

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Canetti destaca que, no decorrer do século XX, a massa de acossamento

assumiu nova forma, mais branda: não mais resumida à constituição de uma massa

física que persegue e massacra, mas sim representada pela ação da imprensa, que

condena e executa publicamente pessoas diante de uma plateia infinitamente superior

e mais bem informada51. Paralelamente, há a curiosidade expressa pela comunidade

internacional, que, em um misto de assombramento e genuíno interesse, atém-se às

notícias relativas a massacres e políticas de limpeza étnica sem receber de forma

minimamente responsável aquele fragmento de informação, desprendendo-se dos

fatos tão logo voltar sua atenção a outra notícia52.

Na contraparte da massa de acossamento, há a massa de fuga, derivada de uma

ameaça comum a todos os indivíduos que a constituem. Esses indivíduos adensam-se

no movimento de fuga, pois assim fogem melhor: a excitação de um energiza os

demais, intensificando as forças do grupo. Por outro lado, enquanto juntas, as pessoas

“sentem o perigo distribuído por todos”: são guiadas pela crença de que a ameaça

atingirá um único ponto da massa, livrando os demais do perigo. Sob essa concepção,

fugir coletivamente potencializa as chances de sobrevivência, pois dilui as

probabilidades de captura. Assim, agrupam-se os seres em fuga, que tem como única

meta a salvação. Ademais, a captura ou queda de um dos membros serve como                                                                                                                51 CANETTI, 1995, p. 51 52 Jean Baudrillard acusa essa dinâmica de perseguição midiática como expressão da violência na modernidade, o terror dos nossos tempos. Diz que a violência está “latente no vazio da tela [...] a tal ponto, que mais vale não se encontrar num local público onde opera a televisão, haja vista a forte probabilidade de se produzir um acontecimento violento induzido por sua própria presença” (BAUDRILLARD, Jean. A transparência do Mal. Campinas, SP: Papirus, 1990. P.83-4). Em paralelo, Jacques A. Wainberg aponta a sensibilidade da mídia em perceber a relevância da violência como instrumento para “despertar o aparato cognitivo humano de sua apatia costumeira”. Alerta, contudo, que a exposição abusiva de recursos dessa natureza acabam por gerar “medo, perda da sensibilidade da audiência e desinibição (o que leva certo tipo de pessoa a imitar na vida real o ato violento e sua técnica)” (WAINBERG, Jacques A. Mídia e terror: comunicação e violência política.São Paulo: Paulus, 2005. p. 11-12), resultando em uma postura passiva por parte do espectador. Tal postura é amplamente condenada por Baudrillard: segundo o autor, somos cúmplices da ação predatória da mídia e da disseminação da violência, tendo em vista que ansiamos pelos acontecimentos e pela propagação das suas imagens, em uma demanda coletiva pela perpetração do modelo terrorista. Este processo é a expressão do confronto entre forças ociosas e indiferentes (manifestas pela inércia do telespectador frente ao bombardeio de imagens perturbadoras), que agem sobre a “cristalização mortífera da indiferença”: “Mais do que um acontecimento, essa violência é, no fundo, como o terrorismo, a forma explosiva que a ausência de acontecimento assume. Ou melhor, a forma implosiva: é o vazio político (mais do que o ressentimento deste ou daquele grupo), é o silêncio da história (e não o recalque psicológico dos indivíduos), é a indiferença e o silêncio de todos que implodem nesse acontecimento. Não é, portanto, um episódio irracional da vida social, está em cheio na lógica de sua aceleração no vácuo” (BAUDRILLARD, 1990, p. 84-5).

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estímulo aos outros: veem o fim do mais fraco como um alerta do que lhes pode

acontecer, e por isso correm mais. Neste movimento estabelecem uma sincronia, um

impulso coletivo que os move para frente. Embora aos olhos externos a fuga possa

parecer caótica, internamente ela é coesa: todos correm, mas correm juntos, fugindo

de uma mesma fonte de perigo em direção a uma mesma área de salvação. Se

porventura a massa perder sua direção, institui-se o pânico, a partir do qual os

indivíduos em fuga passam a lutar uns contra os outros, em um movimento de

desobstrução do caminho à salvação. Se a massa se mantiver coesa e não for

desintegrada pela instauração do caos, poderá dissolver-se de três outras formas: pela

extinção da fonte de perigo, pela salvação dos indivíduos que fogem ou pelo

escoamento da fuga na areia (poucos sobreviventes, mesmo sem perspectiva de

salvação, mantém-se unidos até o fim) 53. Em suma, a massa de fuga constitui a

imagem mais perturbadora do cenário genocida: seja na casa das dezenas, seja aos

milhares, o grupo caçado ou em êxodo contabiliza mulheres, idosos e crianças,

doentes e feridos, famílias inteiras que tentam carregar os poucos bens que lhes

restam.

Neste item foram verificadas as principais propriedades da massa, assim como

as suas diferentes classificações. Contudo, ainda resta saber sob que estimulo elas

primeiramente se estruturam. Trata-se da observação prática do papel dos cristais no

processo de formação das massas, assim como a contextualização dessa forma de

agrupamento em um cenário de dominação sociopolítica - que em situação extrema se

submete à força do poder totalitário. Neste capítulo foram discutidos os conceitos

básicos para se entender o homem individualmente e o homem pertencente à massa;

no próximo serão tratados os conceitos relativos ao homem enquanto membro de uma

organização sociopolítica – exposto à dominação, violência e ordem.

                                                                                                               53 CANETTI, 1995, p. 52-3

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2 A VIOLÊNCIA COMO INSTITUINTE DA POLÍTICA:

FUNDAMENTOS DE UMA POLÍTICA DE EXCLUSÃO

No primeiro capítulo foram apresentados os pensamentos de autores que se

dedicaram à análise e estudo das características do homem, individual e pertencente à

massa. O exercício reflexivo sobre a condição humana desta perspectiva será, pois,

essencial para dar suporte à construção argumentativa que se seguirá neste segundo

capítulo.

Aqui continuar-se-á a tratar das características humanas, desta vez em sua

forma social e política. O homem não mais será considerado como um indivíduo

isolado, mas sim como o membro de um grupo organizado politicamente que, em

função dessa organização, comporta-se de uma determinada forma. Será possível

compreender o papel do soberano ou líder, e como se manifesta política e socialmente

seu poder sobre os demais cidadãos.

2.1 A violência constituinte do Estado

Serão enumerados neste capítulo os efeitos da dominação, do uso da força

como instrumento coercitivo, da violência e da geração de medo para garantir a

ordem: o primeiro subcapítulo trata de conceitos relativos ao homem enquanto

membro integrante de uma sociedade politizada, pois é apenas através da análise dos

efeitos diretos dessas praticas sobre o indivíduo que se compreende como as forças

tirânicas conseguem se estabilizar no poder e expandir sua área de influência –

assunto que será tratado no segundo subcapítulo. 2.1.1 Dominação sobre indivíduo e grupo: elementos do desenvolvimento civilizatório

Homo homini lupus54, afirma Freud, pois aos homens é inerente o impulso à

agressividade contra o outro. Aflora, dentre seus dotes instintuais, o desejo de

explorar, roubar, torturar e matar o outro, e a História é prova expressa disso: Quem chama à lembrança os horrores da migração dos povos, das invasões dos hunos, dos mongóis de Gêngis Khan e Tamerlão, da conquista de Jerusalém, pelos

                                                                                                               54 O Homem é o lobo do homem, traduzido do latim.

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piedosos cruzados, e ainda as atrocidades da recente Guerra Mundial, terá de se curvar humildemente à verdade dessa concepção55. A existência desse impulso percebido em nós mesmos e nos demais que nos

circundam é o fator fundamental de desestabilização dos relacionamentos

interpessoais que se originam no meio social. Pondo em risco as relações sociais,

também compromete a própria estrutura político-administrativa, motivo pelo qual a

civilização recorre a dispositivos de controle e supressão dos impulsos agressivos

humanos56. Nesta busca pela prevenção dos excessos da violência, a civilização se

                                                                                                               55 FREUD, 2011, p. 57. 56 Contudo, a lei não possui recursos suficientes para “abarcar as expressões mais cautelosas e sutis da agressividade humana” (CANETTI, 1995, p.296), pois não é fácil para o homem renunciar à sua agressividade. Freud dirá que é sempre possível constituir um grupo de pessoas ligadas por sentimentos de amorosidade e fraternidade, “desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade”. Exemplifica tal colocação ao tratar do “narcisismo das pequenas diferenças” existente entre comunidades vizinhas, que serve, em última instância, para reafirmar os vínculos intra-grupo à medida que acentua as diferenças inter-grupo. Um dos exemplos mais recorrentes na História moderna é o do povo judeu, que, embora disperso desde o Oriente Próximo até a Península Ibérica, poucas vezes conseguiu enraizar-se e adaptar-se plenamente à realidade da cultura nacional hospedeira, por iniciativa própria ou dos cidadãos locais, sendo muitas vezes alvo de políticas discriminatórias por parte dos governantes e por iniciativa da própria população nacional. Como mencionado por Hannah Arendt, “historicamente, o hiato entre os fins da Idade Média e a época moderna [...] durou do início do século XV até o fim do século XVI, quando as relações entre judeus e gentios estiveram mais frágeis do que nunca, quando a ‘indiferença judaica às condições e eventos do mundo exterior’ foi mais profunda do que antes, e o judaísmo se tornou um ‘sistema fechado de pensamento’. Foi por essa época que os judeus, sem qualquer interferência externa, começaram a pensar que ‘a diferença entre o povo judeu e as nações era, fundamentalmente, não de credo, mas de natureza interior’, e que a antiga dicotomia entre judeus e gentios ‘provinha mais provavelmente de origem étnica do que de discordância doutrinaria’. Essa mudança na avaliação do caráter diferente do povo judeu – que só surgiu entre os não-judeus muito mais tarde, na Era do Esclarecimento – constituiu certamente a condição sine qua non do nascimento do antissemitismo, e é de certa importância observar que ela ocorreu primeiro no ato da auto-interpretação judaica, surgido na época da fragmentação da cristandade europeia em grupos étnicos, os quais depois alcançariam a autonomia política, formando o sistema de Estados-nações” (ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 18). A opinião da filosofa condiz, em essência, com as considerações do psicanalista e teórico austríaco Bruno Bettelheim, que escreveu sobre a mentalidade do gueto para também acusar uma postura provinciana que permeia o tradicionalismo judaico há séculos: “sabemos que a história judaica é uma estranha combinação de universalismo e provincianismo, do maior movimento pela liberdade espiritual e a mais mesquinha intolerância” (BETTELHEIM, Bruno. A Viena de Freud e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora Campus Ltda., 1991. p. 237). Bettelheim denuncia os conjuntos de contradições mantidas pelas comunidades judaicas, dentre as quais a mais evidente é o ambíguo posicionamento judeu de, por um lado, almejar a igualdade social perante uma sociedade cristã e, por outro, optar quase sempre pelo convívio isolado em comunidades judaicas. Em suma: “Apesar da insistência judaica de que não deveria haver barreiras de moradia e que todos os homens deveriam conviver em igualdade, um exame das preferências residenciais entre judeus revela ambiguidades ao

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reserva o direito de, ela mesma, fazer uso da força coercitiva para punir os infratores e

desestimular aqueles que intencionam agir57.

Em suma, a história evolutiva humana é marcada pela repressão social e

biológica do homem, imposta pelo próprio homem por intermédio da cultura, a fim de

viabilizar a evolução filogenética58 – assumindo-se que esta só pode desenvolver-se

quando o primeiro objetivo instintivo do homem (seu impulso vital, ou o Eros) é

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             mesmo tempo óbvias e sutis [...] Definitivamente desejam residir em comunidades não segregadas. Contudo só se sentem à vontade quando vivem em estreito contato com outros judeus” (BETTELHEIM, 1991, p. 241). Outra manifestação deste impulso de diferenciação e agressão direcionada “para fora” se expressa por meio do prazer em condenar o outro. Este fenômeno decorre de duas necessidades: primeiro, agrupar e classificar pessoas. Canetti fala que a contraposição de grupos “lhes confere uma espécie de densidade”, que estimula a segregação, a hostilidade e a perpetração de uma tensão permanente e potencialmente crescente entre esses diferentes núcleos. Na base desse processo, dirá o autor, encontra-se uma das razões pelas quais se desenvolvem maltas inimigas e de guerra. A segunda necessidade que justifica o prazer da condenação é o desejo do indivíduo de diferenciar-se do outro, sob a lógica de que, ao rebaixar e desclassificar uma pessoa ou grupo de pessoas, promove a sua própria ascensão qualitativa em uma escala imaginaria. Assim, tem-se a aplicação de um modelo dicotômico: o homem afirma o mau do outro, enaltecendo sua própria natureza boa. Desse modo, aquele que condena ocupa dois papéis simultâneos, dotados de duas formas de poder distintas: é o “juiz” que profere o veredito acerca do julgamento, e também é o terceiro elemento, aquele que se opõe ao outro e sua classificação degradante. 57 A legitimidade do uso da força pelo Estado como instrumento perpetrador do sentimento de segurança na sociedade será oportunamente tratado, pela perspectiva hobbesiana, no próximo subcapítulo. Por ora, apresentaremos os efeitos da dominação sobre o indivíduo e grupo à luz de Freud, que se utiliza de sua análise psicanalítica para fundamentar uma explicação de orientação antropológica. Embora cronologicamente o pensamento de Hobbes tenha precedido o de Freud, obedeceremos aqui uma ordem de análise indivíduo-grupo, apresentando de forma lacônica a análise freudiana acerca dos efeitos da dominação sobre a psique do homem para, posteriormente, avaliar os efeitos político-sociais desta dominação. É imprescindível destacar, contudo, que aceitamos a especulação antropológica freudiana fundamentalmente pelo seu significativo valor simbólico, enquanto introdução ao debate sobre a questão da dominação no contexto civilizatório:“Se a hipótese de Freud não for corroborada por qualquer prova antropológica, terá de ser inteiramente rejeitada, excetuando o fato de que ela encaixa, numa sequência de eventos catastróficos, toda a dialética histórica de dominação e, por conseguinte, elucida aspectos da civilização até aqui inexplicados […] Os eventos arcaicos que a hipótese estipula poderão estar para sempre fora do alcance da verificação antropológica; as consequências alegadas desses eventos são fatos históricos, e a sua interpretação, à luz da hipótese de Freud, empresta-lhe um significado até hoje omitido, que aponta para o futuro histórico. Se a hipótese desafia o senso comum, proclama, no entanto, à sua revelia, uma verdade que esse mesmo senso comum tem sido treinado a esquecer” (MARCUSE, Hebert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, p.70). 58 Conceito freudiano referente à “evolução da civilização repressiva, desde a horda primordial até o estado civilizado plenamente constituído”, (Ibid., p.39).

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neutralizado. Esta condição repercute no processo de transformação da natureza

humana: o homem é coagido a restringir seu prazer, sublimar seu sentimento de

satisfação, despender esforço através do trabalho, ser produtivo e zelar pela segurança

da coletividade, em detrimento da liberdade instintual experimentada em tempos

passados. Essa mudança ilustra a transformação do “princípio de prazer” em

“princípio de realidade”, que pode também ser associada à variação do grau de

influência do inconsciente e do consciente na conduta do indivíduo (ou os distintos

processos e princípios mentais incidentes sobre o indivíduo).

Sinteticamente, O princípio de realidade supera o princípio de prazer: o homem aprende a renunciar ao prazer momentâneo, incerto e destrutivo, substituindo-o pelo prazer adiado, restringido mas “garantido”. Por causa desse ganho duradouro, através da renúncia e restrição, de acordo com Freud, o princípio de realidade “salvaguarda”, mais do que “destrona”, e “modifica”, mais do que nega, o princípio de prazer59.

Sob o princípio de realidade o homem desenvolve faculdades, cria recursos

para julgar e distinguir valores e assim constituir uma consciência. Logo, o processo

de transformação do animal homem em ser humano consciente e racional impõe o

condicionamento do aparelho mental ao princípio de realidade (uma única forma de

atividade mental mantém-se livre da influência do princípio de realidade, a fantasia,

que permanece vinculada ao princípio de prazer).

A subordinação do princípio de prazer ao de realidade sintetiza o “grande

acontecimento traumático” no desenvolvimento humano, perpetrado no decorrer da

história humana (em ambos os aspectos da filogênese e da ontogênese -“a evolução

do individuo reprimido, desde a mais remota infância até a sua existência social

consciente” 60).

Entretanto, O fato do princípio de realidade ter de ser continuamente reestabelecido no desenvolvimento do homem indica que o seu triunfo sobre o princípio de prazer jamais é completo e seguro [...] O que a civilização domina e reprime – a reclamação do princípio de prazer – continua existindo na própria civilização [...] Rechaçada pela realidade externa ou mesmo incapaz de atingi-la, a força total do princípio de prazer não só sobrevive no inconsciente, mas também afeta, de múltiplas maneiras, a própria realidade que superou o princípio de prazer. O retorno do reprimido compõe a história proibida e subterrânea da civilização [...] O pai primordial, como arquétipo da dominação, inicia a reação em cadeia de escravização, rebelião e dominação reforçada, que caracteriza a história da civilização [...] Mas, desde a primeira e pré-

                                                                                                               59 MARCUSE, 1978. p 35. 60 Ibid., p.39

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histórica restauração da dominação, após a primeira rebelião contra esta, a repressão externa foi sempre apoiada pela repressão interna: o indivíduo escravizado introjeta seus senhores e suas ordens no próprio aparelho mental. A luta contra a liberdade reproduz-se na psique do homem, como a auto-repressão do indivíduo reprimido, e a sua auto-repressão apoia, por seu turno, os senhores e suas instituições. É essa dinâmica mental que Freud desvenda como a dinâmica da civilização61.

Freud assume a impossibilidade de existência de uma civilização não-

repressiva. Descreve a história da repressão na estrutura instintiva do homem: “a luta

pelo destino da liberdade e felicidade humanas é travada e decidida na luta dos

instintos, em que o soma e a psique, a natureza e a civilização participam” 62.

Nesta luta, opõe-se Thanatos e Eros. O primeiro, instinto agressivo e

destrutivo do homem, é caracterizado como a manifestação de um instinto de morte

direcionado ao mundo exterior. Este instinto de morte, identificável como o impulso à

dissolução das relações e das construções humanas, contrapõem-se ao Eros, que

trabalha pela conservação e pela agregação das “substâncias viventes”. Ademais,

aquele instinto seria condicionado ao serviço deste, na medida em que o indivíduo

destruiria outras coisas, em lugar de si próprio. Inversamente, a limitação dessa agressão voltada para fora teria de aumentar a autodestruição, aliás sempre existente. Ao mesmo tempo, a partir desse exemplo podemos suspeitar que as duas espécies de instintos raramente – talvez nunca –surgem isoladas uma da outra, mas se fundem em proporções diferentes e muito variadas, tornando-se irreconhecíveis para nosso julgamento. No sadismo, há muito conhecido como instinto parcial da sexualidade, teríamos uma fusão assim, particularmente forte, entre o impulso ao amor e o instinto de destruição, e na sua contraparte, o masoquismo, uma ligação da destrutividade dirigida para dentro com a sexualidade, o que faz visível e notável a tendência normalmente imperceptível.63 Essa coexistência resulta em culpa, que é a expressão do conflito de

ambivalência, a eterna luta entre Eros e o instinto destrutivo. Este conflito intensifica-

se quando os indivíduos passam a viver em grupo; quando este se limita ao ambiente

familiar, tal culpa manifesta-se no complexo de Édipo64, ao passo que quando o grupo

                                                                                                               61 MARCUSE, 1978, p. 36-37 62 Ibid., p.41 63 FREUD, 2011, p. 64 64 A situação edípica é a máxima representação da dominação exercida pelo pai primordial, a quem se atribui a organização do grupo: a imagem do pai simboliza o homem monopolizador do prazer supremo (representado pela imagem feminina) e subjugador dos demais membros masculinos do grupo - os filhos, dos quais suprime o prazer (gerando sofrimento) e força à execução das atividades “desagradáveis”. Em suma, verifica-se que o pai primordial (o governante ou líder) impõe as condições necessárias ao progresso da civilização, a saber: a repressão do prazer e o condicionamento ao trabalho, tornando-se o primeiro agente estabelecedor da ordem social. Em contrapartida, desperta o ódio e o rancor de seus filhos

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é estendido às proporções de uma comunidade, tal sentimento expande-se: “como a

cultura obedece a um impulso erótico interno, que a faz unir os homens em uma

massa intimamente ligada, só pode alcançar esse fim mediante um fortalecimento

cada vez maior do sentimento de culpa” 65. Assim, aquele sentimento inicialmente

voltado ao pai redimensiona-se às proporções da massa, em um processo de

desenvolvimento psíquico do indivíduo que se deixa permear pela cultura.

É relevante assinalar que, embora a dominância do princípio de racionalidade

sobre a conduta individual ocorra ainda na infância, parte das experiências

traumáticas transformadoras pela qual passa a criança não são suas, mas sim pré-

individuais e genéricas, características do gênero humano. Exemplos como a situação

edípica, o desenvolvimento da sexualidade e a absorção de princípios morais através

da convivência e educação, expressam a influência filogenética do homem primitivo

no desenvolvimento individual.

A civilização desenvolve-se sem dissociar-se de sua herança arcaica, uma

combinação de ensinamentos e memória coletiva ancestral determinante no processo

evolutivo da espécie. Assim, ao reconhecer-se a relação mantida entre a construção

psíquica individual e a herança arcaica coletiva, pode-se afirmar que a “psicologia

individual é, em si mesma, psicologia grupal” 66: Na medida em que a Psicologia rasga o véu ideológico e descreve a construção da personalidade, é levada a dissolver o indivíduo: sua personalidade autônoma surge-nos como a manifestação congelada da repressão geral da humanidade. A autoconsciência e a razão, que conquistaram e deram forma ao mundo histórico, fizeram-no à imagem e semelhança da repressão, interna e externa67. Considerando-se esta dimensão da abordagem freudiana, é possível introduzir

na análise a perspectiva de La Boétie (1990), em seu Discurso da servidão voluntária,

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             submissos, o que repercute na revolta destes e no consequente assassinato e celebração do ritual de devoração coletiva do pai. Os irmãos constituem um clã - substituto do pai deposto - e reintroduzem os tabus e restrições que moldarão a nova moralidade social: “Num sentido estrito, a civilização só começa no clã dos irmãos quando os tabus, agora auto-impostos pelos irmãos governantes, implementam a repressão no interesse comum de preservação do grupo como um todo...E o evento psicológico decisivo que separa o clã dos irmãos da horda primordial é o desenvolvimento do sentimento de culpa. O progresso, para além da horda primordial – isto é, a civilização – pressupõe o sentimento de culpa, que introjeta nos indivíduos e, portanto, sustém as principais proibições, restrições e dilações na gratificação, das quais a civilização depende” (MARCUSE,1978, p.71-2.). 65 MARCUSE, 1978, p.79 66 Ibid., p.67 67 Loc. cit.

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em que reflete sobre a origem e o segredo da dominação tirânica. O autor discorre

acerca de um fenômeno comumente percebido em estudos sociopolíticos no decorrer

da História, a submissão dos povos ao poder de um líder tirânico. Sua tese dialoga

com a construção argumentativa de Freud, complementando-a. Enquanto Freud

explica a dominação por meio da psicologia individual, para posteriormente estender

a explicação às dimensões do grupo, a análise de La Boétie sobre as motivações

individuais surge como recurso de esclarecimento da dominação tirânica, enquanto

exercício de poder consentido pelas massas subjugadas.

A retórica desenvolvida é singular, uma vez que La Boétie questiona não a

legitimidade de tal poder (pois para ele lhe parece óbvio que tal legitimidade inexiste

em uma situação de governança tirânica), mas o que motiva ou conduz grupos de

centenas de milhares de pessoas em diferentes momentos da história e distintas

regiões do mundo a aceitarem passivamente tal situação, que lhes é claramente

degradante ao corpo e à mente68. Coisa extraordinária, por certo; e porém tão comum que se deve mais lastimar-se do que espantar-se ao ver um milhão de homens servir miseravelmente, com o pescoço sob o jugo, não obrigados por uma força maior, mas de algum modo (ao que se parece) encantados e enfeitiçados apenas pelo nome de um, de quem não devem temer o poderio pois ele é só, nem amar as qualidades pois é desumano e feroz para com eles.69 Questiona a natureza de tal passividade, divagando se a perpetração da

dominação por gerações compromete a capacidade de desejar a liberdade daqueles

que nascem depois (“Os homens nascidos sob o jugo [...] como não pensam ter outro

bem nem outro direito que o que encontraram, consideram natural a condição de seu

nascimento” 70), ou se seria fraqueza, covardia, desprezo ou conformismo. Indigna-se

com esse vício que determina o comportamento coletivo, que oferece ao tirano todas

as ferramentas necessárias ao exercício da dominação:

                                                                                                               68 É pertinente a proposta de confrontação entre as leituras de La Boétie e Hobbes, pensando-se nas dicotomias quanto à tese e construção argumentativa. Hobbes defende a dominação do soberano através do contrato social, justificando ser a falta de liberdade mais atrativa ao individuo do que o risco à própria vida. Para ele o contrato se dá em uma justa condição de troca entre as partes, ao passo que para La Boétie a situação é de exploração e desigualdade entre as partes, o que inviabiliza a possibilidade do contrato. 69 LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 12 70 Ibid., p. 20

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Aquele que vos domina tanto só tem dois olhos, só tem duas mãos, só tem um corpo, e não tem outra coisa que o que tem o menor homem do grande e infinito número de vossas cidades, senão a vantagem que lhe dais para destruir-vos. De onde tirou tantos olhos com os quais vos espia, se não os colocais a serviço dele? Como tem tantas mãos para golpear-vos, se não as toma de vós? Os pés com que espezinha vossas cidades, de onde lhe vêm senão dos vossos? Como ele tem algum poder sobre vós, senão por vós? Como ousaria atacar-vos se não estivesse conivente convosco? Que poderia fazer-vos se não fôsses receptadores do ladrão que vos pilha, cúmplices do assassino que vos mata, e traidores de vós mesmos?71

Em contrapartida, reconhece que a própria origem e condição do poder

tirânico é alternativa ao povo que deseja libertar-se. Discorre: Não é preciso combater esse único tirano, não é preciso anulá-lo; ele se anula por si mesmo, contanto que o país não consinta a sua servidão; não se deve tirar-lhe coisa alguma, e sim nada lhe dar; não é preciso que o país se esforce a fazer algo para si, contanto que nada faça contra si. Portanto são os próprios povos que se deixam, ou melhor, se fazem dominar, pois cessando de servir estariam quites; é o povo que se sujeita, que se degola, que, tendo a escolha entre ser servo ou ser livre, abandona sua franquia e aceita o jugo; que consente seu mal – melhor, dizendo, persegue-o.72 La Boétie fala ainda da estrutura política que permite e apoia a dominação do

tirano. O “segredo da dominação” se reflete no pequeno grupo de conselheiros do rei,

que exercem forte influência sobre suas decisões. Tendo seus próprios interesses

defendidos pela gestão do soberano, os conselheiros passam a defendê-lo e a seu

trono com grande empenho e devoção.

Como alta representante da hierarquia social, essa seleta elite exerce

dominação direta sobre algumas dezenas de indivíduos, que por sua vez exercem

domínio sobre tantas outras centenas de pessoas e assim por diante. Dessa forma,

alastra-se uma rede de poder sobre uns e outros, a multiplicação dos sustentáculos da

tirania, integrados pela ponta da cadeia hierárquica, pela imagem do tirano e seu

grupo de conselheiros. Em suma, “que se chegue lá por favores ou subfavores, ocorre

que afinal há quase tanta gente para quem a tirania parece ser proveitosa quanto

aqueles para quem a liberdade seria agradável” 73, expondo a insidiosidade dos

mecanismos de poder.

Destarte, a tirania do soberano perpetra-se como consequência da combinação

dessa cadeia sociopolítica hierarquizada e consistente (“o tirano subjuga os súditos

                                                                                                               71 LA BOÉTIE, 1990, p. 16 72 Ibid., p.14 73 Ibid., p.32

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uns através dos outros e é guardado por aqueles de quem deveria se guardar” 74) e a

frívola ilusão dos indivíduos que se julgam beneficiados por pequenas regalias

concedidas por seus superiores. Desejam possuir bens materiais e outras bonificações,

e não enxergam suas possibilidades para além daquela realidade ditada pelas normas

do soberano e sua elite. Estão presos a uma realidade doutrinária e, portanto, fecham-

se às alternativas de libertação que ao autor parecem evidentes.

Em suma, a passividade para com a dominação exercida pelo tirano acoberta

um impulso de dominação existente no próprio subjugado, que suporta a estrutura

hierarquizada na esperança de, um dia, desfrutar ele próprio de seus benefícios

burocráticos e políticos. A dominação exercida pelo tirano e autorizada pelos homens

é a manifestação das ambiciosas projeções do indivíduo e da falta de clareza

prospectiva das suas reais possibilidades de ascensão na escala de poder sociopolítica

dominada e perpetrada por uma elite já estabelecida.

2.1.2 A força como instrumento de legitimação do poder

A palavra poder compreende a capacidade de agir e gerar efeitos. Assim, em

sua concepção social, designa a potencialidade de um agente, por meio de uma ação,

determinar o comportamento do homem (enquanto indivíduo ou coletividade). Nesta

situação, o homem é simultaneamente sujeito e objeto de poder, e o poder se expressa

justamente nessa relação interpessoal: trata-se do “Poder de um homem sobre um

outro homem”75, mediante a utilização de instrumentos ou processos76. Ou seja, o

                                                                                                               74 LA BOÉTIE, 1990, p. 16 75 BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 2007. p. 934 76 Bobbio defende que o poder não existe a menos que haja um indivíduo ou grupo que consinta ser induzido ou coagido a se comportar da forma como deseja outro indivíduo ou grupo, detentor dos “instrumentos de poder”. Em outros termos, os instrumentos só gerarão poder se despertarem sentimentos - de temor, respeito ou admiração - por parte daqueles que se subordinam. À essa concepção, Talcott Parsons acrescentará que o exercício do poder está condicionado à “disposição de um capital de confiança tal que o grupo delegue aos detentores do poder a realização dos fins coletivos” (PARSONS, Talcott apud LEBRUN, 1981, p. 15-16). Ou seja, o sociólogo estabelece um estreito laço entre os conceitos de poder e autoridade e desapropria o caráter coercitivo do poder, verificável apenas em situações-limite. Hegel desenvolve raciocínio semelhante, ao dissociar o poder do Estado, legítimo e orientado aos fins coletivos, da “potência pura e simples” do déspota. Contudo, a argumentação defendida por estes autores será questionada por outra perspectiva, sob a alegação de que, apesar dos processos serem distintos, os resultados são os mesmos: os indivíduos influenciados pela esfera de poder são movidos pela certeza de uma punição que pode lhes atingir, caso não acatem às ordens e regulações impostas. Hobbes é um dos principais representantes desta segunda vertente, defendendo que “o poder de um homem consiste nos

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poder não reside especificamente nos instrumentos, “mas no fato de que existe um

outro, e de que este é levado (por mim) a comportar-se de acordo com os meus

desejos”77.

As relações de poder são triádicas por definição, pois existem diferentes

esferas de poder sobre as quais um indivíduo ou grupo pode exercer influencia sobre

o outro, de forma simultânea ou não. Essa influencia pode figurar apenas como

possibilidade, ou dar-se em ato.

No primeiro caso, é classificada como potência, uma virtualidade, uma

“capacidade determinada que está em condições de exercer-se a qualquer

momento”78, como descrito por Gérard Lebrun, que trata da diferenciação entre

potência e ato pelos termos aristotélicos, dunamis e ergon, respectivamente79.

O poder potencial refere-se, portanto, à capacidade de um agente – detentor de

recursos (tais como riqueza, força, conhecimento, legitimidade ou admiração) e

habilidades (capazes de converter seus recursos em poder frente a outro indivíduo ou

grupo) - influenciar o comportamento dos outros, ressaltando-se, contudo, que o fato

de A possuir recursos e habilidades não garante seu poder sobre B, a menos que este

esteja “disposto a ter tais comportamentos a troco de uma compensação”80.

Quando o poder é efetivamente exercido, passa a refletir uma relação entre

comportamentos. Trata-se do poder atual: Consiste no comportamento do indivíduo A ou do grupo A que procura modificar o comportamento do indivíduo B ou grupo B em que se concretiza a modificação comportamental pretendida por A [...] (Em suma) A exerce poder quando provoca intencionalmente o comportamento de B81.

Dentre as formas de expressão do poder atual, encontra-se o poder coercitivo,

aquele exercido por um indivíduo que pressiona o outro a optar por um dado

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             meios de que dispõe para alcançar, no futuro, algum bem evidente, que pode ser tanto original (natural) como instrumental” e que “qualquer qualidade que faz um homem ser amado ou temido por seus semelhantes, ou a reputação de tal qualidade, denomina-se poder, pois constitui um meio de receber serviços ou assistência” (HOBBES, Thomas. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2009, p.70). 77BOBBIO, 2007, p. 934 78 LEBRUN, Gérard. O que é poder? São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p.11 79 Ibid., p. 11 80 BOBBIO, 2007, p. 937 81 Ibid., p. 935

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comportamento, mediante a sustentação de ameaças contra a sua integridade física e

moral82.

Enquanto processo, a manifestação do poder coercitivo ou força não se

diferencia do uso da violência, sendo o ato de intervir fisicamente e de forma

                                                                                                               82 Em Copérnico e os selvagens, Pierre Clastres apresenta (e condena) a estrutura argumentativa do Ensaio sobre o fundamento do poder político, de autoria do filósofo e conterrâneo Jean-William Lapierre. Em seu trabalho, Lapierre trabalha a questão do poder político, questionando primeiramente se este corresponde a uma necessidade vital, sendo (conseguintemente) uma das formas de manifestação da natureza, ou trata-se de um dos desdobramentos da evolução cultural humana; estuda também as formas arcaicas de desenvolvimento político em sociedades diversas e tenta mensurar a quantidade de poder político existente nelas, classificando-as desde sociedades arcaicas com poder político mais desenvolvido até sociedades arcaicas que “não apresentam poder propriamente político”. Ao autor parece possível estabelecer tal critério classificatório, pois aceita como definição de poder político a existência ou não de uma relação social comando-obediência. Assim, uma sociedade onde não se observa esse tipo de relação seria considerada uma sociedade sem poder. Clastres questiona a adoção dessa acepção tradicionalista, bem como a intenção de promover tal classificação. Diz: “[...] A saber, a certeza jamais posta em dúvida de que o poder político se dá somente em uma relação que se resolve, definitivamente, numa relação de coerção. De sorte que sobre esse ponto, entre Nietzsche, Max Weber (o poder de Estado como monopólio do uso legítimo da violência) ou a etnologia contemporânea, o parentesco é mais próximo do que parece e as linguagens pouco se diferem a partir de um mesmo fundo: a verdade e o ser do poder consistem na violência e não se pode pensar no poder sem o seu predicado, a violência. Talvez seja efetivamente assim, caso em que a etnologia não é culpada de aceitar sem discussão o que o Ocidente pensa desde sempre. Mas é necessário precisamente assegurar-se disso e verificar no seu próprio terreno – o das sociedades arcaicas – se, quando não há coerção ou violência, não se pode falar de poder” (CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1988, p. 26-7). Clastres constrói sua argumentação em torno de exemplos de sociedades ameríndias onde se verifica a existência de lideres, chefes ou caciques que não possuem poder coercitivo sobre os membros do grupo. Estes exemplos confrontam a acepção ocidental de que o poder seria sempre expresso por relações hierarquizadas e autoritárias de comando e subordinação. Sem a existência de tais relações, não haveria o exercício do poder, e conseguintemente não poder-se-ia reconhecer a existência de poder político. Porém a liderança exercida por essas autoridades tribais é inquestionável. Assim, Clastres expõe a lacuna argumentativa da retórica de Lapierre: “Não nos é evidente que coerção e subordinação constituem a essência do poder político sempre e em qualquer lugar. De sorte que se abre uma alternativa: ou o conceito clássico de poder é adequado à realidade que ele pensa, e nesse caso é necessário que ele se dê conta do não-poder no lugar onde se encontra; ou então é inadequado, e é necessário abandoná-lo ou transformá-lo.” (CLASTRES, 2003, p. 28-9). Clastres vai mais além, chegando a condenar a etnologia classificatória trabalhada por Lapierre, identificando-a como uma tentativa de legitimar cientificamente um discurso etnocêntrico, sustentado por uma definição simplista de poder político. Em suma, deste embate chegamos à certeza de que a comum assimilação dos conceitos de poder e violência – ou poder e coerção – é sustentada por uma tradição intelectual ocidental limitadora e discriminatória que deve ser evitada. A tese central do artigo de Clastres é que um suposto “baixo nível de desenvolvimento” não é o motivo pelo qual certas sociedades primitivas não possuem Estado. Pelo contrário, a existência de uma organização sociocultural independente do Estado resulta de uma ativa atitude de recusa desse tipo de estrutura, enquanto um poder coercitivo “separado da sociedade”. Daí a preferência pela expressão A sociedade contra o Estado, ao invés de a sociedade sem Estado.

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voluntária contra outro indivíduo ou grupo, com o intuito de causar danos físicos ou

morais. Bobbio reconhece os conceitos de força e violência como equivalentes,

embora admita que nas esferas da filosofia política, doutrina jurídica e certas

formulações ideológicas, ocorra a diferenciação dos conceitos.

No âmbito da filosofia política, o uso da força é percebido como intervenções

físicas justas, que “preservam a ordem social ou perseguem o bem comum”, enquanto

a violência figura como uma intervenção injusta, que visa a destruição e a desordem

social. Já na perspectiva jurídica, essa diferenciação é feita com base na legitimidade -

sendo a força um ato legítimo do Estado e a violência uma prática ilegítima. Por fim,

pela abordagem do teórico francês Georges Sorel83, associa-se o uso da força ao

autoritarismo exercido por uma minoria e a violência como instrumento de libertação

desse ciclo de exploração social.

Sinteticamente verifica-se que em todos os critérios de diferenciação acima

mencionados o caráter de parcialidade é latente, razão pela qual Bobbio afirma que

qualquer forma de diferenciação dos conceitos é invariavelmente impregnada de

juízos de valor. Dessa forma, não se adéquam à literatura sociopolítica de caráter

científico, devendo ser desconsideradas na análise aqui apresentada. Todavia, o

critério de diferenciação das expressões de força e violência será orientado pelos

resultados, e não pelos processos: embora a violência possa ser efetivamente

empregada como instrumento de poder por um indivíduo ou grupo que objetiva

exercer pressão sobre outro indivíduo ou grupo, a violência é capaz de causar apenas

alterações físicas ao corpo ou ambiente ocupado pelo homem, enquanto o poder tem a

capacidade de gerar mudanças de comportamento84.

Na prática, essa diferenciação entre poder e violência pode ser verificada

através dos efeitos gerados: Com o poder, ou seja, intervindo sobre a vontade do outro, pode-se obter, em hipótese, qualquer conduta externa ou interna, tanto uma ação como uma omissão, tanto um acreditar quanto um desacreditar. Com o único meio imediato da violência, isto é, intervindo sobre o corpo, pode-se obter uma omissão: imobilizando ou

                                                                                                               83 Georges Sorel nasceu em meados do século XIX, na Normandia. Formou-se engenheiro, porém durante a fase adulta se voltou aos estudos sociopolíticos. Crítico social assíduo, desenvolveu um pensamento marxista revisitado, inclinado ao sindicalismo. Seu livro mais conhecido é Réflexions sur la violence publicado em 1908. 84 BOBBIO, 2007, p. 1291-2

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prendendo a vítima podemos impedi-la de realizar qualquer ação socialmente relevante85.

Pensando na aplicação conceitual destes termos – poder, violência,

coercitividade – volta-se- à teoria do filósofo político inglês Thomas Hobbes,

expresso em sua obra máxima, Leviatã, onde ele desenvolve uma retórica de defesa

do absolutismo político, sem recorrer à argumentação do “direito divino” tão

comumente utilizado nas produções sociopolíticas do século XVII.

A teoria hobbesiana86 acerca da constituição do Estado defende a legitimidade

do uso da força pelo Estado como mecanismo perpetrador do poder soberano daquele

                                                                                                               85 BOBBIO, 2007, p. 1292 86 É interessante mencionar, ainda que brevemente, as divergência e semelhanças existentes entre o pensamento hobbesiano daqueles defendidos por outros dois grandes teóricos contratualistas, John Locke e Jean-Jaques Rousseau. John Locke, contemporâneo de Hobbes, foi um dos autores mais influentes da corrente liberalista. Em sua obra Segundo tratado sobre o governo, expunha suas crenças acerca do estado de natureza e a constituição do Estado. Acreditava, assim como Hobbes, na passagem do estado de natureza para um estado social ou político por meio da celebração de um pacto social. Considerava que no estado de natureza o homem seria dotado de razão e faria pleno usufruto de seus direitos naturais, expressos no conceito de propriedade (direito à vida, liberdade, terra e bens materiais). No estágio pré-político os homens viveriam pacificamente, desfrutando de liberdade e igualdade de direitos, e fazendo pleno uso de suas propriedades. Contudo, no estado de natureza os indivíduos estariam sujeitos a imprevisibilidades e inconveniências, tais como potenciais violações de suas propriedades. Portanto, objetivando garantir a estabilização da segurança individual em um contexto de grupo, os homens recorreriam ao pacto social, a partir do qual se origina a sociedade civil. O contrato imaginado por Locke é um pacto de consentimento, no qual os homens concordam em formar a sociedade civil e submeter-se à ordem do Estado, em troca da garantia à proteção e manutenção de seus direitos naturais. Locke previa que, uma vez formada a sociedade, a população determinaria, pelo princípio da maioria, a forma pela qual se organizariam os poderes estatais. Em sua percepção, a população escolheria o poder legislativo como poder supremo, ao qual ficariam subordinados os poderes executivo e federativo. Esta relação de subordinação entre poderes torna latente o deslocamento do eixo do poder político do Governo para a própria sociedade, o que sintetiza o pensamento individualista liberal. Jean-Jaques Rousseau, por sua vez, expôs seu pensamento de forma detalhada em sua obra Do contrato social, onde trata a forma pela qual o pacto social entre os homens influencia na configuração do ambiente sociopolítico e restringe às liberdades individuais. Rousseau acreditava que na passagem do estado de natureza para o estabelecimento da sociedade civil o homem perderia sua condição de igualdade e liberdade naturais, migrando para uma situação de “servidão civil” – opinião que fica clara ainda na primeira passagem do livro: “o homem nasce livre e por toda a parte encontra-se a ferros” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Nova Cultura, 1973. (Os pensadores). p. 28). Em sua obra, ignora a forma como ocorreu a mudança do estado de natureza para a sociedade civil ordenada, propondo-se apenas a legitimar esse pacto e falar de seus impactos diretos sobre as partes envolvidas. Rousseau reconhece a família como o primeiro modelo no qual se inspiram as sociedades políticas: o pai simboliza a liderança, enquanto os filhos, submissos, encarnam o papel do povo. Entre eles, estabelece-se uma relação de poder e submissão em paralelo a uma relação de cuidados e suprimento das necessidades básicas, que se reproduz na condição social

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que garante a paz e a segurança da coletividade. O uso da força é autorizado pela

própria população subjugada (reafirmando o princípio da soberania), que aceita viver

em uma realidade de liberdades restritas em troca da garantia de segurança à própria

vida. A aceitação dessa condição é celebrada através de um pacto social (entre cada

um e todos), que encerra a condição natural de guerra de todos contra todos.

Hobbes acredita que, individualmente, os homens não possuem qualidades

diferenciadoras relevantes, que sejam capazes de garantir a prevalência de uns sobre

os outros. Dessa forma, não podendo haver o exercício do poder de uns sobre outros,

ocorre que todos os homens possuem os mesmos recursos para lutar entre si, o que

gera um cenário de desconfiança mútua, onde todos temem pela própria segurança.

Neste estado de natureza, ocorre que a forma mais segura de proteger-se da

ação ofensiva dos outros indivíduos é antecipar-se, agindo de forma preemptiva.

Assim, instaura-se uma situação de guerra de todos contra todos, onde cada um busca

dominar e subjugar os demais ao seu redor com a finalidade de garantir a própria

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             estabelecida entre o Estado e a população. Mas como se legitima essa relação? O filósofo rejeita o direito do mais forte, defendendo que a força enquanto expressão de um poder físico não é capaz de transformar a moralidade, geradora de um sentimento de dever por parte da população. Pelo contrário, é capaz de gerar apenas uma reação por necessidade ou por prudência, mas nunca por vontade. Da mesma forma, Rousseau desconsidera a alegação de que a população se submete ao poder do rei em detrimento da garantia de sua segurança civil, alegando que, sob os mandos de um déspota ambicioso, os indivíduos estarão sujeitos a guerras e demonstrações internas de poder, o que lhes ameaça da mesma forma que na condição anterior, com o ônus de submeterem seus bens e a si próprios às vontades do soberano. Assim, Rousseau defende que, uma vez insustentável a condição social dos homens no estado de natureza – quando “os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado” (ROUSSEAU, 1973, p. 37) – estes são compelidos a unir e orientar suas forças individuais, com a finalidade de conservarem suas vidas e bens. Em suma, o contrato social surge da necessidade de se criar uma associação capaz de proteger os indivíduos por meio de uma força coletiva comum, sem que a eles seja imposta a abdicação de seus direitos e liberdades individuais verificáveis no estado de natureza. O pacto pode resumir-se a uma única cláusula, a saber: “a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade toda, porque, em primeiro lugar, cada um dando-se completamente, a condição é igual para todos, e, sendo a condição igual para todos, ninguém se interessa por torná-la onerosa aos demais […] enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem” (ROUSSEAU, 1973, p.38-39). Assim, ocorre que cada indivíduo coloca à disposição da vontade coletiva a si próprio e a sua força, recebendo, em complemento, todos os outros homens como partes indivisíveis de um todo do qual ele próprio faz parte. Imediatamente essa associação produz um “corpo moral e coletivo”, a pessoa pública a qual chamamos de Estado ou soberano, constituído pela soma de todas as forças particulares associadas. A essas forças particulares, atribuímos a denominação coletiva de povo, e caracterizamos individualmente como cidadãos ou súditos, dependendo da forma de governo que se estabelece.

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sobrevivência. Este instinto de sobrevivência é caracterizado por Hobbes como a

manifestação do direito natural, ou “a liberdade que cada homem tem de utilizar seu

poder como bem lhe aprouver, para preservar sua própria natureza, isto é, sua

vida”87.

Sendo esse direito natural intrínseco à existência humana, não há perspectiva

de término da situação de guerra geral enquanto não houver um poder comum capaz

de manter o respeito mútuo e estabelecer uma ordem social que prevaleça sobre o

caos. Esta ordem social serviria, por um lado, para garantir a integridade física dos

indivíduos; por outro, para garantir a constância do direito destes sobre suas

propriedades, pondo fim a situação em que “apenas pertence a cada homem o que ele

é capaz de obter e conservar” 88. Assim, orientados pela regra geral da razão e

movidos pelo desejo de conquistar uma situação de segurança coletiva, os homens

passam a buscar a paz.

Para atingir tal objetivo, “o homem deve concordar com a renúncia a seus

direitos sobre todas as coisas, contentando-se com a mesma liberdade que permite

aos demais, na medida em que considerar tal decisão necessária à manutenção da

paz e de sua própria defesa” 89. Em suma, priva-se voluntariamente de seus direitos

na esperança de se beneficiar da situação que se constitui, na qual todos os outros

homens que o rodeiam também abdicam voluntariamente de seus direitos respectivos.

Esta situação de transferência mútua de direitos chama-se contrato. Caso as

partes contratantes não cumpram com suas responsabilidades de forma simultânea,

mas cada uma em seu próprio tempo ou em um tempo futuro, o contrato passa a ser

designado pacto ou convenção.

A força da palavra não é suficientemente persuasiva para garantir o

cumprimento das responsabilidades previstas no pacto por parte dos homens, motivo

pelo qual a obrigatoriedade do pacto pode ser reforçada pelo medo das

“consequências advindas do não cumprimento da palavra ou por orgulho de não ser

necessário faltar a ela” 90. Segundo assinalado por Hobbes: Sempre que de qualquer dos lados houver receio de não cumprimento, os pactos de confiança mútua ficam invalidados; embora a origem da justiça seja a celebração dos pactos, não pode haver injustiça antes de ser eliminada a causa do temor do não

                                                                                                               87 HOBBES, 2009, p.97 88 Ibid., p. 96 89 Ibid., p. 98 90 Ibid., p. 100

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cumprimento, e isso é impossível enquanto os homens se encontram em condição natural de guerra. Assim, para que as palavras justo e injusto possam ter algum significado, é preciso haver alguma espécie de poder coercitivo que obrigue igualmente todos os homens a cumprirem seus pactos, e esse poder deve fundir o temor de alguma pena superior ao benefício esperado com o rompimento do pacto e capaz de dar força à propriedade adquirida pelos homens por meio do contrato mútuo, como recompensa do direito universal a que renunciam. Esse poder não pode existir antes da constituição do Estado91.

Em outros termos, pode-se dizer que as leis naturais (que nos induzem a

desejar o estabelecimento de uma relação pacífica entre uns e outros) opõe-se às

paixões naturais (os impulsos desestabilizadores do meio, tais como ambição e

orgulho), e que os homens só respeitarão aquelas enquanto temerem a manifestação

de um poder coercitivo que os obriguem a agir dessa forma – tendo em vista que,

“sem a espada, os pactos não passam de palavras sem força, que não dão a mínima

segurança a ninguém” 92.

A instituição de um poder comum, por sua vez, ocorre por meio da atribuição

de toda a força e poder a um único homem, ou a um grupo designado de homens (uma

assembleia), de forma a permitir a sintetização de todas as vontades em uma só e

desprender todos os esforços na garantia da segurança coletiva contra ameaças

externas e internas (pois cada indivíduo é uma potencial ameaça aos demais, já que

pode a qualquer momento descumprir sua parte do pacto social, reivindicando suas

liberdades). Este processo, através do qual a multidão une-se na figura de uma só

pessoa, explica a formação do Estado: Em virtude da autorização que cada indivíduo dá ao Estado a usar todo o poder e a força, esse Estado, pelo temor que inspira, é capaz de conformar todas as vontades, a fim de garantir a paz em seu país, e promover a ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. A essência do Estado consiste nisso e pode ser assim definida: uma pessoa instituída, pelos atos de uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, como autora, de modo a poder usar a força e os meios de todos, da maneira que achar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum93.

O representante da vontade geral chama-se soberano, detentor do poder

soberano que se exerce sobre todos os demais membros da coletividade. Esse poder

pode ser adquirido pela força e autoridade, originando um Estado por aquisição, ou

pode ser atribuído ao soberano em comum acordo entre todos os membros da

comunidade, de forma a gerar um Estado por instituição.

                                                                                                               91 HOBBES, 2009, p. 106 92 Ibid., p.123 93 Ibid., p.126

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2.3.3 Medo e ordem para o estabelecimento e manutenção do controle social

No subcapítulo anterior, falou-se da legitimação do poder por meio do uso da

força pelo Estado. Como exemplo, foi exposto sinteticamente o pensamento de

Thomas Hobbes, que justifica o poder absoluto do monarca pela celebração do pacto

social entre este e seus súditos. O pacto prevê que os súditos voluntariamente

abdiquem de suas liberdades individuais, transferindo ao monarca poder soberano

sobre as decisões políticas e sociais, em troca da garantia de segurança às suas vidas e

propriedades. Considerando-se que a única garantia de cumprimento do pacto é a

palavra, o soberano tem legitimidade para utilizar-se da força coercitiva para

precaver-se e coibir o descumprimento do pacto. Essa premissa impacta na

consolidação de uma estrutura política e legislativa sustentada pelo uso legítimo da

força, onde se perpetra uma doutrina de obediência por medo.

O medo é o principal aliado dos detentores de poder, que renovam

incessantemente sua condição privilegiada por meio do disciplinamento: pela ameaça

ou uso efetivo da violência física e moral, condicionam o comportamento social,

doutrinando as pessoas a pensarem e agirem pela ótica de uma determinada ideologia

imposta. Quando amplamente assimilada, essa nova moral permite o controle pelo

medo em uma dimensão muito mais ampla: enquanto o medo individual é desperto

quase que exclusivamente pela violência, manifestando-se como um sentimento

instintivo incontrolável, o medo vivido pela coletividade (ou pelo indivíduo enquanto

membro do grupo), passa a derivar também de uma inquietude política e moral, de

quem teme pela violação de certos valores.

Enquanto o medo é o instrumento mediante o qual os detentores do poder

exercem controle, o meio utilizado para que se atinja essa finalidade é o ordenamento.

Assim, para que se discuta o controle exercido pelo poder, deve-se primeiramente

pensar na origem e significado da ordem.

Toda ordem se dá pelo menos entre dois indivíduos, sempre respeitando um

critério: a ordem sempre será direcionada do mais forte para o mais fraco, pois caso

não o fosse, não haveria obrigatoriedade de cumprimento da ordem e ela se

descaracterizaria como tal. Dessa afirmação, pode-se extrair outras considerações

acerca da ordem: ela sempre desencadeia uma ação - sem resistência por parte do

ordenado. Ademais, dado seu caráter impositivo, a ação que dela deriva não é

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percebida pelo ordenado como um movimento propriamente seu: parece-lhe uma

atividade externa, alheia a sua vontade e juízo94.

Quando executada, a ordem colabora continuamente para o fortalecimento do

poder de quem ordena: “na própria natureza da ordem, no reconhecimento que ela

encontra, no espaço que ela percorre, em sua cortante pontualidade – em tudo isso,

enfim, há algo que garante ao poder a segurança e o crescimento de sua esfera”95.

Da repetição do processo de ordenamento, extraem-se dois elementos: o

impulso e o aguilhão. O primeiro garante o cumprimento da ordem pelo seu receptor,

enquanto o segundo permanece cravado naquele que a executa. O aguilhão permanece

oculto, mas intrinsecamente preservado na psique do executor da ordem, motivo pelo

qual as ordens se repetem, geração após geração, durante todo o desenvolvimento da

História: O conteúdo da ordem preserva-se no aguilhão; sua força, seu alcance, sua delimitação – tudo isso foi já definitivamente prefigurado no momento em que a ordem foi transmitida. Pode levar anos, até que aquela porção fincada e armazenada da ordem – sua imagem exata em pequena escala – ressurja. Mas é importante saber que ordem alguma jamais se perde; ela nunca se esgota realmente em seu cumprimento, mas permanece armazenada para sempre96. A ordem tem sua origem primitiva na ordem de fuga, resultante da ameaça

que um animal representa a outro, fisicamente mais fraco. O alerta que o primeiro

lança ao segundo, para que este entre em movimento a fim de evitar o ataque, se

reflete, no caso humano, na sentença de morte que obriga a vítima a fugir. Ainda que

a ameaça não se concretize, o pavor diante da ameaça está sempre contido na ordem:

“a manutenção e o efetivo cumprimento de sentenças de morte mantém desperto o

pavor diante de toda e qualquer ordem, e de ordens de uma maneira geral” 97.

Canetti pondera, contudo, que no decorrer do desenvolvimento humano

ocorreu uma domesticação da ordem: esta deixou de refletir uma situação de fuga

espontânea como reação a um risco de vida eminente para se tornar um processo de

comum aplicação nas relações interpessoais cotidianas. Essa transformação da

natureza da ordem é explicada pela prática de uma espécie de “suborno”: cria-se uma

                                                                                                               94 Esta consideração específica acerca da caracterização da ordem estabelece uma oportuna ligação com o rico debate elaborado por Hannah Arendt em Eischman em Jerusalém, onde a filosofa discorre sobre a responsabilização de oficiais nazistas pelas atrocidades cometidas no Holocausto, apesar do pertencimento destes a uma rigorosa estrutura hierárquica governista. 95 CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.305 96 Ibid., p. 206 97 Ibid., p. 304  

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relação de dependência entre dois indivíduos, onde um encontra-se em uma situação

de submissão, condicionando-se a cumprir os ordenamentos do outro. Essa relação se

expressa claramente através de exemplos: seja o cão que recebe a comida de seu

dono, seja a criança que recebe o leite e os cuidados de sua mãe, ocorre o

estabelecimento de uma relação entre a ordem e a concessão do alimento.

Sinteticamente, ocorre que ao invés de se ameaçar o indivíduo, promete-se o que ele

deseja e cumpre-se essa promessa invariavelmente (sempre que ele executar a ordem

que lhe foi feita). Repetidas algumas vezes o processo, o indivíduo é condicionado a

cumprir às ordens sempre que requerido. Essa desnaturalização da ordem biológica de fuga educa homens e animais para uma espécie de prisão voluntária, existente em todos os níveis e gradações possíveis. Mas não altera completamente a essência da ordem. A ameaça é sempre preservada. Ela é abrandada, mas há sanções expressas para a não-obediência, e tais sanções podem ser bastante rigorosas. A mais rigorosa delas é a sanção original: a morte98.

A relação entre medo e ordem é multifacetada. Há o medo sentido pelo

receptor da ordem, que se sente ameaçado ou subjugado, vendo-se, portanto,

condicionado ao seu cumprimento. Há também o medo sentido por quem ordena,

nomeado por Canetti como o medo da ordem: trata-se de um acúmulo de lembranças

de todas as ordens transmitidas a outros indivíduos, em um contexto de ameaça. O

agente desenvolve uma sensação de perigo, justificada pela sua exposição a todos os

indivíduos que ordenou – e ameaçou. Assim, vive na expectativa de que seus

“subordinados” ou “servos” recuperem as lembranças da dominação exercida e

decidam vingar-se. Este medo deve ser sentido com mais intensidade quanto mais

elevado for o estatuto hierárquico do agente emissor da ordem, dado que se encontra

mais próximo da fonte. Assim, ocorre que “nos detentores de poder, esse medo pode

permanecer longamente reprimido e oculto. No curso da vida de um soberano, ele

pode intensificar-se, manifestando-se então, sob a forma do furor dos césares” 99.

No caso de medo da ameaça, a ordem é percebida de formas distintas,

dependendo do número de indivíduos afetados. A ordem dada individualmente é

bastante diferente da ordem dada ao grupo. Uma ordem dada à multidão “propaga-se

horizontalmente por seus membros” 100, incidindo em um primeiro indivíduo, que a

compartilha instantaneamente com aqueles que o rodeiam. Como vimos no primeiro                                                                                                                98 CANETTI, 1995, p. 308 99 Ibid., p. 309 100 Ibid., p. 310

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capítulo, a massa propicia uma sensação de proteção a cada indivíduo, o que colabora

para o movimento de adensamento. Assim, quando ameaçado, o indivíduo aproxima-

se ainda mais de seus iguais, partilhando o temor – e a obediência.

Interessante notar que no caso da ordem dada à massa não ocorre a formação

do aguilhão. Este fenômeno é particular do ordenamento isolado: “quem quer que

tenha cumprido sozinho uma ordem conserva em si, na qualidade de um aguilhão,

sua resistência contra ela – um duro cristal de rancor. Desse aguilhão, ele somente

logrará livrar-se dando ele próprio aquela mesma ordem” 101.

Ainda sobre a incidência da ordem no grupo, Canetti destaca a importância

desta enquanto vetor no processo de configuração da massa: Uma ordem dada a muitos tem, pois, um caráter bastante particular. Seu propósito é fazer desses muitos uma massa, e, na medida em que o consegue, ela não desperta medo algum. O slogan do orador que impõe uma direção às pessoas reunidas na sua frente possui precisamente essa função, e deixa-se compreender como uma ordem transmitida a muitas pessoas. Do ponto de vista da massa, que gostaria de formar-se velozmente e preservar-se como uma unidade, tais slogans são úteis e imprescindíveis. A arte do orador consiste em sintetizar seus propósitos em slogans e apresenta-los com vigor, auxiliando assim no nascimento e na preservação da massa. Ele gera a massa e a mantém viva mediante uma ordem superior102. A partir desta breve análise realizada por Elias Canetti, pode-se melhor

compreender o meio pelo qual os detentores do poder instituem e mantém o controle

social. Somando à conceitualização da ordem os elementos constitutivos

anteriormente abordados – violência, poder coercitivo, medo – desenvolve-se um

espaço maduro para o tratamento do tema terror de Estado. Assim, no próximo

subcapítulo, será discutido o processo de instauração do terror pelo Estado enquanto

aplicação sistemática de uma política de exclusão, pela ótica de Hannah Arendt.

2.2 O terror no Estado: uma política de aniquilamento Neste subcapítulo será analisado o terror do Estado, no Estado, pela ótica de

Hannah Arendt em sua obra máxima, Origens do totalitarismo. Seguindo a estrutura

argumentativa da autora, recorreremos majoritariamente ao exemplo nazista para

desmembrar os elementos e processos constituintes do regime totalitário, desde o

suporte oferecido pela ideologização do discurso às massas até a total destruição da

condição humana, verificável nas experiências vividas nos campos de concentração.

                                                                                                               101 CANETTI, 1995, p. 311  102 Loc. cit.

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Arendt identifica na imagem dos campos a expressão máxima do regime

totalitário: trata-se de espaços de degradação física e moral, onde não ocorre apenas a

morte física dos homens, mas a destruição da condição humana que os define. A

experiência dos campos expõe o aniquilamento de indivíduos, mas principalmente o

extermínio de grupos, dotados de uma memória coletiva, códigos morais e

sentimentos manifestos nas relações interpessoais, que se perdem em definitivo.

Para chegar às origens do totalitarismo, Arendt reafirma a necessidade de se

buscar as reais motivações que levaram à adoção da ideologia antissemita pelo

governo nazista alemão na primeira metade do século XX: O terror assume a simples forma de governo só no último estágio do seu desenvolvimento. O estabelecimento de um regime totalitário requer a apresentação do terror como instrumento necessário para a realização de uma ideologia específica, e essa ideologia deve obter a adesão de muitos, até mesmo na maioria, antes que o terror possa ser estabelecido. O que interessa ao historiador é que os judeus, antes de se tornarem as principais vítimas do terror moderno, constituíam o centro de interesse da ideologia nazista103. Por essa razão, Arendt recusa veementemente a aceitação de teorias

simplistas, tais como o antissemitismo histórico, a ideia de que a comunidade judaica

foi aleatoriamente selecionada como bode-expiatório do regime ou a percepção de

que o antissemitismo deriva da exacerbação nacionalista da direita germânica.

Contudo, reconhece que a tendência de buscar explicações pouco sólidas à

vitimização judaica é amplamente seguida, tanto por teóricos judeus quanto por

gentios, dado que a contemplação do episódio explicita um grau de violência

extremamente elevado contra um grupo social historicamente pouco relevante - em

termos demográficos e políticos, em nível sistêmico - no contexto europeu pós-

feudalista.

A diferença fundamental entre as ditaduras modernas e as tiranias do passado está no uso do terror não como meio de extermínio e amedrontamento dos oponentes, mas como instrumento corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes. O terror, como o conhecemos hoje, ataca sem provocação preliminar, e suas vítimas são inocentes até mesmo do ponto de vista do perseguidor. Esse foi o caso da Alemanha nazista, quando a campanha de terror foi dirigida contra os judeus, isto é, contra pessoas cujas características comuns eram aleatórias e independentes da conduta individual específica104.

                                                                                                               103 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 26 104 Loc. cit.

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Assim, para escapar à essa tendência, Arendt recorre a uma breve

apresentação histórica da inserção judaica no contexto socioeconômico europeu,

desde a decadência das sociedades feudais e a emergência dos Estados-nação até o

processo de enfraquecimento destes Estados e o simultâneo enrijecimento do

movimento antissemita em todo o continente. Ao longo do processo, a autora visa

abordar dois pontos: contextualizar o antissemitismo enquanto reação popular a uma

condição diferenciada, conferida aos judeus por governantes de toda a Europa desde o

fortalecimento dos Estados-nação, e responsabilizar a comunidade judaica por parte

do processo de intensificação do sentimento antissemita europeu.

A condição singular da qual desfrutavam os judeus, sua emancipação perante

os Estados nacionais, decorria de dois fenômenos inter-relacionados: primeiro, da

disseminação do conceito iluminista de igualdade, que pressionou à homogeneização

dos direitos e obrigações de toda a população local, ocasionando a abolição de

restrições e privilégios conferidos à comunidade judaica. A propagação do ideal de

igualdade dependia, em grande parte, do fortalecimento do Estado enquanto a

expressão de um poder independente, superior aos demais atores sociais, capaz de

governar em sintonia com os anseios e necessidades nacionais, o que conduzir à

efetivação do segundo fenômeno: Assim, quando a partir do fim do século XVII a expansão econômica estatal aumenta a necessidade de créditos e o alargamento da esfera de influência econômica do Estado, era natural que se recorresse ao auxílio dos judeus, velhos e experimentados emprestadores de dinheiro [...] Era do interesse dos Estados conceder aos judeus certos privilégios em troca e trata-los como grupo à parte. De modo algum o Estado poderia consentir que os judeus fossem assimilados pelo resto da população, a qual lhe recusava crédito, negando-se a participar dos negócios do Estado e a fomentá-los. Portanto, a emancipação dos judeus, como lhes foi concedida pelo sistema de Estados nacionais na Europa durante o século XIX, tinha dupla origem e significado ambíguo. Por um lado, ela decorria da estrutura política e jurídica de um sistema renovado, que só podia funcionar nas condições de igualdade política e legal, a ponto de os governos, para seu próprio bem, precisarem aplainar as desigualdades da velha ordem do modo mais completo e mais rápido possível. Por outro lado, a emancipação resultava claramente da gradual extensão dos privilégios – originalmente concedidos a apenas alguns indivíduos e, depois, a pequenas camadas de judeus ricos – e que passaram a ser outorgados a todos os judeus da Europa central e ocidental, para que atendessem às crescentes exigências dos negócios estatais, a que os limitados grupúsculos de judeus ricos não conseguiam mais fazer face sozinhos105. Sinteticamente, pode-se dizer que entre os séculos XVII e XVIII muitos

judeus abastados passaram a realizar empréstimos e assessoria financeira aos seus

                                                                                                               105 ARENDT, 2000, p. 31-32

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soberanos, galgando postos de destaque como judeus-da-corte. Após a Revolução

Francesa, intensificou-se o movimento político de formação e fortalecimento dos

Estados-nação modernos. Este processo de estruturação político-administrativa

demandava quantias muito superiores aos valores oferecidos individualmente pelos

judeus-da-corte, motivo pelo qual a rica comunidade judaica teve que organizar-se em

uma rede intereuropeia, coordenada por banqueiros judeus, que captavam grandes

quantias monetárias a fim de financiar os gastos governamentais dos Estados recém-

formados. Neste período, dada a intensidade da mobilização da comunidade, deu-se

início à fase de concessões de privilégios - por parte de praticamente todos os

governos europeus – como moeda de troca aos vultuosos empréstimos concedidos.

Este processo de cooperação entre judeus e governantes minguou em relação

inversamente proporcional ao surgimento e fortalecimento do imperialismo, já ao

final do século XIX: o imperialismo permitiu a propagação dos ideais do comércio

internacional competitivo, colaborando para a desestruturação das próprias bases dos

Estados-nação. Este fenômeno incidiu diretamente sobre os homens de negócio

judeus: perderam suas condições privilegiadas nos negócios públicos para novos

empresários e financistas, com uma mentalidade mais adequada às exigências do

mercado, que expressava as novas características do capitalismo moderno.

Assim, à época da Primeira Grande Guerra os judeus já não possuíam

relevância enquanto grupo e sua influência sociopolítica era quase nula. Não obstante,

conservavam ainda suas riquezas.

Esta conjuntura de fatores corroborou para a intensificação do antissemitismo

europeu, conforme elucidado por Arendt:

O que faz com que os homens obedeçam ou tolerem o poder e, por outro lado, odeiem aqueles que dispõem da riqueza sem o poder é a ideia de que o poder tem uma determinada função e certa utilidade geral [...] Só a riqueza sem o poder ou o distanciamento altivo do grupo que, embora poderosos, não exercem atividade política são considerados parasitas e revoltantes, porque nessas condições desaparecem os últimos laços que mantêm ligações entre os homens. A riqueza que não explora deixa de gerar até mesmo a relação existente entre o explorador e o explorado; o alheamento sem política indica a falta do menor interesse do opressor pelo oprimido106.

Contudo, é importante ressaltar que a simples intensificação do sentimento

antissemita não basta para explicar o episódio do Holocausto: tal sentimento adquire

                                                                                                               106 ARENDT, 2000, p. 25

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significado político apenas quando associado a uma questão política relevante, ou

quando combinado a uma confrontação direta entre interesses ou ações de grupos

judaicos e gentios. Ou seja, a discriminação torna-se o “ponto de cristalização de um

movimento político, que deseja resolver através da violência e da lei do populacho

todos os conflitos e dificuldades naturais” 107 de um país no qual coexistem grupos

sociais representantes de distintas etnias, hábitos culturais ou diversas realidades

sociopolíticas. Sob essa perspectiva, a questão judaica deve ser compreendida como a

catalisadora de uma intranquilidade social que permeava a sociedade germânica,

fragmentando-a. Sua restituição só se fez possível mediante o reagrupamento da

sociedade em torno de uma ideologia específica – que, levada ao extremo, suscitou o

maior massacre de judeus da História.

Após situar o antissemitismo no processo de ideologização social que

culminaria no estabelecimento e fortalecimento de um regime totalitário germânico,

Arendt volta-se às questões próprias do regime, suas origens e principais elementos

constituintes. Por esta razão, discorre sobre o apoio das massas ao regime e às

lideranças totalitárias, sobre os efeitos propagandísticos nos ânimos populares e sobre

a própria organização – política e burocrática – do Estado totalitário. Destas reflexões

são extraídas as principais ideias e argumentos, apresentando de forma breve a

essência do pensamento da filósofa, de forma a concluir o debate desenvolvido neste

segundo capítulo, que trata os fundamentos de uma política de exclusão, fortalecida

pelo uso indiscriminado da violência pelo Estado.

A primeira condição importante estabelecida por Arendt acerca dos regimes

totalitários é de que estes – bem como os líderes que os instituem e conduzem -

fundamentam-se necessariamente no apoio das massas politicamente ordenadas.

Para Arendt, as massas são as pessoas que “simplesmente devido ao seu

número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar

numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização

profissional ou sindicato de trabalhadores” 108.

Esta dificuldade dos indivíduos se integrarem em torno de objetivos

partilhados deriva da própria conjuntura sociopolítica a partir da qual se originam as

massas. Elas são diretamente associadas ao colapso conjuntural do sistema de classes

                                                                                                               107 ARENDT, 2000, p. 77 108 Ibid., p. 361  

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e do sistema partidário continental europeu, ocorridas ainda na primeira metade do

século XX. Sinteticamente, Arendt avalia que: A queda das paredes protetoras das classes transformou as maiorias adormecidas, que existiam por trás de todos os partidos, numa grande massa desorganizada e desestruturada de indivíduos furiosos que nada tinham em comum exceto a vaga noção de que as esperanças partidárias eram vãs; [...] foi nessa atmosfera de colapso da sociedade de classes que se desenvolveu a psicologia do homem-de-massa da Europa. O fato de que o mesmo destino, com monótona mas abstrata uniformidade, tocava a grande número de indivíduos não evitou que cada qual se julgasse, a si próprio, em termos de fracasso individual e criticasse o mundo em termos de injustiça específica. Contudo, essa amargura egocêntrica, embora constantemente repetida no isolamento individual e a despeito da sua tendência niveladora, não chegaria a constituir laço comum, porque não se baseava em qualquer interesse comum, fosse econômico, social ou político. Esse egocentrismo, portanto, trazia consigo um claro enfraquecimento do instinto de autoconservação109. A partir daí deduz-se que todo país possui uma massa em potencial -

constituída por todos aqueles indivíduos política e ideologicamente apáticos, que não

buscam afiliações partidárias ou movimentos de expressão social, incapazes de

expressar-se objetivamente em detrimento da conquista de metas específicas, que se

isolam socialmente enquanto indivíduos, mas se agrupam quando orientados por uma

ideologia nacionalista particularmente violenta. Contudo, embora a massa exista

potencialmente em qualquer país, ela não se encontra de fato presente em todo lugar.

Dessa forma, sua ausência pode ser compreendida como um fator limitador da

instauração do regime totalitário, dado que: Todos os grupos políticos dependem da força numérica, mas não na escala dos movimentos totalitários, que dependem da força bruta, a tal ponto que os regimes totalitários parecem impossíveis em países de população relativamente pequena, mesmo que outras condições lhes sejam favoráveis110.

Esta percepção é legitimada por Arendt por meio do resgate de exemplos

históricos, tais como diversos casos de países europeus onde a ideologia fascista

conquistou força enquanto expressão de um movimento totalitário no período entre-

guerras – como Romênia, Polônia, Lituânia, Letônia, Hungria, Portugal e Espanha –

sem que evoluísse para um regime totalitário, dada a ausência de “material humano

em quantidade suficiente para permitir a existência de um domínio total – qualquer

                                                                                                               109 ARENDT, 2000, p. 365 110 Ibid., p. 358

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que fosse – e as elevadas perdas populacionais decorrentes da implantação de tal

sistema” 111.

Em suma, apenas em países onde há um grande volume de “massas

supérfluas” - compostas por indivíduos isolados e inabalavelmente leais às lideranças

dos movimentos totalitários - há viabilidade de se instaurar um regime totalitário,

onde haverá o sacrifício de grande parte dessas massas sem que haja o risco de

despovoamento do próprio país.

Dessa forma, uma vez combinados os movimentos totalitários à existência de

massas - atomizadas e isoladas – como nos casos nazista (após a anexação dos

territórios do Leste) e bolchevique, possibilitou-se a instauração de regimes

totalitários, levados adiante pelo uso intensivo do terror enquanto instrumento de

controle social:

Em sua ascensão, tanto o movimento nazista da Alemanha quanto os movimentos comunistas da Europa depois de 1930 recrutaram os seus membros dentre essa massa de pessoas aparentemente indiferentes, que todos os outros partidos haviam abandonado por lhes parecerem demasiado apáticas ou estúpidas para lhes merecerem a atenção [...] Isto permitiu a introdução de métodos inteiramente novos de propaganda política e a indiferença aos argumentos da oposição: os movimentos, até então colocados fora do sistema de partidos e rejeitado por ele, puderam moldar um grupo que nunca havia sido atingido por nenhum dos partidos tradicionais. Assim, sem necessidade e capacidade de refutar argumentos contrários, preferiram métodos que levavam à morte em vez de persuasão, que traziam terror em lugar de convicção112. A partir desse fragmento Arendt propõe a classificação, como instrumentos do

regime totalitário, ambos os recursos propagandísticos e uso da violência enquanto

formas de disseminação do terror no Estado. Como será visto a seguir, a autora

discrimina a utilização de cada um desses recursos, pelas lideranças carismáticas,

conforme as características momentâneas identificáveis nas massas. Assim, Arendt

afirma que a propaganda é utilizada pelos movimentos totalitários como forma de

conquistar e disciplinar as massas. Contudo, uma vez estabelecido o regime no qual as

lideranças políticas detém absoluto controle sobre a população local, a propaganda

passa a desempenhar um papel secundário em detrimento do uso da violência para

aterrorizar e doutrinar as massas. Neste contexto a propaganda deixa de ser

direcionada àquela população subjugada, para atingir um público externo à lógica

totalitária. Este público pode ser constituído por indivíduos do próprio país que não                                                                                                                111 AREDT, 2000, p. 360  112 Ibid., p. 362

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foram plenamente doutrinados ou ainda por populações inteiras pertencentes a outros

Estados.

Dessa forma pode-se dizer que, passado um primeiro momento de

estabilização do regime, a manutenção da propaganda totalitária só se sustenta pela

existência de um mundo não totalitário, paralelo, que demanda incessantemente

energia e retórica de convencimento por parte das lideranças políticas do regime.

Assim conclui-se que a forma como se constroem essas estratégias propagandísticas

variam conforme o momento em que são idealizadas e aplicadas. Por esse motivo

busca-se delimitar as distinções entre a doutrina ideológica voltada aos “iniciados do

movimento” e a propaganda direcionada ao “mundo exterior”, de modo que chega-se

à conclusão que a relação entre propaganda e doutrinação é diretamente relacionada à

força do movimento totalitário ou à incidência de pressão externa sobre os indivíduos.

Em síntese, identifica-se a propaganda como um dos elementos integrantes da

“guerra psicológica” da qual o terror é protagonista: quando o regime torna-se total, a

propaganda desaparece, cedendo espaço para a maximização do terror contra uma

população já submissa. Como elucidado por Arendt, “a propaganda é um instrumento

do totalitarismo, possivelmente o mais importante, para enfrentar o movimento

totalitário; o terror, ao contrário, é a própria essência da sua forma de governo” 113.

As técnicas de propaganda totalitária constituem-se fundamentalmente por

insinuações implícitas e intimidadoras contra aqueles que negligenciarem seus

preceitos, em escala individual e coletiva, estigmatizando o público como “culpados

ou inocentes”. Ademais, para fortalecerem seus argumentos, apoiam-se em

afirmações respaldadas por “verdades científicas”, tratadas como fórmulas fantásticas

e absolutamente coerentes: A propaganda totalitária aperfeiçoou o cientificismo ideológico e a técnica de afirmações proféticas a um ponto antes ignorado de eficiência metódica e absurdo de conteúdo porque, do ponto de vista demagógico, a melhor maneira de evitar a discussão é tornar o argumento independente de verificação no presente e afirmar que só o futuro lhe revelará os méritos114. Esta metodologia de se criar uma realidade fantasiosa que soe pertinente às

massas é o mais poderoso instrumento propagandístico dos regimes totalitários. De

forma resumida, Arendt afirma que:

                                                                                                               113 Arendt, 2000, p. 393 114 Ibid., p. 395  

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Antes de tomarem o poder e criarem um mundo à imagem da sua doutrina, os movimentos totalitários invocam esse falso mundo de coerências, que é mais adequado às necessidades da mente humana do que a própria realidade; nele, através de pura imaginação, as massas desarraigadas podem sentir-se à vontade e evitar os eternos golpes que a vida e as experiências verdadeiras infligem aos seres humanos e às suas expectativas. A força da propaganda totalitária reside na sua capacidade de isolar as massas do mundo real115.

Em suma, é a partir de ideologias já existentes e conhecimentos populares

tradicionais que os líderes e ditadores totalitários extraem elementos de simples

assimilação, a partir dos quais fundamentam a criação de suas realidades fictícias,

disseminadas por meio da propaganda totalitária, com o intuito de garantir a

ordenação das massas - o que Arendt define como “acumulo da força sem a posse dos

meios da violência” 116.

Mas como legitimar as novas verdades sustentadas por essa estratégia

propagandística, garantindo assim a efetividade da empreitada? Arendt avalia que é

por meio das formas assumidas pela organização totalitária, que objetivam conferir

“às mentiras propagandísticas do movimento, tecidas em torno de uma ficção central,

a realidade operante e a construir, mesmo em circunstâncias não-totalitárias, uma

sociedade cujos membros ajam e reajam segundo as regras de um mundo fictício”117.

Em suma, ocorre que o movimento totalitário expressa seu comprometimento com a

propaganda e seu conteúdo ideológico mediante a máxima coordenação de seus

adeptos, de forma que a organização do grupo e a propaganda passam a representar

duas vertentes de uma mesma proposta central.

A estrutura assumida pelos movimentos totalitários - no momento que

antecede a tomada de poder - é definida por Arendt como organizações de

vanguarda. Trata-se de uma distribuição dos indivíduos pertencentes ao movimento

em camadas, segmentadas conforme o grau de envolvimento de cada membro à causa

e ao partido. Assim, forma-se uma estrutura em níveis, composta por grupos de

simpatizantes, membros do movimento e uma pequena elite do partido. Cada um

destes níveis pode possuir outros tantos subníveis, dado que essa estrutura caracteriza-

se pela fluidez e pela dinamicidade em definir novos graus de militância,

indefinidamente. Toda essa estrutura pertencente ao movimento é circundada por

                                                                                                               115 ARENDT, 2000, p. 402 116 Ibid., p. 411 117 Ibid., p. 413

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outra massa de indivíduos, externos ao regime. Trata-se do mundo exterior não

fictício, ou simplesmente mundo real.

A importância de umas camadas sobre as outras reside na propriedade que elas

tem de isolar umas das outras, de forma a refrear e minimizar os efeitos devastadores

de uma confrontação direta entre grupos absortos em suas próprias realidades. Em

suma,

As organizações de vanguarda cercam os membros dos movimentos com uma parede protetora que os separa do mundo exterior normal; ao mesmo tempo, constituem a ponte que os leva de volta à normalidade e sem a qual os membros, na fase anterior à tomada de poder, sentiriam com demasiada clareza as diferenças entre as suas crenças e as das pessoas normais, entre a mentirosa ficção do seu mundo e a realidade do mundo normal. A engenhosidade desse expediente, durante a luta do movimento pelo poder, é que a organização de vanguarda não apenas isola os membros, mas lhes empresta uma aparência de normalidade externa que amortece o impacto da verdadeira realidade de maneira mais eficaz que a simples doutrinação [...] Uma vantagem definida dessa estrutura é que ela neutraliza o impacto de um dos dogmas básicos do totalitarismo, que afirma ser o mundo dividido em dois gigantescos campos inimigos, um dos quais é o movimento, e que este pode e deve lutar contra o resto do mundo – afirmação que abre caminho para a indiscriminada agressividade dos regimes totalitários. O choque da terrível e monstruosa dicotomia totalitária é neutralizado, e nunca totalmente percebido, graças a uma cuidadosa graduação de militância, na qual cada escalão reflete para o escalão imediatamente superior a imagem do mundo não-totalitário, porque é menos militante e os seus membros menos organizados118. Pela lógica inversa, os pequenos agrupamentos da elite serviam como

modelos, inspiração para a luta ideológica do movimento para os membros menos

comprometidos e para os próprios simpatizantes.

Outra característica da organização totalitária é o esforço de representar – ou

ao menos causar a impressão de que representa – todos os elementos sociais em sua

própria estrutura burocrática, de forma a atrair toda a população nacional como

simpatizante do movimento.

No caso nazista este esforço se refletiu na criação de inúmeros departamentos

fictícios, detentores de um insignificante poder administrativo ou político sobre

quaisquer que fossem as decisões estatais. Em síntese ocorria que “o valor

profissional dessas instituições era tão pequeno quanto o valor militar da imitação de

exército representada pelas tropas de assalto mas, juntas, criavam um perfeito mundo

de aparências”119, na qual cada elemento do mundo não totalitário era fielmente

reproduzido numa versão duplicada, sujeita à influência ideológica do movimento.

                                                                                                               118 ARENDT, 2000, p. 416-17 119 Ibid., p. 421

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Assim, quando houve a efetiva tomada de poder pelos nazistas, foi relativamente fácil

para os membros do partido liquidarem todas as estruturas político-administrativas

anteriores: bastava que substituíssem aquelas organizações específicas pelos seus

equivalentes fictícios, moldados aos interesses do próprio movimento nazista. Essa

técnica, tão efetiva quanto ágil, rapidamente deteriorou todos os padrões profissionais

germânicos, afetando em especial as áreas que demandavam alto nível de capacitação

técnica.

No cerne do movimento, encontra-se o Líder. Ele necessita de habilidades

especiais, no que se refere à manipulação de pessoal, elaboração de intrigas e

fortalecimento de alianças internas do partido para se assegurar no poder. Ou seja, não

necessita propriamente da força, ou de qualidades burocrático-administrativas e

demagógicas para fortalecer-se. Tampouco precisa saber cativar as massas, contanto

que seja capaz de cercar-se do maior numero possível de aliados, de forma a garantir

que todos os membros importantes do partido sejam a ele diretamente vinculados.

Claramente estas habilidades são cruciais apenas nos primeiros estágios de

estruturação do regime – a saber, a tomada do poder e a estabilização política -, dado

que, uma vez consolidado o movimento totalitário, todos os membros da organização

estarão condicionados a receber, executar e repassar as ordens emitidas pelo chefe

máximo da hierarquia. Ocorre que o Líder torna-se insubstituível, porque sem as suas

ordens toda a estrutura desorganiza-se e perde significado. Isso acontece porque: A suprema tarefa do Líder é personificar a dupla função que caracteriza cada camada do movimento – agir como a defesa mágica do movimento contra o mundo exterior e, ao mesmo tempo, ser a ponte direta através da qual o movimento se liga a esse mundo. O líder representa o movimento de um modo totalmente diferente de todos os líderes de partidos comuns, já que proclama a sua responsabilidade pessoal por todos os atos, proezas e crimes cometidos por qualquer membro ou funcionário em sua qualidade oficial. Essa responsabilidade total é o aspecto organizacional mais importante do chamado princípio de liderança, segundo o qual cada funcionário não é apenas designado pelo Líder, mas é a sua própria encarnação viva, e toda ordem emana supostamente dessa única fonte onipresente. Essa completa identificação do Líder com todo sublíder nomeado por ele e esse monopólio de responsabilidade centralizado por tudo o que foi, está sendo ou virá a ser feito são também os sinais mais visíveis da grande diferença entre o líder totalitário e o ditador ou déspota comum. 120

Assim, essa situação na qual o Líder assume todas as ações realizadas pelos

membros de seu movimento gera um efeito de desresponsabilização por parte dos

                                                                                                               120 ARENDT, 2000, p. 424  

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indivíduos que efetivamente executam as tarefas. Esse efeito transmite ao mundo

exterior a impressão de que o Líder é a única pessoa pertencente ao movimento que

efetivamente sabe o que está ocorrendo no todo e porque, de forma que ele parece

estar acima do próprio movimento. Esta impressão também se estende às próprias

massas adeptas ao movimento, como se pode observar na máxima “o Führer sempre

tem razão”.

Não obstante, há um componente interessante para se analisar na mentalidade

das massas, que sofistica ainda mais a já complexa relação existente entre os

membros e o Líder. Segundo Arendt, a organização hierárquica totalitária pode ser

descrita, em seu conjunto, “em termos da mistura curiosamente variada de

credulidade e cinismo com que se espera que cada membro, [...] reaja às diversas

declarações mentirosas do Líder e à ficção ideológica e imutável do movimento” 121.

Em síntese, Arendt nota que há uma combinação de credulidade e cinismo que

permeia todos os escalões hierárquicos em diferentes escalas, desde os simpatizantes

até a elite dos partidos, em decorrência da plena convicção de que a política é um jogo

de trapaças, e que quando o Führer utiliza-se de falsas alegações através da

propaganda, está apenas expressando sua sábia estratégia no combate ao inimigo

externo. Num mundo incompreensível e em perpétua mudança, as massas haviam chegado a um ponto em que, ao mesmo tempo, acreditavam em tudo e em nada, julgavam que tudo era possível e que nada era verdadeiro [...] Os líderes totalitários basearam a sua propaganda no pressuposto psicológico correto de que, em tais condições, era possível fazer com que as pessoas acreditassem nas mais fantásticas afirmações em determinado dia, na certeza de que, se recebessem no dia seguinte a prova irrefutável da sua inverdade, apelariam para o cinismo; em lugar de abandonarem os líderes que lhes haviam mentido, diriam que sempre souberam que a afirmação era falsa, e admirariam os líderes pela grande esperteza tática122.

Enquanto os simpatizantes são plenamente envoltos pelo enredo construído

pelo Líder, aqueles membros pertencentes ao grupo de elite do partido sabem bem o

quanto seu Líder mente; contudo admiram-no e lhe entregam seus votos de confiança,

acreditando em sua capacidade de manobrar as massas e conduzir o movimento.

Desse funcionamento do sistema resulta que, por um lado, a ingênua fé dos

simpatizantes faz as mentiras soarem aceitáveis ao mundo exterior enquanto, por

outro, “o gradual cinismo dos membros das formações de elite afasta o perigo de que

                                                                                                               121 ARENDT, 2000, p. 432 122 Loc. cit.

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o Líder venha a ser forçado, pelo peso da sua própria propaganda, a legitimar as

próprias declarações e o próprio simulacro de respeitabilidade”123.

A partir desse mecanismo o regime totalitário atinge uma estabilidade

dificilmente reconhecida pelo mundo exterior: o Líder e seu grupo íntimo não se

sentem constrangidos em reformular os “chavões ideológicos” quando lhes é

conveniente, a fim de melhor congregar e coordenar as massas, desde que esteja

garantido o princípio organizador do movimento.

Assim foi conduzido o regime nazista liderado por Adolf Hitler. Envolvendo a

sociedade alemã em sua própria fantasia, o Líder foi capaz de mobilizar e organizar

milhões de alemães em uma estrutura social hierarquizada. Através da propaganda

agressiva, da retomada econômica124 e da ideologização das massas, o Partido Nazista

doutrinou todo o país e abriu espaço para a implementação dos pontos-chave da

política pretendida: garantir as condições econômicas e sociais para que todo o povo

aderisse ao sonho da Grande Alemanha; fortalecer-se militarmente para garantir o

exercício do direito germânico ao espaço vital; e purificar a população nacional,

eliminando todos os indivíduos que não pertencessem à raça ariana. Todavia, no

período de ascensão e fortalecimento político de Hitler, a sociedade alemã – com

exceção daqueles que “liam livros, incluindo Mein Kampf do próprio Führer”125 –

não conseguiram antever a dimensão destrutiva da proposta atrelada ao Nacional

Socialismo. Os ataques à cultura “modernista”, a queima pública de livros “judeus” e outros indesejáveis, começaram quase com a entrada de Hitler no governo. Além disso, embora os cidadãos comuns pudessem desaprovar as barbaridades mais brutais do sistema – os campos de concentração e a redução dos judeus alemães (que incluia

                                                                                                               123 ARENDT, 2000, p. 434 124 Os efeitos da imposição do Tratado de Versalhes à Alemanha após sua derrota na Primeira Guerra Mundial aprofundaram as já abertas feridas socioeconômicas do país. Durante a República de Weimar o sentimento de humilhação nacional foi estimulado não apenas pela derrota militar ao final da década de 1910, mas pelo desgaste econômico decorrente da Grande Depressão que se alastrou na economia germânica durante a década de 1920. Assim, parte da campanha do Partido Nacional Socialista empregada no início dos anos 1930 sustentava-se nas promessas e propostas de reverter a esmagadora tendência inflacionária, recuperar a indústria e promover a geração de empregos, além de cessar os pagamentos da dívida externa e reorganizar um exército nacional forte, capaz de defender os interesses do Estado. Os ânimos da população receberam, pela primeira vez desde o término da Grande Guerra, uma injeção de otimismo e expectativas. O partido conseguiu rapidamente ascender no cenário político nacional, sustentado por seu discurso ideológico e pelo seu objetivo plano de metas a serem implementadas na Alemanha. 125 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.151

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todos aqueles com pelo menos um avô judeu) a uma segregada subclasse sem direitos –, um número surpreendentemente grande via tais barbaridades, na pior das hipóteses, como aberrações limitadas. Afinal, os campos de concentração eram basicamente obstáculos a uma potencial oposição comunista e prisões para os quadros da subversão, um objetivo pelo qual muitos conservadores convencionais tinham certa simpatia, e quando a guerra explodiu não havia mais de 8 mil pessoas em todos eles. (Sua expansão num universe concentrationnaire de terror, tortura e morte para centenas de milhares, e mesmo milhões, de pessoas se deu depois da guerra.) E, até a guerra, a política nazista, por mais bárbaro que fosse o tratamento aos judeus, ainda parecia encarar a “solução final” do “problema judeu” mais como expulsão do que como extermínio em massa126.

Como consequência da violência de Estado e da passividade popular, cerca de

6 milhões de judeus e 5 milhões de outros “indesejáveis” (dentre os quais ciganos,

comunistas, homossexuais, deficientes físicos e mentais, eslavos e outros) foram

exterminados em campos de concentração distribuídos por toda a Europa127, durante a

guerra, conforme as tropas nazistas expandiam suas conquistas territoriais. O número

total de vítimas do genocídio foi “acobertado” durante este período, no qual todas as

nações europeias mobilizaram-se em seus próprios esforços de guerra e voltaram-se

para as mortes de seus nacionais.

A guerra oficialmente iniciada em setembro de 1939 após a invasão da

Polônia pelas tropas nazistas foi constituída por rápidas ofensivas, pois os generais de                                                                                                                126 HOBSBAWM, 2004, p.151 127 Para esclarecer brevemente o simbolismo dos campos de concentração, utilizamos um fragmento textual de Bruno Bettlheim, no qual o psicanalista retoma o conceito freudiano de Thanatos – já trabalhado no segundo capítulo desta monografia – para dimensionar o absurdo da máquina de extermínio judeu. Apesar de reconhecer a conturbada e sanguinária trajetória humana ao longo dos séculos, Bettlheim preocupa-se em diferenciar a experiência dos campos de concentração de outras situações de massacres ou traumas coletivos, justificando: “Por estranho que pareça, a característica singular dos campos de extermínio não é que os alemães dizimaram milhões de pessoas – que isso seja possível já foi aceito na imagem que fazemos do homem, embora há séculos que isso não acontecia em tal proporção, e talvez jamais com tanta insensibilidade. O que foi novo, único, e apavorante foi que milhões de pessoas, como lemingues, caminhassem para a própria morte. Isto que é incrível, e que procuramos compreender. Por mais estranho que pareça, foi um austríaco que forjou os instrumentos para tal compreensão, e outro austríaco cujos atos forçaram uma inevitável necessidade de compreender o fenômeno. Anos antes de Hitler mandar milhões para as câmara de gás, Freud insistiu que a vida humana é uma longa luta contra o que dominou pulsão de morte, e que precisamos aprender a conservar os instintos destrutivos dentro de limites, ou eles nos levarão à destruição. O Século XX fez desaparecer antigas barreiras que antes impediam as nossas tendências destrutivas de terem livre curso, tanto em termos pessoais quanto sociais. O estado, a família, a igreja, a sociedade – todos foram questionados e considerados deficientes. Portanto, seu poder de refrear ou canalizar nossas tendências destrutivas enfraqueceu” (BETTELHEIM, Bruno. A Viena de Freud e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991, p.245). Esta análise sobre o enfraquecimento de estruturas sociopolíticas na contemporaneidade voltará a ser contemplada no próximo capítulo, quando forem ilustrados os conceitos de dominação e violência pelos exemplos do genocídio do Camboja e dos curdos.  

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Hitler sabiam que seus recursos militares eram inferiores aos de seus inimigos, não

devendo, portanto, dar tempo à reação dos países invadidos. Essa estratégia foi

vitoriosa durante os três primeiros anos de guerra, até a decisão tomada por Hitler de

violar o pacto de não-agressão até então mantido com a União Soviética. Em junho de

1941 as tropas nazistas iniciaram uma campanha em território russo, que em um

primeiro momento pareceu tão acelerada e assertivo quando as ofensivas realizadas na

frente Ocidental. Contudo ficou claro que Hitler havia subestimado a capacidade de

resistência soviética quando, após três semanas, a batalha ainda não havia sido ganha

e os recursos a disposição do exército alemão se esgotavam.

Uma nova ofensiva alemã em 1942, após o inverno terrível, pareceu tão brilhantemente bem-sucedida como todas as outras, e levou os exércitos alemães a fundo no Cáucaso e ao vale do baixo Volga, mas não podia mais decidir a guerra. Os exércitos alemães foram detidos em Stalingrado (verão de 1942 - março de 1943). Depois disso, os russos começaram por sua vez o avanço, que só os levou a Berlim, Praga e Viena no fim da guerra. De Staligrado em diante, todo mundo sabia que a derrota de Alemanha era só uma questão de tempo128. À resistência soviética somaram-se os esforços norte-americano e britânico, o

que reverteu definitivamente o breve histórico de sucessivas vitórias alemães a partir

de 1943. O desfecho da guerra ocorreu na primeira metade de 1945, em ocasião da

invasão dos territórios dos países do Eixo e da rendição de seus governantes e tropas.

Assim, apesar da estabilidade interna do regime nazista alemão Hitler não foi capaz

de dar continuidade a seu plano de dominação e terror. Sua ambição exacerbada

expressa pelo agressivo e rápido movimento expansionista provocou uma dura reação

externa, capaz de desestabilizar toda a estrutura política na qual Hitler investira desde

o início dos anos 1930.

                                                                                                               128 HOBSBAWM, 2004, p.47  

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3 DOMINAÇÃO, VIOLÊNCIA E MEDO NA CONSTITUIÇÃO DO CENÁRIO GENOCIDA

Este capítulo será mais pragmático do que os anteriores. Nele, será feita a

apresentação da definição oficial de genocídio pela Organização das Nações Unidas

(ONU) e seus reflexos no debate internacional sobre o tema durante a segunda metade

do século XX. Isso significa tratar sobre os processos de formulação de legislação

para prevenção e punição dos crimes de genocídio, bem como repensar os papéis dos

atores internacionais contemporâneos em um contexto de embate entre a noção de

soberania dos Estados-nação e a preservação dos Direitos Humanos em escala global

– evidenciada pela primeira vez em meados da década de 1910, em decorrência do

genocídio armênio pelo Império Turco Otomano. Em seguida, serão mencionados

brevemente dois casos genocidas ocorridos na segunda metade do século XX: o

genocídio do Camboja, coordenado pelo Khmer Vermelho contra a própria população

nacional, em meados da década de 1970; e o genocídio curdo orquestrado por Saddam

Hussein no Iraque, ao final dos anos 1980. A apresentação destes casos auxiliará na

aplicação conceitual dos termos tratados nos capítulos anteriores, o que por sua vez

direcionará à conclusão do trabalho.

3.1 O conceito de genocídio

Embora episódios genocidas tenham se repetido continuamente ao longo da

História, foi apenas após a Segunda Guerra Mundial que a comunidade internacional

mobilizou-se para a inauguração de um debate conceitual acerca da definição do

fenômeno e da elaboração de normas de direito internacional com o objetivo de

impedir novos episódios de caráter semelhante. Antes de o debate ser estruturado,

contudo, foi necessário o desenvolvimento de uma expressão que sintetizasse não

apenas o horror de um assassinato em massa, mas que também fosse capaz de

expressar o peso da destruição de culturas inteiras. Simultaneamente, deveria ser um

termo de caráter universal, que possibilitasse a aplicação em casos ocorridos no

passado - e eventualmente num futuro indesejável.

O judeu polonês Raphael Lemkin foi possivelmente o primeiro jurista a

questionar a soberania dos Estados-nação em situações de matanças de minorias

nacionais, religiosas ou étnicas dentro do território nacional. Apesar de ter mantido o

interesse em estudos sobre episódios de massacres históricos durante a juventude,

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debruçou-se mais enfaticamente sobre o tema a partir dos anos 1920, atraído pelo

desfecho do genocídio dos armênios pelo Império Turco Otomano129 (ocorrido entre

1915 e 1918). À época, impressionou-se com a falta de regulamentação e intrumentos

jurídicos e institucionais capazes de condenar e punir os principais responsáveis pelo

massacre. A contar desse período, abandonou os estudos formais de linguística (era

poliglota e estudioso de filologia na Universidade de Lvov, na Polônia), tornou-se

estudante de Direito e militante em campanhas de prevenção de crimes por ele

classificados como “assassinatos raciais”.

Obrigado a migrar para a Lituânia em decorrência da invasão da Polônia pelo

exército nazista (e posteriormente Suécia, antes de conseguir visto para migrar

definitivamente para os EUA), Lemkin ascendeu profissionalmente e ganhou

visibilidade, o que lhe permitiu, ao longo das décadas seguintes, trabalhar

assiduamente em defesa dos seus ideais.

Em 1944 publicou seu primeiro livro, Axis rule in occupied Europe, onde

copilou dezenas de decretos e normas impostas pelos governos do Eixo aos 19 países

e territórios europeus ocupados pelas tropas nazistas durante a guerra. O texto de

conteúdo prioritariamente jurídico visava, a princípio, evidenciar as atrocidades

cometidas pelo governo nazista contra grupos não-germânicos, além de recomendar

medidas de prevenção e punição para crimes dessa natureza.

                                                                                                               129 Convencionou-se o 24 de abril de 1915 como a data de início do massacre dos armênios, dado que nessa ocasião cerca de 250 intelectuais armênios foram detidos e mortos pelas tropas turco-otomanas a mando do governo, sob a liderança dos Jovens Turcos (Talaat Pasha, ministro do interior; Enver Pasha, ministro da guerra e Djemal Pasha, ministro de obras públicas). A partir daí, centenas de milhares de armênios foram deportados para regiões desérticas, desprovidos dos recursos básicos para garantir sua sobrevivência. Além das mortes decorrentes da falta de água e alimentos, muitos migrantes foram vítimas de furto, tortura, estupro, mutilação e assassinato. Aqueles que conseguiam sobreviver pelo caminho esperavam chegar em acampamentos assegurados pelo governo. Contudo tais acampamentos inexistiam. Quando chegavam ao deserto, padeciam de uma forma ou de outra, esgotados fisica e emocionamenete pela longa viagem e pela falta de recursos básicos para manterem uma sobrevida. Os detalhes acerca do massacre, bem como o reconhecimento do episódio como genocídio, permanecem controversos. Há estimativas variando entre 1 milhão e 1,5 milhão de mortos, embora o governo turco nunca tenha admitido estimativas superiors a 380 mil vítimas. Paralelamente, embora a comunidade armênia reinvidica internacionalmente o reconhecimento do episódio como o primeiro genocídio do século XX, o governo turco explica o episódio como uma fatalidade, decorrente de um contexto de guerra. Segundo os turcos, não apenas os armênios padeceram, mas indivíduos de muitas outras etnias, o que comprovaria que as deportações não foram promovidas com a finalidade de exterminar um determinado grupo étnico, mas sim uma medida política adotada em uma situação excepcional.

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Todavia, as maiores contribuições de Lemkin ao processo de apreciação dos

casos de assassinatos raciais não foi a disseminação de seus conhecimentos sobre as

barbáries cometidas nas regiões ocupadas, mas, sim, seus esforços empreendidos na

concepção do termo genocídio - uma combinação do derivativo grego geno (referente

à raça ou tribo) e do termo latino cídio (derivado de cardere, que significa “ato ou

efeito de matar” 130) – e um insistente lobby, que durou décadas, para que a

Assembleia Geral das Nações Unidas tratasse de formalizar o conceito por meio de

uma Convenção e ratificasse as determinações, elevando o estato da Convenção para

o de lei internacional.

Com a elaboração do termo genocídio Lemkin objetivava facilitar a

assimilação da população ocidental (em particular a norte-americana) quanto às

dimensões dos horrores dos crimes cometidos, provocando reações populares mais

enfáticas e rápidas às evidentes atrocidades ocorridas durante a guerra. Por meio do

lobby, Lemkin objetivava influir de forma mais incisiva sobre as tomadas de decisão

de formuladores de política externa e direito internacional, a fim de garantir e agilizar

a elaboração de uma legislação internacional de prevenção e punição aos crimes de

genocídio. Embora os esforços de Lemkin nessas duas frentes fossem

complementares e interdependentes, este segundo aspecto de seu trabalho será mais

cuidadosamente contemplado no próximo subcapítulo, que abordará especificamente

o aspecto legal do debate internacional sobre genocídio.

Em suma, o termo foi primeiramente apresentado ao público em 1944, para

“indicar a destruição em massa de um grupo étnico, assim como todo projeto

sistemático que tenha por objetivo eliminar um aspecto fundamental da cultura de um

povo” 131. Tratava-se de um novo termo utilizado para substituir a soma de várias

outras expressões que, isoladas, não representavam a complexidade de massacres

étnicos, tais como o Holocausto e, anteriormente, a expulsão dos armênios do Império

Turco Otomano.

Segundo o jurista, o genocídio seria composto por dois momentos: pela

aniquilação dos padrões culturais, religiosos e nacionais do grupo oprimido e pela

subsequente imposição dos padrões equivalentes do grupo opressor. Esta imposição

                                                                                                               130 POWER, Samantha. Genocídio: a retórica americana em questão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 68 131 BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007, p. 543

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seria aplicada ou à população oprimida (caso esta fosse autorizada a permanecer nas

regiões ocupadas) ou “exclusivamente ao território, depois da remoção da população

e da colonização da área pelos da nação do opressor” 132.

A divulgação da nova palavra e seu significado, contudo, foi alvo de diversas

críticas por parte de juristas e políticos europeus, que embora reconhecessem a

necessidade de se cunhar uma expressão capaz de designar as atrocidades até então

inominadas, entravam em desacordo no que seria a essência do termo: A associação entre a Solução Final de Hitler e o termo híbrido de Lemkin causaria uma confusão interminável para autoridades e pessoas comuns, porque suporiam que o genocídio ocorria apenas quando fosse possível mostrar que o perpetrador das atrocidades tinha, como Hitler, o intuito de exterminar até o último membro de um grupo étnico, nacional ou religioso. Outros criticavam não tanto a definição de Lemkin, mas sua aparente ingenuidade. Sua inovação era interessante, mas ‘uma palavra é uma palavra é uma palavra’. Apenas afixar o rótulo de genocídio não necessariamente faria os estadistas deixarem de lado seus outros interesses, medos ou restrições133. Apesar das divergências, o termo foi oficialmente aceito em meados de 1940 e

disseminado mundialmente a partir da década de 1950. Para Lemkin, essa reação lhe

serviu como um sinal de quão preparada estava a comunidade internacional e os

estadistas para começarem um debate consistente sobre como prevenir casos de

genocídio futuros.

A primeira resolução oficial foi realizada em 1946, quando a Assembleia

Geral da ONU declarou o genocídio um “delito do direito dos povos, em contraste

com o espírito e os objetivos das Nações Unidas, delito que o mundo civil condena’ e

determinou a elaboração de um projeto de Convenção sobre o assunto”134. À época,

genocídio fora definido como “a recusa do direito à existência de inteiros grupos

humanos” 135.

Para organizar e formalizar o espaço de debates promovidos pela comunidade

internacional para o tratamento do tema foi criada, em 1948, a Convenção para a

Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (Convention on the Prevention and

Punishment of Crime of Genocide). Como fruto dos debates promovidos e dos

esforços incansáveis de Lemkin, as delegações presentes na Assembleia Geral

                                                                                                               132 LEMKIN apud POWER, 2004, p. 69 133 POWER, 2004, p. 69 134 BOBBIO, 2007, p.543 135 Loc. cit.

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produziram um documento final, no qual consta a definição oficial de genocídio,

reconhecida pelos países-membros da Assembleia até a atualidade.

O primeiro artigo da convenção estabelece o genocídio como um crime

passível de julgamento e condenação em conformidade com a legislação

internacional. No artigo segundo são definidos os elementos constituintes do crime

genocida, a saber: a intenção de destruir em parte ou na totalidade grupos nacionais,

étnicos, raciais ou religiosos 136 ; e a realização desse impulso, manifesto pela

execução de algum dos seguintes crimes:

a) Matar membros do grupo; b) Atentado grave contra a integridade física ou mental dos membros do grupo; c) Submissão intencional do grupo a condições de existência tendentes a provocar

sua destruição física, total ou parcial; d) Medidas tendentes a impedir os nascimentos no âmbito do grupo; e) Transferência forçada de crianças de um grupo para outro grupo137.

Dessa forma, são classificadas como práticas genocidas não apenas o

assassinato em massa, mas também a geração de traumas físicos ou mentais a

membros do grupo, tais como aqueles decorrentes da prática de tortura, estupro,

mutilação e uso forçado de substâncias tóxicas e entorpecentes. Também se considera

a privação dos recursos básicos à sobrevivência, como água e alimentos,

medicamentos e abrigo, seja por ação direta, seja por consequência do êxodo forçado

de refugiados políticos e de guerra.

A tentativa de conter o crescimento demográfico de um grupo específico

também figura como ato genocida. Neste tipo de prática estão inclusas as técnicas de

esterilização forçada, aborto forçado, infanticídio, proibição do casamento ou do

relacionamento entre homens e mulheres do grupo, ou ainda a transferência forçada

de crianças e jovens (até 18 anos) para longe dos demais membros do grupo.

                                                                                                               136 A saber: grupo nacional compreende um conjunto de indivíduos que compartilham a mesma nacionalidade, que são originários ou habitam um mesmo país; grupo étnico é aquele no qual os individuos compartilham certas tradições, traços culturais e idioma; grupo racial é composto por indivíduos cuja identidade é definida pelas características físicas; grupo religioso é definido pela crença comum, doutrinas e rituais. 137 Texto original: “(a) Killing members of the group; (b) Causing serious bodily or mental harm to members of the group; (c) Deliberately inflicting on the group conditions of life calculated to bring about its physical destruction in whole or in part; (d) Imposing measures intended to prevent births within the group; (e) Forcibly transferring children of the group to another group” (ONU, 1948).

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Quanto à culpabilidade, os artigos terceiro e quarto determinam quais

condutas adotadas pelos réus – que podem ser formuladores da política nacional,

funcionários públicos ou indivíduos isolados - possuem caráter condenatório aos

olhos da justiça internacional:

a) Genocídio; b) Conspiração para cometer genocídio; c) Incitar direta e publicamente o genocídio; d) Tentativa de cometer genocídio; e) Cumplicidade no genocídio138.

A convenção reitera o compromisso das partes signatárias em garantir as

devidas adequações às legislações nacionais, a fim de assegurar o cumprimento das

penalidades estabelecidas por julgamento. O julgamento dos réus envolvidos em

acusações de genocídio devem ser realizados por um tribunal localizado no mesmo

país em que os crimes ocorreram, ou em um tribunal penal internacional que possua

jurisdição reconhecida pelos países signatários da convenção.

Acusações e denúncias de genocídio podem ser realizadas aos órgãos

competentes do sistema das Nações Unidas por qualquer uma das partes signatárias.

Se houver conflito entre os Estados signatários no que se refere à interpretação ou

aplicação dos artigos da convenção, como por exemplo a responsabilização de um

Governo sobre um episódio genocida, a disputa poderá ser encaminhada para

apreciação na Corte Internacional de Justiça, a pedido de qualquer uma das partes

envolvidas.

Apesar de a convenção ter sido assinada por diversos países da comunidade

internacional, foi alvo de várias críticas no que se refere ao caráter impreciso dos

artigos que tratam da punição dos réus – tanto no sentido das possibilidades de penas

aplicadas quanto na forma de garantir o cumprimento de tais penas.

Em particular, focalizou-se a indeterminação da questão da penalidade deixada integralmente ao arbítrio dos Estados signatários. Foi também criticada a pretensão irreal na qual esta se baseia, isto é, que em presença de crimes como o de Genocídio, que não podem ser cometidos sem a anuência, a participação, instruções ou até a cumplicidade estatais, um Estado pode aceitar punir ou fazer punir aqueles que agiram de acordo com as suas instruções superiores ou valendo de sua aquiescência139.

                                                                                                               138 Texto original: “a) Genocide; b) Conspiracy to commit genocide; c) Direct and public incitement to commit genocide; d) Attempt to commit genocide; e) Complicity in genocide” (ONU, 1948). 139 BOBBIO, 2007, p. 544

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Este caráter vago do texto da convenção representava – e ainda representa -

um grande empecilho para ambas as determinações de caráter acadêmico e jurídico

debatidas desde a Segunda Guerra Mundial, em especial nos momentos em que

denúncias de crimes de guerra e acusações de genocídio vêm à tona. Este tema foi

amplamente trabalhado pela jornalista Samantha Power, que relatou em mais de uma

ocasião a desafortunada burocracia aplicada por Washington na análise de casos

ocorridos ao longo da década de 1990, que retardou os esforços das Tropas de Paz da

ONU e das forças da OTAN em cessar a violência em países da África e do Leste

Europeu. Ambas as questões – as determinações jurídicas sobre genocídio

(desdobramentos naturais da Convenção de 1948) e os reflexos nos posicionamentos

dos Estados e outros Organismos Internacionais serão objeto de análise no próximo

subcapítulo.

3.2 Direitos Humanos vs. soberania dos Estados-Nação: velhos cenários, novos diagnósticos?

Neste subcapítulo serão contempladas as primeiras preocupações decorrentes

do confronto de interesses entre estadistas - defensores do princípio de soberania

nacional - e defensores dos Direitos Humanos - que buscam mecanismos eficazes

para culpar e punir todos aqueles que direta ou indiretamente violam os direitos

fundamentais do homem, independente de serem membros do governo, agirem a seu

mando ou sob o respaldo da legislação nacional.

Assim, no primeiro item será apresentada uma confrontação entre velhos e

novos paradigmas, mais cuidadosamente trabalhada a partir da Segunda Guerra

Mundial. Três processos centrais não podem escapar à apreciação, ainda que de forma

breve: o desfecho da Primeira Grande Guerra, em especial no que se refere ao

posicionamento das potências internacionais frente à deportação dos armênios pelo

governo turco; os julgamentos de Nuremberg onde foram julgados e condenados

simpatizantes e membros do Partido Nazista, e os desdobramentos da Convenção

para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. A partir da apresentação dos

casos verificaremos a evolução desse debate teórico e jurídico, notando, acima de

tudo, o grau de dificuldade para se chegar a um consenso global sobre qual a forma

mais justa e eficaz de se lidar com crimes genocidas.

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No segundo item serão enumerados rapidamente alguns casos de genocídio

ocorridos no século XX, enfatizando, em especial, a atuação dos atores internacionais

envolvidos diretamente nos episódios. Essa análise conduzirá naturalmente a uma

reflexão ética sobre as políticas e práticas comuns de nossa civilização, estudada na

conclusão do presente trabalho.

3.2.1 A formulação de leis internacionais de prevenção e punição ao

genocídio

O processo de formulação de leis internacionais de prevenção e punição a

crimes de genocídio permanece longo e complexo. Teve início em meados da década

de 1910, à época das primeiras reações internacionais às atrocidades cometidas pelo

Império Turco Otomano contra a população armênia. Embora os governos turco e

alemão negassem sistematicamente os questionamentos e acusações de observadores

internacionais sobre as barbáries cometidas durante a guerra, relatos de estrangeiros e

cidadãos locais vez ou outra eram transmitidos aos cidadãos do resto da Europa,

pressionando os estadistas das potencias ocidentais a adotarem um posicionamento a

respeito – ainda que meramente simbólico. Assim, em 24 de maio de 1915 os

governos aliados tomaram a iniciativa, ao emitirem uma declaração “que deu o passo

inédito de condenar ‘crimes contra a humanidade e a civilização’. A declaração

advertia os membros do governo turco de que eles e seus ‘agentes’ seriam

considerados ‘pessoalmente responsáveis’ pelos massacres” 140.

Contudo, excluída essa declaração, nada foi feito durante a guerra para tentar

impedir a deportação dos armênios. As potencias estavam demasiadamente

comprometidas em seus esforços de guerra, além de utilizarem o pretexto da

soberania turca para isentarem-se moral e politicamente. O próprio embaixador norte-

americano responsável pela embaixada no Império Turco Otomano à época, Henry

Morgenthau sênior, a despeito de seu estarrecimento e desespero diante da situação

admitiu que, formalmente, não tinha direito de intervir: “do frio ponto de vista

jurídico, o tratamento de súditos turcos pelo governo turco era um assunto puramente

interno; a menos que afetasse diretamente vidas e interesses americanos, aquilo

                                                                                                               140 POWER, 2004, p. 29

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estava fora da alçada do governo americano141”. Em suma, a ordem transmitida pelos

estadistas das potências ocidentais era a de que os seus diplomatas e demais oficiais

deveriam manter-se alheios a quaisquer assuntos que não dissessem respeito às

populações e instituições que representavam. No caso dos americanos, havia outro

fator: o governo de Wilson evitava a todo custo comprometer o status de neutralidade

dos EUA na guerra. Certamente, se cobrasse uma mudança de postura do governo

turco, colocaria em risco sua posição privilegiada. Quando a entrada na guerra tornou-

se inevitável, em 1917, ainda assim o presidente Wilson resistiu à condenação e ao

rompimento de ligações com o governo turco.

Aliás, mesmo depois da vitória dos Aliados sobre os países do Eixo os EUA

resistiram em condenar as atrocidades cometidas durante a guerra. Na conferência de

paz realizada em Paris em 1918, as delegações da Rússia, França e Reino Unido

expressaram o desejo de responsabilizar as lideranças austríacas, alemãs e turcas por

crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Iniciaram o processo de constituição

de um tribunal internacional de crimes de guerra, a fim de julgar as máximas

autoridades governamentais e seus principais colaboradores. Viram-se, assim, em

confronto com o posicionamento americano, defendido pelo então secretário de

Estado, Robert Lansing: De um modo geral, os Estados Unidos opuseram-se às propostas dos Aliados para emascular a Alemanha. Mas também rejeitaram a ideia de que algum princípio pretensamente “universal” de justiça deveria permitir punição. As leis da humanidade, Lansing argumentou, “variam conforme o indivíduo”. Refletindo a opinião muito disseminada na época, Lansing afirmou que líderes soberanos deveriam ser imunes a processos judiciais. “A essência da soberania”, disse ele, era “a ausência de responsabilidade”142. Os Estados Unidos somente podiam julgar as

                                                                                                               141 MORGENTHAU apud POWER, p.33  142 Este posicionamento adotado pelo governo norte-americano infelizmente não se restringe a um curto período da história. Conforme mencionado por Samantha Power, “Vezes sem conta o governo americano relutaria em pôr de lado sua neutralidade e censurar formalmente um outro Estado por suas atrocidades [...] Vezes sem conta as suposições e políticas americanas seriam contestadas por americanos que se encontravam mais próximos dos locais de matança, os quais tentariam despertar a imaginação de seus superiores políticos. E vezes sem conta esses defensores fracassariam em influenciar Washington. Os Estados Unidos ofereceriam ajuda humanitária aos sobreviventes de “assassinato racial”, mas deixariam em paz os que o cometiam” (POWER, 2004, p. 38). A manutenção deste posicionamento deriva em grande parte da sacralização da soberania estatal prevista pela Constituição dos Estados Unidos e sustentada ideologicamente por instituições políticas e jurídicas daquele país e também pela sociedade americana. (Esta visão também está expressa em dispositivos jurídicos internacionais: na carta da ONU, por exemplo, os países signatários reafirmam a não violação da soberania dos Estados como um princípio fundamental das relações internacionais). Seus efeitos serão futuramente tratados neste trabalho, ao final do presente

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violações que eram cometidas contra pessoas ou propriedades americanas. [...] se um tribunal assim fosse instituído, os Estados Unidos não participariam. Segundo o pensamento americano da época, era inquestionável que o direito de um Estado a ser deixado em paz automaticamente suplantava qualquer direito individual à justiça143.

Apesar do posicionamento americano, as potencias europeias mantiveram o

plano de julgar e condenar os responsáveis. As tropas britânicas que ocupavam a

Turquia pressionaram o governo local a entregar as principais lideranças responsáveis

pela guerra e pelo massacre armênio; “em abril de 1919 os turcos estabeleceram um

tribunal em Constantinopla que condenou dois altos funcionários distritais por

deportar armênios e agir contra a humanidade e a civilização” 144. Um foi condenado

à morte e o outro, a quinze anos de trabalho forçado. Todavia, apesar da enérgica

iniciativa, os esforços para prender, julgar e executar a sentença de outros

funcionários do governo turco foram enfraquecendo-se. A ascensão do presidente

turco nacionalista Mustafá Kemal (Atatürk) acelerou este processo. Muitos

prisioneiros detidos em custódia do Estado foram libertados antes do julgamento,

tantos outros julgados não tiveram suas penas aplicadas. O próprio líder Talaat Pasha,

um dos principais perpetradores das atrocidades cometidas, apesar da condenação à

morte, nunca havia sido detido e agora vivia livremente sob proteção germânica.

As autoridades inglesas, em um último esforço de tentar julgar os condenados,

transferiram os suspeitos que puderam para territórios estrangeiros, a fim de garantir

julgamentos internacionais futuros. Contudo, em 1920 foram pressionados a devolver

os suspeitos às autoridades turcas, em consequência de uma negociação de

prisioneiros (o governo turco havia feito como reféns 29 soldados britânicos, como

instrumento de troca). Assim, “em novembro de 1921 Kemal pôs fim à promessa de

um tribunal internacional, negociando uma troca de prisioneiros. [...] Em 1923 as

potencias europeias substituíram o Tratado de Sèvres pelo Tratado de Lausanne que

deixou de lado qualquer menção a julgamentos” 145.

A segunda vez que a comunidade internacional foi confrontada pela

responsabilidade de julgar os culpados por um massacre étnico de grandes proporções

foi em meados da década de 1940: após o término da Segunda Guerra Mundial em

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             capítulo, quando analisaremos brevemente a conduta política dos Estados Unidos frente a denúncias de genocídios ocorridos na segunda metade do século XX. 143 POWER, 2004, p. 39 144 Loc. cit. 145 Ibid., p.41

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1945, a comunidade internacional ganhou ciência das dimensões do Holocausto.

Segundo historiadores ocidentais contemporâneos, o número de vitimas diretas do

genocídio (dentre as quais judeus, ciganos, homossexuais, comunistas e outros “não

germânicos”) é estimado entre 10 e 12 milhões. A força desses números bem como o

peso da brutalidade narrada por sobreviventes da guerra puseram em xeque, pela

primeira vez, a imunidade de líderes soberanos que atentavam contra suas próprias

populações.

Essa situação deu força a dois processos paralelos: por um lado, potencializou

os esforços de Raphael Lemkin para disseminar o conceito de genocídio e de

promover um debate político e jurídico sobre as possibilidades de se elaborar uma

legislação de prevenção e punição de genocídio internacionalmente. Por outro lado, e

em caráter mais imediato, impulsionou os países vencedores a decidirem sobre o

futuro das lideranças nazistas capturadas ao final da guerra. No início, houve

discordância entre os estadistas dos países Aliados sobre qual seria a melhor solução

para os prisioneiros: enquanto o primeiro-ministro britânico Winston Churchill

defendia a execução imediata dos prisioneiros sem direito a julgamento (a fim de

evitar longos e custosos processos legais), o presidente americano Franklin Roosevelt

(sob a influência de forças políticas internas) e o líder soviético Joseph Stálin

preferiam que houvesse um processo de acusação formal contra os indivíduos e

organizações nazistas146. Churchill acabou cedendo às vontades dos EUA e da URSS,

dando início, assim, aos preparativos para os julgamentos.

Cada país elegeu um representante máximo e uma comitiva de delegados para

discutirem os princípios e normas de direito que regeriam os processos. Como chefe

da delegação americana estava o juiz Robert Jackson, pessoalmente escolhido pelo

                                                                                                               146 É curioso verificar a mudança do posicionamento de Stálin quando comparamos sua defesa ao direito de julgamento dos oficiais e colaboradores nazistas e sua política persecutória adotada durante os anos do Grande Expurgo. Deste triste período da história soviética, destacam-se os Processos de Moscou e seus desdobramentos políticos. Os processos ocorreram de 1936 a 1938 sob o comando de Stálin, sob o pretexto de investigar, julgar e condenar todos aqueles que conspiravam contra o regime e contra o Líder. Entretanto este argumento camuflava o real objetivo do estadista, de eliminar toda a oposição existente e consolidar seu controle absoluto sobre o partido (servindo de ilustração à célebre frase do filósofo espanhol Ortega y Gasset, “a revolução devora seus próprios filhos”). De fato, é grande o número de historiadores e cientistas políticos que reconhecem a ilegitimidade dos julgamentos realizados, citando o uso de técnicas de tortura e chantagem para fins de confissão, além da ausência de provas de acusação. Em suma, é ao menos irônico perceber a representação do governo stalinista perante a comunidade internacional frente às políticas adotadas no passado contra as forças oposicionistas internas.

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então presidente Harry Truman (que assumiu o cargo da presidência após a morte do

presidente reeleito, F. Roosevelt). O encontro entre as delegações teve início ao final

de junho de 1945:

Cada nação tem os seus próprios estatutos penais e sua própria opinião quanto à forma como os julgamentos deveriam prosseguir […] Os delegados também discutiram se deveriam continuar com o sistema anglo-americano contencioso, com advogados de defesa para os réus, ou se deveriam utilizar o sistema inquisitivo, centrado no juiz, preferido pelos franceses e soviético. Após dez dias de discussão, as formas procedimentais adotadas se tornaram mais claras. O tribunal se chamaria Tribunal Militar Internacional e seria composto por um juiz principal e um suplente originário de cada país. O sistema contencioso, preferido pelos Americanos e britânicos, seria utilizado. As acusações contra os réus proibiriam defesas baseadas em ordens superiores, bem como tu quoque (o argumento “você também fez”). Os delegados foram orientados a não permitir que os réus e seus advogados alemães transformassem o julgamento em um espaço de questionamento das condutas de guerra adotadas pelas forças Aliadas147.

Além dos princípios de direito que regeriam os julgamentos, também era

necessário designar o local onde se dariam os processos. A escolha da cidade de

Nuremberg derivou de dois fatores: primeiro, eram poucas as cidades alemãs que logo

após o término da guerra possuíam uma estrutura urbana minimamente preservada

para receber um evento nas proporções dos julgamentos. Embora mais de noventa por

cento da cidade de Nuremberg estivesse destruída, um dos principais hotéis da região,

assim como o Palácio da Justiça, tiveram suas estruturas preservadas durante os

bombardeios dos Aliados, o que representava uma vantagem prática sobre outras

cidades alemãs. Em segundo lugar, havia uma motivação simbólica na escolha de

Nuremberg: foi nessa cidade que foram decretadas as primeiras leis antijudaicas do

regime nazista, além de terem sido organizadas importantes conferências e congressos

                                                                                                               147 Texto original: “Every nation had its own criminal statutes and its own views as to how the trials should proceed. […] The delegates also debated whether to proceed using the Anglo-American adversarial system with defense lawyers for the defendants, or whether instead to use the judge-centered inquisitive system favored by the French and Soviets. After ten days of discussion, the shape of the proceedings to come became clearer. The trying court would be called the International Military Tribunal, and it would consist of one primary and one alternate judge from each country. The adversarial system preferred by the Americans and British would be used. The indictments against the defendants would prohibit defenses based on superior orders, as well as tu quoque (the "so-did-you" defense). Delegates were determined not to let the defendants and their German lawyers turn the trial into one that would expose questionable war conduct by Allied forces”. LINDER, Doug. The Nuremberg Trials. c2000. Available at: <http://law2.umkc.edu/faculty/projects/ftrials/nuremberg/nurembergACCOUNT.html>. Access at: 16 may 2012.

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do III Reich. Assim, a realização dos julgamentos nessa cidade reforçava ainda mais a

vitória dos Aliados e o fracasso do governo totalitarista germânico.

Decididas as regras e a localidade dos julgamentos, representantes das

potencias vencedoras assinaram em agosto o documento de criação do Tribunal

Militar Internacional, formalizando as leis e procedimentos que seriam

implementados. O Tribunal foi inaugurado em 20 de novembro daquele mesmo ano.

Foram organizados doze julgamentos, ocorridos entre 1945 e 1949, que analisaram e

condenaram mais de uma centena de indivíduos acusados de colaborar com o regime

nazista.

Foram movidos processos contra oficiais do governo (Processo contra o Alto

Comando, 1947-48), juízes (Processo contra os juristas, 1947), militares (Processo

contra os Generais, 1947-48), médicos e cientistas (Processo contra os médicos, 1946-

47), acusados por crimes cometidos individualmente e por organizações nazistas

criminosas, das quais foram considerados representantes (foram acusadas as seguintes

organizações: o Governo do III Reich, o Partido Nacional-Socialista dos

Trabalhadores Alemães, a SS, a polícia secreta, a SA, o Estado-Maior e o Comando

Supremo da Wehrmacht).

As acusações foram qualificadas em quatro “modalidades” principais, a saber:

conspiração e atos deliberados de agressão, crimes de guerra, crimes contra a

humanidade e contra a paz. As acusações foram formuladas por uma equipe de

promotoria composta por mais de 600 advogados, que recorreram a mais de 100.000

documentos e centenas de testemunhas oculares para respaldar as denúncias.

Em suma, os julgamentos de Nuremberg representaram um marco na história

do Direito Internacional por um conjunto de fatores: pela iniciativa – pois foi a

primeira vez que um Tribunal Militar foi implementado pelos países vitoriosos a fim

de julgar e condenar, em conformidade com a legislação internacional, crimes

cometidos durante o período de conflito; pelas proporções assumidas - o número de

réus, juristas e provas envolvidas não foram igualados até os dias atuais; e pelo caráter

qualitativo das acusações - desde a criação da expressão “crimes contra a

humanidade” em 1915, nenhuma acusação nesses termos havia sido feita.

Ademais, os processos de Nuremberg abriram outro importante precedente: ao

julgarem representantes do Estado por crimes cometidos contra seus próprios

cidadãos, os Aliados sinalizaram para o mundo que nem mesmo sob a proteção legal

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de suas legislações nacionais os criminosos estariam imunes à justiça internacional.

Pela primeira vez a soberania de um Estado foi posta à prova, frente a denuncias

irrefutáveis de gravíssimas violações dos direitos básicos dos homens. Todavia, o

jurista Raphael Lemkin preocupou-se em frisar um “erro” fundamental, que poderia

comprometer em definitivo os efeitos esperados: Nuremberg estava julgando “crimes contra a humanidade”, mas os Aliados não estavam punindo a chacina sempre e onde ela ocorrera, como Lemkin desejaria. O tribunal tratava a guerra agressiva (“crimes contra a paz”) ou a violação da soberania de outro Estado, como o pecado máximo, e processava somente os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra cometidos depois que Hitler cruzou fronteira internacionalmente reconhecidas. Os defensores dos nazistas, portanto, eram julgados por atrocidades que haviam cometido durante, mas não antes da Segunda Guerra Mundial. Por inferência, se os nazistas houvessem exterminado toda a população judaica da Alemanha, mas nunca houvessem invadido a Polônia, não teriam sido réus em Nuremberg. Estados e indivíduos que não cruzassem uma fronteira internacional continuavam livres, aos olhos do direito internacional, para perpetrar genocídios. Assim, embora o tribunal fizesse um bom trabalho levando a julgamento Hitler e seus associados, Lemkin achou que isso nada faria para deter futuros Hitlers148. Este “desvio” ocorrido nos processos frustrou imensamente Lemkin, assim

como a não menção do termo genocídio em nenhuma das acusações formais

realizadas perante o Tribunal. Em maio de 1946, o advogado deslocou-se até

Nuremberg, com a finalidade de pressionar informalmente os juristas envolvidos nos

julgamentos para incluir o termo genocídio nos discursos oficiais. Com isso pretendia

popularizar a expressão e agravar o peso das acusações feitas, ainda que não lhe fosse

possível influir sobre os termos fixos da Carta. Lemkin teve alguns poucos sucessos: Devido ao seu desempenho em lobbies anteriores, a terceira acusação aos indiciados de Nuremberg em outubro de 1945 declarara que todos os 24 réus “comandaram um deliberado e sistemático genocídio, ou seja, o extermínio de grupos raciais e nacionais, contra populações civis de certos territórios ocupados”. Essa foi a primeira menção oficial de genocídio num contexto jurídico internacional. Em 26 de junho de 1946, o promotor britânico David Maxwell Fyfe alegrou Lemkin quando disse ao suspeito nazista Constantin von Neurath: “acusado, é de seu conhecimento que neste julgamento você e os demais réus estão sendo julgados, entre outras coisas, por genocídio?” 149.

Lemkin continuou lutando pela inclusão do termo genocídio nas declarações

oficiais do Tribunal. Desafortunadamente, no discurso de condenação dos primeiros

réus, a Corte os declarou culpados por crimes de guerra, contra a paz e contra a

                                                                                                               148 POWER, 2004, p.74 149 Ibid., p.75  

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humanidade, mas em nenhum momento os condenou por práticas genocidas. Este

desfecho frustrou as expectativas e esforços de Lemkin; por outro lado, o estimularam

a se engajar ainda mais em um processo que corria paralelo aos julgamentos

subsequentes em Nuremberg: a definição da pauta de outono da recém-formada

Assembleia Geral das Nações Unidas.

Após um ano de lobby intensivo junto aos delegados da Assembleia, foi

aprovada com unanimidade uma resolução oficial (datada de 11 de dezembro de

1946) que condenava moralmente o genocídio em qualquer parte do mundo. Ademais,

a resolução previa a formação de um comitê responsável por elaborar um tratado que

condenasse e punisse Estados, indivíduos e organizações que estimulassem ou

realizassem crimes genocidas. Se a medida fosse aprovada e ratificada pela maioria

composta da Assembleia, a convenção seria elevada ao status de lei internacional.

Como foi visto no subcapítulo anterior, a Convenção sobre Prevenção e

Punição do Crime de Genocídio foi assinada em 1948, em grande parte graças às

pressões e aconselhamentos de Lemkin aos delegados designados pela Assembleia

Geral para tratar do assunto. Como ele tanto ansiara, “os Estados não teriam mais o

direito legal de ser deixados em paz. Interferir na situação interna de um Estado

genocida, como Morgenthau tentara fazer, não só era autorizado, mas exigido pela

convenção” 150. Em suma, a convenção foi crucial porque concluiu muitas das

pendências de Nuremberg apontadas por Lemkin: “Tornou os Estados sujeitos a

acusações de genocídio independentemente de cometerem agressão contra outro país

ou de atacarem apenas seus “inimigos” internos. Na paz ou na guerra, dentro ou

fora de um país, o tratado de 1948 não faria distinção” 151.

A convenção entrou em vigor em 12 de janeiro de 1951, após a assinatura do

tratado por 41 países (entre 1948 e 1949) e a ratificação por 20 governos. Nas décadas

subsequentes, mais de cem países aderiram à convenção, somando 142 membros152 e

mais de 60 ratificações. Contudo havia muitas críticas ao seu texto, em especial por

parte dos membros do congresso norte-americano e juristas, o que atrasou em décadas

a ratificação do tratado pelos Estados Unidos. Este fato marcou um significativo

retrocesso no desenvolvimento da discussão internacional iniciada por Lemkin, dado                                                                                                                150 POWER, 2004, p. 84 151 Ibid., p. 84 152 UNITED NATIONS. Treaty Collection. Available at: <http://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=UNTSONLINE&tabid=2&mtdsg_no=IV-1&chapter=4&lang=fr&clang=_fr>. Access at: 17 may 2012.

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o papel imprescindível dos Estados Unidos para garantir a aplicação da convenção.

Na verdade, a convenção só seria ratificada pelos EUA em novembro de 1988,

coincidindo (não por acaso, como se verá a seguir) com os anos finais da Guerra Fria.

A resistência dos senadores americanos referia-se fundamentalmente à vaga

definição de genocídio proposta na convenção, que gerava diversos problemas de

interpretação: “Um é o que se poderia chamar de problema numérico. Sobre a

questão de quantos indivíduos tem de ser mortos e/ou expulsos de seus lares para que

um assassinato em massa ou uma limpeza étnica se configure em genocídio, não

existe – e não pode haver - consenso” 153. Esta questão era duplamente criticada: se por um lado a lei estabelecesse um

número absoluto ou percentual de vítimas, estaria “protegendo” os responsáveis por

matanças que atentassem contra aquele número máximo de indivíduos. Se por outro

lado o texto se mantivesse abrangente nesse aspecto, aumentaria a inquietação de

políticos americanos, que temiam possíveis processos contra os EUA. Juristas

pertencentes à Ordem dos Advogados dos Estados Unidos alertavam para a

possibilidade de os Estados Unidos serem processados por práticas de discriminação

contra pequenos grupos de indivíduos de origens étnico-raciais ou religiosas diversas,

ainda que lhes fosse assegurado, por defensores da convenção, que uma leitura justa

consideraria como destruição parcial de um grupo apenas aquelas de “natureza tão

substancial que afetasse a existência do grupo como tal” 154.

A exemplo dessa primeira ressalva feita por pressão dos Estados Unidos ao

texto da convenção, muitas outras viriam. As pressões políticas internas no país se

refletiam em alegações e receios – muitas vezes sem fundamento jurídico – trazidos a

público a fim de evitar a ratificação do tratado pelo congresso. Foram feitas críticas à

condenação de outras práticas além de assassinato, como a geração de danos físicos e

mentais ou o impedimento do crescimento demográfico de uma determinada

população. A convenção previa que esses tipos de crime seriam considerados

genocidas caso houvesse evidências que indicassem se tratar de etapas de um plano

maior para destruir parcialmente ou em sua totalidade o grupo em questão. O

problema é que, no âmbito do direito penal, raramente há registros que comprovem a

intenção de se cometer um crime, em especial quando se trata de um crime de caráter

genocida. Consequentemente, dada à falta de clareza e objetividade do texto, os                                                                                                                153 POWER, 2004, p. 92 154 Ibid., p. 93

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americanos temiam ser indiciados pelo apartheid, por pequenas acusações de

violações de direitos humanos e até mesmo pelo massacre de índios nativos ocorrido

na costa Oeste no século XIX. (Na contramão, países do bloco soviético

pressionavam para que os grupos políticos fossem excluídos da listagem de vítimas

potenciais de crimes genocidas – visando, assim, preservar-se de possíveis acusações

futuras quanto às políticas persecutórias mantidas por Moscou ao longo do regime

stalinista).

A insegurança americana obrigou os defensores da convenção a, mais uma

vez, fazer uma recomendação de forte caráter jurídico a fim de apaziguar os ânimos

dos senadores, o que paralelamente constrangia os esforços até então empregados na

luta pela ratificação da convenção. Reconhecia-se, assim, que o conceito de genocídio

não deveria ser aplicado em casos de “linchamentos, tumultos raciais ou qualquer

forma de segregação” 155.

A razão pela qual este processo de adequação do texto da convenção aos

interesses norte-americanos estendia-se por tanto tempo era que todas as objeções

feitas pelos Estados Unidos, mais do que sustentadas por um genuíno

comprometimento com a clareza jurídica, refletiam o medo histórico que os políticos

daquele país nutriam de potenciais ameaças à soberania nacional. Este medo

intensificara-se ainda mais no contexto da Guerra Fria, motivo pelo qual os EUA

relutavam em ratificar um tratado que, a seu ver, exporia seus próprios cidadãos e

instituições a investigações internacionais de cunho político. Em parte, a data tardia

de ratificação da convenção pelo governo americano (novembro de 1988) é reflexo

direto dessa situação. Note-se, consequentemente, que o aspecto político das relações

interestatais e o contexto histórico no qual elas se inserem são essenciais para se

analisar de forma consistente os processos legais internacionais - como no caso da

convenção para a prevenção e punição de genocídios.

Na contemporaneidade, grupos cada vez maiores de analistas e teóricos

internacionais passaram a identificar novos atores emergentes que fossem capazes de

influenciar os relacionamentos internacionais e os processos de tomada de decisão

sobre temas debatidos em nível global (atribuindo importância não apenas a Estados

que outrora exerceram menor influência em processos dessa natureza, mas também a

Organismos Internacionais, ONGs internacionais, à mídia e à opinião pública). Dada

                                                                                                               155 POWER, 2004, p. 95

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essa nova realidade, será ampliado o campo de análise dos processos sobre a

condenação e prevenção de genocídios, evoluindo de uma visão mais voltada às

normas do direito internacional para uma perspectiva política focada nas iniciativas

estatais relacionadas a casos de genocídio ocorridos na segunda metade do século

passado.

Embora haja uma infinidade de atores internacionais que de uma forma ou de

outra influíram e ainda influem na luta global contra os crimes genocidas, a análise

será focada fundamentalmente no papel exercido pelos Estados Unidos (e nas razões

estratégicas que conduziram as atividades do governo norte-americano). Essa escolha

se justifica pelo status de superpotência sustentado pelo país, que (ainda) lhe confere

uma maior responsabilidade sobre a condução do debate sobre Direitos Humanos, e,

por outro lado, aumenta o tom das críticas às contradições ideológicas e políticas

expressas na política externa americana. Em suma, no próximo item será dada

continuidade à narrativa aqui desenvolvida, promovendo uma ruptura apenas no

enfoque adotado.

3.2.2 Estados Unidos, Europa e outros atores internacionais: protagonismo e crítica na luta internacional contra os crimes de genocídio

Os Estados Unidos atuam como protagonistas nos principais debates

promovidos pela comunidade internacional, referentes a um amplo leque de temas: de

assuntos relativos ao comércio, passando por regulamentações financeiras e

econômicas, até assuntos jurídicos e de caráter cultural. Também mantém uma

inquestionável posição de destaque nos debates promovidos no âmbito dos Direitos

Humanos, embora neste caso seu desempenho seja alvo de críticas muito mais

rigorosas do que quando operam em outros assuntos.

Este item será orientado principalmente pela investigação jornalística da

analista internacional Samantha Power156(que lhe garantiu o Prêmio Pulitzer categoria

                                                                                                               156 Samantha Power é advogada por formação, porém é amplamente conhecida pela sua militância política pelos direitos humanos. Durante os anos 1990 fez a cobertura jornalística da Guerra dos Bálcãns e foi conferencista na John F. Kennedy School of Government. Atualmente é assessora especial do presidente americano Barack Obama e membro do Conselho de Segurança Nacional norte-americano para temas de direitos humanos.

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não-ficção de 2003157). Dessa forma, o texto será voltado prioritariamente à análise da

política externa norte-americana - no que concerne o reconhecimento e a acusação (ou

não), por parte dos EUA, de crimes genocidas ocorridos após a entrada em vigor da

Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, em 1951.

Decerto será tentado, sempre que possível, compartilhar a responsabilidade

moral e jurídica americana com as demais potências ocidentais, pois seguramente a

responsabilidade e o desejo de garantir um mundo mais justo, livre de opressões, foi

ambicionado por todos aqueles países que, em meados de 1940, revoltaram-se contra

as atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial e depositaram suas esperanças

em um organismo internacional onde se pudesse debater e promover políticas de

promoção da paz. Contudo, seguindo a justificativa política da autora e uma

percepção histórica amplamente respaldada pela corrente teórica realista nos estudos

de Relações Internacionais158, será destacada a atuação dos EUA particularmente por

conta de seu privilegiado status de superpotência, que lhe confere uma influência

                                                                                                               157 Todas as informações apresentadas neste item, exceto aquelas devidamente sinalizadas, foram extraídas dos capítulos 6 (Camboja: “Gigante impotente”), 8 (Iraque: “Direitos humanos e uso de armas químicas à parte”) e 12 (Kosovo: Um cão e uma briga) do livro  Genocídio: a retórica americana em questão, da ativista política irlandesa Samantha Power; da leitura do livro El Régimen de Pol Pot: raza, poder y genocídio en Camboya bajo el régimen de los Jemeres Rojos, 1975-1979, de autoria do acadêmico australiano especializado em estudos sobre genocídio Ben Kiernan; e trechos do livro Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991, do historiador anglo-egípcio Eric Hobsbawm.  158 As múltiplas possibilidades de estudos e análise das Relações Internacionais são didaticamente agrupadas em conformidade com alguns paradigmas, “guarda-chuvas teóricos dentro dos quais situam-se as principais teorias de RI” (CASARÕES, Guilherme). Os três paradigmas estudados em RI contemporaneamente são o Realismo (que compreende os Estados como a unidade básica de análise, como os principais atores políticos, em torno dos quais os demais atores se organizam e como atores racionais voltados prioritariamente aos assuntos de segurança nacional); o Idealismo (que reconhece a importância dos atores não-estatais na dinâmica internacional, avalia os Estados como atores políticos, pressionados por múltiplas forças internas e externas e portanto voltados a uma extensa e múltipla agenda); e o Globalismo (direcionado aos “condicionamentos estruturais” do sistema internacional, em especial o raciocínio econômico). Sob cada um desses paradigmas desenvolvem-se as teorias de Relações Internacionais, dentre as quais destacam-se: Idealismo e Realismo modernos, Liberalismo e Escola Inglesa. Dentre os teóricos defensores do Realismo moderno, há três cujas ponderações foram consideradas durante o desenvolvimento argumentativo da presente monografia. São eles: E. H. Carr – que entende a busca pelo aumento de poder como a maior motivação dos Estados; Hans Morgenthau – que também reconhece que os interesses estatais são definidos em termos dos ganhos de poder, reconhece a esfera política como plenamente autônoma e acusa a impossibilidade de se aplicar princípios morais universais ao comportamendo estatal (“nada que os Estados dizem ser universal é de fato universal, exceto a luta por poder”); e Raymond Aron – que se preocupa em trabalhar as expressões do poder legítimo e diferenciá-las do uso de violência e do exercício da influência política e econômica, utilizando correntemente o exemplo dos Estados Unidos.

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dificilmente atingível por outras potencias ocidentais159 - sobre a maior parte dos

países e na maior parte dos contextos que serão analisados nas próximas páginas.

Como foi visto anteriormente, apesar do discurso ideológico dos EUA e dos

países da Europa ser historicamente favorável à garantia dos Direitos Humanos e à

liberdade dos povos, o descomprometido posicionamento sistematicamente adotado

por esses países ao longo do século passado coibiu a luta contra os crimes genocidas e

deixou impunes seus principais algozes.

O maior símbolo da resistência americana à adesão do movimento iniciado por

Lemkin foi o atraso de trinta e sete anos para que o senado ratificasse a convenção

(que até aquele momento já havia sido ratificada por noventa e sete países) – e ainda

impusesse um constrangedor pacote de ressalvas, que anulava quase totalmente a

eficiência jurídica do tratado. Ainda assim, mesmo após a ratificação, o governo

norte-americano continuou agindo de forma negligente perante evidências bastante

claras de agressões contra grupos étnico-raciais e religiosos cometidas por

governantes de outros países. Sua postura de indiferença e descomprometimento é

especialmente chocante, porque contradiz ferozmente a imagem de “guardião” da paz

e da democracia que o Estado americano dedicou-se tanto a propagar durante o século

XX. Ademais, os EUA são o único país do mundo a desfrutar do status de

superpotência (desde a desintegração da URSS e consequente término da Guerra

Fria). Se por um lado os poderes econômico e bélico do país sobrepõe-se aos demais

segundo uma simples avaliação quantitativa160, o reconhecimento do status norte-

                                                                                                               159 Em conformidade com esta percepção histórica e política, tomo a liberdade de transcrever uma reflexão de Hobsbawm quanto ao equilíbrio de forças globais ao final do século XX: “Quem eram, na verdade, as potências internacionais, velhas ou novas, no fim do milênio? O único Estado que teria sido reconhecido como grande potência, no sentido em que se usava a palavra em 1914, eram os EUA. O que isso significava na prática era bastante obscuro. A Rússia fora reduzida ao tamanho que tinha no século XII. Nunca, desde Pedro o Grande, ela chagara a ser tão negligenciável. A Grã-Bretanha e a França gozavam apenas de um status puramente regional, o que não era ocultado pela posse de armas nucleares. A Alemanha e o Japão eram sem dúvida “grandes potências” econômicas, mas nenhum dos dois sentira a necessidade de apoiar seus enormes recursos econômicos com força militar, na forma tradicional, mesmo quando tiveram liberdade para fazê-lo, embora ninguém soubesse o que poderiam querer fazer no futuro desconhecido. Qual era o status político internacional da nova União Europeia, que aspirava a uma política comum mas se mostrava espetacularmente incapaz de até mesmo fingir ter uma, ao contrario das questões econômicas? Não estava claro nem mesmo se todos os Estados, grandes ou pequenos, velhos ou novos – com exceção de uns poucos -, existiriam em sua presente forma quando o século XX atingisse o seu primeiro quartel” (HOBSBAWM, 2004, p.538). 160 Os conceitos de hard power, soft power e smart power são amplamente trabalhados pelo acadêmico americano Joseph Nye, defensor da teoria Neoliberalista. Em seus estudos, Nye

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americano pela comunidade internacional também colabora para o crescimento dos

poderes brandos – a capacidade de convencimento e influência sobre as decisões e

ações de outros atores internacionais – exercidos inclusive sobre os governos

genocidas. Considerando este cenário político, não há dúvidas de que os Estados

Unidos seriam um dos principais atores capazes de prevenir e conter práticas

genocidas cometidas nas últimas décadas do século passado.

Para comprovar esta ideia e direcionar o presente trabalho às considerações

finais, serão discutidas brevemente as posições assumidas pelos Estados Unidos e

pela comunidade internacional perante dois episódios genocidas ocorridos após a

Segunda Guerra Mundial, em contextos históricos bem distintos entre si.

Primeiramente será analisado o genocídio do Camboja, ocorrido entre 1974 e 1979,

antes da ratificação da convenção pelo governo norte-americano e em um período de

grande turbulência da Guerra Fria; em seguida será focalizado o genocídio do Iraque,

ocorrido em 1988, logo após a ratificação da convenção e ao final da Guerra Fria.

Quais as particularidades de cada período e porque em nenhum caso houve

mobilização internacional para conter as atrocidades cometidas? Valeram a pena os

esforços empregados por Lemkin e seus herdeiros ideológicos na luta pelo

reconhecimento do genocídio como a manifestação mais agressiva e cruel de um

anseio destrutivo expresso socialmente? Ao se colocarem essas questões, volta-se

naturalmente às divagações de caráter antropológico e filosófico feitas nos primeiros

capítulos deste trabalho. Pois não há legislação que, desacompanhada das práticas de

julgar e condenar, seja capaz de mudar aspectos psíquicos intrínsecos ao homem ou

aspectos culturais característicos de uma sociedade. Nesta monografia já foram

trabalhados os conceitos de violência, poder, dominação e medo. Agora, a partir da

aplicação destes conceitos nos breves estudos de caso tratados neste capítulo será

possível entender, com maior clareza, o porquê dos genocídios ocorrerem.

O Sudeste Asiático foi uma região de interesse estratégico para EUA e URSS

durante a Guerra Fria. Dos conflitos político-ideológicos ocorridos na região, o mais

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             diferencia os resultados da expressão dos poderes estatais: são classificados como hard power aqueles poderes exercidos por práticas coercitivas e ameaças, o que no caso estatal corresponde aos poderes econômicos e militares. Já o soft power (ou poder brando) é traduzido pela capacidade de convencimento de um Estado, que induz outro Estado e outros atores internacionais a agirem em conformidade aos seus interesses. O smart power, por sua vez, é explicado por Nye como a capacidade de se combinar hard e soft power em uma estratégia bem-sucedida de política externa.

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significativo e conhecido é a Guerra do Vietnã. Ocorrida entre 1959 e 1974, no auge

da Guerra Fria, a guerra entre o Vietnã do Sul e o Vietnã do Norte foi consequência

direta da disputa entre as duas superpotências pelo controle político da região.

Durante os primeiros cinco anos de conflito, o Vietnã do Sul foi patrocinado pelo

governo norte-americano para fazer frente às forças militares do Vietnã do Norte e da

Frente Nacional para a Libertação (FNL), ambas comandadas pelo líder comunista Ho

Chi Minh e apoiadas pelos países comunistas. A partir de 1964, dada a dificuldade

enfrentada pelas tropas sul-vietnamitas em vencer o conflito, os EUA envolveram-se

diretamente na guerra, enviando soldados para a região. O número de militares

americanos em combate foi aumentando progressivamente, até atingir a

impressionante marca de 550 mil combatentes, em 1968.

Esta estratégia de reforçar as tropas, contudo, não se mostrou bem sucedida.

Pelo contrário, ao invés de abreviar o período de conflito, tornou-o mais extenso,

violento e propício à expansão da guerra para além das fronteiras vietnamitas: em

1969, sob a liderança de Richard Nixon, os EUA iniciaram uma sequência de

bombardeios (que perduraram por 14 meses) em território cambojano, com o intuito

de destruir acampamentos norte-vietnamitas localizados no país vizinho. Em 1970,

mais de 70 mil soldados americanos e sul-vietnamitas invadiram o Camboja, a fim de

perseguir vietcongues e combatentes comunistas e destruir todas as bases de apoio às

tropas no Vietnã. Paralelamente, os Estados Unidos apoiaram um golpe de Estado

liderado por Lon Nol para derrubar o príncipe Norodom Sihanouk (simpatizante do

regime comunista chinês), dando início a uma guerra civil que se arrastaria pelos

cinco anos seguintes.

O governo de Lon Nol (1970-1974) caracterizou-se como um regime ditatorial

severo, com altos índices de corrupção, colapso da economia nacional e em guerra

interna contra vietnamitas e revolucionários comunistas ultrarradicais pertencentes ao

grupo Khmer Krahom (Khmer Vermelho ou KV)161. Apesar disso, o governo ainda

                                                                                                               161 É importante que se contextualize a realidade economico-cultural cambojana antes do estabelecimento da ditadura de Lon Nol e do golpe de Estado liderado pelo Khmer Vermelho, para que seja possível entender quais os traumas vividos pela população local antes do genocídio e quais os impactos das ditaduras de Lon Nol e Pol Pot para a sociedade, economia e tradição nacionais. Cerca de 90% da população cambojana atual é pertencente à etnia khmer (ou khmere), que ocupa o delta do Rio Mecong desde o ano 100 d.C., provavelmente proveniente da Indochina e Índia. À época da primeira ocupação territorial, os khmeres estabeleceram o reino Funan, que ao longo de 400 anos expandiu-se territorialmente e incorporou diversas tribos estabelecidas em regiões próximas. A partir do século VI, contudo,

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                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             o reino dos khmeres enfraqueceu-se, chegando a ser dividido em dois. Somente no século VIII os poderes políticos seriam reunificados, sob o nome de Império Angkor. O Império caiu em 1432, com a invasão e dominação de guerreiros tailandeses. Este episódio assinalou o início de um ciclo de dominação que perduraria por quatro séculos, até a chegada dos colonizadores europeus ao Sudeste Asiático. Assim, a partir de 1863 a população khmer foi colonizada pela França, até o início da Segunda Guerra Mundial, período em que ficou sob ocupação japonesa. O país tornou-se independente em 1954. Contudo, após a queda do Khmemr Vermelho em 1979, o Camboja passaria mais uma década sob dominação vietnamita. Sua estrutura econômica nunca foi complexa nem forte, o que se refletiu em baixíssimos fluxos de investimento no bem-estar social. O Camboja esteve por muito tempo à mercê da dominação política de caráter autoritário e corrupto, o que também contribuiu para o baixo envolvimento político da população ao longo da história. O país, em comparação com os vizinhos, sempre esteve isolado. Embora localizado em um pequeno território, a população majoritariamente rural (correspondente a cerca de 80% da população nacional) vivia dispersa, organizada em vilarejos isolados uns dos outros. A principal atividade econômica era o cultivo de arroz para a subsistência, o que refletia em uma economia agrícola extremamente frágil e deficitária. O restante da população, urbana, vivia da produção de produtos manufaturados de baixo valor agregado e tecnológico, consumidos exclusivamente pelo próprio mercado doméstico. O Camboja possuía uma população homogênea e majoritariamente budista, com pouca influência estrangeira: "Principalmente como resultado da política colonial francesa na Indochina, o Camboja recebeu minorias populacionais significativas, mas não incorporadas, do Vietnã, China e Laos, assim como tailandeses, a maior comunidade islâmica (da etnia) cham e cerca de mais 16 pequenos grupos tribais. Oitenta por cento dos residentes do Camboja eram (da etnia) khmer, mas as cidades eram dominadas pelos chineses e vietnamitas" (KUNSTADNER, Peter. apud KIERNAR, Ben. El Régimen de Pol Pot: raza, poder y genocidio en Camboya bajo el régimen de los Jemeres Rojos, 1975-1979. 1a ed. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2010. p. 50-51). Do texto original: “En su mayoría como resultado de la política colonial francesa en Indochina, Camboya recibió minorías poblacional es sustanciales pero no integradas, provenientes de Vietnam, China y Laos, al igual que tailandeses, la gran comunidad de islámicos cham y alrededor de dieciséis pequeños grupos tribales más. El ochenta por ciento de los residentes de Camboya eran jemeres, pero las ciudades estaban dominadas por chinos y vietnamitas.” Quanto à educação básica no país, durante o período de colonização francesa (1863-1954), pouco se investiu em instituições de ensino. Dezenas de escolas budistas tradicionais foram fechadas, mas a administração colonial não garantiu a abertura de novas escolas em contrapartida. No início dos anos 1950 não havia nenhuma instituição de ensino superior no país, e mesmo as escolas secundárias não conseguiam atender a toda a população. Após a independência liderada por Sihanouk, esse cenário mudou rapidamente: "O número de escolas secundárias aumentou de oitenta em 1953 para duzentas em 1967, com cento e cinquenta mil alunos. Outros onze mil alunos frequentavam nove novas universidades. Quase todos (da etnia) khmeres agora tinham a oportunidade de obter uma educação básica, e o país possibilitou mais de um milhão de jovens educados, 20 por cento da população. Uma massa de professores e alunos conscientes da situação política compunha um fenômeno cambojano inteiramente novo [...]" (KIERNAR, 2010, p. 52). Do texto original: “la cantidad de escuelas secundaria se elevó de ochenta en 1953 a doscientas en 1967, con ciento cincuenta mil estudiantes. Otros once mil estudiantes asistían a nueve universidades nuevas. Casi todos los jemeres ahora tenían la oportunidad de obtener una educación básica, y el país producía más de un millón de jóvenes educados, el 20 por ciento de la población. Una masa de docentes y estudiantes conscientes de la situación política componían un fenómeno camboyano completamente nuevo […]”.

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recebia apoio incondicional norte-americano, que via os países asiáticos como peças

de dominó que deveriam ser estabilizadas a todo custo, a fim de não comprometer os

países vizinhos. Contudo, a importância do Camboja para a geoestratégia americana

minguou após a retirada das tropas americanas do Vietnã.

A partir de 1973, a ajuda financeira e o suporte político e militar oferecidos

pelos Estados Unidos ao governo de Lon Nol foram drasticamente reduzidos. Em

1975 o cenário nacional era um dos piores possíveis: a infraestrutura do país havia

sido completamente destruída pelos bombardeios americanos; mais de um milhão de

cambojanos haviam morrido em decorrência da guerra e cerca de três milhões haviam

perdido suas casas; a população estava esgotada física e psicologicamente e o governo

encontrava-se em uma grave crise política, encurralado pelas facções comunistas

revolucionárias. Em meados de abril a capital Phnom Penh sucumbiu às forças do

Khmer Vermelho, lideradas pelo radical Saloth Sar (Pol Pot).

Assim que assumiram o governo, os líderes do Khmer Vermelho ordenaram a

evacuação de todos os centros urbanos. Destruíram os templos budistas, as principais

edificações, carros, livros e quaisquer outros símbolos que remetessem à lembrança

da cultura, religião e sociedade cambojana até aquela data. Objetivavam implementar

um regime comunista puro, totalmente blindado de ideias burguesas. Também por

esta razão, isolaram-se completamente da comunidade internacional. Os estrangeiros

que não se retiraram nas três primeiras semanas de regime foram assassinados, assim

como os jornalistas flagrados. A partir daquela data, nenhum observador internacional

foi autorizado a entrar em território cambojano.

Entre 1975 e 1979 mais de dois milhões de cidadãos morreram assassinados

ou por negligência do regime (em consequência da fome, doença ou exaustão). Esse

número correspondia a cerca de 28%162 da população nacional à época. As minorias

vietnamitas, chinesas e islâmicas foram totalmente exterminadas, assim como 80%

dos monges budistas cambojanos (cerca de 400 mil). Todos os indivíduos que

demonstrassem algum nível de estudo eram tidos como burgueses e, por essa razão,

assassinados. O mesmo valia para as pessoas que usassem óculos. Os cidadãos

ficaram proibidos de transitar livremente pelas províncias do país, pois para isso era

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             Foi essa nova elite intelectual que primeiramente contribuiu para a politização de uma parcela da sociedade que, uma década depois, originou o movimento comunista revolucionário Khmer Vermelho, liderado pelo ultra-radical Pol Pot. 162  POWER,  2004,  p.175  

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necessário que possuíssem uma autorização especial do governo. Não podiam

mencionar nada que ocorrera em suas vidas ou na história do Camboja antes da

tomada de poder pelo Khmer. As relações sexuais e uniões foram proibidas, exceto

quando formalmente autorizadas pelo governo. Toda e qualquer prática religiosa foi

reprimida, assim como qualquer tentativa de se comunicar com o mundo exterior.

Antes da queda de Lon Nol, alguns jornalistas e funcionários da embaixada

americana perceberam a agressividade e força do Khmer Vermelho. Emitiram

comunicados ao Ocidente, porém foram avaliados como exagerados e pessimistas.

Uma vez implementado o regime comunista, o país ficou de tal forma isolado que o

acesso à informação era controlado e os poucos dissidentes que conseguiam refugiar-

se na fronteira com a Tailândia eram tidos como fontes informais, pouco confiáveis.

As histórias sobre torturas e massacres eram recebidas como rumores. Por essa razão,

nos primeiros meses de genocídio a comunidade internacional continuou incapaz de

avaliar adequadamente as proporções e a intensidade das atrocidades cometidas;

mesmo quando as acusações contra o regime ganharam proporções consideráveis, não

podendo mais ser ignoradas, as potencias ocidentais mantiveram-se alheias à tragédia: Com os Estados Unidos sufocados sob o legado da Guerra do Vietnã, terminada muito recentemente, nenhuma figura como Lemkin emergiu, nenhuma autoridade americana incumbiu-se de levantar o problema dia após dia, e nenhum indivíduo ou organização convenceu os responsáveis pelas decisões nos Estados Unidos de que a morte de cambojanos interessava suficientemente aos americanos para merecer sua atenção. Assim, embora fossem invocadas analogias com o Holocausto e se fizessem apelos isolados, nos três anos de terror sistemático a política americana de silêncio nunca foi criticada com seriedade. Teria sido politicamente impensável intervir militarmente, e emocionalmente desagradável dar muita atenção aos horrores que estavam ocorrendo, mas olhar para o outro lado não tinha custo nenhum. E foi isso que fizeram dois presidentes americanos e a maioria dos legisladores, diplomatas, jornalistas e cidadãos, antes, durante e depois do reinado de terror do Khmer Vermelho163.

O curioso é que, inicialmente, membros do alto-escalão do governo americano

tentaram intervir contra o golpe de Pol Pot, porém ao apresentarem suas razões foram

desacreditados. As razões para essa reação foram variadas: por parte da população e

de muitos políticos do congresso, alertas pessimistas sobre o Camboja em plena

Guerra Fria soavam como “paranoia anticomunista”; por outro lado, o fato de o país

estar localizado no Sudeste Asiático reavivava lembranças desgastantes à população

americana (referentes à Guerra do Vietnã e à própria guerra civil cambojana), o que                                                                                                                163 POWER, 2004, p.118

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aumentava o desinteresse político pela região. Havia também a percepção de que

nenhuma realidade política poderia ser pior do que a ditadura de Lon Nol apoiada

pelos Estados Unidos. Quaisquer que fossem as diretrizes e ideologia do Khmer

Vermelho, não poderiam ser mais nocivas à população e cultura do Camboja do que o

regime anterior.

Em parte, o ceticismo, desinteresse e descomprometimento das potências

ocidentais (advindas simultaneamente da população e dos governos europeus e norte-

americano) derivaram do fato de que, em nenhum momento, acusou-se o regime de

genocídio. Nenhum país – com exceção de Israel, ao final dos anos 1970 - jamais

referiu-se ao Camboja como um Estado genocida; nenhum país jamais recorreu à

Corte Internacional de Justiça (que poderia responsabilizar formalmente o governo

cambojano pelas atrocidades cometidas e cobrar providências imediatas) e tampouco

condenou o regime de Pol Pot perante a comunidade internacional, em nenhum

comitê ou instância da ONU. Nenhum país tomou a iniciativa de tentar constranger o

KV perante a comunidade internacional diante do fato de que o Camboja era

signatário da Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio desde

outubro de 1950. Esta postura ocidental frente ao massacre primeiramente justificou-

se, como foi visto, pelo desinteresse da população, da mídia e dos governantes por

assuntos relacionados ao Sudeste Asiático ou à causa comunista.

Mas havia uma outra razão para que os EUA mantivessem-se neutros no

julgamento do KV: O governo Carter estava resolvido a não por em risco suas florescentes relações com nenhum dos dois aliados regionais do KV: Tailândia e China. A Tailândia era anticomunista, mas mantinha relações polidas com o Khmer Vermelho porque sua prioridade era conter o Vietnã. E a China, que considerava o Khmer Vermelho um aliado natural e ideológico, ocupara o centro do palco nos círculos de política exterior dos EUA desde a viagem de Nixon a Pequim em 1972 [...] Em maio de 1977 o presidente Carter qualificou as relações sino-americanas de “um elemento central de nossa política global” e a China de “uma chave para a paz mundial”. Embora a China fosse o país provavelmente mais capaz de afetar o comportamento do KV, o governo Carter não poria em risco a normalização reclamando de violações de direitos humanos164.

                                                                                                               164 POWER, 2004, p.158

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Na verdade, a partir de 1977 esta causa passou a prevalecer sobre a primeira.

Isto porque, em meados da década de 1970, historiadores e acadêmicos165 começaram

a trabalhar mais intensamente a temática do Holocausto judeu. Esta discussão

possibilitou a associação mais recorrente do regime cambojano ao genocídio liderado

por Hitler, o que por sua vez despertou o senso de responsabilidade e culpa da

população em geral. A retomada deste assunto também despertou o interesse da mídia

ocidental, que passou a buscar com maior ênfase informações relativas ao massacre.

Ciclicamente, a disseminação do assunto na sociedade civil abriu os olhos dos

políticos no congresso americano, estimulando debates e sessões parlamentares para

discutir sobre o assunto. Em abril de 1978 o poder executivo finalmente demonstrou a

influência exercida pelo legislativo, pela população e pela mídia, através de uma

declaração feita pelo Presidente Carter, em que ele condenou as sistemáticas

violações de direitos humanos pelo governo cambojano.

Pela primeira vez estava claro que algo deveria ser feito para coibir a

perpetração das atrocidades, mas nem os Estados Unidos, nem os demais países da

Europa foram capazes de propor uma prática cabível à situação. O intervencionismo

vez ou outra sugerido era sistematicamente rejeitado pelos Estados Unidos,

justamente pelo receio de desestabilizar os frágeis laços estabelecidos com a China e a

Tailândia.

A solução à dominação comunista não veio, pois, das lideranças ocidentais:

em janeiro de 1979 o exército vietnamita invadiu o Camboja e, com o apoio popular,

depôs os dirigentes do Khmer Vermelho. Estes, encurralados, refugiaram-se em

território tailandês. É importante ressaltar que a invasão não se deu por questões

humanitárias, mas sim por um conflito fronteiriço entre os dois países que vinha se

intensificando desde 1977. Apesar disso, o Vietnã esperava receber o apoio da

comunidade internacional, uma vez reveladas as dimensões dos massacres ocorridos

pelo KV. As expectativas vietnamitas, contudo, foram frustradas. O Vietnã, embora

tivesse acabado com um regime brutal condenado pela comunidade internacional, era

                                                                                                               165 Em 1970 foram publicados dois livros que traziam uma nova abordagem sobre o Holocausto judeu, as políticas nazistas pela perspectiva norte-americana durante a Segunda Guerra Mundial. Foram eles: While Six Million Died: a Chronicle of American apathy, de Arthur Morse e Politics of Rescue: the Roosevelt Administration, 1939-1945, de Henry Feingold. Além da publicação desses livros, no início dos anos 1970 também foi produzida uma minissérie sobre a Solução Final, o que ajudou a popularizar o conhecimento sobre as atrocidades cometidas durante o regime hitlerista (POWER, 2004, p. 160).  

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aliado político da URSS. Já o governo cambojano deposto era apadrinhado do

governo chinês. Dessa forma, A vitória vietnamita punha o presidente Carter diante de uma difícil escolha moral e política. Qual era o mal menor, um regime que executara 2 milhões de cambojanos ou um regime comunista apoiado pela União Soviética que flagrantemente violara uma fronteira internacional e agora ocupava um país vizinho? Depois de ponderar a política da escolha, Carter tomou o partido do Khmer Vermelho deposto. Os Estados Unidos tinham razões óbvias para opor-se à expansão da influência vietnamita (e, em consequência, soviética) na região. Os Estados Unidos também declararam ter interesse em impedir violações agressivas de fronteira em qualquer parte do mundo [...] No caso do Camboja talvez o mais importante fator por trás da escolha de Carter fosse a inclinação dos EUA para a China, que continuava a ser o principal patrono militar e econômico do governo deposto de Pol Pot [...] Como os interesses dos Estados Unidos estavam com a China, indiretamente estavam com o Khmer Vermelho166.

Esta decisão moralmente comprometedora não foi, contudo, questionada pela

população americana:

A escolha política do governo Carter foi facilitada porque nos Estados Unidos ninguém clamou pelo apoio ao Vietnã. Os mais ardorosos anticomunistas americanos ainda estavam bravos com o Vietnã pela derrota dos EUA. Os americanos de esquerda em sua maioria não se comprometeram. Comunistas ferrenhos estavam confusos com a aparentemente súbita divisão do Sudeste Asiático em dois campos comunistas rivais e duramente disputados. Os protestos em massa nos Estados Unidos na década de 1960 eram uma reação contra o imperialismo americano e a perda de vidas de americanos. Como nada estava em jogo no conflito Vietnã-Camboja de 1979, os ativistas que outrora haviam se juntado à voz do povo não reemergiram. O governo pôde reduzir seu cálculo estratégico à pura geopolítica sem gerar dissensão167.

Assim, o governo americano respaldou as críticas da China e da Associação

das Nações do Sudeste Asiático (Asean), sob o questionável argumento de que “nada”

justificaria a violação da soberania de outro Estado. Este posicionamento foi

formalizado ao final de 1979, quando a comissão para a revisão semestral das

credenciais dos países-membros da ONU tornou-se palco de acalorada disputa entre o

regime KV deposto e o novo Estado cambojano, apoiado pelo Vietnã e União

Soviética. Sob pressão americana, o regime KV foi credenciado a participar das

reuniões da Assembleia Geral da ONU e o governo em exercício, não. O

encerramento desta questão burocrática não concluiu, contudo, os debates acerca da

                                                                                                               166 POWER, 2004, p.179-180 167 POWER, 2004, p.181

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legitimidade do governo de Pol Pot. O reconhecimento da invasão vietnamita e da

deposição do governo KV manteve-se como um assunto polêmico até o término da

Guerra Fria. Até o final dos anos 1980, os EUA continuariam engessando o debate e

coibindo a condenação do regime de Pol Pot e o reconhecimento da invasão

vietnamita. Só em junho de 1990 o secretario de Estado James Baker escreveu uma carta ao líder da maioria do Senado, George Mitchell, estipulando uma nova política dos Estados Unidos para o KV na ONU. Dali por diante os Estados Unidos votariam contra a coalizão do KV nas Nações Unidas e finalmente contribuiriam no fluxo de ajuda humanitária para o Vietnã e o Camboja168.

A mensagem americana, contudo, já havia sido dada: a proteção dos direitos

humanos de cidadãos não americanos figurava como uma questão secundária no

universo de preocupações do governo. A geoestratégia e os interesses políticos

prevaleceram. A expectativa era de que, após a ratificação da convenção pelo

congresso americano, em 1986, este tipo de postura constrangesse os estadistas

ocidentais, não podendo mais ser assumida explicitamente pelos governos. No

entanto, apenas um ano após a entrada formal dos Estados Unidos no acordo para

prevenção e punição de genocídio, a postura de descomprometimento ocidental se

repetiu, dessa vez com relação ao genocídio de curdos pelo governo iraquiano

liderado por Saddam Hussein, à época aliado dos EUA e Europa.

Apenas na segunda metade da década de 1970, cerca de meio milhão de

curdos foram forçados a deixar suas casas localizadas nas regiões montanhosas

próximas às fronteiras do Norte, sendo realocados em outras regiões do país, onde

foram obrigados a se misturar com a população árabe e desvencilhar-se de suas

tradições culturais e ambições separatistas, enquanto suas vilas eram completamente

destruídas. Com a guerra contra o Irã (1980-1988) os conflitos se agravaram, a partir

do momento em que grupos rebeldes curdos intensificaram suas manifestações e

aliaram-se aos combatentes iranianos contra as tropas iraquianas, motivando graves

represálias do governo. Saddam ordenou os primeiros massacres com armas químicas

no início dos anos 1980, o que resultou na morte de dezenas de milhares de iranianos

e curdos iraquianos. O ápice das repressões ocorreu entre março de 1987 e setembro

de 1988, quando o governo de Saddam matou aproximadamente 100 mil169 curdos

                                                                                                               168 Ibid., p.187-188  169 POWER, 2004, p.207

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iraquianos que habitavam as zonas rurais ao norte do país por meio do uso de armas

químicas. Destruiu milhares de vilarejos e deportou mais de um milhão de curdos

para outras regiões do país. Os massacres foram estrategicamente organizados em oito

ofensivas170, lideradas pelo secretário-geral do Departamento do Norte Ali Hassan al-

Majid, e ficaram conhecidos como Anfal.

Embora essa política de extermínio fosse direcionada indiscriminadamente a

todos os camponeses curdos, a motivação inicial do governo não era de ódio racial,

mas sim de caráter político: o interesse de Saddam era suprimir a insurgência dos

rebeldes curdos, que há décadas reivindicavam a autonomia política e administrativa

da região, gerando constantes atritos políticos e represálias severas por parte do

governo iraquiano. Ademais, as regiões historicamente ocupadas pela população

curda eram de importante interesse estratégico para o governo, tanto do ponto de vista

militar (regiões fronteiriças) quanto econômico (ricas em petróleo).

Neste contexto político, a comunidade internacional, embora ciente das

dimensões dos massacres, demorou anos para dar a devida importância aos fatos.

Inicialmente a mídia e os governos ocidentais avaliaram as matanças como uma

inevitável consequência do movimento separatista, e por isso consideravam o caso um

assunto interno do Iraque. Além disso, os Estados Unidos e os países da Europa

haviam adotado uma postura de distanciamento político dos conflitos ocorridos no

Oriente Médio no intuito de evitar a inflamação de sentimentos antiocidentais na

região.

Isso não impediu que os Estados Unidos concedessem empréstimos

financeiros substanciais ao governo de Saddam ao longo dos anos 1980, a fim de

contrabalancear a distribuição de poderes no Oriente Médio. Embora o governo

americano fosse bem informado quanto ao caráter destrutivo de Saddam, era

importante para ele garantir que o Irã não vencesse a guerra, o que poderia causar

complicações políticas na região171. Desde a queda do Xá em decorrência da

                                                                                                               170 Ibid., 206  171 Hobsbawm reconhece que o enfraquecimento político e econômico da União Soviética “retirou o Oriente Médio da linha de frente da Guerra Fria, mas deixou-o tão explosivo quanto antes” (HOBSBAWM, 2004, p. 351). De fato o Oriente Médio figurou como uma das áreas mais instáveis política e socialmente, aos olhos ocidentais, desde a época da colonização. Segundo o historiador, continuava havendo, ao final do século XX, três centros de conflito na região, dentre os quais o movimento de independência curdo, localizado na região de fronteira entre Turquia, Irã, Iraque e Síria. Os rebeldes curdos, “incapazes de encontrar apoio

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Revolução Cultural de 1979 o Irã vivia sob um regime islâmico radical e

antiamericano, que os ocidentais compreensivelmente temiam que se espalhasse por

países vizinhos, comprometendo as relações com o mundo árabe172.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             permanente por parte de algum Estado poderoso, perturbaram as relações entre todos os seus vizinhos, que os massacraram utilizando todos os meios disponíveis, até mesmo, na década de 1980, gás tóxico, quando não encontraram diante de si a resistência dos proverbialmente hábeis curdos, verdadeiros guerrilheiros da montanha” (HOBSBAWM, 2004, p.352). Das outras duas regiões, o Mediterrâneo oriental e o golfo Pérsico, o historiador comenta: “o Mediterrâneo oriental permaneceu relativamente quieto, pois tanto a Grécia quanto a Turquia eram membros da OTAN, embora o conflito entre os dois levasse a uma invasão turca do Chipre, que foi dividido em 1974. Por outro lado, a rivalidade entre as potências orientais, Irã e Iraque, por posições do golfo Pérsico iria levar à bárbara Guerra de oito anos entre o Iraque e o Irã revolucionário, em 1980-8 e, após a Guerra Fria, entre os EUA e seus aliados e o Iraque em 1991”. (Loc. cit.) 172 A Revolução Islâmica ocorreu em 16 de janeiro de 1979 sob a liderança do aiatolá Ruholá Khomeini, em resposta ao malsucedido governo do xá Mohammad Reza Pahlavi. No início da década de 1950, o então primeiro-ministro Mohammed Mossadegh intensificara seu discurso antiimperialista, no qual defendia a nacionalização das atividades petrolíferas do país, a fim de evitar a exploração econômica indevida por potências ocidentais. A exacerbação do nacionalismo iraniano desagradou os Estados Unidos (que possuíam enorme interesse em explorar as jazidas de petróleo contidas no território iraniano), que orquestraram, juntamente com a elite pró-monarquia do país, a deposição de Mossagedh e a restituição do poder ao sucessor do trono, Mohammad Reza Shah. A partir de 1953 o xá iniciou um pacote de medidas para a modernização e industrialização do país apoiado fortemente pelo governo norte-americano. Os programas governistas geraram, contudo, enorme insatisfação popular: o xá promoveu a reforma agrária no país, o que “transformou grande número de meeiros e arrendatários em grande número de subeconomias de pequenos proprietários e trabalhadores desempregados, que migraram para as cidades. Teerã passou de 1,8 milhão de habitantes para 6 milhões. O agricomércio de capital intensivo e alta tecnologia favorecido pelo governo criou mais excedente de mão-de-obra, mas não ajudou a produção per capita da agricultura, que decaiu nas décadas de 1960 e 1970” (HOBSBAWM, 2004, p.440). Ao final da década de 1970, o Irã dependia da importação de alimentos para suprir a demanda das populações urbanas. Paralelamente, o programa de industrialização só se sustentava pelas constantes e vigorosas injeções de recursos provenientes das atividades petrolíferas, o que expôs a indústria nacional às variações de preço da commoditie. Esse mecanismo sujeitava a economia iraniana a fortes pressões inflacionarias. Culturalmente o governo do xá também desagradou a população, principalmente no tocante à defesa dos direitos e liberdades femininos. Assim, em resposta a essas medidas impopulares o aiatolá Khomeini, que encontrava-se exilado desde meados da década de 1960, iniciou uma campanha incitando os jovens religiosos habitantes das áreas urbanas a voltarem-se contra o regime. Após um ano de manifestações constantes e cada vez mais fortes, o xá foi destituído do poder e exilado, dando início a uma teocracia ultrarradical e antiocidental que sobrevive até os dias de hoje. Conforme sintetizado pelo jornalista e analista internacional Stephen Kinzer, “no Irã, quase todos sabiam, por décadas, que os Estados Unidos tinham sido responsáveis pela derrubada da democracia em 1953 e pela instalação no poder do Sha Mohammad Reza. Sua ditadura teve como consequência a eclosão da Revolução Islâmica de 1979, que levou ao poder uma teocracia apaixonadamente antiamericana, que adotou o terrorismo como política de estado. Seu radicalismo inspirou fanáticos antiocidentais em muitos países, e principalmente no Afeganistão, onde a Al-Qaeda e outros grupos terroristas encontraram apoio e abrigo para suas bases” (KINZER, Stephen. All the Shah’s men: an American coup and the roots of Middle East terror. New Jersey, NY:

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Os europeus também apoiaram o governo genocida de Saddam. Durante seu

governo, o presidente iraquiano estabeleceu importantes laços comerciais com países

industrializados da Europa. Talvez um dos vínculos mais significativos, que

definitivamente macularam a moral europeia foi o acordo de venda, pelo governo da

Alemanha Ocidental, de centenas de toneladas de armas químicas (que já haviam sido

utilizadas pelo país europeu em combates na Primeira Guerra Mundial), que foram

posteriormente utilizadas contra a população curda no norte do Iraque. De toda forma,

os acordos comerciais referentes a produtos militares e outros manufaturados eram de

tal forma vantajosos à Europa que, durante a Guerra Irã-Iraque e depois, o Iraque

seria “apoiado entusiasticamente pelos Estados ocidentais” 173, sem qualquer espécie

de condenação moral.

Também o governo brasileiro foi acusado de contribuir para as atrocidades

iraquianas. Em fevereiro de 1981, a publicação londrina The Guardian acusou o

Brasil de vender armamentos convencionais para o governo de Saddam Hussein.

Apenas uma semana depois, as acusações foram respaldadas pelo Ministério das

Relações Exteriores de Israel, que acusaram o governo Figueiredo de manter laços

comerciais perigosos com o ditador iraquiano. O Itamaraty – Ministério das Relações

Exteriores do Brasil – negou sistematicamente as acusações174.

As críticas da mídia ao regime de Saddam ganharam força em 1988, quando

uma série de ataques especialmente violentos com armas químicas causaram

consternação internacional. O ataque iraquiano à cidade curda de Halabja, que

abrigava cerca de 80 mil pessoas, causou 5 mil mortes em uma única noite e milhares

de mortes por envenenamento e câncer. Foi o ataque mais letal até então ordenado por

Saddam, e um dos mais bem documentados pela imprensa internacional. Por

localizar-se próximo à fronteira iraniana, Halabja pôde ser visitada por observadores

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             John Wiley & Sons, Inc., 2003. p. x). Texto original: “In Iran, almost everyone has for decades known that the United States was responsible for putting an end to democratic rule in 1953 and installing what became the long dictatorship of Mohammad Reza Sha. His dictatorship produced the Islamic Revolution of 1979, which brought to power a passionately anti-American theocracy that embraced terrorism as a tool of statecraft. Its radicalism inspired anti-Western fanatics in many countries. Most notabily Afghanistan, where Al-Qaeda and other terror groups found home and bases”.

173 HOBSBAWM, 2004, p. 36 174 VEJA. Ligações perigosas: uma aliança com o Iraque, que inclui remessas sigilosas de material bélico, custa ao Brasil denúncias de conexões nucleares. Disponível em: http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/energia_nuclear/materia_240681.html. Acessado em: 24 maio 2012.  

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internacionais, que pela primeira vez relataram ao mundo atrocidades cometidas

contra civis, e não simplesmente “combatentes rebeldes”. A autoria dos ataques,

contudo, permaneceu obscura. Políticos americanos e europeus alegavam incertezas

sobre a responsabilização de Hussein; jornalistas ocidentais, com pouca experiência

nos conflitos da região, também não queriam fazer condenações. As censuras

americanas foram especificamente contra a utilização de armas químicas e contra a

guerra Irã-Iraque, em uma estratégia de culpabilizar os dois lados pelas atrocidades.

Mesmo depois da assinatura de um armistício entre Irã e Iraque em agosto de

1988, Saddam não cessou os ataques aos curdos. Seu “ato final”, que objetivava

liquidar de uma vez por todas a resistência curda em território iraquiano, resultou no

êxodo de aproximadamente 65 mil curdos para acampamentos improvisados na

fronteira turca. Naquele momento, toda a justificativa construída pelos ocidentais para

neutralizar os danos e as responsabilidades de Bagdá foi destruída. Em setembro os

EUA condenaram publicamente o uso de armas químicas pelo governo de Saddam

Hussein.

Quando veio à tona a noticia da ofensiva de agosto, o governo Reagan teve à disposição algumas opções. Poderia ter criticado a nova onda de ataques com gás. Poderia ter exigido que seu aliado parasse de destruir a vida dos curdos rurais. Poderia ter pedido a libertação dos homens e mulheres levados nas ofensivas anteriores. E poderia ter ameaçado suspender algumas das vantagens econômicas que vinha concedendo a Bagdá havia cinco anos175.

A iniciativa veio do congresso. Naquele mesmo ano uma proposta de lei

intitulada Lei de Prevenção do Genocídio confeccionada por um assessor do senado

recebeu amplo apoio da casa e foi aprovada por unanimidade em seção parlamentar.

A lei previa sanções econômicas ao governo iraquiano, relativas principalmente a

sanções comerciais (restrição às exportações petrolíferas do país e às importações de

produtos americanos com tecnologia militar) e financeiras (corte de empréstimos no

FMI, Banco Mundial e pelo próprio governo americano), mas também sugeria que o

governo americano monitorasse as atividades de Saddam, a fim de garantir que o

presidente iraquiano não usasse armas químicas contra a sua própria população e não

cometesse genocídio contra o povo curdo.

O governo iraquiano mobilizou-se contra a declaração e a aprovação do pacote

de sanções por meio da promoção de intensas campanhas nacionais antiamericanas.

                                                                                                               175 POWER, 2004, p. 240-241

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Tal reação causou apreensão em Washington, que ainda esperava contar com o Iraque

como aliado na contenção da influência iraniana. A consequência foi o engessamento

do pacote de sanções e a recuperação do ceticismo pelo governo dos Estados Unidos

– Departamento de Estado, Casa Branca e Câmara - quanto à veracidade e gravidade

das acusações feitas. Pressões políticas de lobistas que defendiam os agricultores

americanos também influenciaram a redução do apoio dos senadores à lei recém

aprovada. Os EUA exportavam milhões de dólares anualmente em produtos agrícolas

para o governo iraquiano, e os produtores não queriam de forma alguma comprometer

suas rendas.

O recuo da classe política americana era justificado por discursos céticos que

questionavam a eficiência das sanções, impregnados de raciocínios perversos:

Da perspectiva da futilidade, o regime iraquiano já se isolara e não responderia à pressão externa. Além disso, agricultores e industriais de outros países rapidamente preencheriam o vácuo, e assim Hussein acabaria por conseguir todos os produtos agrícolas, créditos e comércio de que precisava. Do ponto de vista da perversidade, aplicar sanções ao Iraque só faria enraivecer o ditador iraquiano e aumentar a probabilidade de que ele punisse os curdos do norte do Iraque. Sanções econômicas seriam “inúteis ou contraproducentes”, argumentou a Agência para Assuntos do Oriente Próximo. Reduziriam a influência dos EUA sobre o Iraque e permitiriam que empresas europeias e japonesas ajudassem o Iraque a reconstruir sua economia176.

O pacote de sanções voltou a ser votado, desta vez na câmara. Sofreu tantas

alterações que, ao final do processo de votação, as únicas sanções preservadas “foram

a proibição de créditos para exportação-importação de produtos industrializados

americanos e a venda de substâncias químicas que pudessem ser usadas na produção

de armas químicas” 177. Também as denúncias contra o governo iraquiano foram

revistas: as críticas, quando feitas, passaram a mencionar apenas o uso de armas

químicas e nenhuma vez houve menção ao genocídio.

Ao assumir a presidência em 1989, George Bush reconheceu que o Iraque

mantinha-se como um importante aliado geoestratégico e parceiro comercial, que

deveria ser preservado. Permitiu que a participação comercial iraquiana se expandisse

e passou a direcionar investimentos para a reconstrução do país - destruído após o

longo período de conflito.

                                                                                                               176 Ibid., p. 262  177 POWER, 2004, p. 267

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Embora as relações entre os EUA e seus aliados e o Iraque tenham

complicado-se nos anos seguintes – em decorrência da invasão do Kuwait pelas

tropas de Saddam – o que interessa analisar é, mais uma vez, a postura oficial norte-

americana e europeia perante uma crise humanitária de grandes proporções, o

genocídio liderado pelo governo iraquiano contra sua própria população.

Há diferenças contextuais fundamentais entre os episódios de genocídio

ocorridos no Camboja e no Iraque. No primeiro caso o mundo estava em plena Guerra

Fria, com os esforços políticos ocidentais voltados prioritariamente à guerra

ideológica travada contra a União Soviética e os demais países simpatizantes da

ideologia comunista. Durante os massacres pouco se sabia sobre as dimensões da

violência empregada pelo Khmer Vermelho, tamanho o isolamento cambojano dos

demais países do mundo. Nem mesmo após a revelação dos crimes cometidos por Pol

Pot os EUA, a Europa – ou qualquer organismo internacional ou organização de

proteção dos direitos humanos - voltaram-se para prestar assistência à população

cambojana. Pelo contrário, os EUA condenaram as tropas vietnamitas que invadiram

e destituíram o governo cambojano. Naquele caso, a justificativa formal era a de zelar

pela soberania dos Estados-nação, não tolerando a invasão do território de outra nação

sob nenhuma justificativa. Mas a verdadeira razão dos governos americano e

europeus era opor-se à predominância soviética no Sudeste Asiático. As motivações

ocidentais eram de caráter político e ideológico, no auge de uma guerra política e

ideológica. Ademais, à época do genocídio do Camboja, o congresso norte-americano

ainda não havia ratificado a convenção para prevenção e punição de crimes de

genocídio, o que teoricamente o eximia da responsabilidade jurídica maior sobre o

massacre (mas não da responsabilidade moral, que recaía sobre os Estados Unidos e

sobre toda a comunidade internacional com igual intensidade).

O caso curdo foi bastante distinto por uma série de razões: em primeiro lugar,

os Estados Unidos haviam acabado de ratificar a convenção, o que lhes imputava um

maior comprometimento com as violações registradas; em segundo lugar,

diferentemente da ditadura do KV, o Iraque de Saddam não fez grandes esforços para

esconder as atrocidades cometidas das vistas de observadores ocidentais, motivo pelo

qual podemos culpar o desinteresse dos ocidentais (governos, mídia e população de

todos os países que se comprometeram, em discurso, com a bandeira dos direitos

humanos) e não a dificuldade de se obter fontes de informação confiáveis como a

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razão do pouco espaço reservado na mídia. Em terceiro lugar, embora a Guerra Fria

só terminasse formalmente em 1991, com a desintegração da União Soviética, ao final

da década de 1980, os Estados Unidos já estavam em situação muito menos tensa do

que uma década antes. Os EUA não estavam em guerra física contra outros países e

suas questões de importância estratégica orbitavam em interesses econômicos e

comerciais. A prova disso é que, na década de 1980, a apreensão e cuidado do

governo norte-americano com relação a um governante genocida decorreu

fundamentalmente de acordos comerciais mantidos entre Saddam e setores agrícolas

do meio-oeste americano. Pela segunda vez um estadista genocida escapou de

punição perante a comunidade internacional, mais uma vez acobertado pelos

interesses político-econômicos ocidentais.

Vale observar que as diferenças trabalhadas entre os dois episódios referem-se

a fatores externos aos Estados genocidas, ou seja, à ação de outros Estados e o

posicionamento de atores internacionais sobre os crimes cometidos. Se pensarmos nos

aspectos internos, identificaremos, por outro lado, um conjunto de semelhanças. Isso

seria de se esperar, já que ambos os casos referem-se a crimes de mesma natureza,

genocídios perpetrados por governantes autoritários contra sua própria população.

Assim, para concluir o presente capítulo, os conceitos trabalhados no início

desta monografia serão resgatados e aplicados aos casos cambojano e curdo. Em

primeiro lugar, ressalta-se a expressão máxima do instinto de dominação do líder

sobre a população nacional como um dos pontos comuns aos dois episódios. Tanto no

caso cambojano – em que a população foi completamente subjugada pela liderança

política do Khmer Vermelho, quanto no regime ditatorial de Saddam Hussein, é

evidente a existência de uma relação de dominação entre os detentores de poder e seu

povo: liberdades sociais e individuais foram suprimidas, dentre as quais o próprio

direito à vida. Essa constatação leva à segunda semelhança: a óbvia utilização da

força como instrumento de legitimação do poder político dos líderes. No caso

cambojano, foi através da força que Pol Pot e seus seguidores conseguiram derrubar o

governo de Lon Nol, após meses de guerra civil. Recrutaram e doutrinaram milhares

de jovens e camponeses e, com o suporte deste exército revolucionário, foram

dominando vilas inteiras até conseguirem derrubar a capital, Phnom Penh. A

legitimidade política do governo Khmer não poderia, portanto, derivar de outra fonte

que não fosse o uso da força coercitiva. Já no caso iraquiano, mesmo após o

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estabelecimento da ditadura de Saddam, a população curda camponesa que habitava o

Norte do país não aceitava a representação política de Bagdá. Dessa forma, para

impor o respeito curdo à autoridade do Estado iraquiano, Saddam ordenou uma série

de ofensivas contra os rebeldes e a população civil curda, reproduzindo a mesma

estratégia de legitimação do poder pela força. Por conta do intensivo uso da violência

em ambos os casos, é também possível identificar um efeito perverso: a disseminação

do medo como uma estratégia política para manter a ordem social.

Se o efeito é a disseminação do medo, uma das possíveis origens é o

desaparecimento de barreiras que pudessem vir a impedir a concretização das

tendências destrutivas do homem individualmente ou em meio à coletividade. Este

processo, identificado por Bruno Bettelheim como resultado do enfraquecimento das

instituições sociais e políticas ao longo do século XX, tem efeito de desestabilização

social verificável em diferentes sociedades modernas. Em suma, Os antigos meios de controle de pulsão de morte perderam muito de seu efeito, e ainda não se alcançou a nova moralidade superior que deveria substituí-los. Nesse interregno entre uma velha e uma nova organização social – entre a organização interior obsoleta e a nova estrutura ainda não alcançada – sobra muito pouco para limitar as tendências destrutivas do homem178.

Dessa forma, Bettelheim avalia que, não mais sujeita ao controle de

instituições sociais, a pulsão de morte passa a ter como inibidor apenas a capacidade

de defesa individual do homem. Note-se, contudo, que esta capacidade é

demasiadamente frágil, motivo pelo qual tantos episódios de atrocidades e genocídios

ocorreram no último século.

A incapacidade de dominar a própria pulsão de morte pode assumir muitas formas. A forma que assumiu naqueles prisioneiros de campos de extermínio, que caminhavam com os próprios pés para as câmaras de gás, começou com a sua anuência à máxima “nada mudou”. Aqueles que tentaram servir aos carrascos profissionalmente, tais como os médicos, meramente davam continuidade, se não a profissão, à vida normal. E com isso abriam a porta à própria morte. [...] O primeiro passo foi dado muito antes do primeiro indivíduo entrar nos campos de extermínio. Foi a inércia que conduziu milhões de judeus aos guetos que a SS criou para eles. Foi a inércia que fez centenas de milhares de judeus se sentarem à espera dos carrascos, quando estes os proibiram de sair de casa179.

                                                                                                               178 BETTELHEIM, Bruno. A Viena de Freud e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991, p. 246 179 Ibid., p. 246-247  

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Apesar de utilizar-se do exemplo do genocídio judeu, a descrição de

Bettelheim é também aplicável ao caso do genocídio do Camboja onde a população,

massacrada por uma violenta guerra civil e sujeita às imposições ditatoriais de Lon

Nol, não teve força para opor-se à dominação do Khmer Vermelho e, assim, viu-se

sujeitada à força de suas pulsões de morte. No caso curdo, diferentemente, houve

resistência e oposição dos rebeldes contra o governo. Na realidade, toda a repressão

iraquiana sobre os rebeldes curdos do Norte do país resultou da insistente campanha

revolucionária destes e de seu alinhamento, durante a Guerra Irã-Iraque (1980-1988),

às tropas iranianas.

Outro autor que analisa também a questão do genocídio judeu em seu

significado amplo, o que valide a reflexão para outros episódios de genocídio

modernos, é o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Contudo, é importante ressaltar

que, na sua visão, o principal gatilho dos processos genocidas não deriva

exclusivamente da natureza humana ou das relações sociopolíticas, mas

principalmente das características da modernidade.

Em Modernidade e Ambivalência, Zygmunt Bauman reconhece uma

resistência da comunidade internacional em aceitar a realidade genocida, expressa na

exorcização ou marginalização do “Holocausto como um episódio histórico

único”180. Segundo ele, esse comportamento é identificável na condução do estudo

do genocídio judeu como um episódio diretamente vinculado à “judeofobia” ou ainda

às características culturais do povo alemão. Para Hannah Arendt, uma das maiores

fraquezas dessa construção argumentativa consiste na desconsideração da natureza do

crime em detrimento do processo de escolha das vítimas.

Também as tentativas de atribuir o genocídio às frustrações sociais resultantes

da imposição do Tratado de Versalhes, à perpetração e disseminação de uma filosofia

nacionalista particularmente mórbida e à arquitetura de uma engenharia social

nazifascista constituem a argumentação desenvolvida pela comunidade internacional

para eximir da responsabilidade a modernidade como elemento decisório no processo

histórico que conduz uma sociedade ao genocídio. Em resposta a essa tendência,

Bauman alerta que: Os casos mais extremos e bem documentados de “engenharia social” global na história moderna (aqueles presididos por Hitler e Stalin), não obstante as atrocidades

                                                                                                               180 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. p. 27

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resultantes, não foram nem explosões de barbarismo ainda não plenamente extinto pela nova ordem racional da civilização, nem o preço pago por utopias alheias ao espírito da modernidade. Ao contrário, foram produto legítimo do espírito moderno, daquela ânsia de auxiliar e apressar o progresso da humanidade rumo à perfeição que foi por toda parte a mais eminente marca da era moderna –daquela “visão otimista de que o progresso científico e industrial removiam em princípio todas as restrições sobre a possível aplicação do planejamento, da educação e da reforma social na vida cotidiana”, daquela “crença de que os problemas sociais podem ser finalmente resolvidos”181.

Desta forma, o sociólogo acusa o espírito moderno de instaurar e legitimar

uma lógica de eterna superação e disciplinamento nas sociedades analisadas, o que

lhes confere uma característica de audaciosa autoconfiança e busca pelo ordenamento

social. Este ordenamento, obtido mediante classificação de indivíduos por raça, sexo,

religião e “desvios sociais”, concretizará e evidenciará as distorções da própria lógica

norteadora.

Para exemplificar esta orientação à racionalização social, Bauman fala do

Estado jardineiro, o Estado moderno que surge com uma “força missionária”

destinada a transformar a sociedade dominada em um modelo de convívio “ideal”.

Fazendo alusão à prática da jardinagem, caberia ao Estado, suas instituições médicas

e científicas, promover políticas contínuas de marginalização, esterilização e

eliminação dos indivíduos classificados como inferiores, as “ervas daninhas” da

sociedade. Esta postura foi amplamente defendida por uma parcela significativa da

comunidade científica europeia no período Entre-guerras182.

Naturalmente esta posição encontrava-se alinhada às tendências de

pensamento propagadas pelas Organizações Eugênicas, escolas de estudos genéticos

que propunham a extirpação de indivíduos que pusessem em risco o desenvolvimento

e potencial das parcelas “normais e saudáveis” da população. Esta linha de pesquisa

vinha ganhando força desde o final do séc. XIX na Europa e popularizou-se nos EUA

no início do séc. XX (nas três primeiras décadas daquele século, 21 estados norte-

americanos adotaram leis eugênicas de esterilização)183.

Em suma, as operações de purificação e ordenamento da sociedade eram

legitimadas por uma argumentação médico-científica que objetivava sobrepor as

necessidades de um Estado moderno em ascensão à Natureza, sendo a Natureza

“qualquer coisa que comprometa a ordem, a harmonia, o plano, rejeitando assim um                                                                                                                181 BAUMAN, 1995, p. 38 182 Ibid., p.36-7. 183 Ibid., p.45.

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propósito e significado” 184. Objetivamente, desta análise extrai-se o caráter racional e

a afinidade com o espírito moderno185.

Da tese proposta pelo sociólogo polonês, estabelecem-se correlações com os

trabalhos desenvolvidos por Emile M. Cioran, acerca do surgimento e

desenvolvimento das ideologias e aspectos purificantes da modernidade,

respectivamente.

A importância de se mencionar a obra de Cioran reside em perceber a

argumentação médico-científica no processo de legitimação da ideologia nazifascista

e a desfiguração de tais ideias científicas em uma política de engenharia social. Em

Breviário de decomposição (1949), Cioran defende que toda ideia nasce com caráter

de neutralidade. Contudo, é contaminada pelas paixões e crenças humanas, perdendo,

assim, sua propriedade lógica em detrimento do radicalismo: transfigura-se em

ideologia. Ao ideologizar aquela ideia original, o homem a transforma em uma

“deusa Razão”, pela qual está disposto a tornar-se um pregador, um assassino, um

mártir. Daí deriva o princípio do Mal, residente na “tensão da vontade, na inaptidão

para o quietismo, na megalomania prometeica de uma raça que se arrebenta de tanto

ideal”, gerando o fanatismo.

Cioran acredita que em todo homem há um profeta adormecido que aguarda o

momento de despertar, pois lhe é intrínseco o desejo de guiar os demais, de propor

soluções, de impor formas de se agir e pensar. Segundo o autor, trata-se de uma ilusão

do indivíduo quanto a sua própria importância: A fonte de nossos atos reside em uma propensão inconsciente a nos considerar o centro, a razão e o resultado do tempo. Nossos reflexos e nosso orgulho transformam em planeta a parcela de carne e de consciência que somos. Se tivéssemos o justo sentido de nossa posição no mundo, se comparar fosse inseparável de viver, a revelação de nossa ínfima presença nos esmagaria. Mas viver é estar cego em relação às suas próprias dimensões186.

Ademais, domina o homem o medo da solidão. Conforme abordado por

Canetti em capítulos anteriores, não há medo maior do que aquele oriundo do contato

                                                                                                               184 BAUMAN, 1995, p.47-9. 185 Cabe mencionar Michel Foucault, acerca do processo de formação da medicina social: “O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo [...] O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política” (FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal,1979. p.80) 186  CIORAN, Emile M. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p. 11-14.  

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com o desconhecido. Em consideração tangente a esta afirmação, Cioran dirá que,

quando o desconhecido encontra-se internalizado no próprio indivíduo, este buscará a

destruição de todos os mistérios, seus e dos demais: o homem faz todo o possível

“para que não se veja entregue a si mesmo” 187.

Tem início um processo de revelação dos segredos, de estabelecimento dos

diálogos e propagação das ideias, caracterizado por Cioran como a impaciência pela

decadência, a prostituição “das solidões virginais da alma pelo diálogo”. Neste

momento os homens erguem-se para falar uns pelos outros, e é aí que Cioran os acusa

de impostores.

Transpondo essa ideia à relação existente entre a argumentação ideológica

nazista e os estudos médicos eugênicos, nota-se a contaminação de um campo de

estudo científico, decorrente da perda da racionalidade e neutralidade.

Sobre a perda da racionalidade, é oportuno resgatar exercício reflexivo

proposto por Marilena Chauí em Introdução à história da filosofia, que expõe o

pensamento de Sócrates sobre a razão.

Segundo o filósofo grego, não há nada mais precioso ao homem do que sua alma racional, que lhe possibilita viver de forma justa e virtuosa. A violência – cometida contra si próprio ou contra o Outro – é consequência da ignorância e da irracionalidade que cega o indivíduo. Enquanto a violência contra si mesmo deriva da “busca irrefletida e imoderada do prazer, pelas paixões, emoções impensadas, irracionais”, que impossibilita o desenvolvimento da racionalidade e incita o aprisionamento da alma pela ignorância, a violência e injustiça infligida contra os outros é reflexo da desrazão: “As paixões nos tornam heterônomos – somos governados pelas coisas que desejamos –e nos fazem querer que os outros sejam heterônomos – sejam governados pela nossa vontade”. Ou seja, o indivíduo deseja possuir tudo aquilo que lhe proporciona prazer e ainda torna-se tirânico, buscando impor sua vontade e opinião aos demais através da dominação – pela força física, ou pelo uso da palavra188.

Assim, sobre o presente capítulo, pode-se concluir que os avanços científicos e

tecnológicos, a intensificação das conexões sociais e da interatividade e a rapidez com

que se propagam as informações na modernidade não são capazes de proteger os

homens da violência de Estado. Ao contrário, aprofundam as incertezas quanto à

capacidade dos princípios éticos e valores humanos conterem, de alguma forma, o

processo destrutivo humano.

                                                                                                               187  CIORAN,  1989,  p.24-­‐5.  188 CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles, volume 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 231-2.

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CONCLUSÃO

Neste trabalho foram apresentados conceitos importantes relativos ao homem

e à sociedade. No primeiro capítulo falou-se brevemente sobre a condição humana,

segundo as visões de Hannah Arendt (1981) e Friedrich Engels (1961). Suas

considerações foram o ponto de partida da presente monografia porque permitiram

que se iniciasse uma reflexão sobre o homem enquanto animal social e político, sem

que fosse desconsiderada sua importância primeira enquanto indivíduo dotado de

instintos e características naturais. Dessa forma, ao tratarem da condição humana pela

perspectiva do trabalho, Arendt e Engels forneceram o elo entre o homem em estado

de natureza e o homem civilizado, direcionando naturalmente à análise do

desenvolvimento cultural e racional humano, segundo o panorama retratado por

Huisman; Vergez (1982). Paralelamente, o segundo subcapítulo, referente à cultura e

racionalidade, foi permeado com considerações de Nietzsche (2009) acerca do

desenvolvimento de uma moral social ocidental. As obras de Huisman e Vergez e

Nietzsche foram importantes, pois, ainda que breves, ampliaram muito as dimensões

trabalhadas nesta monografia: a proposta deste trabalho não era fazer um estudo

antropológico, porém seria pouco provável desenvolver uma análise sobre cenários

genocidas sem ao menos mencionar aspectos intrínsecos à coletividade, tais como a

transmissão de códigos morais, símbolos e tradições. Em suma, a partir dessas

considerações gerais sobre o desenvolvimento civilizatório pôde-se criar um recorte

de análise, no qual o trabalho de pesquisa desenvolvido por Elias Canetti em Massa e

poder (1995) foi central para que se compreendessem os traços comportamentais do

homem, enquanto parte integrante de maltas e massas, as formas mais primitivas de

agrupamento humano.

A reflexão acerca das origens e características das massas foi fundamental

para a introdução dos tópicos debatidos no segundo capítulo: os aspectos da estrutura

política do Estado e, principalmente, as formas pelas quais os governantes legitimam-

se no poder. Assim, foram trabalhados os conceitos de dominação sobre o indivíduo e

sobre a sociedade, por meio de uma explicação voltada à dominação simbólica

exercida sobre a psique do homem, e os reflexos dessa dominação na coletividade.

Para o desenvolvimento deste tópico, foram resgatados os escritos de Freud em O

mal-estar na civilização (2011), que enriqueceram a abordagem até então sociológica

e antropológica do trabalho com explicações mais complexas e plurais sobre

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fenômenos observados no convívio social, tal como o instinto de dominação

trabalhado no texto.

Em seguida falou-se da força como instrumento de legitimação do poder

político, segundo a argumentação teórica dos filósofos contratualistas, em especial

Thomas Hobbes, um dos precursores da teoria Realista clássica. Assim, pensando nos

efeitos do uso da violência do Estado como forma de legitimar o poder, foram

retomadas mais uma vez as ponderações de Canetti, agora no que toca à

conceitualização da ordem e o papel do medo no processo de ordenamento social.

Este item serviu perfeitamente como conectivo entre os estudos sobre a caracterização

das estruturas sociopolíticas ocidentais e o desenvolvimento e fortalecimento de

regimes totalitários, identificados e analisados por Hannah Arendt em Origens do

totalitarismo. Em O terror no Estado: uma política de aniquilamento, foi observada a

caracterização dos regimes totalitaristas segundo a autora. Resgatou-se o exemplo

histórico por ela trabalhado, o regime nazista liderado por Adolf Hitler e sua máxima

expressão, o genocídio judeu.

A breve apresentação deste episódio genocida conduziu à reflexão, já no

terceiro capítulo, sobre a mobilização de líderes políticos e civis a partir de 1945, para

discutir formas de garantir a manutenção de direitos humanos universais em qualquer

parte do mundo. Desta mobilização derivou o processo de formulação de uma

legislação internacional para prevenção e punição de crimes de genocídio, sintetizada

na confecção de uma convenção internacional em 1948, que foi ratificada no início

dos anos 1950. Se por um lado foi possível constatar os sinceros esforços das nações

em coibir a ocorrência de novos episódios genocidas, por outro ficou bastante

evidente que a boa vontade da comunidade internacional não bastou para impedir

novos massacres.

Dois casos foram analisados: apresentou-se brevemente o contexto regional e

nacional que antecedeu o golpe de Estado que trouxe ao poder Pol Pot, o líder

revolucionário do Camboja que impôs uma das ditaduras mais brutais de que se teve

notícia nas ultimas décadas, resultando na morte de aproximadamente 28% da

população cambojana (POWER, 2004, p. 175); em seguida, falou-se do massacre e

deportação de curdos pelo governo iraquiano comandado por Saddam Hussein, na

década de 1980, que resultou na destruição de milhares povoados curdos. Na

descrição de ambos os episódios, buscou-se ponderar o posicionamento adotado por

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outros Estados, em especial os Estados Unidos e as potências europeias. Concluiu-se

que, diferentemente dos discursos ideológicos comumente promovidos por estadistas

acerca de suas preocupações e esforços no combate aos crimes de genocídio, os

Estados estão voltados prioritariamente à defesa de seus interesses político-

econômicos e geoestratégicos.

Note-se que a despeito dos esforços de algumas pessoas e instituições em

mobilizar a comunidade internacional em um debate sério sobre estratégias eficazes

para extinguir práticas de violação dos direitos humanos, novos casos de abuso de

poder e extermínio não foram evitados. Há fatores internos e externos que contribuem

para a ocorrência destes lamentáveis episódios. Internamente verifica-se a

centralização do poder político em um governo autoritário, que se utiliza da força

coercitiva como instrumento para subjugar a população. Os conceitos de dominação e

medo como forma de ordenamento social também estão intrinsecamente conectados a

esse cenário sociopolítico que se desenha. Em contrapartida, os fatores externos

verificáveis figuram basicamente como os interesses políticos, geoestratégicos e

comerciais que desestimulam os atores internacionais que não estejam diretamente

envolvidos no conflito a prestar assistência às vitimas dos massacres e punir os

perpetradores desses crimes.

Assim, o que deve ficar claro na análise é que o genocídio não é um fantasma

do passado. Crimes genocidas devem ser percebidos como ameaças constantes, que

podem ser cometidas contra povos em qualquer parte do mundo e a qualquer

momento. Casos recentes mostram isso: do genocídio armênio do início do século XX

até o genocídio de Ruanda em meados dos anos 1990, países da Ásia (Camboja),

Europa (Turquia e Alemanha), África (Ruanda e Sudão) e Oriente Médio (Iraque)

protagonizaram episódios genocidas. Populações cristãs, muçulmanas, budistas e

judaicas foram alvo de atrocidades cometidas por ditadores sanguinários, movidos por

suas ambições políticas e deturpações morais, estimulados por conflitos e guerras, e

autorizados por circunstancias políticas internacionais. Ademais, não há garantias de

que a comunidade internacional será capaz – ou terá o desejo – de impedir episódios

futuros, porque é de conhecimento comum que há interesses políticos, comerciais e

geoestratégicos por trás dos posicionamentos dos Estados e Organismos

Internacionais.

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Por todas estas razões, esta monografia deve ser percebida como um apelo

àqueles que se importam com a preservação dos direitos humanos, para que reflitam,

discutam e auxiliem na promoção do debate internacional para a prevenção de novos

episódios de genocídio. O assunto deve ser incluído na agenda política internacional.

Contudo, para que isso aconteça, é necessário que os formuladores da política externa

dos países sejam sensibilizados por recorrentes debates acadêmicos, manifestações e

expressões da preocupação da sociedade civil e a disseminação das informações

existentes sobre a natureza e a intensidade dos massacres cometidos, para que fiquem

comovidos e sensibilizados com os casos e mobilizem-se para tentar evitar novas

ocorrências.

Para concluir, é importante reafirmar as impressões gerais referentes ao tema:

os genocídios derivam de uma conjunção de fatores psíquicos, sociais e políticos que

em diversos momentos da história se articularam. Esta constatação deve servir como

um alerta, de que episódios de genocídio não se restringem a regiões remotas do

globo, não se resumem a fatalidades inevitáveis e imprevisíveis, e não estão restritas

aos livros de história. Políticas genocidas são uma ameaça permanente, que podem

vitimar grupos étnico-raciais, nacionais e religiosos a qualquer momento.

Infelizmente é possível constatar, através dos breves estudos de caso apresentados,

que embora haja um discurso pró-direitos humanos amplamente reproduzido por

estadistas e representantes de organizações internacionais, os esforços das nações

ainda estão muito aquém do necessário para que se coíbam práticas genocidas e outras

formas de violação dos direitos humanos. Como única solução possível para o longo

prazo, vislumbra-se a popularização do debate internacional sobre formas de garantir

os direitos humanos em escala universal. É por meio da disseminação do

conhecimento e da instigação que se faz possível atrair novos indivíduos para essa

luta; é desejável que mais mentes pensem juntas em soluções concretas, que

colaborem para a erradicação da violência de Estado no futuro.

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