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    FUNO PRAGMTICA DA JUSTIA NA HERMENUTICA JURDICA:

    LGICA DO OU NO DIREITO?1

    Tercio Sampaio Ferraz Junior*

    Juliano Souza de Albuquerque Maranho**

    1. INTRODUO: INTERPRETAO JURDICA, JUSTIA, RAZO E

    LGICA

    Neste trabalho, procura-se examinar a funo do valor justia na interpretao

    jurdica. A busca de critrios para a identificao do justo e injusto constitui tema central da

    atividade da interpretao jurdica e a transforma em tarefa bem mais rdua do que a meraidentificao do sentido do texto normativo por meio das regras de uso lingsticas. No se

    trata somente de revelar ou parafrasear o sentido da formulao da norma, mas de encontrar

    ou reconstruir esse sentido de forma a solucionar situaes de conflito com justia. Essa

    peculiaridade coloca um srio desafio possibilidade de determinao unvoca do sentido das

    normas e caracteriza exatamente aquilo que h de especfico na interpretao jurdica face

    interpretao do discurso ordinrio.

    A interpretao jurdica, como tarefa dogmtica, ocorre num amplo espectro depossibilidades. Envolve o direito como um fenmeno complexo, na perspectiva da

    decidibilidade de conflitos. O jurista no interpreta do mesmo modo em que o faz o ser

    humano, ordinariamente, quando procura entender a mensagem de algum numa simples

    conversa. Nesse caso, o que se busca entender o que foi comunicado, captando o sentido a

    partir de um esquema de compreenso prprio de quem ouve, a fim de orientar suas reaes e

    subseqentes aes. J o jurista pressupe que, no discurso normativo, so fornecidas razes

    para agir de um certo modo e no de outro. Essas razes, portanto, se destinam a uma tomadade posio diante de diferentes possibilidades de ao nem sempre congruentes, ao contrrio,

    em conflito. Pressupem, assim, que o ser humano age significativamente, isto , atribui

    significao sua ao. Como essa significao conhece variaes subjetivas, em termos do

    que se entende como justo, ou injusto, a possibilidade de conflitos reflexos, isto , conflito

    sobre o conflito, pode levar a uma escalada de impasses e intransigncias.

    1 Artigo publicado originariamente na Revista do Instituto de Hermenutica Jurdica, 2007.

    * Doutor em Direito (USP). Doutor em Filosofia (Mainz/Alemanha). Professor dos Programas de Ps-Graduaodo Direito da USP e da PUC/SP. Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Filosofia. Advogado (OAB/SP).

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    A submisso dos conflitos a regras que sobre ele atuam objetivamente (a norma legal e

    seus correlatos, o acordo alcanado institucionalmente mediante regras contratuais, a deciso

    judicial) uma espcie de exigncia da convivncia que levou, no passado, formulao do

    conhecido aforisma ubi jus ibi societas, ubi societas, ibi jus. A interpretao jurdica

    pressupe, tradicionalmente, essas regras e admite at, na sua ausncia, o encontro delas

    mediante procedimentos prprios. Por meio dela, o quadro conflitual ganha contornos e

    limites, dentro dos quais uma deciso se torna possvel.

    A interpretao jurdica cria, assim, condies para tornar decidvel o conflito

    significativo, ao trabalh-lo como relao entre regras e situaes potencialmente conflitivas2.

    O que se busca na interpretao jurdica , pois, alcanar um sentido vlido no meramente

    para o texto normativo mas para a comunicao normativa, que manifesta uma relao deautoridade. Trata-se, portanto, de captar a mensagem normativa, dentro da comunicao,

    como um dever-ser vinculante para o agir humano. Na identificao ou reconstruo dessa

    diretiva, desse dever, h sempre a potencialidade de erupo da questo sobre a legitimidade

    desse sentido (da comunicao e portanto da prpria relao de autoridade) como justo, o que

    leva questo: o que o justo?

    Com isso possvel apreciar o modo como a especulao filosfica ganha relevo

    dogmtico. Trata-se da confluncia entre pensarzettico e dogmtico3

    . Questes zetticas tmuma funo especulativa explcita e so infinitas (uma questo sempre abre espao para uma

    questo sobre a prpria questo e assim por diante). Nesses termos, o problema do que a

    justia , tipicamente, uma questo zettica que constitui o cerne da reflexo jusfilosfica

    desde suas origens. Questes dogmticas tm uma funo diretiva explcita e so finitas

    (possibilitar uma deciso mediante pontos de partida que no so questionveis, ainda que

    interpretveis). Nesses termos, a adequao de uma pena conduta uma questo dogmtica.

    ** Doutor em Direito (USP). Professor Visitante do Programa PET/CAPES da USP. Membro do InstitutoBrasileiro de Filosofia. Advogado (OAB/SP).2 Aqui preciso distinguir a atividade argumentativa de advogados, diante de juzes, quando buscam umadeciso favorvel ao seu cliente, da tarefa posta ao jurista, quando busca uma significao que possa ser vlidapara todos os envolvidos no processo comunicativo normativo. o que se chama de interpretao doutrinria. nesse contexto que se procura identificar o papel organizador do valor justia num conjunto normativo a serinterpretado juridicamente. A distino entre as duas atividades importante, pois no ser objeto de nossainvestigao uma lgica da argumentao jurdica no sentido de Toulmin (The uses of argument. Cambridge:Cambridge University Press, 1958) que buscou superar limitaes da lgica formal ao interpretar a lgica nocomo estrutura mas como procedimento regrado de oposio de argumentos e contra-argumentos. H um esforode formalizao do raciocnio desenvolvido no processo de oposio de argumentos na linha do modelo deToulmin, que resultou nas chamadas lgicas de argumentao derrotvel. Ver PRAKKEN, H.; VREESWIJK, G.

    Logics for Defeasible Argumentation. In: GABBAY, D.; GUENTHNER, F. (Eds.). Handbook of PhilosophicalLogic. 2. ed. Dordrecht: Kluwer, 2002. v. 4. p. 218-319. Se a lgica de argumentao jurdica uma lgicaprpria, distinta da argumentao ordinria, tambm uma questo que no vamos explorar.3 Cf. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito. So Paulo: Atlas, 2004, ponto 1.3.

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    Obviamente, na interpretao dogmtica do razoavelmente adequado, est implicada, de

    forma mais ou menos explcita, a questo do justo, momento em que zettica e dogmtica

    confluem.

    Nesse sentido, oportuna a meno a Castanheira Neves, para quem justa deve ser

    toda a

    normativo-constitutiva realizao do direito. E se a interpretao

    jurdica concorre para essa realizao, ento quer isto dizer que

    tambm no cognitiva ou teoreticamente, mas antes normativa e

    praticamente que essa interpretao se deve intencionalmente

    compreender e metodicamente definir, de modo que a boa ou vlida

    interpretao no ser aquela que numa inteno da verdade (decognitiva objectividade) se proponha a exegtica explicitao ou a

    compreensiva determinao da significao dos textos-normas como

    objecto, mas aquela que numa inteno de justia (de prtica justeza

    normativa) vise a obter do direito positivo ou da global normatividade

    jurdica as solues judicativo-decisrias que melhor realizam o

    sentido axiolgico fundamentante que deve ser assumido pelo prprio

    direito, em todos os seus nveis e em todos os seus momentos4

    .Veja-se, por exemplo, no plano da interpretao dogmtica, a discusso referente

    conseqncia jurdica do dano patrimonial. No dano patrimonial, indeniza-se o patrimnio

    que foi injustamente lesado (justia comutativa). Um dano ao patrimnio , pois, suscetvel de

    avaliao em dinheiro, sendo mais fortemente sujeito restituio pelo equivalente e

    plenamente sujeito avaliao pecuniria. A interpretao, nesse caso, pede razoabilidade,

    que tem a ver com uma comutatividade quantitativa (princpio da reparao integral). A o

    justo depende de essa comutatividade estar ou no demonstrada (justo como mensuraoproporcional). J a interpretao que conduz eventual possibilidade de extrapolao da

    indenizao para tom-la como uma pena tem ver com danos extra-patrimoniais, que tornam

    indenizveis prejuzos que violam a esfera existencial da pessoa humana ou a honra objetiva

    das pessoas jurdicas. nesse terreno que a questo do valor excessivo da indenizao pode

    admitir a sua transformao em pena. O justo, nesse caso, tem a ver com o senso de

    razoabilidade do juiz (justo como senso comum). Por isso, afora os parmetros oferecidos

    4 Cf. CASTANHEIRA NEVES, Antnio. O actual problema metodolgico da interpretao jurdica I.Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 102.

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    pelo Cdigo Civil em certos casos, faz sentido, ento, o surgimento de exigncia da

    modicidade da indenizao, deixando-se ao arbtrio do juiz a avaliao do dano5.

    A conexo entre justia e retribuio deita fundas razes na cultura ocidental,

    revelando at traos mitolgicos nos seus modelos ticos6. Ora, como as discusses

    filosficas sobre a noo de justia esto implicadas, de algum modo, na questo da

    retribuio, como o caso do problema referente ao carter justo ou injusto de uma

    indenizao que tenha ou no carter de pena, o que pressupe alguma noo (zettica)

    implcita ou explicita de justia, o estudo dos modelos retributivos elaborados pela

    hermenutica dogmtica, a contar da famosa regra de Talio, est na base da discusso da

    prpria justia das retribuies. A concepo aristotlica da justia como virtude de

    distribuio e comutao com base na igualdade proporcional tem a ver, sem dvida, com aquesto da retribuio7.

    A proporcionalidade do valer um pelo outro , neste sentido, um fator essencial nas

    discusses sobre a justia. Mesmo quando o termo deixa o estrito campo de uma tica da

    virtude e passa, por exemplo, a uma tica de valores, ou ainda quando tratado em sentido

    estrutural ou funcional (justia como instituio, realizao social da sociedade justa), o papel

    da proporcionalidade nas equiparaes e diferenciaes no deixa de ser relevante. Na busca

    dessa proporcionalidade entra em discusso o termo razo.Razo (reason, raison, Vernunft, ratio, logos) um substantivo cuja origem est no

    verbo reri, que em seu sentido primitivo significava tomar algo por algo, portanto ligar

    coisas entre si, donde estabelecer relaes e, da, calcular, pensar. Quando os romanos

    traduziram por ratio a relao matemtica pensaram em logos, na cultura grega, como

    uma palavra que originariamente significara juntar, unir, por em conjunto, de onde

    surgiu a idia de logos como palavra, isto , como signo que sintetiza, num som

    (fonema), vrios significados.A idia de razo como relacionar presidiu, no desenvolvimento do pensamento

    ocidental, o estabelecimento de diversos princpios, como os do pensamento correto (lgica),

    5 Cf. ASSIS, Araken de. Liquidao do dano. Revista dos Tribunais, So Paulo, v. 88, n. 759, p. 11-23, 1999.Alis, a jurisprudncia (ver STJ, RE n. 216.904-DF) fala, nesses casos, de dano moral e de arbitramento daindenizao, sendo nesse contexto que aparece a exigncia de moderao (razoabilidade como comutatividadequalitativa). Ou como diz Judith Martins Costa: A rigor, no possvel falar em indenizao do dano no-patrimonial. Nestes casos, a entrega de uma soma em dinheiro tem uma funo ao mesmo tempo satisfativa

    vtima e punitiva do autor do dano, donde a denominao do Direito anglo-saxo, punitive dammages, quevem sendo aceita pela jurisprudncia brasileira (MARTINS-COSTA, Judith; TEIXEIRA, Slvio de Figueiredo(Coord.). Comentrio ao novo Cdigo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 5, t. II, p. 350).6 Cf. EHRENBERG, Victor.Die Rechtsidee im frhen Griechentum, Leipzig, 1921, p. 6 e segs.

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    da pesquisa correta (metodologia), da correta justificao de juzos valorativos (retrica), do

    correto comportamento em face das diversas situaes vitais (prudncia). Neste sentido, a

    razo, tomada como ncleo essencial da natureza humana (o ser humano como ser racional),

    acaba por tornar-se para o homem uma espcie de valor em si, um valor que incorpora a

    prpria dignidade humana, no constituindo um meio para obteno de outros valores, mas o

    valor que d sentido aos demais.

    No campo da interpretao jurdica, o tema da racionalidade na identificao do justo,

    chama a ateno para o tema lgica jurdica.

    O tema lgica jurdica normalmente associado entre os operadores do direito a

    cnones interpretativos capazes de revelar a inteno do legislador ou esquemas retricos de

    interpretao como os argumentos a simili, acontrario, a maiore ad minus, etc. Essa visoguarda razes numa concepo tradicional que v a lgica jurdica como interpretao

    lgica, ao lado da interpretao sistemtica, teleolgica, histrica, etc. dentro do mtodo

    interpretativo cunhado pelo pensamento dogmtico alemo do sculo XIX, a partir da obra de

    Savigny e a escola histrica do direito.

    A escola histrica, na esteira de Savigny, nasceu como uma tentativa de identificao

    e sistematizao de normas, uma construo de um mtodo capaz de identificar e organizar

    um ordenamento8

    . O mtodo de Savigny de identificao dessas regras a partir de nexoshistrico-orgnicos capazes de se aproximar e revelar o esprito do povo (Volksgeist) foi

    gradualmente cedendo espao ordenao e sistematizao de regras pela cincia jurdica, e

    j com Puchta, tais normas comearam a adquirir um status independente de suas razes

    histricas e sociais, cuja autoridade extraa-se da prpria racionalizao conferida pela

    dogmtica.

    Esse passo significou um rompimento na escola histrica, que evoluiu para a chamada

    jurisprudncia dos conceitos (Begriffsjurisprudenz) de Gerber, Laband e do primeiroJhering. Circunscrevia-se o direito a uma discusso sobre conceitos e institutos jurdicos

    fundamentais construdos (ou criados) pela cincia, a partir do material jurdico disponvel,

    dos quais seria possvel extrair de forma unvoca, pela sistematizao e deduo lgica,

    as normas gerais a serem utilizadas para, por subsuno, solucionar casos prticos.

    O significado da lgica e da deduo no raciocnio jurdico nessa tradio no

    pode ser identificado com a lgica dedutiva clssica (aristotlica) disponvel poca, ligando-

    7 Sobre Aristteles, ver FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de filosofia do direito. So Paulo: Atlas,2003, p. 141 e segs.8 Cf. DIAS, Gabriel Nogueira.Rechtstheorie bei Hans Kelsen (1881-1973). Tbingen, 2004.

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    se mais a intuies sobre sistematizao, tal como a classificao das normas apontando o

    genus proximum e a differentia specifica9, a preservao de unidade ou consistncia.

    Savigny, por exemplo, j enfatizava que a interpretao dogmtica no poderia ser reduzida a

    nexos meramente lgicos e mesmo Jhering que, em sua primeira fase, foi um entusiasta de

    umaLogik des Rechts, ressaltava o carter criativo desta lgica, que no se reduzia pura

    lgica formal e a relaes de conseqncia10.

    Uma oposio entre uma lgica jurdica e a lgica formal foi tratada, na dcada de 50

    do sculo XX, em termos da chamada lgica del razonable, que ganhou espao entre os

    juristas, mediante a obra de Recasns Siches11.

    No vamos entrar na discusso nos termos de Siches. Seguindo Engisch, podemos

    chamar essa lgica jurdica tradicional de lgica material, entendida como um conjunto decnones interpretativos e princpios de argumentao para que se obtenham pautas de

    comportamento a partir de textos ou comunicaes normativas12. A essa ope-se a lgica

    formal, que pode ser entendida, de forma simplificada, como o estudo da forma dos

    argumentos dedutivos vlidos.

    O estudo da lgica formal aplicada ao direito chamou a ateno dos juristas somente

    mais tarde, com a tentativa dos positivistas de fornecer uma fundamentao epistemolgica de

    um conhecimento descritivo das normas vlidas de qualquer sistema normativo, o que veio aoencontro do ressurgimento da lgica dentica, pelas mos de von Wright na dcada de 50, por

    meio de uma analogia com a lgica modal altica13. A questo j no era identificar qual o

    contedo correto ou mais justo dos textos normativos, mas sim se as conseqncias

    normativas de uma norma com contedo j fixo poderiam ser consideradas normas vlidas, ou

    ainda se normas inconsistentes poderiam ser descritas como normas vlidas pertencentes ao

    mesmo ordenamento. Esses mesmos positivistas, em particular, Kelsen e Alf Ross14, viam a

    interpretao como uma atividade desprovida de valor cientfico e sem fundamentoepistemolgico.

    9 Cf. AARNIO, Aulis. On Legal Reasoning. Turku/Loimaa: Turun Yliopisto, 1977, p. 267.10 Cf. FARIAS, Domenico.Interpretazione e Logica. Milano: Giuffr, 1990, p. 134-141.11Cf. SICHES, Luis Recasens.Nueva filosofia de la interpretacin del derecho. Mxico: Porra, 1956.12 Cf. ENGISCH, Karl. Einfhrung in das juristische Denken. Stuttgart: Kohlhammer, 1964.13 Ver VON WRIGHT, Georg Henrik. Deontic Logic, Mind, n. 60, p. 1-15, 1951; e, ainda, HILPINEN, Risto;FOLLESDAL, Dagfin. Deontic Logic: an introduction. In: HILPINEN, Risto (Ed.). Deontic Logic: Introductory

    and Systematic Readings. Dordrecht: Reidel Publishing Company, 1971, para uma introduo lgica dentica.14 Ver KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre. 2. ed. Wien: Deuticke, 1960, Cap. XIII; e ROSS, Alf. On Law and

    Justice. London: Stevens, 1958, ou, ento, ROSS, Alf. Sobre el Derecho y La Justicia. Buenos Aires: Eudeba,1994, Cap. IV.

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    Apesar da importncia da deduo e de outros processos formais de inferncia para o

    estudo do direito15, vamos nos ater neste artigo ao exame daquela lgica material que o

    senso comum jurdico costuma identificar com a verdadeira lgica jurdica ou a lgica

    prpria dos juristas. Ser que essa lgica material que guia e permite ao jurista a sacar

    concluses sobre o contedo dos textos normativos prpria do direito, ou tambm est

    presente no discurso ordinrio, nas nossas conversas do dia a dia nas quais procuramos

    encontrar o sentido do que os outros nos dizem? Em suma, essa lgica material seria uma

    lgica do ou no direito?

    A pergunta ganha relevo quando observamos a evoluo da teoria geral da

    interpretao da filosofia analtica filosofia da linguagem ordinria e pragmtica da

    comunicao. Em particular, com Grice16, desafiada a concepo fregeliana de umalinguagem precisa, baseada em uma estrutura formal (clculo de predicados clssico)

    representativa ou reveladora da estrutura necessria do discurso (descritivo) que refletiria a

    estrutura mais geral da realidade.

    Nesse desafio, Grice procura identificar uma lgica prpria da conversao, que no

    se limita deduo formal, mas na qual certas inferncias so justificadas a partir de certas

    mximas de interpretao que instituem o compartilhamento de certos padres de

    racionalidade entre os comunicantes. Tais mximas aproximam-se bastante dos postulados decompetncia que guiam a construo interpretativa da conhecida figura do legislador racional.

    Assim, tendo em vista que as normas jurdicas so formuladas por meio da linguagem natural,

    a idia de que a lgica que guia a interpretao jurdica no passa de uma lgica

    conversacional usual uma hiptese bastante plausvel. Alis, h quem defenda justamente

    essa tese, dando o passo seguinte, ao sustentar que o fato de haver objetividade e possibilidade

    de entendimento nas conversaes ordinrias implicaria que tambm a interpretao jurdica

    seria objetiva

    17

    .

    15 Para uma defesa da importncia da deduo no raciocnio jurdico, ver PRAKKEN, Henry. Logical Tools forModelling Legal Argument: a study of defeasible reasoning in law. Dordrecht: Kluwer, 1997; MARANHO,Juliano Souza de Albuquerque. Padres de racionalidade na sistematizao de normas. Tese de Doutorado.Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, So Paulo, 2004, Cap. I. Tambm no vamos discutir se algica jurdica formal seria uma lgica com postulados prprios ou, ainda, se a lgica dentica (voltada para odiscurso moral) deveria ter novos postulados quando aplicada ao discurso jurdico. A respeito desse tema verCOSTA, Newton da; MARANHO, Juliano Souza de Albuquerque. Lgica dentica jurdica. In: ZILLES,Urbano (Coord.).Miguel Reale Estudos em homenagem aos seus 90 anos. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.16 Cf. GRICE, Paul. Logic and Conversation. In: GRICE, Paul. Studies in the way of words. Cambridge: HarvardUniversity Press, 1991. p. 22-41.17 Cf. BARBOSA PINTO, Marcos. Interpretation and Conversation.Legal Theory, Cambridge, v. 9, n. 2, p. 157-179, jun. 2003.

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    Portanto, se existe uma lgica jurdica prpria, ou se a lgica jurdica uma

    decorrncia de padres de inferncia presentes na conversao ordinria, uma questo que

    ser aqui investigada nos marcos do que chamamos, seguindo Engisch, de lgica material.

    justamente essa lgica que os juristas apontam como o trao distintivo da interpretao ou

    do raciocnio jurdico.

    A tese a ser defendida que tal lgica de interpretao jurdica no se limita lgica

    interpretativa da conversao ordinria, na medida em que organizada em torno do valor

    justia, ou seja, tem o compromisso de expressar uma escolha capaz de separar o certo do

    errado, o justo do injusto, mediando a relao entre agentes comunicantes numa situao de

    conflito. A insero do tema da justia na interpretao jurdica problematiza o sentido das

    normas legais, mostrando que o antigo problema da indeterminao normativa no pode serfacilmente superado com referncia possibilidade de entendimento na comunicao

    ordinria.

    O artigo est organizado da seguinte forma. Faremos uma breve discusso da

    interpretao do discurso ordinrio e da lgica de conversao de Grice. Em seguida,

    exporemos o modelo de interpretao jurdica baseado na figura do legislador racional,

    identificando suas analogias com a lgica de conversao. Enfrentaremos ento a tese de que

    a interpretao jurdica poderia ser reduzida interpretao da comunicao em geral. Aresposta negativa decorre da potencial erupo do problema da justia na interpretao da

    comunicao normativa. Em seguida, investigamos como a dogmtica jurdica pode

    racionalizar ou domesticar esse problema, dentro do objetivo de criar condies para a

    decidibilidade dos conflitos.

    2. O FALANTE E A LGICA DA CONVERSAO

    Na conversao ordinria esto presentes diversos problemas de indeterminao,como a busca pela inteno do emissor, o uso de termos vagos e ambguos e a incoerncia

    dentro do conjunto de afirmaes no processo de comunicao. Visto como uma ao ou

    comportamento lingstico do emissor, o ato de fala, diante de tais problemas, pode trazer

    alternativas de interpretao para a mensagem transmitida pelo emissor, tendo em vista as

    possibilidades de atribuio de inteno, frente evidncia dada pelo texto no qual o discurso

    foi articulado.

    A identificao do sentido de uma sentena articulada em determinada linguagem

    tomada, desde a semntica de Frege, como um problema de identificao das condies de

    verdade da sentena, dada pelas possveis combinaes de estados de coisas na realidade. Tal

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    tarefa, diante dos problemas de indeterminao levantados acima pode trazer difceis questes

    metafsicas sobre o que a interpretao e mesmo sobre a sua possibilidade, i.e. a existncia

    ou acessibilidade a fatos, ou a um estado mental opaco do falante, ou regras de uso na

    comunidade lingustica, que possam tornar verdadeiro o sentido atribudo expresso. Para

    contornar essas questes que fogem ao escopo do presente artigo, pode-se assumir que o

    entendimento, apesar dessas dificuldades de indeterminao, possvel, dado que, de fato, os

    agentes se comunicam e usam a linguagem como um instrumento hbil para suas relaes (as

    pessoas normalmente entendem o que os outros falam e acreditam que os outros entendem o

    que esto falando). Ou seja, a questo no propriamente se possvel o entendimento

    verdadeiro, mas como o entendimento possvel dado que os agentes de fato se comunicam

    de forma suficiente.Nessa perspectiva pragmtica, Davidson18, no que chama de interpretao radical, v a

    interpretao no somente como uma atividade semntica de identificao do sentido de uma

    sentena mas como um esforo de compreenso da relao de comunicao, que envolve a

    identificao do que o emissor quis dizer ou no que acredita ao emitir a sentena. Pressupe-

    se que o sentido da sentena pode ser dado por determinadas regras semnticas

    convencionadas, o que no suficiente para explicar comunicaes bem sucedidas em que o

    sentido convencionado para a sentena bastante distinto do que se quis dizer; por exemplocom afirmaes do tipo Me me! (que certamente no quer comunicar uma tautologia).

    A teoria de interpretao radical de Davidson diz pouco sobre como ir alm da

    semntica da sentena, fornecendo de maneira vaga, como guia, o princpio de caridade:

    escolher condies de verdade que faam o melhor possvel para tornar verdadeiras as

    afirmaes do emissor19. A idia que o esforo interpretativo resista o quanto possvel a

    uma atribuio de um sem sentido, buscando-se fazer com o que a fala do outro faa sentido.

    Isso envolve uma conceptualizao do emissor, a partir do compartilhamento de determinadospadres de racionalidade (alm das regras semnticas convencionadas na comunidade

    lingustica). A ausncia desses padres mnimos simplesmente mina a capacidade de

    entendimento20, ou pode mesmo significar o descarte da mensagem como algo a ser

    18 Cf. DAVIDSON, Donald. Radical Interpretation. In: DAVIDSON, Donald. Inquiries into truth andinterpretation. Oxford: Clarendon Press, 1984; e, ainda, DAVIDSON, Donald. Belief and the basis of meaning.In: DAVIDSON, Donald.Inquiries into truth and interpretation. Oxford: Clarendon Press, 1984.19 Id., ibid., p. 152.20 Id., ibid., p. 153: The point is that widespread agreement is the only possible background against which

    disputes [about meaning] and mistakes can be interpreted. Making sense of utterances and behaviour of others,even their most aberrant behavior, requires us to find a great deal of reason and truth in them. To see to muchunreason on the part of others is simply to undermine our ability to understand what it is they are sounreasonable about.

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    interpretado ou algo relevante para nossas aes. Incumbe ao intrprete, diante de textos

    vagos, ou aparentemente incoerentes ou irrelevantes, entender o que o agente quis dizer

    (comunicar) muito embora isso no esteja claramente articulado no que ele disse (i.e. no

    significado da sentena).

    Essa mudana de foco, passando do que foi dito na sentena para o que o agente quis

    dizer na comunicao o ponto de partida para a anlise pragmtica de Grice sobre o que

    seria uma lgica da conversao21. Para Grice o acesso ao que se quis dizera partir do que se

    disse consiste em um processo de inferncia, no dedutiva, que chamada de implicatura.

    Para exemplificar a diferena entre inferncia dedutiva e a implicatura, suponha que

    algum afirme Sou um doutor. A partir dessa premissa pode-se deduzir que o emissor tem

    um ttulo de ps-graduao. Porm, em um contexto no qual um indivduo se acidenta, aafirmao feita em resposta pergunta h um doutor nesta sala? nos leva a concluses

    adicionais ou mesmo diversas. Nesse caso, assumimos normalmente que o emissor no quis

    afirmar que tem um ttulo de doutorado em direito, ou em engenharia, ou em qualquer outra

    rea, mas sim, que um mdico (com doutorado ou no) e que pode atender a vtima do

    acidente. Isso assim, pois no contexto daquela conversao, a mera afirmao de um ttulo

    de ps-graduao no relevante e se supe que o emissor esteja nela engajado, contribuindo

    para o propsito daquela relao comunicativa.Outro exemplo, se A pergunta a B C tem uma namorada? e recebe como resposta C

    tem viajado muito a Buenos Aires, pode-se deduzir que C tem viajado muito Argentina,

    mas a expresso pode ter implicaturas adicionais. A no ser que B no tenha prestado ateno

    pergunta, o que se exclui por hiptese, pode querer dizer que C tem uma namorada em

    Buenos Aires, ou ento, que por conta de suas viagens, no tem tempo para namorar.

    Assim, assumindo o que Grice chama de princpio de cooperao (faa com que sua

    fala contribua, no estgio em que ocorrer, com o propsito estabelecido para a comunicaono qual voce est engajado)22, possvel sacar concluses mais amplas sobre o ato de fala do

    emissor, a partir do contexto comunicativo. O processo de implicatura nada mais do que o

    levantamento de hipteses ou da melhor hiptese sobre o que o emissor quis dizer, tratando-se

    de um raciocnio ampliativo, em particular, de uma forma de abduo, que no se limita

    21 Cf. GRICE, Logic and Conversation, op. cit.; e GRICE, Paul. Further notes on logic and conversation. In:

    GRICE, Paul. Studies in the way of words. Cambridge: Harvard University Press, 1991. p. 41-57.22 Ver GRICE, Logic and Conversation, op. cit., p. 26: Make your conversational contribution such as isrequired at the stage at which it occurs, by the accepted purpose or direction of the talk exchange in which youare engaged.

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    preservao da verdade das premissas na concluso (deduo), mas que busca novas

    informaes a partir das premissas, com base em certos parmetros de coerncia23.

    Grice prope que o princpio de cooperao que guia essa busca desdobra-se e

    caracteriza-se a partir de certas mximas atribudas ao emissor. Mximas de quantidade: (a) a

    contribuio no menos informativa do que se requer na conversao, (b) a contribuio no

    mais informativa do que se requer; mximas de qualidade (o emissor sincero): (a) no diz

    o que acredita ser falso, (b) no afirma algo do qual no tenha evidncia suficiente; mxima

    de relao: o emissor afirma algo relevante para a discusso; mximas de forma (o emissor

    perspicaz): (a) evita obscuridade; (b) evita a ambiguidade; (c) conciso; (d) organizado ou

    sistemtico na fala.

    Tais mximas podem colapsar. Por exemplo, A pergunta a B onde C mora? e recebecomo resposta em algum lugar no sul de So Paulo. O emissor B no foi suficientemente

    informativo, porm pode t-lo feito para preservar a mxima de qualidade, pois desconhece o

    local com exatido. Assim, as mximas devem ser ponderadas e permitem que se levantem

    hipteses acerca do comportamento do agente interpretado, tendo em vista o propsito da

    comunicao. A melhor hiptese depende do contexto, i.e., outros fatores permitem ao

    intrprete concluir que B no sabe o local preciso e no quer deixar de informar o quanto

    sabe, ou sabe o local preciso e quer dizer que no desejvel que A visite C.A noo de uma lgica ou relao de implicatura a partir de uma conceptualizao do

    agente interpretado guarda paralelos prximos com a atividade de interpretao jurdica, nos

    moldes da dogmtica alem do sc. XIX, como forma de se ampliar a base de informaes

    disponveis acerca do sentido da lei. A estipulao de determiadas mximas de competncia

    do emissor faz lembrar a figura do legislador racional, que constitui um instrumento

    interpretativo disposio da dogmtica jurdica, como veremos a seguir.

    3. O LEGISLADOR RACIONAL E A LGICA JURDICA MATERIAL

    No processo interpretativo dos textos legais, formulados em linguagem ordinria, o

    jurista enfrenta uma srie de problemas de indeterminao: problemas de indeterminao

    semntica, decorrente da dificuldade de atribuio de sentido a termos vagos e ambguos

    empregados na lei, das possibilidades de atribuio de intenes ou propsitos de uma

    23 Cf. HARTSHORNE, Charles; WEIS, Paul (Eds.). Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Cambridge:Harvard University Press, 1931-1958. Para competentes anlises da lgica abdutiva de Peirce, ver HILPINEN,Risto. Peirces Logic. In: GABBAY, D. M.; WOODS, John.Handbook of the History of Logic. The Roise of Modern

    Logic: From Leibniz to Frege. Amsterdam: Elsevier, 2004. v. 3. p. 611-658; e, ainda, KAPITAN, Tomis. Peirce and

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    regulao (com o sentido preliminarmente identificado), das propriedades consideradas

    relevantes dentro de um caso hipottico a ser solucionado; problemas de indeterminao

    pragmtica, como a apreciao das possveis conseqncias, justas ou injustas, de

    determinadas atribuies de sentido; e problemas de indeterminao sinttica, como a

    ausncia de uma soluo para determinado caso considerado relevante (lacunas), a existncia

    de comandos conflitantes para um mesmo caso relevante (inconsistncias), ou ainda a escolha

    de resultados possveis de um processo de reviso ou refinamento do sistema normativo 24.

    Tais problemas, embora possam levar a uma postura ctica no mbito da especulao

    filosfica, trazem uma dificuldade prtica para a interpretao doutrinria a ser, de alguma

    forma, superada, tendo em vista a decidibilidade de conflitos. A questo, para a dogmtica,

    no propriamente a possibilidade de uma interpretao correta ou objetivamente verdadeira,mas sim qual aquela que est melhor ou suficientemente justificada, diante das evidncias

    dadas pelos textos normativos cujos sentidos esto inter-relacionados.

    Uma questo jurdica doutrinria diz respeito a uma soluo normativa (dever,

    permisso ou proibio) de uma determinada conduta em um caso hipottico. Tal soluo

    identificada com respeito presena ou ausncia de determinadas propriedades ou condies

    consideradas relevantes25. Assim, a resposta sobre uma ao particular para um caso, com

    determinada propriedade, deve ser coerente com a soluo encontrada para aquela mesmaao na hiptese de ausncia daquela propriedade, ou ainda, coerente com a soluo

    encontrada para outras aes anlogas ou relacionadas com aquela primeira ao considerada.

    Isso leva o intrprete doutrinrio a uma reconstruo de um sistema normativo com solues

    coerentes para casos hipotticos relevantes.

    A exigncia de sistematizao e coerncia das solues identificadas pelo intrprete

    impe uma racionalizao do material normativo nesse processo construtivo de interpretao.

    Evidentemente, como as leis so de fato originadas de fontes diversas e no necessariamenteorientadas para um mesmo e consistente propsito, a interpretao levada a cabo a partir da

    the Structure of Abductive Inference. In: HOUSER, N.; ROBERTS, D. D.; EVRA, J. V. Studies in the Logic ofCharles Peirce. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1997. p. 477-496.24 Para uma anlise formal da operao de reviso de sistemas normativos ver ALCHOURRN, Carlos;MAKINSON, David. Hierarchies of regulation and their logic. In HILPINEN, Risto (Ed.).New Studies in deonticlogic. Dordrecht: Reidel, 1981. p 125-148. Para a lgica de refinamento de sistemas normativos, verMARANHO, Juliano Souza de Albuquerque. Some operators for Refinement of Normative Systems. In:VERHEIJ, Bart; LODDER, Arno R.; LOUI, Ronald P.; MUNTJEWERFF, Antoinette J. (Eds.). LegalKnowledge and Information Systems, Frontiers in Artificial Intelligence and Applications. Amsterdam: IOS

    Press, 2001. p. 103-115.25 Cf. ALCHOURRN, Carlos; BULYGIN, Eugenio. Normative Systems. Wien: Springer, 1971; ou, ento,ALCHOURRN, Carlos; BULYGIN, Eugenio. Introduccin a la Metodologia de las Ciencias Juridicas ySociales. Buenos Aires: Astrea. 1975.

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    fico de unidade na vontade do legislador, que , ento, idealmente conceptualizado na

    figura do chamado legislador racional.

    No obstante tratar-se de um instrumental retrico a servio da ideologia de separao

    de poderes (ver prxima seo), conforme apontam Nowak e Ziembinski26, a figura do

    legislador racional fornece a base para a fundamentao da atividade de interpretao

    dogmtica. Ao reconstruir o ordenamento, o intrprete pressupe determinados padres de

    racionalidade e postulados acerca do comportamento do legislador, que organizam e lhe

    permitem conceptualizar o conjunto de normas como decorrente de um sistema unitrio e

    racional de conhecimentos e preferncias. Assim, se no for possvel um mtodo que nos

    permita apontar um sentido correto ou verdadeiro para as normas, na linha de autores cticos

    como Kelsen e Alf Ross, ao menos seria possvel identificar interpretaes justificadas ou nojustificadas a partir de certos postulados de competncia ou mximas de racionalidade

    retiradas da prpria finalidade da atividade de legislao e de resoluo de conflitos por meio

    do direito.

    Nessa conceptualizao de uma vontade unitria e racional por detrs dos textos legais

    ressalte-se, dentre seus atributos, os seguintespostulados de competncia, desenvolvidos pela

    dogmtica alem do sc. XIX: (a) o legislador no cria normas impossveis de serem

    executadas, da por que no se pode desejar que algum realize e deixe de realizar o mesmoato; (b) o legislador no cria normas sem algum propsito (c) as condutas exigidas ou

    permitidas nas normas so aptas a levar os sujeitos normativos consecuo dos propsitos

    da regulao (coerncia entre meios e fins); (d) a vontade do legislador unitria, de forma

    que as regras esto sistematicamente relacionadas; (e) a vontade do legislador completa, no

    sentido de que soluciona todos os casos por ele reputados como relevantes; (f) o legislador

    rigorosamente preciso e no cria normas incuas ou redundantes27.

    A partir desses postulados, o intrprete realiza inferncias acerca dos propsitos portrs das normas legais, o que lhe permite definir sentidos dentre vrias atribuies possveis e

    sistematizar o conjunto de normas em um todo coerente. Observando a conceptualizao do

    26 Cf. NOWAK, L. De la rationalit du lgislateur comme lment de linterprtation juridique. Logique etAnalyse, Bruxelles, n. 12, p. 65-86, 1969; ZIEMBINSKI, Zygmunt. La notion de rationalit du lgislateur.Archives de philosophie du Droit: Formes de rationalit en droit, Paris, n. XXIII, p. 175-187, 1978; eZIEMBINSKI, Zygmunt. Two Concepts of Rationality in Legislation. In: ARNAUD, Andr-Jean; HILPINEN,

    Risto; WRBLEWSKI Jerzy (Hrsg.).Rechtstheorie Juristische logik, Rationalitt und Irrationalitt im Recht /Juristic logic, Rationality and Irrationality in Law, Berlin, n. 8, p. 139-150, 1985.27 Para a elaborao histrica desses postulados, consutar WIEACKER, Franz. Privatrechtsgeschichte der

    Neuzeit. Gttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1967.

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    legislador racional como a de um emissor comunicativo em geral, nota-se uma

    correspondncia com a lgica de conversao de Grice.

    Tomada como uma relao de conversao, o propsito da comunicao entre

    legislador e sujeito normativo seria guiar a conduta dos ltimos para a consecuo de

    determinadas polticas pblicas ou de satisfao de determinadas pautas morais prevalecentes

    na comunidade. Dado que, para atingir seu ideal poltico e moral vislumbrado, o legislador

    no pode exigir dos sujeitos normativos, ao mesmo tempo e na mesma circunstncia, uma

    conduta e permitir a sua omisso, o postulado a, de consistncia, retira o seu contedo do

    prprio princpio de cooperao, pois ditar normas consistentes contribui ao propsito dessa

    conversao. Os postulados de quantidade se aproximam das mximas e e f de

    completude e no redundncia, enquanto a mxima da forma liga-se ao carter sistemtico eordenado do legislador do qual fala o item d. O postulado b tem a ver com a mxima de

    sinceridade na conversao; assim como em uma conversao espera-se que se fale a verdade,

    espera-se do legislador que no seja leviano, i.e. que no dite normas despropositadas. Por

    fim, o item c constitui a traduo normativa da mxima de relevncia de Grice.

    Dada essa correspondncia, plausvel levantar a hiptese de que a interpretao

    jurdica e a lgica material da dogmtica interpretativa nada mais seriam do que aplicaes

    particulares da interpretao da conversao ordinria e da lgica de implicatura. Se esse for ocaso, ento a interpretao jurdica no deveria trazer dificuldades adicionais quanto ao

    sentido das normas. Se possvel o entendimento na comunicao ordinria de forma

    suficiente para nossas relaes, ento esse tambm seria perfeitamente possvel na

    interpretao das normas para a resoluo dos conflitos jurdicos. Da mesma forma, os

    problemas de indeterminao das normas no seriam mais graves do que os problemas de

    indeterminao em uma conversao ordinria e poderiam ser superados pelos mesmos

    mecanismos lingusticos aplicados a esta ltima.

    4. OBJETIVIDADE DO FALANTE IMPLICA OBJETIVIDADE DO

    LEGISLADOR?

    A hiptese levantada no final da seo anterior, que v a norma como uma espcie de

    conversao ordinria, toca diretamente no problema da objetividade da interpretao

    jurdica, fundamental dentro da teoria do direito e tomado como ponto central do recente

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    ataque pelo movimento de Critical Legal Studies teoria do direito tradicional, de orientao

    analtica28.

    Uma posio frequentemente combatida nesse debate, que podemos chamar de tese da

    herana, defendida entre outros, por Kelsen, assume que a objetividade no direito no

    possvel na medida em que as normas so formuladas em linguagem natural, que seria

    necessariamente indeterminada. Recentemente, Marcos Barbosa Pinto buscou refutar a tese da

    herana exatamente com a hiptese da norma como conversao:

    If language were always indeterminate, we would not be able to have

    a conversation; if language were indeterminate at all times, you would

    not be able to understand me if I told you loud and clear right now to

    stop reading this article. But we do have conversations; and you wouldunderstand what I meant if I had told you to stop reading. In fact, our

    language seem to be determinate enough for the purposes of most of

    our daily conversations [] It seems to me that if we knew for sure

    that law was as determinate as our ordinary conversations, the

    question of objectivity would be settled for all practical purposes29.

    Barbosa Pinto esfora-se, ento, para demonstrar que o direito to determinado

    quanto a linguagem ordinria, atacando trs problemas da interpretao jurdicas usualmentetomados como crticos30: (i) vagueza dos termos normativos, (ii) complexidade do sistema

    normativo e (iii) inteno do legislador. A vagueza, como observa o autor, no caracterstica

    de termos normativos, e a conversao ordinria dispe de mecanismos para super-la, como

    estipulaes ou definies, que podem e so tambm empregadas na interpretao jurdica. A

    complexidade, assim entendida a necessidade de coerncia do sistema normativo encontra

    paralelo na exigncia de coerncia do discurso em uma conversao ordinria. Assim, regras

    para resoluo de inconsistncias aparentes, como tomar em considerao a ltimaponderao feita pelo emissor, refletem-se em princpios dogmticos como lex posterior,

    superior, specialis. A inteno, por sua vez, traz uma diferena, dado que a lei no o

    28 SINGER, Joseph William. The Player and the Cards: Nihilism and legal Theory. Yale Law Journal, NewHaven, v. 94, n. 1, p. 1-70, 1984 um bom exemplo do movimento de Critical Legal Studies que mistura umradical ceticismo quanto determinao das regras e decisionismo com uma ideologia poltica de esquerda. Emdefesa da metodologia juridical tradicional, em particular de orientao analtica, ver COLEMAN, Jules;LEITER, Brian. Determinacy, Objectivity and Authority In: MARMOR, Andrei (Ed.).Law and Interpretation.

    Oxford: Oxford University Press, 1997. p. 204-277.29 Cf. BARBOSA PINTO, op. cit. p. 157.30 Ver KELSEN, Hans. Zur Theorie der Interpretation. Internationale Zeitschrift fr Theorie des Rechts.Offizielles Organ des Institut international de Philosophie du Droit et de Sociologie juridique , Jahrgang, v. 8,

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    resultado de uma comunicao de um emissor unvoco. Entretanto, essa mitigada na medida

    em que a interpretao da inteno na conversao ordinria no exige o acesso a um estado

    mental particular e opaco, mas desenvolvida a partir do contexto, assunes e de regras de

    comunicao compartilhadas, o mesmo valendo para a busca do legislador conceptualizado

    como racional (alis, j analisamos esse paralelo quando comparamos as mximas de Grice e

    os postulados interpretativos da dogmtica jurdica).

    Assumindo que os problemas de interpretao contidos na linguagem ordinria esto

    presentes na interpretao jurdica e que possvel o entendimento na conversao comum

    com base em tcnicas de reduo da indeterminao, tambm disponveis para a comunicao

    normativa, seria correto concluir que a interpretao jurdica objetiva, com base na

    objetividade da linguagem ordinria?A nosso ver, as premissas assumidas apenas mostram o fato trivial de que as normas

    so formuladas em linguagem ordinria. Porm, com relao indeterminao na

    comunicao, a pergunta relevante : a determinao alcanada usualmente na comunicao

    ordinria suficiente para satisfazer a exigncia de objetividade e determinao presente na

    comunicao normativa? Ser que a exigncia de determinao a mesma para todos os

    domnios no qual se desenrola a comunicao?

    Considere um exemplo simples em que A afirme a B Quero um copo de gua. Acomunicao perfeitamente compreensvel e A pode recusar-se a fornecer ou fornecer uma

    quantia de gua que entender suficiente. Suponha agora que A esteja prestes a morrer e

    suplique a B, gua! ou ainda que faa o mesmo pedido nos seguintes termos retribua-me o

    copo de gua que lhe servi ontem em minha casa. Em tais situaes comunicativas, um fator

    especfico introduzido, que altera completamente o sentido e as reaes admissveis de B.

    Trata-se da valorao moral da sentena do emissor, que imputa a B tambm uma valorao,

    colocando questes do tipo sou obrigado a entregar a B o copo de gua?, qual quantidadeseria correto lhe entregar?, devo dar toda a gua suficiente para matar a sede do

    moribundo?, e se outro moribundo aparecer, terei gua suficiente?, devo entregar a

    mesma quantidade de gua que recebi, ou matar-lhe a sede com o que for necessrio assim

    como saciei a sede em sua casa no dia anterior?. Afinal, B instado a se perguntar o que

    exatamente A implica ou quer dizer com a splica ou com retribuio e ademais se tal ato de

    fala moralmente aceitvel.

    p. 9-17, 1934; ou, ento, KELSEN, Hans. On the Theory of Interpretation. Trad. Bonnie Litschewski Paulson eStanley L. Paulson.Legal Studies, Oxford, v. 10, n. 2, p. 127-135, 1990.

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    As questes surgidas trazem, em seu bojo, o problema da justia do contedo do ato

    do emissor e da reao demandada ao receptor. Note que o contedo comunicado o mesmo

    na situao ordinria e na situao de conflito moral e as tcnicas lingsticas para a

    determinao so as mesmas. Porm, o tema da justia inserido traz uma carga maior de

    exigncia de adequao e preciso. A exigncia de adequao moral e preciso do contedo

    dizem respeito pertinncia e razoabilidade do que foi comunicado dentro de determinada

    concepo de justia31. Nessas hipteses, a comunicao pautada pelo dissenso, muito

    embora no afaste o princpio cooperativo, dado que ambos os agentes comunicantes passam

    a contribuir (e.g. via argumentao) para resoluo da questo (no caso, fornecer ou no

    fornecer a gua e quanto). Todavia, pela natureza dos problemas levantados, o dissenso

    potencialmente indecidvel, justamente porque diferentes concepes subjetivas de justiapodem trazer respostas diametralmente opostas.

    Exatamente nesse ponto, como forma de superar ou reduzir o dissenso subjetivo,

    aparece o apelo a regras gerais e abstratas, estabelecidas em decises passadas, as quais

    ambos os agentes comunicantes aceitam como imparciais, vale dizer, o apelo ao direito.

    Assim, o direito aparece como um terceiro elemento na comunicao, um terceiro

    agente mediador que manifesta uma determinada escolha, supostamente imparcial, dentre as

    preferncias e valoraes possveis para os conflitos. possvel, nessa linha, pensar asnormas jurdicas como comunicaes, que instauram uma conversao com o intrprete

    jurdico, porm uma forma peculiar de conversao cujos atos de fala so respostas a

    potenciais dissensos, que tm por base questes de justia.

    No exemplo considerado, imaginemos que h normas estabelecendo que facultado

    a todos fornecer gua a quem solicitar e caso algum fornea gua ao outro, obrigatrio ao

    outro retribuir o favor ao primeiro. A escolha manifestada no ato comunicativo que resultou

    na formulao da norma clara e capaz de resolver uma srie de situaes nas quais A solicitaa B um copo de gua. Porm, abre-se espao para casos de penumbra, lacunas ou conflitos

    com outras normas, nos quais as valoraes que esto na base dessa escolha podem vir

    novamente tona e exigir posicionamentos ideolgicos pelo intrprete que suscitaro

    questes de justia aparentemente adormecidas.

    4.1. Complexidade

    31 Para a noo de concepo de justia, ver RAWLS, John.A Theory of Justice. Cambridge: Harvard UniversityPress, 1999, Cap. I.

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    Assim, por exemplo, a hiptese de um moribundo sedento, no mencionada

    explicitamente pela regulao sugerida acima, pode ser suscitada como um caso relevante. O

    intrprete pode apontar para uma terceira norma do sistema que estabelece que todos tm a

    obrigao de ajudar os necessitados, levantando uma questo de coerncia. Tal norma

    conflita com a mera faculdade de se fornecer gua para o moribundo, surgindo a

    indeterminao. A partir de ento, pode-se interpretar que a inteno do legislador (racional)

    ao estipular a faculdade em fornecer, garantiu o direito de propriedade, dentro de determinada

    concepo sobre a organizao da produo e distribuio de bens na comunidade; afinal no

    poderia cada um ser obrigado a satisfazer todas as necessidades dos outros. Em oposio,

    pode-se tambm interpretar, em nome do legislador racional, que haveria uma lacuna na

    formulao da norma que no considera o caso de um moribundo, a no ser que se considere avontade implcita do legislador que, nesse caso, impe que a gua deve ser fornecida, em

    nome do direito fundamental de todos vida.

    Problema semelhante pode ser visto, para tomar um exemplo mais realista, na

    discusso dogmtica acerca do uso remunerado das margens de rodovias. Uma concessionria

    de rodovias pode cobrar de todos pelo uso das margens de rodovias? A resposta dada pelo art.

    11 da Lei de Concesses afirmativa, pois confere s concessionrias o direito de explorar

    receitas alternativas tarifa de pedgio. Todavia, as concessionrias de energia eltrica, porfora do art. 151 do Cdigo de guas, tm o direito de usar terrenos de domnio pblico para

    suas instalaes. No caso das concessionrias de energia eltrica surge, portanto, o conflito.

    Uma possvel construo v aqui um problema de articulao de polticas pblicas e

    busca demonstrar que, no balano total, seria mais vantajoso ao usurio desses servios, o uso

    gratuito de forma a viabilizar tarifas mais moderadas na mdia em ambos os servios

    (claramente, um vis utilitarista do justo na linha da proporcionalidade na distribuio dos

    benefcios). Sustenta-se assim, dogmaticamente, que o art. 151 do Cdigo de guas seria lexspecialis, prevalecendo sobre o art. 11 da Lei de Concesses nesse caso.

    Outra possvel construo dogmtica v, aqui, um direito fundamental de propriedade

    dos estados da Federao, que no pode ser violado, em nome do federalismo, por um antigo

    Decreto da Unio garantindo antigos privilgios, incompatveis com a concepo de servio

    pblico na CF 88 e seu reforado princpio de federalismo (j aqui uma outra concepo de

    justia; formal, reflexa na separao e autonomia e material em termos de direitos

    fundamentais ou o senso do justo). Dogmaticamente, para evitar o conflito, ou se interpreta o

    direito das concessionrias de energia eltrica como um direito de uso, ao qual as

    concessionrias no podem se opor (no podem proibir), mas no um direito de uso gratuito,

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    ou ainda, caso se atribua um direito de uso gratuito, entende-se que esse foi derrogado pela lex

    posterior(Art. 11 da Lei de Concesses) e ou ainda, pela prpria CF 88 (lex superior) em sua

    nova concepo da Administrao pautada pelo princpio de eficincia e gesto empresarial

    do servio pblico32.

    Nesse exemplo, est em jogo a dificuldade em se estabelecer critrios dogmticos para

    a resoluo definitiva de conflitos normativos, haja vista a possibilidade de conflitos entre os

    prprios critrios de resoluo. Tentativamente, aparecem meta-critrios como lex posterior

    generalis non derrogat lex speciali. Entretanto um meta-critrio como esse no isento de

    polmica. Na clssica abordagem de Norberto Bobbio,33 por exemplo, l-se:

    Tambm foi aqui transmitida uma regra geral que soa assim: Lex

    posterior generalis non derrogat priori speciali: a lei geral sucessivano tira do caminho a lei especial precedente [...] Essa regra, por outro

    lado, deve ser tomada com certa cautela, e tem um valor menos

    decisivo que o da regra anterior. Dir-se-ia que a lex specialis menos

    forte que a lex superior, e que, portanto, a sua vitria sobre a lex

    posterior mais contrastada. Para fazer afirmaes mais precisas

    nesse campo, seria necessrio dispor de uma ampla casustica34.

    Ferraz Junior, por sua vez, destaca que o referido meta-critrio tem aplicao restrita experincia e de difcil generalizao35. Essa hesitao tambm percebida no campo

    dogmtico, que descarta a aplicao do critrio como se absoluto fosse, quando praticamente

    se retorna estaca zero, ao se afirmar que s h a derrogao quando de fato, no caso,

    verifica-se a incompatibilidade. Nesse impasse, retorna-se verificao do que seria mais

    justo, no caso, ou o que estaria mais de acordo com a vontade do legislador. Assim, dentre

    os civilistas, Roberto de Ruggiero chega a afirmar que o brocardo lex posterior generalis vs

    lex priori specialis falso pelo seu absolutismo

    36

    , pois se trata de matria interpretativa.Ou ainda, como afirma Serpa Lopes, citando De Ruggiero e Ennecerus-Kipp-Wolf que nesse

    caso de conflito entre critrios a soluo deve ser buscada na pesquisa dos objetivos da lei

    32 Para aprofundar essa discusso, ver FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio; MARANHO, Juliano Souza deAlbuquerque. O princpio de eficincia e a gesto empresarial na prestao de servios pblicos: a exploraoeconmica das margens de rodovias. Revista de Direito Pblico da Economia RDPE, Belo Horizonte, n. 17,abr. 2007. Contra, ver o artigo de Floriano Marques Neto a ser publicado no mesmo volume.33 Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurdico. 6. ed. Braslia: UnB, 1995.34 Id., ibid., 108, nfase nossa.35 Cf. FERRAZ JUNIOR, Introduo ao estudo do direito, op. cit., p. 211.36 Cf. RUGGIERO, Roberto de.Instituies de direito civil. Campinas: Bookseller, 1999, v. 1, p. 168.

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    ou da vontade do legislador, sem se ater, como um axioma, aos pressupostos exarados nos

    brocardos em foco37.

    4.2. Vagueza

    Olhando para o caso de vagueza semntica, voltemos ao exemplo ingnuo do copo de

    gua, para enfrentar a questo com relao ao quantum, na qual A pede a B uma retribuio

    do favor anteriormente prestado. A regra estipulada vaga e no deixa claro se, para retribuir

    o favor, deve-se saciar a sede e fornecer o quanto A exigir para tanto, ou se deve fornecer

    exatamente a mesma quantia de gua anteriormente recebida. Novamente, podem ser

    construdas duas teorias interpretativas conflitantes, em nome do legislador racional, aptas a

    solucionar a questo. De um lado pode-se considerar que a igualdade na retribuio refere-se quantidade fornecida (justia no sentido de justeza). Porm, tomada no sentido de equidade,

    a retribuio exata pode ser vista como injusta se anteriormente B recebeu uma pequena

    quantia (mas suficiente na ocasio) de gua, porm A est sedento. Assim retribuir o favor

    significa, materialmente, realizar um bem, uma caridade no caso, matar a sede, o que

    novamente traz o caso para uma discusso do senso material do justo (em particular uma

    concepo de justia de razes catlicas que enfatiza a solidariedade e o amor ao prximo).

    Dificuldades como essa surgem, por exemplo, nas normas de defesa da concorrncia,quando so punidas condutas que possam trazer o efeito de eliminao de parcela substancial

    da concorrncia. O mesmo parmetro empregado na anlise de concentraes econmicas.

    Qual parcela exatamente deve ser considerada substancial? Na discusso dogmtica aparecem

    solues conflitantes a partir de concepes diversas de justia. Assim, a chamada escola de

    Chicago, pautada em uma concepo de raiz utilitarista, tende a aceitar concentraes mais

    elevadas, na medida em que possam trazer eficincias econmicas, i.e. um saldo positivo, em

    valor, entre perdas decorrentes da reduo de concorrncia e ganhos econmicos, em termosde ganhos de escala, aumento de produtividade, etc., que sejam revertidos em benefcios aos

    consumidores (maior qualidade e menores preos). J a chamada escola de Harvard tende a

    aceitar ndices menos elevados de concentrao, com a tese de que estruturas concentradas

    definem, por sua racionalidade econmica, condutas abusivas que reduzem a eficincia

    alocativa de recursos na economia. Pauta-se, aqui, por uma concepo voltada para a garantia

    de liberdades mnimas fundamentais, no caso, a garantia de livre iniciativa empresarial

    (portanto, de justia como senso do justo).

    37 Cf. SERPA LOPES, Miguel Maria. Comentrios Lei de Introduo ao Cdigo Civil. Rio de Janeiro: Freitas

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    A tcnica de definio estipulativa surge ento para demarcar, quando um ato de

    concentrao traz riscos e deve ser notificada autoridade concorrencial (concentraes que

    alcancem 20% do mercado, art. 54 da Lei 8884/94) e aparecem ndices, como a concentrao

    das 4 maiores empresas, ou ndices mais sofisticados, como Herfindal-Hirshman, para indicar

    quando uma concentrao reduz substancialmente a competio. Todavia, tais definies

    sucumbem e so problematizados pela jurisprudncia. Por exemplo, quando se questiona:

    20% de qual mercado relevante de produto? Mercado de bebidas em geral, ou somente de

    bebidas no alcolicas? Mercado nacional, ou internacional? Ou ainda quando se questiona se

    ndices desenvolvidos pela doutrina dos E.U.A podem se aplicar realidade do mercado

    nacional. A lei de concorrncia brasileira contm ditames para que as eficincias econmicas

    sejam consideradas para aprovao da concentrao, porm, desde que, novamente, noreduzam substancialmente a concorrncia, ou cujos benefcios sejam compartilhados entre o

    empresrio e os consumidores. Assim, o esforo de resoluo da vagueza por definies, traz

    novos problemas que ressuscitam as mesmas concepes rivais de justia na base das normas

    antitruste. Qual seria o patamar substancial de reduo de concorrncia que chega a impedir

    uma anlise de eficincias? Como deve ser medido o compartilhamento? A diviso deve ser

    meio a meio? O consumidor considerado precisa ser o consumidor final, pessoa fsica?

    O questionamento a definies estipulativas para soluo de vagueza pode aparecermesmo em campos jurdicos de maior rigor e exigncia de literalidade, como por exemplo, no

    direito penal.

    O Cdigo Penal Brasileiro pune o estupro (art. 214) nos seguintes termos

    Constranger mulher conjuno carnal, mediante violncia ou grave ameaa. H aqui

    uma indefinio sobre o que se considera violncia ou grave ameaa. Todavia, com relao a

    crianas estipulada uma presuno absoluta, com preciso numrica (art. 224): Presume-se

    a violncia, se a vtima no maior de 14 (catorze) anos.No obstante o aparente nvel de determinao alcanado a partir dos recursos

    disponveis na linguagem ordinria na qual a norma foi formulada sexo com mulheres menos

    de 14 anos punido com recluso, o Supremo Tribunal Federal no Hbeas Corpus HC

    73.662-9 MG, garantiu a liberdade a ru que havia mantido relao com menina de 12 anos,

    nos seguintes termos do Ministro Relator:

    Nos nossos dias no h crianas, mas moas de doze anos.

    Precocemente amadurecidas, a maioria delas j conta com

    Bastos, 1959, v. 1, p. 57.

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    discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades, ainda

    que no possuam escala de valores definida a ponto de vislumbrarem

    toda a sorte de conseqncias que lhes pode advir [...] Ora, enrijecida

    a legislao que, ao invs de obnubilar a evoluo dos costumes,

    deveria acompanh-la, dessa forma protegendo-a cabe ao intrprete

    da lei o papel de arrefecer tanta austeridade, flexibilizando, sob o

    ngulo literal, o texto normativo, tornando-o, destarte, adequado e

    oportuno.

    Aqui, o Supremo, ao interpretar a presuno legal absoluta acerca do momento em que

    crianas no podem consentir, tenta mostrar que h crianas que, nesse momento, no so

    crianas, mas moas capazes de consentir. Embora haja aqui praticamente um descarte dotexto normativo, o mesmo apresentado como uma interpretao mais flexvel do que a

    literal, necessria para tornar a norma adequada ao senso de justia do tribunal.

    4.3. Inteno

    Com relao busca da inteno, na atividade de interpretao que se instaura na

    relao comunicativa normativa, o intrprete jurdico enfrenta tambm uma tenso entre a

    concepo de justia formal e justia material envolvido no prprio propsito dacomunicao, presente no sempre latente conflito entre o sentido da norma (texto normativo)

    e o propsito do (ou melhor, atribudo pelo intrprete ao) legislador.

    Frederick Schauer38 traz uma abordagem esclarecedora desse tipo de conflito. As

    prescries teriam por base generalizaes acerca de um mal ou um bem que a ao regulada,

    categoricamente ou em determina condio, pode causar. Voltando ao exemplo ingnuo do

    copo de gua, imagine uma norma determinando que obrigatrio fornecer gua ao

    moribundo sedento. Aqui, a opo do legislador foi proteger a vida do necessitado,manifestando uma concepo de justia calcada no senso do justo e expressa pela garantia do

    direito fundamental vida. Promover esse bem (proteo vida) constitui o objetivo e,

    portanto o fundamento da norma, que Schauer chama dejustificao da regra.

    Conflitos entre a regra (gua para os moribundos sedentos) e sua justificao (proteo

    da vida), que possuem sentidos distintos, aparecem por ser a regra necessariamente sobre- ou

    sub-inclusiva com relao a sua justificao. Isto , a generalizao que a fundamenta pode

    incluir casos nos quais a ao em questo impede o objetivo desejado ou pode deixar de

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    incluir casos relevantes, nos quais a ao promove aquele objetivo. No caso em que A pede

    gua a B, mas B tem razes para acreditar que a gua est contaminada, h uma sobre-

    incluso. Se o objetivo proteger a vida, ento atender o sentido do texto normativo, no qual

    est includo o caso de contaminao, vai contra o prprio propsito do legislador. Questes

    sobre a reao mais justa ou injusta de B reaparecem como: a contaminao realmente pe a

    vida do sedento em risco? A contaminao pode ser curada? Se o sedento j iria morrer de

    qualquer forma, mas a causa mortis foi a contaminao, B deve ser responsvel? Por outro

    lado, a regra pode ser sub-inclusiva, por exemplo, quando B no dispe de gua, mas dispe

    de suco ou comida, casos nos quais, pela justificao da regra, tambm deveria estar obrigado

    a fornec-los.

    Esses conflitos entre regra e sua justificao, chamados por Schauer de experinciasrecalcitrantes, podem ser resolvidos por meio de novas generalizaes que especificam

    melhor as condies de aplicao das regras. Por exemplo, a no ser que a gua esteja

    contaminada, obrigatrio oferece-la ao moribundo sedento. Tais qualificaes, entretanto,

    tm limites. A nova condio introduzida deve ser relevante com relao justificao da

    regra. A qualificao de uma propriedade ou condio como relevante, por exemplo, uma

    deciso sobre ser ou no a cor da pele do moribundo relevante para a justificao da

    obrigao de fornecer gua complexa e envolve uma srie de valoraes e tomadas deposio ideolgica do intrprete que vo depender de suas preferncias, crenas e seu senso

    do que justo.

    Para nos aproximarmos da prtica jurdica, o direito antitruste norte-americano contm

    um ilustrativo exemplo de conflito entre regra e justificao39. A Seo 2 do Sherman Act

    probe qualquer ato que constitua uma tentativa de monopolizao. Um estatuto posterior, o

    Clayton Act, probe, na Seo 7, qualquer aquisio de empresa que possa reduzir

    substancialmente a competio ou tender a criar um monoplio. O propsito ou motivodessa regulao proteger a competio no mercado, que, por sua vez, serve propsitos

    ulteriores com eficincia produtiva e o bem estar dos consumidores.

    Suponha ento que exista um mercado com apenas dois agentes que pretendem se

    fundir e que a firma a ser adquirida est em processo de falncia, de forma que encerrar suas

    38 Cf. SCHAUER, Frederick. Playing by the Rules: A Philosophical Examination of Rule Based Decision-

    Making in Law and in Life. Oxford: Clarendon Press, 1991.39 O exemplo tratado com mais detalhe como aplicao da lgica de refinamento de sistemas normativos parasoluo de conflitos entre regra e justificao da regra em um modelo de inteligncia artificial para o direito emMARANHO, Some operators for Refinement of Normative Systems, op. cit.

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    atividades se no for adquirida. Essa aquisio pode ou no pode ser levada a cabo de acordo

    com a regulao acima?

    Nos termos da regra se a aquisio leva ao monoplio ento proibida e no

    relevante se a firma adquirida est em falncia ou no. Todavia, a teoria econmica mostra

    que se a firma est falindo, sua aquisio no prejudica a concorrncia, pelo contrrio,

    beneficia a eficincia produtiva do mercado, mantendo ativos produtivos que, caso contrrio,

    seriam perdidos. Ento, o intrprete enfrenta um conflito entre preferir a ao que necessria

    para satisfazer explicitamente o estatuto, mas que frustra o propsito da lei antitruste (omitir a

    aquisio) e a ao que parece atender aos propsitos da legislao antitruste (adquirir a firma

    falida).

    Esse conflito entre leis e poltica antitruste de fato ocorreu e foi solucionado pelascortes norte-americanas pelo que ficou conhecido como a doutrina da firma falida (failing

    firm doctrine). A primeira deciso inovadora foi exarada no caso International Shoe Co.

    versus FTC40, quando a Suprema Corte norte-americana sustentou que a aquisio de uma

    firma em falncia no viola a Seo 7 do Clayton Act41, o que significa que se a firma

    adquirida est em falncia, uma aquisio que tenda a criar monoplio permitida. Essa

    interpretao seguida pelas cortes motivou a emenda Celler-Kefauver, de 1950.

    Posteriormente, seguindo a interpretao da Suprema Corte no caso Citizen Publishing Co.versus United States42, novas propriedades ou condies relevantes foram adicionadas pela

    jurisprudncia, tais como a habilidade da firma em falncia de se reorganizar com sucesso

    e a existncia de um comprador alternativo vivel com menos risco anticompetitivo, que

    agora so excees soluo fornecida pela doutrina da firma falida.

    Nota-se, nesses casos de conflito entre regra e sua justificao, que no h

    propriamente uma dificuldade com relao linguagem na qual a regra foi formulada. O caso

    de falncia est claramente solucionado, pois o legislador no o considerou relevante para aproibio do monoplio. A questo que a regra vista como injusta, para uma determinada

    atribuio de inteno ao legislador e para uma determinada anlise econmica das

    conseqncias da aquisio. Em seguida, a prpria generalizao que reforma a regra na

    emenda Celler-Kefauver sofre excees, porque tambm vista como inadequada para

    determinados casos. Tais hipteses no podem ser eliminadas, independentemente da preciso

    em que a linguagem formulada ou do grau de determinao da soluo normativa oferecida,

    40 280 U.S.291,302-303, 1930.41 ABA,Antitrust Law Developments 4th ed., 1997, p.338.42 394 U.S., 131, 138-139, 1969.

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    ainda que se faa um elenco com dezenas de condies consideradas relevantes. Ou seja, as

    experincias recalcitrantes no podem ser superadas.

    A indeterminao surge em funo de uma apreciao da justia da norma jurdica.

    Exatamente porque a inteno do legislador no um estado mental particular que possa ser

    investigado objetivamente, mas , antes, uma criao ou reconstruo do interprete a partir de

    regras de uso e pautas morais ou de polticas pblicas compartilhadas na comunidade, que lhe

    permite realizar inferncias (no dedutivas) sobre o que seria mais coerente admitir como

    propstio da lei, a indeterminao tem a ver, antes, com uma avaliao do intrprete sobre a

    justia da soluo normativa oferecida pela rega.

    Por essa razo, Zitelman chama de lacunas esprias os casos em que o intrprete

    aponta uma condio supostamente relevante que no teria sido prevista expressamente pelolegislador. Da mesma forma, Alchourrn e Bulygin, chamam tais lacunas de axiolgicas, pois

    o caso est, de fato, solucionado normativamente e a lacuna somente apareceria em uma

    descrio de qual deveria ser a soluo mais justa e no em uma descrio de qual foi, de fato,

    a soluo estipulada pelo legislador43.

    4.4. No

    Os exemplos analisados acima trazem casos de complexidade, vagueza e adequao inteno com relao comunicao normativa. Exemplos semelhantes de indeterminao

    lingstica tambm so encontrados na comunicao ordinria e so satisfatoriamente

    resolvidos. Porm o que significa uma soluo satisfatria para uma questo de justia? O

    problema no diz respeito ao contedo do ato de fala, mas ao propsito da comunicao. Ou

    seja, mesmo que se empreguem recursos lingsticos para reduzir a indeterminao, como

    vimos no caso de definio estipulativa para eliminar vagueza e no caso de conflito entre

    sentena e inteno, aquilo que no discurso ordinrio poderia ser considerado umacomunicao objetiva, potencialmente indeterminada em uma comunicao normativa.

    Isso porque a fonte de indeterminao no propriamente uma insuficincia da

    linguagem no qual a regra articulada, mas o dissenso (insolvel do ponto de vistazettico,

    mas tratvel do ponto de vista dogmtico) sobre o que certo ou errado, justo ou injusto que o

    ato de comunicao normativa busca resolver, mas que pode vir novamente tona em

    43 A distino entre lacuna autntica (echte), i.e. a situao de ausncia de uma soluo a partir do conjunto denormas vigentes e lacuna espria (unechte), i.e. presena de uma soluo normativa considerada falsa ouinsatisfatria foi introduzida por Zitelman (Lcken im Recht, Leipzig, 1903). Essa noo foi refinada emALCHOURRN; BULYGIN, op. cit.

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    determinados casos. Por essa razo, a interpretao jurdica no pode ser considerada objetiva,

    a no ser que se resolva com objetividade a questo sobre o que a justia.

    Nesse quadro, no defendemos que as normas jurdicas so sempre indeterminadas

    (tese difcil de sustentar tendo em vista que o direito em grande parte dos casos cumpre com

    sucesso sua funo de regular a conduta humana), mas que so potencialmente

    indeterminadas, naqueles casos em que questes de justia so suscitadas ou ressuscitadas. A

    existncia de uma soluo correta para a indeterminao uma outra questo, que pressupe a

    ausncia de objetividade, e que no ser objeto da presente discusso. Pode-se assumir,

    todavia, que propostas de interpretao podem estar mais ou menos justificadas e ser

    racionalmente avaliadas em termos de sua coerncia ou estrutura de argumentao44.

    5. A RACIONALIZAO DA NOO DE JUSTIA NA INTERPRETAO

    Vimos acima como a especulao sobre o justo e o injusto irrompem na atividade de

    interpretao dogmtica, diante de problemas como vagueza, complexidade e conflito entre

    regra expressa e a inteno do legislador. Examinemos a seguir como essa dificuldade, que

    pode induzir uma especulao filosfica interminvel, racionalizada e tratada pela

    dogmtica jurdica, tendo em vista a decidibilidade de conflitos.

    Nas teorias jurdicas e polticas, dominantes na atualidade, a justia costuma sertratada nos termos seguintes. No seu aspecto formal, concebida como um valor tico-social

    positivo, em conformidade com o qual, em situaes bilaterais normativamente reguladas, se

    atribui uma pessoa aquilo que lhe devido. O conceito de justia formal, assim, um

    instrumento para a comunicao entre os homens, o qual permite que os problemas do

    relacionamento social sejam discutidos racionalmente. Trata-se da idia clssica do suum

    cuique tribuere que exige, porm, um contedo concreto, a determinao, atravs de critrios,

    daquilo que devido. A conformidade ou desconformidade com os critrios para determinaraquilo que devido e a quem problema que se refere ao aspecto material da justia.

    44 Tambm no se assume aqui qualquer postura sobre a concepo do que o direito: as pautas morais podemser consideradas parte necessria (jusnaturalismo), ou contingente (positivismo inclusivista) do sistemanormativo, ou como exerccio de discricionariedade do intrprete (positivismo exclusivista). Sobre a discusso,ver COLEMAN, Jules. The Practice of Principle: in defence of a pragmatist approach to legal theory. Oxford:Oxford University Press, 2001; e os ensaios de FINNIS, John. Natural Law: The Classical Tradition. In:COLEMAN, Jules; SHAPIRO, Scott. The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law . Oxford:Oxford University Press, 2002; MARMOR, Andrei. Exclusive Legal Positivism. In: COLEMAN, Jules;

    SHAPIRO, Scott. The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law. Oxford: Oxford UniversityPress, 2002; eHIMMA, Kenneth Eimar. Inclusive Legal Positivism. In: COLEMAN, Jules; SHAPIRO, Scott. The Oxford

    Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law. Oxford: Oxford University Press, 2002.

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    Os critrios, de acordo com os quais decidido sobre aquilo que devido a algum,

    so freqentemente formulados com base em concepes metafsicas. Ora, isto nos

    conduziria, ao tratarmos da questo da justia material, a um exame daqueles critrios e das

    suas diversas formulaes, bem como da pretenso de se encontrar um critrio, seno nico,

    ao menos determinante dos demais. No este, porm, o caminho que desejamos seguir.

    Interessa-nos o papel, mais ou menos relevante, desempenhado, na comunicao normativa,

    pela justia material e de seus critrios em face da justia formal.

    Na tradio da cultura ocidental, desde a antiguidade, observa-se, nas discusses sobre

    a justia, uma disposio em reconhecer-se que os contedos justos so difceis de serem

    determinados, provocando o desalento dos relativismos e o desencontro das disputas

    infindveis. Assim, por exemplo, Aristteles, embora acreditasse na possibilidade deesclarecer o que era a justia, no negava a grande dificuldade que sentia em determinar, a

    partir de premissas gerais, o justo concreto45.

    No livro V da tica a Nicmaco, ele cuida da justia, ressaltando seus aspectos

    formais. Sendo a virtude da proporcionalidade, a noo de justia tratada conforme a

    proporo aritmtica e geomtrica. Nestes termos, a distino divulgada pela escolstica entre

    justia comutativa e distributiva fez escola e marcou profundamente as concepes

    posteriores. A igualdade parecer ser, nestes termos, o cerne da justia. As disputas em tornodos contedos quem e o que deve ser igual a quem e a que no diminuem jamais esta

    crena inabalvel no equilbrio proporcional como um princpio de racionalizao dos

    conflitos. Esta relao entre justia e racionalidade importante. Afinal, inegvel que, na

    tradio cultural do Ocidente, os princpios de justia, tanto formais quanto materiais, foram,

    via de regra, considerados como encarnaes da razo.

    Os princpios de justia material no chamado direito natural racional (jusnaturalismo)

    so uma explicitao patente desta idia. A razo para a justia o seu princpio regulador (eno constitutivo, para usar a terminologia kantiana), pois o homem assumido como um ser

    racional no no sentido de que aja racionalmente com justia, mas de que pode e deve agir

    desta maneira.

    Como valor positivo, a racionalidade, em oposio ao valor negativo da

    irracionalidade, conjuga-se, no Ocidente, com o valor positivo da justia (e,

    conseqentemente, com o valor negativo da injustia). Assim, do mesmo modo que os

    princpios da razo ora presidem a forma de justificar corretamente o juzo avaliativo ora o

    45 Cf. ARISTTELES. thique Nicomaque. Trad. J. Tricot. Paris: Vrin, 1950, I, 1, 1094 b 20-23.

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    contedo do agir corretamente (retrica, prudncia), podemos, analogicamente, falar, na

    correta distribuio dos bens, em racionalidade formal e justia formal, de um lado, e

    racionalidade material e justia material, de outro.

    Isso significa que, em regra, o princpio da igualdade nuclear para a justia formal

    oferece uma medida racional para a repartio do que cabe a cada um nas relaes bilaterais.

    Num primeiro momento, importante o aspecto formal da igualdade (proporo), que se

    afirma de modo precedente ao que caiba a cada um ou ao que possa vir a ser determinado

    como algo que deva ser repartido. Trata-se da percepo da justia como uma questo de

    justeza. Por exemplo, em sede de direito civil, o pagamento de perdas e danos efeito da

    obrigao de indenizar, que nasce com um inadimplemento imputvel. Para recorrer a um

    aforismo clssico, trata-se de recolocar a vtima na situao em que se encontraria se oprejuzo no tivesse sido produzido. Essa recolocao da vtima tem a ver com a justeza da

    medida correspondente46. Assim, na mencionada fixao de perdas e danos (Cdigo

    Civil/2002, art. 402), o juiz, ao interpretar a justa retribuio, se encontra diante da tarefa

    delicada: no recair nem numa reparao insuficiente que no indeniza totalmente a vtima,

    nem numa reparao excessiva que atribuir, para alm do dano sofrido, um verdadeiro

    benefcio47.

    J os diversos princpios da justia material, a cada qual conforme suasnecessidades, ou seu papel social, ou a contribuio do seu trabalho para o bem de todos

    etc., constituem determinaes que nos do, presumidamente, a premissa racional para a

    identificao daquilo que deva ser repartido proporcionalmente e a quem. a percepo da

    justia como senso do justo, como um valor padro, a partir do qual se entendem (e a se

    relativizam) os demais valores: por exemplo, o reconhecimento da dignidade da pessoa

    humana como sentido nuclear da justia. o caso das exigncias de justia social, em que,

    por exemplo, o salrio no h de ser mera retribuio pelo equivalente trabalho, mas algo quemantenha a dignidade humana, ainda que custa da mera remunerao do capital.

    Tomando-se o direito como imposio normativa de uma ordem de distribuio, a

    organizao do universo jurdico, conforme os princpios da justia admite duas

    possibilidades tipolgicas que podemos denominar sistema formal e sistema material.

    O primeiro um tipo que organiza o conjunto das normas vigentes como uma relao

    que vai do genrico ao particular, conforme graus de generalidade. Veja-se, por exemplo, a

    46 Ver CASTANEHIRA NEVES, op. cit.47 Por isso a remisso ao art. 944, que indica: em linha de princpio, o dano deve ser integralmente indenizado,isto no deve ser indenizado a mais nem a menos (MARTINS-COSTA, op. cit., p. 324).

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    relao entre lei e sentena. Esta ordem justa na medida em que consegue delimitar,

    conforme o princpio da igualdade, as correspondentes competncias da autoridade jurdica.

    Generalidade significa extenso normativa, sendo geral a norma que se dirige,

    proporcionalmente, ao maior nmero de sujeitos: a justia como igualdade de todos perante a

    lei. J a sentena norma individual, limitada ao caso concreto. A justia da ordem est na

    razo da delimitao da competncia da autoridade como condio da autonomia dos sujeitos

    e de sua igualdade perante a lei, no importa, primariamente, quais sejam os seus contedos.

    O segundo tipo organiza o conjunto das normas vigentes como uma relao uniforme

    que vai do universal ao especfico, conforme graus de universalidade. Universalidade

    significa intenso normativa, sendo universal a norma que abarca, na sua abstrao, a maior

    amplitude de contedo. Assim, a ordem justa na medida em que consegue delimitar oscontedos normativos, conforme um princpio material abrangente de incluso ou excluso.

    Aqui a eleio de um princpio gera, conhecidamente, diversos posicionamentos, ora falando-

    se em bem comum, ora em necessidades vitais, ora em respeito dignidade do homem, ou

    como cidadania, ou como desgnio divino etc. A justia desta ordem est na razo da

    delimitao dos contedos normativos a partir de um critrio de supremacia, no importa a

    competncia da autoridade ou o grau da autonomia de ao de um sujeito em face de outro.

    Donde o reconhecimento como justa de uma ordem que se organiza mediante um elenco dedireitos e valores fundamentais materiais (vida, propriedade, liberdade, segurana, igualdade)

    e nele se baseia.

    Essa dupla possibilidade de sistematizao, centrada e fundamentada na percepo da

    justia como tema nuclear do direito, repercute na atividade hermenutica jurdica e se

    manifesta na reconstruo do ordenamento em nome do legislador racional, ora enfocando a

    justia comojusteza, ora como o senso dojusto.

    Na verdade, a hiptese do legislador racional no isenta de uma tomada de posioideolgica, que se baseia no modo como se atribui relevncia aos valores principais do

    sistema normativo (ideologia como valorao e hierarquizao de valores). Essa ideologia,

    implcita na atividade hermenutica, pode ser esttica ou dinmica48. Ela esttica, quando a

    hiptese do legislador racional favorece valores como a certeza, a segurana, a previsibilidade

    e a estabilidade do conjunto normativo. Ela dinmica, quando favorece a adaptao das

    normas, a operacionalidade das prescries normativas.

    48 Cf. DASCAL, Marcelo.Interpretao e compreenso.So Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 375.

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    Esse dilema, decidido pelo intrprete, traduz uma escolha tica dentro de um conflito

    fundamental entre fazer aquilo que correto e aquilo que bom, que dentro da filosofia moral

    se expressa na diviso entre teorias deontolgicas e teleolgicas. As teorias ticas

    deontolgicas correspondem ao ideal hebreu de vida humana consistente em agir

    corretamente segundo as leis e princpios morais, nas quais as idias de dever e correo

    (justia formal) so os temas centrais. As teorias ticas teleolgicas correspondem ao ideal

    grego de vida humana, consistente na tentativa de satisfao de determinados fins

    considerados bons, nas quais a idia de bem (justia material) constitui o tema central49.

    Como ressalta, alis, Bulygin, no prprio recurso ao legislador racional reside uma

    determinada ideologia poltica segundo a qual somente ao poder legislativo, como

    representante do povo, cabe a determinao das solues prvias para os conflitos dentro deuma comunidade, no sendo dado nem ao juiz, muito menos ao jurista (com uma funo

    meramente terica) modific-las50. Por meio desse instrumental, a dogmtica jurdica exerce

    um astuto poder paralelo, verdadeiro poder de violncia simblica, atravs do qual controla

    e uniformiza o ordenamento51.

    No exerccio desse para-poder, a dogmtica afasta possveis justificaes para aes

    como meramente subjetivas, relevando outras como objetivas e imediatamente

    decorrentes da vontade do legislador, i.e. como aponta Vernengo, atua com o nico propsitoprtico de restringir os critrios de deciso e eliminar solues normativas possveis52. Vale

    dizer, a interpretao dogmtica reduz a indeterminao inerente do sistema normativo, por

    meio de valoraes prprias, mas como se estas decorressem de um esforo cientfico de

    identificao do seu sentido real e, dessa forma, cumpre sua funo de domesticar o

    sentido das normas53.

    6. A PRAGMTICA DA JUSTIA: CDIGOS FORTES E FRACOS

    49 Ver ROSS, William David. The Right and the good. Oxford: Oxford University Press, 1930; e ROSS, WilliamDavid. Foundations of Ethics. Oxford: Oxford University Press, 1939; ou, ento, ROSS, William David.Fundamentos de tica. Buenos Aires: Eudeba, 1963.50 Cf. BULYGIN, Eugnio. Legal Dogmatics and the Systematization of Law. In: ECKHOFF, Torstein;FRIEDMAN, Lawrence; UUSITALO, Jyrki (Hrsg.). Rechtstheorie Vernunft und Erfahrung im Rechtsdenkender Gegenwart / Reason and Experience in Contemporary Legal Thought, Berlin, n. 10, p. 193-210, 1986, p.204.51 Cf. FERRAZ JUNIOR,Introduo ao estudo do direito, op. cit, p. 283.52 Cf. VERNENGO, Roberto Jos. Systematization in Legal Dogmatics and Judicial Decisions. In: ECKHOFF,

    Torstein; FRIEDMAN, Lawrence; UUSITALO, Jyrki (Hrsg.). Rechtstheorie Vernunft und Erfahrung imRechtsdenken der Gegenwart / Reason and Experience in Contemporary Legal Thought, Berlin, n. 10, p. 230-239, 1986, p. 235.53 Cf. FERRAZ JUNIOR,Introduo ao estudo do direito, op. cit, p. 307-308.

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    Na racionalizao dos conflitos, os critrios formais da justia representam, em

    oposio aos critrios materiais, um cdigo forte: isto , se considerarmos um cdigo,

    genericamente, como um sistema articulado de smbolos, as idias do suum cuique tribuere,

    da proporcionalidade aritmtica e geomtrica, do tratar igualmente os iguais e desigualmente

    os desiguais, constituem articulaes relativamente unvocas, com um s sentido para as suas

    prescries. Ao contrrio, os critrios materiais da justia representam um cdigo fraco; isto

    , idias como o justo o que serve vida, justia o amor caridoso pelos que nada tm,

    justia o respeito ordem social criada por Deus, justia o que satisfaz aos interesses da

    classe proletria, constituem articulaes vagas e ambguas, com dubiedade para as suas

    determinaes.

    Cdigos fortes permitem um sentido unvoco de orientao. A forma de viol-los ,em princpio, neg-los. Assim, a prescrio da igualdade proporcional violada na medida em

    que se estabelea uma desproporo (ou h igualdade ou h desigualdade). Cdigos fracos, ao

    contrrio, permitem sentidos ambguos e vagos de orientao, entendendo-se por ambigidade

    a impreciso conotativa (impreciso do conceito) e por vagueza a impreciso denotativa

    (quais os objetos alcanados pelo conceito).