(Frei Betto) a Religião Do Consumo

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Religião do consumo

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO PARANESCOLA DE EDUCAO E HUMANIDADESCultura Religiosa.Prof. Carlos Renato Moiteiro

A RELIGIO DO CONSUMO

O "Financial Times", de Londres, noticiou que a Young & Rubicam, uma das maiores agncias de publicidade do mundo, divulgou a lista das dez grifes mais reconhecidas por 45.444 jovens e adultos de 19 pases. So elas: Coca-Cola (35 milhes de unidades vendidas a cada hora), Disney, Nike, BMW, Porsche, Mercedes-Benz, Adidas, Rolls-Royce, Calvin Klein e Rolex."As marcas so a nova religio. As pessoas se voltam para elas em busca de sentido", declarou um diretor da Young & Rubicam. Disse ainda que essas grifes "possuem paixo e dinamismo necessrios para transformar o mundo e converter as pessoas em sua maneira de pensar".A Fitch, consultoria londrina de design, no ano passado realou o carter "divino" dessas marcas famosas, assinalando que, aos domingos, as pessoas preferem o shopping missa ou ao culto. Em favor de sua tese, a empresa evocou dois exemplos: desde 1991, cerca de 12 mil pessoas celebraram npcias nos parques da DisneyWorld, e esto virando moda os fretros da marca Halley, nos quais so enterrados os motoqueiros fissurados em produtos Halley-Davidson.A tese no carece de lgica, Marx j havia denunciado o fetiche da mercadoria. Ainda engatinhando, a Revoluo Industrial descobriu que as pessoas no querem apenas o necessrio. Se dispem de poder aquisitivo, adoram ostentar o suprfluo. A publicidade veio ajudar o suprfluo a se impor como necessrio.A mercadoria, intermediria na relao entre seres humanos (pessoa-mercadoria-pessoa), passou a ocupar os plos (mercadoria-pessoa-mercadoria). Se chego casa de um amigo de nibus, meu valor inferior ao de quem chega de BMW. Isso vale para a camisa que visto ou para o relgio que trago no pulso. No sou eu, pessoa humana, que fao uso do objeto. o produto, revestido de fetiche, que me imprime valor, aumentando a minha cotao no mercado das relaes sociais. O que faria um Descartes neoliberal declarar: "Consumo, logo existo". Fora do mercado no h salvao, alertam os novos sacerdotes da idolatria consumista.Essa apropriao religiosa do mercado evidente nos shopping centers, to bem criticados por Jos Saramago em "A Caverna". Quase todos possuem linhas arquitetnicas de catedrais estilizadas. So os templos do deus mercado. Neles no se entra com qualquer traje, e sim com roupa de missa de domingo. Percorrem-se os seus claustros marmorizados ao som do gregoriano ps-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Ali dentro tudo evoca o paraso: no h mendigos nem pivetes, pobreza ou misria. Com olhar devoto, o consumidor contempla as capelas que ostentam, em ricos nichos, os venerveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode pagar vista se sente no cu; quem recorre ao credirio, no purgatrio; quem no dispe de recurso, no inferno. Na sada, entretanto, todos se irmanam na mesa "eucarstica" do McDonald's.A Young & Rubicam comparou as agncias de publicidade aos missionrios que difundiram pelo mundo religies como o cristianismo e o islamismo. "As religies eram baseadas em idias poderosas que conferiam significado e objetivo vida", declarou o diretor da agncia inglesa.A f imprime sentido subjetivo vida, objetivando-as na prtica do amor, enquanto um produto cria apenas a ilusria sensao de que, graas a ele, temos mais valor aos olhos alheios. O consumismo a doena da baixa auto-estima. Um So Francisco de Assis ou Gandhi no necessitava de nenhum artifcio para centrar-se em si e descentrar-se nos outros e em Deus.O pecado original dessa nova "religio" que, ao contrrio das tradicionais, ela no altrusta, egosta; no favorece a solidariedade, e sim a competitividade; no faz da vida dom, mas posse. E o que pior: acena com o paraso na Terra e manda o consumidor para a eternidade completamente desprovido deste lado da vida.A crtica do fetiche da mercadoria data de oito sculos antes de Cristo, conforme este texto do profeta Isaas: "O carpinteiro mede a madeira, desenha a lpis uma figura, trabalha-a com o formo e aplica-lhe o compasso. Faz a escultura com medidas do corpo humano e com rosto de homem, para que essa imagem possa estar num templo de cedro. (...) O prprio escultor usa parte dessa madeira para esquentar e assar seu po; e tambm fabrica um deus e diante dele se ajoelha (...) e faz uma orao, dizendo: 'Salva-me, porque tu s o meu deus!'" (44,13-17).Da religio do consumo no escapa nem o consumo da religio, apresentada como um remdio miraculoso, capaz de aliviar dores e angstias, garantir prosperidade e alegria. Enquanto isso, "Ele tem fome e no lhe do de comer" (Mateus 25, 31-40).

BETTO, Frei [Carlos Alberto Libneo de Christo]. A religio da modernidade. Cincia e F, ano 2, n. 29, abr. 2001.