Frei Bartolomé de Las Casas: A Teologia, as leis e o amor ... · Suas ações a favor dos índios...

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UNIVERSIDADE GAMA FILHO VICE-REITORIA ACADÊMICA CURSO DE HISTÓRIA Frei Bartolomé de Las Casas: A Teologia, as leis e o amor cristão em defesa dos naturais da América. MONOGRAFIA Rio de Janeiro 2010.2

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UNIVERSIDADE GAMA FILHO

VICE-REITORIA ACADÊMICA

CURSO DE HISTÓRIA

Frei Bartolomé de Las Casas: A Teologia, as leis e o amor

cristão em defesa dos naturais da América.

MONOGRAFIA

Rio de Janeiro

2010.2

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UNIVERSIDADE GAMA FILHO

VICE-REITORIA ACADÊMICA

CURSO DE HISTÓRIA – UNIDADE CANDELÁRIA

Frei Bartolomé de Las Casas: A Teologia, as leis e o amor

cristão em defesa dos naturais da América.

MONOGRAFIA

Trabalho em exigência da disciplina

CSO –535. Apresentado ao Departamento de

História UGF, para obtenção do grau de

Bacharelado.

Por Andrey de Castro Sahdo

Professora Orientadora: Márcia Cavalcanti

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Aos que morreram lutando por sua terra

Aos que morreram por injustiça

Aos que lutam contra ela onde quer que estejam

Aos que padecem de fome e miséria.

Esta é a mais pura e verdadeira realidade.

Frei Bartolomé de Las Casas (1484-1566).

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Agradecimentos

Este trabalho só foi possível graças à ajuda de diferentes pessoas, que de forma

direta ou indireta, contribuíram para a realização desse projeto.

Aos meus pais, familiares, amigos e colegas de faculdade que estão comigo

desde o começo dessa caminhada. A minha namorada Patrícia Arká, por toda paciência

e compreensão e ao meu primo Yke Leon por toda ajuda. Aos professores, que

contribuíram com a elaboração do projeto com seus comentários e indicações

bibliográficas. A minha querida orientadora, professora Márcia Cavalcanti, por todo o

carinho, paciência e respeito que teve comigo.

Aos meus avós, Walmira e Miguel, minha eterna gratidão.

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FICHA CATALOGRÁFICA.

SAHDO, Andrey de Castro.

Frei Bartolomé de Las Casas; A Teologia, as leis e o amor cristão em defesa dos naturais da América./ Andrey de Castro Sahdo. - - Rio de Janeiro: UGF/ Universidade Gama Filho, 2010.

Orientadora: Márcia Cavalcanti

Monografia – Universidade Gama Filho, candelária, 2010.

1- História. 2 – Bartolomé de Las Casas. 3 – Colonização Espanhola. I - CAVALCANTI, Marcia. II – Universidade Gama Filho. Faculdade de História. III – Frei Bartolomé de Las Casas: A Teologia, as leis e o amor cristão em defesa dos naturais da América.

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Resumo

O trabalho pretende analisar a Conquista Espanhola da América, pela visão do

Frei Dominicano Bartolomé de Las Casas. Este, que foi testemunha dos maus tratos e

demais atos de violência cometidos pelos militares espanhóis contra os nativos do Novo

Mundo. Sua dedicação em defender os índios o levou a mais alta das instâncias

jurídicas; uma audiência com o rei espanhol, e, na seqüência, com o Real Conselho de

juristas e teólogos, para debater os assuntos referentes as colônias das Américas.

Interpelou as mais diversas autoridades, objetivando que a Espanha revisse o sistema

colonial implantado, e, também, as mortes de índios inocentes. Sua mais árdua batalha

será contra Juan Ginés de Sepúlveda, defensor da colonização pela visão de Aristóteles.

Frei Bartolomé de las Casas foi, sem dúvida, um dos grandes nomes do século XVI, e,

sua tentativa de humanizar a América será retratada por nós neste trabalho.

Resumen

El presente trabajo tiene como objetivo investigar la conquista española de la

América a través de la visión del frei dominicano Bartolomé de Las Casas. Frei Las Casas

es el testimonio de los abusos y de otros actos de violencia hechos por los españoles contra

los índios del Nuevo Mundo. Su dedicación à la defensa de estos índios lo ha llevado hasta

el más alto ámbito jurídico: una audiencia con el rey español y, luego después, con el Real

Consejo de juristas y teólogos, para debatir las cuestiones relativas a las colonias

americanas. También ha desafiado las más distintas autoridades a reconsiderar el sistema

colonial establecido y a detener las muertes de los índios inocentes. Su batalla más dura

será contra Juan Ginés de Sepúlveda, defensor de la colonización por la visión de

Aristóteles. Frei Bartolomé de las Casas fue, sin duda, uno de los grandes nombres del siglo

XVI, y su intento de humanizar la América será estudiado en este trabajo por nosotros.

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Sumário

CURSO DE HISTÓRIA....................................................................................................... 1

CURSO DE HISTÓRIA – UNIDADE CANDELÁRIA.....................................................2

PARECER DA BANCA EXAMINADORA.............................................................. 5 _________________________________________________................................. 5

FICHA CATALOGRÁFICA.............................................................................................6 Introdução........................................................................................................................... 10

Capitulo 1............................................................................................................................ 12

Navegar é preciso: Cristóvão Colombo, Las Casas e o “descobrimento” da América. . 12

Capitulo 2............................................................................................................................ 22

A América subjugada..........................................................................................................22

Capitulo 3............................................................................................................................ 35

A América sonhada: Sucessos e fracassos de Las Casas.................................................. 35

Bibliografia......................................................................................................................... 49

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Introdução

O trabalho pretende analisar o sistema colonial espanhol implantando na

América, pela visão do Frei Dominicano Bartolomé de Las Casas. Las Casas

testemunhou boa parte da conquista espanhola, chegando inclusive a participar de

algumas dessas expedições, como a de Cuba, por exemplo. Entretanto, sua vida de

encomendeiro nas ilhas da América tomariam um rumo bem diferente do imaginado por

ele. Ao chegar ao Continente Americano, o então padre Bartolomé de Las Casas, da

inicio às suas tarefas de encomendeiro, mas precisamente em Concepcion de La Veja.

Desde cedo, devido a sua formação de padre, tentava tratar seus servos nativos de

acordo com as leis de Deus, sem tirar deles mais que o necessário para o trabalho em

suas terras. Diferente de seus compatriotas, que exigiam e utilizavam a mão de obra

nativa ao máximo. Isso gerou uma série de mortes indígenas, provocadas pelas

exaustivas horas de trabalho escravo, seja nas minas, nos campos e na pesca,

principalmente na extração das ostras. A chegada dos dominicanos à Ilha de Espanhola

em 1510 e o famoso sermão de Frei Antonio de Montesinos ajudaram a acelerar em Las

Casas suas dúvidas e questionamentos sobre o sistema colonial implantado.

No ano de 1514, Las Casas abandona seus bens, suas terras e escravos,

dedicando-se à defesa dos nativos da América. Suas ações a favor dos índios chegaram

a mais alta das instancias jurídicas; uma audiência real com a presença do rei e do Real

Conselho das Índias, órgão que controlava as colônias espanholas em todo o território

americano. Até os últimos dias de sua vida, Las Casas defendeu os nativos como sendo

os verdadeiros donos daquelas terras, tendo em Juan Ginés de Sepúlveda seu maior

opositor em relação aos direitos dos índios da América, gerando em Valladolid sua

disputa mais intensa a favor dos nativos.

Para a realização deste trabalho, analisamos os escritos de Las Casas,

endereçados ao rei Felipe II da Espanha, descrevendo os maus tratos e o sistema

colonial implantado. Analisamos dois relatos referentes às invasões espanholas nos

territórios americanos, um foi a conquista do Império Asteca por Hernan Cortes, e o

outro relato refere-se a Francisco Pizarro, conquistador do Império Inca. Breve Relación

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de la destruccion de las Índias Occidentales, presentada à Felipe II sendo príncipe das

Astúrias. Por Don Fray Bartolomé De Las Casas, Del orden de predicadores, O bispo

de Chiapa, chega ao Brasil com o titulo de O Paraíso Destruído pela editora L&PM.

Além dos relatos de Las Casas, estão presentes também no nosso trabalho as obras de

Theodor De Bry, retratando em imagens a descrição do que ele, Bartolomé de Las

Casas, presenciou em território americano.

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Capitulo 1

Navegar é preciso: Cristóvão Colombo, Las Casas e o

“descobrimento” da América.

Em 12 de Outubro de 1492, Cristóvão Colombo chega ao que mais tarde

chamaríamos de América. Colombo nasce em Genova, Itália, no ano de 1451. De

acordo com Andrés Bernaldez, cronista dos reis católicos e amigo intimo do navegador,

a morte de Colombo ocorre aos 70 anos de idade. Sendo o ano de seu nascimento o de

1436, podemos dizer, então, que seu falecimento deu-se no ano de 1506, em terras

espanholas (Valladolid).

Quais foram os motivos que levaram Colombo e os reis da Espanha a investirem

nesse empreendimento? Em sua contribuição para a pesquisa do professor Leslie

Bethel, dedicado ao estudo da América Latina colonial, o pesquisador John H. Elliott

nos descreve três fatores que mesmo sem termos a precisão, se apresentam como as

principais causas. A falta de metais preciosos, a expansão de seus territórios e a

necessidade de alcançar outros povos para implantar a fé cristã, são os que se

apresentam de forma mais clara para nós. “A missão divina de eliminar os últimos

resquícios do domínio mouro e de purificar a Península de quaisquer elementos de

contaminação, um prelúdio da difusão do evangelho aos recantos mais longínquos da

terra” (ELLIOTT 2008, pág 144). A coroa estava debilitada com a falta de metais

preciosos, o motivo dessa escassez foi a chamada Guerra da Reconquista. Tendo que

financiar as expedições cristãs militares em sua marcha para a expulsão dos mouros do

território espanhol, a coroa se encontrava em déficit, além de não possuir ouro e prata

para compra de produtos oriundos do comércio com o mediterrâneo. Os reinos cristãos

da Península Ibérica (Portugal e Espanha) seguem em direção ao sul para a expulsão

dos mouros daquelas terras, em uma luta bem clara do cristianismo contra o Islã ou os

infiéis.

Na verdade o que impulsionou a Guerra da Reconquista foi a expansão do

cristianismo e a busca por novas terras, assim como recompensas individuais tais como

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a fama e a honra, estavam em primeiro plano, oferecendo uma oportunidade de lucro e

de aquisição de terras para povoar (ELLIOTT 2008).

“Sem colonização não há uma boa conquista, e se a terra não é conquistada, as

pessoas não serão convertidas. Portanto, o lema do conquistador deve ser colonizar”

(GOMARRA, 1851 apud ELLIOTT 2008, pág 135).

Desta forma, os três motivos citados anteriormente se atrelam: a busca por novas

terras para expandir o poder real dos reis católicos, legitimados pela Santa Igreja

Católica na figura do Papa, autenticando as futuras conquistas.

A tomada dos territórios pelos cristãos só terminou de fato no ano de 1492 com a

conquista de Granada pelos reis católicos; acrescenta-se a expulsão dos judeus e a

confiscação de seus bens em janeiro de 1492. No ano de 1491 o genovês Cristóvão

Colombo convence os reis de Castela para que estes financiassem seu empreendimento,

não da forma como ele queria, já que a contribuição foi bem abaixo do esperado.

Devido aos problemas já citados, a Espanha estava em uma crise monetária com a falta

de ouro, além da incerteza de que Colombo conseguiria concluir seu objetivo, o de

chegar às “Índias Ocidentais”.

Como conta Frei Carlos Josaphat1 (2000), no encontro de Colombo e Isabel,

rainha de Castela, ambos pareciam desfrutar de ambições e desejos iguais, visualizando

uma terra pronta para ser descoberta, conquistada, domada, ou qualquer que seja a ação

necessária para isso.

Nos albores de 1492, dois olhares se cruzam, na conivência festiva de ambições realizadas, e atiçam novos e mais amplos apetites de grandezas, aspirações, previsões e projetos. O audacioso almirante genovês e a ardente soberana de Castela pareciam bailar em um gostoso paraíso virtual de desejos altos e subidos. E se envolvem em uma mística religiosa, que lhes ativa os gestos e aspira uma nova linguagem, sacralizando e açulando a fome de poder, riquezas e prestígios. Visar e conseguir grandes triunfos para si, para seu nome, sua família, com as bênçãos e para maior gloria de Deus. (JOSAPHAT 2000, pág 20).

Para Colombo a hora de sua partida estava cada vez mais próxima, vendo o

entusiasmo dos reis da Espanha na comemoração da tomada de Granada, hasteando as

1Mineiro de Abaeté, o dominicano Frei Carlos Josaphat é professor da Escola Dominicana de Teologia em São Paulo, além de possuir uma extensa formação no exterior. É um dos nomes mais respeitados no Brasil no contexto da América Latina colonial. Com enfoque nos estudos lascasianos, suas obras ao longo de nosso trabalho será de extrema importância para uma análise mais aprofundada da vida e obra de Frei Bartolomé de Las Casas.

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bandeiras de Castela na torre da cidade de Alfambra. O rei mouro saindo acuado em

direção às portas da cidade em um gesto de submissão, beijo-lhes as mãos de vossas

majestades os reis da Espanha (JOSAPHAT 2000).

“Assim, depois de terem expulsado todos os judeus de vossos reinos e domínios, no

mesmo mês de janeiro de 1492, mandaram Vossas Majestades que eu me dirigisse, com

suficiente frota, às referidas regiões das Índias” (COLOMBO 1999, pág 31-32).

Por fim, Isabel, a Católica, autoriza o genovês a se lançar aos mares

desconhecidos, em nome de Deus. Com a autorização dos reis e a legitimação do Papa,

Colombo dá inicio a sua partida.

Conquistar é a palavra. Mas no sentido pleno da conquista, ao menos nesse

instante; conquistar no sentido de descobrir, procurar e ocupar novas terras para a coroa

da Espanha. Neste primeiro instante o objetivo maior era o de descobrir essas terras de

que Colombo e Isabel falavam em seu encontro. A colonização, de fato, só ocorrerá

quando Colombo implantar o primeiro vilarejo de colonos e a partir daí prossegue com

o intuito de encontrar ouro e demais riquezas. Caso conseguisse êxito em sua missão, o

genovês teria 10% das riquezas encontradas nestas terras, sendo nomeado Vice-Rei e

Almirante dos mares do Atlântico, e suas posses passariam a seus filhos de forma direta,

pela hereditariedade.

Foram ao todo quatro viagens do almirante entre a Espanha e a América, sendo

que apenas as duas primeiras merecem destaque neste trabalho. Seguiremos com uma

brevíssima análise do que foram as quatro viagens de Colombo entre a América e a

Espanha, pois será nessas indas e vindas que nosso personagem principal, Bartolomé De

Las Casas, conhecerá as terras do “Novo Mundo”.

Finalmente a 11 de Outubro no ano de 1492, Colombo chega ao que conhecemos

hoje sendo as Bahamas (São Salvador), lugar habitado pelos nativos das tribos

Lucaians, Taínos ou Aruaques.

Dando seqüência a sua exploração, em 28 de outubro deste mesmo ano chega à

ilha de Cuba, que quer dizer lugar ou terra central na língua nativa dos Taínos.

Rumando em direção norte encontrará a ilha de Espanhola, para nós o atual Haiti

-Republica Dominicana. Um acontecimento inesperado fez com que o navegador

genovês tivesse que abandonar parte de seus homens, já que uma de suas caravelas de

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nome Santa Maria encalhou no litoral de Espanhola, forçando Colombo a deixar seus

marinheiros, o que originou o primeiro povoado chamado La Navidad. Levou consigo

na viagem de regresso alguns nativos para a coroa de Castela, mas muitos morreram

durante a viagem. É curioso este contato de Colombo com os índios, pois eles não

dominavam uma língua comum.

A descoberta de Colombo em nome de Castela gerou uma certa preocupação por

parte da rainha, pois era preciso legitimar o feito e nada mais justo do que procurar o

representante divino aqui na terra, ou seja, a figura do Papa. Seguindo o que já fora

concedido a Portugal, pleno controle das terras descobertas na Guine e no Cabo

Borjador, o papa Alexandre VI autenticará a conquista de Castela legitimando esse feito.

Merece destaque também dois tratados regulamentados pelo Papa Alexandre VI.

O primeiro deles chama-se a Bula inter coetera que seguia da seguinte forma: Portugal

ficaria com as terras a 100 léguas na direção Leste e a Espanha com as mesmas 100

léguas a direção Oeste. Mas os portugueses rejeitaram esse acordo alegando que se

fosse dessa maneira, com o meridiano traçado a Oeste de Cabo Verde, Portugal ficaria

sem terras na América. Para alguns historiadores, essa negação portuguesa mostra que

Portugal já tinha conhecimento de terras na América antes da chegada de Colombo

(ELLIOTT 2008, pág 147).

Por fim, em 1494 um novo tratado é realizado. Elaborado na cidade de

Tordesilhas, este novo acordo traria novas medidas para os dois paises. Portugal e

Espanha deixariam de ter 100 léguas e passariam a 370. Deste modo, as terras a Oeste

de Cabo Verde pertenciam à coroa espanhola e as terras a Leste à coroa portuguesa.

Notamos então que a questão do índio como soberano dessas terras nem sequer foi

mencionada.

Será na segunda viagem de Colombo que o então jovem Bartolomé de Las Casas

vai ter seu primeiro contato com o genovês, através de seu pai, que embarca junto com

o almirante para se aventurar naquelas terras.

Na terceira e quarta viagem o navegador já não gozava de tanto prestígio. Não

conseguindo chegar a seu objetivo, as Índias Orientais, tendo descoberto apenas novas

ilhas, como a Jamaica e Trinidad. Em sua segunda viagem navegou por diversas ilhas da

América Central, se contextualizarmos com os dias atuais seriam as ilhas de Porto Rico,

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Antilhas, Martinica e Jamaica. E por fim regressou à Espanhola, onde tinha deixado

aproximadamente 39 homens lhe esperando.

Para sua surpresa ao regressar encontra quase todos mortos, pois foram atacados

por índios, não se sabe quais, acredita-se que teriam sido os mesmos que

constantemente atacavam essas tribos pacificas encontradas por Colombo (TODOROV

2003, pág 17).

O mais importante dessa viagem será a fundação do vilarejo de Isabela que

conhecemos como São Domingos, na Republica Dominicana, sendo ele o primeiro

vilarejo de colonos espanhóis na América.

Cristóvão Colombo, antes mesmo de ser um conquistador dos mares, era acima

de tudo um católico fervoroso. Tentou por diversas vezes financiamento da coroa

portuguesa para seu empreendimento, mas sempre fora recusado. Financiado pela

rainha Isabel de Castela, ele poderia dar inicio ao seu objetivo. Colombo parecia querer

uma nova cruzada, a expansão do cristianismo a todos os cantos do mundo, levar a fé

aos desprovidos e conquistar novas terras para aqueles que financiaram sua empreitada

em nome de Deus (TODOROV 2003).

Lendo os relatos de seus diários fica claro que sua preocupação não era

enriquecer, ou melhor, não só isso. Não é possível separar a fé e a cobiça de enriquecer

que move o almirante. Ambos os objetivos estão atrelados.

Em alguns casos os relatos de Cristóvão Colombo servem para legitimar a

conquista daquelas terras recém descobertas, dando a impressão de que Castela fizera

um bom negócio e o fez certamente. Alegando que encontrou muito ouro, Colombo

escreve:

Quanto lucro daqui se pode tirar não escrevo. Certo é, senhores príncipes. Que onde há tais terras deve haver também uma infinidade de coisas lucrativas.Mas não me detenho em nenhum porto, porque quero ver todas as outras terras que puder, para relatá-lo a Vossas Altezas (COLOMBO, 1492 apud, TODOROV 2003, pág 17).

Cristóvão Colombo, apesar das importantes descobertas, falece sem a

confirmação de que essas enormes ilhas, como ele mesmo chamava, eram de fato um

continente.

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Voltemos para a segunda viagem de Colombo, que será o marco inicial para que

Bartolomé de Las Casas tome conhecimento do “Novo Mundo”.

Devido à proximidade de Pedro de Las Casas, pai de Bartolomé, com o genovês

Colombo, o comerciante toma conhecimento das recém descobertas terras e, como todo

espanhol do período, se encanta com as possibilidades de enriquecer e desfrutar dos

benefícios das ilhas da América. Segundo Huerga (1998)2 o reencontro de Pedro de Las

Casas com seu filho Bartolomé, alimentou nele e no filho as ambições e os planos de

seguir uma vida na América, atraídos pelas riquezas do continente.

O primeiro contato de Bartolomé com a América foi em 1499, quando seu pai,

ao regressar da viagem que fez ao “Novo Mundo”, traz consigo um nativo mais ou

menos da idade de seu filho. Ao tomar conhecimento do ocorrido a Rainha de Castela,

Isabel, descontente com a atitude de Colombo em dar o nativo, já que tudo aquilo que

fosse encontrado em solo americano pertencia à coroa, exige sua devolução (HUERGA

1998).

Não temos a exatidão dos primeiros passos de Las Casas, mas a hipótese mais

provável é a de que seus dois tios paternos, que orientavam uma escola na catedral,

tenham influenciado Bartolomé de Las Casas a seguir nos estudos teológicos. Então

provavelmente tenha seguido este caminho, aprendendo o Latim, Direito, História Geral

e Natural, ingressando na Academia de Sevilha. Assim, com os conhecimentos

adquiridos, Bartolomé de Las Casas ingressou no mundo eclesiástico (JOSAPHAT

2000). Formou-se em direito pela Universidade de Salamanca, conquistando o titulo de

bacharel. Falava fluente o latim além de possuir uma boa reputação com o governador

de Espanhola, Nicolas Ovando. (CATHOLIC ENCYCLOPEDIA VOL III, on-line).

Estudar Las Casas é ter acima de tudo muito cuidado, pois podemos cair no erro

de torná-lo um homem à frente de seu tempo, ou até mesmo endeusá-lo.

“Um homem de mentalidade tipicamente medieval, que possuía uma grande capacidade

de erudição, nunca perdendo oportunidades para vencer seus oponentes com forte

argumentação de sua teologia escolástica” (FUETER 1984, pág 358).

No ano de 1502, finalmente Las Casas conhece a América. Embarcou com o

Governador de Espanhola (Haiti – Republica Dominicana) juntamente com seu pai.

2Álvaro Huega é professor da Academia Porto-Riquenha de História e um dos maiores nomes referentes aos estudos sobre Frei Bartolomé de Las Casas.

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Desde o regresso de seu pai e as histórias que ele contou, de muitas riquezas e ouro na

Costa De Las Perlas3 inflamando em si e no filho o desejo de se aventurar e enriquecer.

Este, portanto seria o interesse principal de Bartolomé.(HUERGA 1998).

Ao desembarcar, o jovem Las Casas observa duas coisas que chamaram sua

atenção; a primeira delas diz respeito a amabilidade dos nativos, a mesma talvez que

Colombo tenha recebido em sua viagem à ilha de Cuba. Esses nativos eram amáveis e

fáceis de conversão. A outra percepção diz respeito ao comportamento dos colonos já

instalados na ilha. Las Casas observa que esses homens não estavam preocupados na

conversão dos nativos. Falavam apenas das riquezas da terra, do ouro, e da dificuldade

de extrair o metal. Por isso a necessidade de mão de obra nativa para o serviço

(MEDINA 1994).

Cuando los navios atracam en Santo Domingo, los españoles que lês esperaban em la orilla gritan a los recién llegados grandes y buenas noticias. !Mucho oro! !Una só pepita encontrada recientemente contiene vários millares de pesos de metal fino!Y además los índios se han sublevado: gracias a ello se lês puede hacer a guerra capturalos para experdilos a España como esclavos (BATAILLON 1976, pág 7).

Las Casas agora exerce duas funções, a primeira delas a de catequizador, pois

deveria ensinar as leis de Cristo para os índios que lhes pertenciam, como queria a

rainha Isabel, não se esquecendo de igualmente explorar a mão de obra indígena, única

disponível, para o cultivo da terra e demais trabalhos servis. Isto ocorre no ano de 1503,

quando Bartolomé de Las Casas recebe um lote de terras em Concepcion de La Veja

(Republica Dominicana). Os estudiosos de Las Casas trabalham com três hipóteses

sobre onde e quando ele se ordenou sacerdote; a primeira hipótese seria em sua viagem

à Roma, a segunda em sua terra natal, Sevilla, Espanha e uma terceira hipótese com seu

retorno a Porto Rico, entre os anos de 1503 a 1510 (NETO 2003).4

Em 1510, ano em que realiza a sua primeira missa, Las Casas, “o primeiro padre

das Américas” como ele próprio se intitulava em seu discurso, nada devia aos

sacerdotes da metrópole. Igualmente destacava os princípios de Cristo, mas também

3Arquipélago venezuelano próximo as ilhas de Margaritas, conhecido por sua abundante concentração de pérolas. O local era explorado por espanhóis para a extração da mesma, com a ajuda dos índios locais.4José Alves de Freitas Neto é professor do programa de Pós-Graduação da USP, com ênfase nas pesquisas culturais na América Luso-Espanhola.

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como em seus poemas e versos, exaltava a beleza deste “Novo Mundo”. Neste mesmo

ano, chegam à América os Dominicanos, esses religiosos vão influenciar de forma

direta a vida do ecomendeiro e doutrinador Bartolomé de Las Casas, seja por sua

amizade com do frei Antonio de Montesinos e seu irmão, frei Tomás, ou mesmo pelo

sermão proclamado na pequena comunidade de São Domingos pelo próprio Montesinos,

repudiando os mecanismos de conquista impostos aos nativos da América.

Mas os dominicanos que viviam em São Domingos se reapresentam para a

América mostrando uma outra face, a do descontentamento, desaprovação e repudio

àquilo que eles observaram na ilha (NETO 2003).

No ano de 1511, os dominicanos de São Domingos, representados pelo frei

Antonio de Montesinos, soltam o seu brado de descontentamento com o sistema

colonial, atacando principalmente a encomienda e o repartimiento, ele conclui:

Esta voz lhes está bradando: Vocês estão todos em pecado mortal, nele vivem e morrem, pela crueldade e pela tirania que praticam contra esse povo inocente.Digam: Com que direito e com que justiça vocês mantém esses índios em tão cruel e horrível servidão? Com que autoridade vocês tem feitos guerras tão detestáveis contra esta gente, que está tranqüila e pacífica em suas terras, onde multidões incontáveis delas, com mortes e danos nunca ouvidos, vocês exterminaram?Como vocês os mantém na opressão e na fadiga, sem dar-lhes de comer e curar as enfermidades que contraem em razão dos excessivos trabalhos que vocês lhe impõem? Eles chegam a morrer, ou, para melhor dizer vocês os matam, para arrancar e adquirir ouro a cada dia.Que cuidados vocês tem de alguém lhes ensine a doutrina e de que conheçam a seu Deus e criador, sejam batizados, ouçam a missa, guardem as festas e os Domingos?Estes não são homens? Não têm almas racionais? Não estão vocês obrigados a amá-los como a vocês mesmos? Isto vocês não entendem? Não sentem? Como estão mergulhados em sonos tão letárgicos?Estejam certos: No pecado em que estão, vocês não poderão salvar-se mais do que os mouros os turcos que recusam a fé em Jesus Cristo (BIBLIOTECA VIRTUAL DIREITOS HUMANOS, on-line).

Feito o seu sermão, intitulado “sou a voz que clama no deserto”, frei Antonio de

Montesinos mudaria os rumos da América Espanhola. Como nos conta o historiador

Hector Hernan: “A ousadia de Montesinos não apenas estremeceu a consciência de Las

Casas, mas” todo “o império espanhol. Era a primeira vez que se questionavam os

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títulos da Espanha na América, e a incipiente sociedade colonial ficou escandalizada”

(HERNAN 1965, pág 60).

Entretanto, para as demais pessoas que escutaram o sermão, as palavras do frei

pouco efeito fizeram, causando apenas uma inquietação, inclusive no Vice-Governador

Diego Colombo5. As autoridades temiam que as palavras ditas pelo frei tomassem uma

dimensão maior, no caso, o medo de Diego Colombo e das autoridades seria o efeito

que esse discurso poderia ter na corte da Espanha, e imediatamente trataram de enviar

esclarecimentos às instâncias administrativas e políticas da corte, além de alertar sobre

esse grupo de dominicanos inquietos (JOSAPHAT 2000).

A repercussão do sermão chegou aos ouvidos do líder dos dominicanos, frei

Pedro de Córdoba, que pedia a seus encarregados da ilha de São Domingos que

evitassem o confronto. O próprio Diego Colombo se dirigiu ao líder do grupo e exigiu

uma reparação, com a ameaça de expulsão da ilha e embarcando-os a força.

Presenciando o dialogo, Las Casas escreve mais tarde em seu diário em tom irônico a

ameaça do Almirante aos dominicanos: “Os frades só tinham os hábitos que vestiam,

uns cobertores para se cobrir a noite, ornamentos para celebração da missa e. Como

poderia faltar este luxo em uma casa dominicana? Uns tantos livrinhos.” 6 ( MEDINA

1994, pág 1762 ).

Montesinos tratou de seguir para a metrópole com a intenção de contar aos reis

da Espanha o que realmente estava acontecendo na ilha de São Domingos, certamente

seus relatos seriam bem diferentes daqueles enviados por Diego Colombo a suas

altezas. Este sermão foi o primeiro despertar de Las Casas para o que realmente estava

acontecendo naquela ilha, mas suas atividades de encomendeiro ainda durariam por

mais alguns anos.

Para ser mais exato, o ano em que abandona as terras, os escravos e as variadas

formas de enriquecimento que a colonização poderia lhe proporcionar foi o de 1514. Na

5Devido a insistência de Cristóvão Colombo em seus acordos com a rainha Isabel, a Católica, caso obtivesse êxito em suas conquistas, receberia 10% dos lucros sendo nomeado almirante dos mares e Vice-Governador das terras a serem encontradas. Pela hereditariedade, seus títulos seriam herdados de forma direta pelos seus filhos, no caso, Diego Colombo. 6A ironia de Las Casas refere-se a vida simples que os monges levavam na ilha. Os itens de mais valor que eles possuíam eram apenas uns cobertores e livros; portanto a ameaça de expulsá-los para qualquer que fosse o lugar, soou um tanto irônico para Las Casas, já que da terra eles não levavam nenhuma riqueza.

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expedição que participou sob o comando de Panfilo de Narváez e Diego Velásquez,

Bartolomé de Las Casas vai presenciar uma série de matanças e saques, implantados aos

nativos pelos homens de Narváez e Velásquez, como padre capelão pouco pode

interferir no resultado final, salvando apenas algumas almas.

Ainda como encomendeiro, ganha um repartimiento em Cuba na localidade de Jaguá,

onde morou ate o ano de 1514.

No dia em que ali chegaram, os espanhóis pararam de manhã para o desjejum no leito seco de um riacho que ainda conservava algumas poças d’água, que estava repleto de pedras de amolar: o que lhes deu a ideia de afiar as espadas. Chegando à aldeia alguns tiveram a idéia de verificar se as espadas estavam tão cortantes quanto pareciam. Um soldado, subitamente, desembainhou a espada (que parecia tomada pelo diabo), e imediatamente os outros fizeram o mesmo, e começaram a estripar, rasgar e massacrar aquelas ovelhas e aqueles cordeiros, homens e mulheres, crianças e velhos, que estavam sentados, tranqüilamente, olhando espantados para os cavalos e para os espanhóis. Num estante, não restam sobreviventes de todos os que ali se encontravam e o sangue corria por toda a parte, como se tivessem matado um rebanho de vacas (LAS CASAS 2007, pág 15).

O professor Freitas Neto (2003), nos conta que durante a preparação de uma de

suas missas, o frei se deparou com uma passagem bíblica que continha a seguinte

mensagem: “Oferecer um sacrifício da iniquidade é fazer uma oferenda manchada” Este

trecho bíblico para muitos, foi o que realmente levou Las Casas a adotar a defesa

indígena como causa.7 De 1514 até o ano de sua morte, em 1566, com oitenta e dois

anos de idade, Las Casas levou adiante sua luta cada vez mais radical. Suas atitudes

agitaram a metrópole e a colônia. Fez dezenas de denuncias, protestos, pedidos,

exigindo que os indígenas fossem encarados como verdadeiros “poseedores y

proprietários de aquellos reinos e tierras”. Na pratica, conseguiu duas vitórias que

sempre considerou insuficientes: as Novas Leis promulgadas em 1542, que

praticamente encerram o sistema das encomiendas e as doutrinas jurídicas expostas na

Universidade de Salamanca pelo grande reformador de Teologia Francisco de Vitória,

que lhe garantiriam a vitória legal da explosiva polêmica contra Juan Ginés Sepúlveda,

partidário da “servidão natural” dos índios da América.

7Entre os muitos historiadores pesquisados pelo professor José Alves de Freitas Neto, há um consenso entre eles de que esse trecho bíblico tenha influenciado de forma definitiva o pensamento de Las Casas sobre o sistema colonial. Entre os nomes mais influentes que concordam com a passagem estão: Álvaro Huerga, Frei Carlos Josaphat, Hector Hernan e Lewis Hanke.

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Capitulo 2

A América subjugada.

Com a descoberta do Império Asteca (México) em 1519 e futuramente a

descoberta do Império Inca (Peru) no ano de 1531, o modelo espanhol 8 iniciado por

Colombo em 1492, chamado Ensaio Antilhano, chegou ao fim. Fim no sentido de que a

descoberta desses dois impérios mudaram os rumos da conquista. Se antes era através

dos mares, agora seria por terra firme. Nesta análise sobre os mecanismos da conquista

espanhola nessa nova etapa da colonização, a chamada Expansão Continental,

ficaremos com o testemunho de Las Casas e a sua visão sobre a colonização espanhola.

Para chamar a atenção das autoridades, dos colonos e daqueles que pudessem ter

contato com seus escritos, Las Casas usava o trágico, a denúncia era feita exaltando a

violência e a crueldade dos colonizadores. É de forma apocalíptica que ele descreve o

sistema colonial9 (HERNAN 1995).

Deste modo devemos tomar cuidados ao analisar os escritos de Bartolomé de Las

Casas. Nos parece que ao escrever sua obra mais contrária a esse tipo de colonização, O

Paraíso Destruído Las Casas nos fala de mil, centenas e até milhões de mortes causadas

por diversos motivos, entre eles, o trabalho nas minas, a espada e as doenças foram

alguns dos principais. Mas mesmo sem ter essa exatidão, historiadores de hoje chegam

a conclusão de que os números estimados por Las Casas refletem, de fato, um dado

alarmante, o decréscimo populacional dos nativos. Números esses que se assemelham

aos estudos dos dias atuais (TODOROV 2003).

8Referente ao modelo espanhol do inicio das descobertas, “Ensaio Antilhano”, pois se limitavam as ilhas caribenhas, como Cuba, Haiti, Jamaica, entre outras. Com a descoberta dos impérios Asteca e Inca, as expedições militares de conquista passaram a focar suas investidas por terra firme. O que não quer dizer que a exploração pelas vias marítimas das ilhas caribenhas tenha sido abandonada.9Las Casas não era contra a colonização dos nativos. Era contra o modo na qual ela estava sendo aplicada. Pois os espanhóis que se intitulavam cristãos, não exerciam aquilo que deveriam fazer, como doutrinar e catequizar os índios prestando-lhes todos os cuidados.

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Apenas para ilustrar a dimensão do decréscimo da população indígena, tomemos

como medida os estudos de Sherburne Cook e Woodrow Borah 10, professores da

Universidade da Califórnia. A seguir dados referentes à colonização asteca ou mexica.

1519 1532 1548 1568 1580

25 milhões 16,9 milhões 6,3 milhões 2,65 milhões 1,9 milhões

(COOK e BORAH, 1971 apud WACHTEL 2008, Pág 201).

Em outra análise percebemos que na parte andina, a população sofreu menos, em

relação a Mesoamérica. Principalmente as tribos que habitavam as áreas frias dos

Andes. Porém os nativos que ocupavam os altiplanos andinos sofreram decréscimos

semelhantes aos mexicas, como vemos no quadro a seguir.

1530 1536 1590

10,0 milhões

2,5 milhões 1,5 milhões

(WACHTEL 1971, pág 135-140).

É verdade que esses números geram grande duvidas entre os historiadores que

estudam este tema. (Para não ficarmos apenas com os exemplos dos professores

Sherburne Cook e Woodrow Borah considerados em certo ponto conservadores por suas

estimativas). Entre eles, historiadores demográficos como Henry Dobyns que defende

um número acima de 50 milhões em seu livro “Estimating Aboriginal American

Populations” lançado em 1966. Outros autores já trabalham com estimativas ainda mais

10Professores da Universidade da Califórnia, pioneiros em estudar as populações caribenhas as vésperas da conquista. As suas contribuições foram de extrema importância para a obra de Leslie Bethell, América Latina Colonial e outros tantos pesquisadores.

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conservadoras como Willian Sanders que defende em seu trabalho, ”The Native

Population of the American in 1492” publicado no ano de 1976, uma população em

torno de 11 a 12 milhões de índios. Certeza não teremos do número exato de nativos, o

que realmente importa para nós neste trabalho é o fato de que foram mortos e a maneira

como isso ocorreu.

A pergunta é: quais foram os motivos dessa catástrofe? Como os espanhóis, em

menor número, conseguiram subjugar os nativos e dominá-los? Vamos responder a

primeira pergunta, ou ao menos tentar achar uma resposta que contemple a magnitude

desse episódio. A causa principal foi sem dúvida as doenças, como sarampo, varíola e

gripe. Nathan Wachtel nos traz uma cronologia de como as doenças contribuíram para a

mortandade nativa. Os europeus trouxeram para a América as doenças, infectando os

índios que não possuíam nenhuma defesa contra esses vírus, até mesmo uma simples

gripe era capaz de levar um nativo à morte. Em 1519 quando uma epidemia de varíola

já minava a resistência asteca, no mesmo ano em que os espanhóis de Cortez sitiaram a

capital mexica, a doença se espalhou chegando até aos Andes e América Central, não

sabendo ao certo se foi um surto de sarampo ou a própria varíola. Um dado curioso é

que este surto chegou antes da expedição de Pizarro, (futuro “descobridor” do Império

Inca) matando o Inca Huayna Cápac. (WACHTEL 2008).

Matlazahuatl ou simplesmente Tifo, doença transmitida pelos piolhos e pulgas de

ratos, devastou a Nova Espanha, cidade fundada no lugar de Tenochtitlan, antiga capital

asteca em 1545, novamente reaparecendo no ano seguinte no Vice Reino de Nova

Granada, atual Colômbia, Equador e Venezuela. Em 1557 um novo surto, dessa vez uma

epidemia de gripe, assolou a América Central. Dando seqüência as mortes, no Peru a

varíola ataca novamente entre 1558-59. O sofrimento nativo continuava, em 1576

reaparece a tifo devastando o México. “E nos anos de 1586-1589, uma tríplice epidemia

de varíola, peste e gripe, provindo de Quito, Cuzco e Potosí, devastou os Andes

inteiros” (MONTESINOS, 1644 apud WACHTEL 2008, pág 202).

Mais do que o poder mortal que as epidemias provocavam, surge em meio a

tantas mortes um sentimento de que os espanhóis foram contemplados com a graça

divina, já que muitos dos seus inimigos tombavam em função do choque micro-

bacteriano. (TODOROV 2003).

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Os conquistadores consideravam as epidemias como uma de suas armas; não conhecem os segredos da guerra bacteriológica, mas, se soubessem, não deixariam de utilizar conscientemente as doenças; pode-se também imaginar que, na maior parte das vezes, eles nada fizeram para impedir a propagação das epidemias. O fato de os índios morrerem às pencas é prova de que Deus está do lado dos conquistadores. Os espanhóis talvez presumissem um pouco a boa vontade divina para com eles, mas o fato era, para eles, incontestável (TODOROV 2003, pág 195-196).

Seguiremos nossa análise, descrevendo como os espanhóis conseguiram subjugar

os impérios inca e asteca. Incluindo os mecanismos utilizados nas conquistas, mais as

epidemias, temos um número de mortes alarmante.

Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a um caso, então é esse. É um recorde, parece-me, não somente em termos relativos (uma destruição da ordem de 90% e mais), mas também absolutos, já que estamos falando de uma diminuição da população estimada em 70 milhões de seres humanos. Nenhum dos grandes massacres do século XX pode ser comparado a essa hecatombe (TODOROV 2003, pág 191-192).

Em primeiro lugar podemos trabalhar com a teoria de que os europeus chegaram

em uma época que coincidia com uma antiga lenda religiosa indígena, na qual deuses

montados em criaturas estranhas, portando armas jamais vistas pelos nativos, de pele e

cabelo igualmente diferentes, chegariam, logo após a teoria do fim do mundo. Como diz

em seu livro, o escritor Tzvetan Todorov (2003): “Apesar de reconhecerem o erro em

acreditar que os espanhóis eram criaturas divinas, isso acontece de forma tardia, porém

o suficiente para que a batalha seja perdida e a América tombada pela Europa”.

Tanto no México quanto no Peru os documentos nativos descrevem uma atmosfera de terror religioso imediatamente antes da chegada dos espanhóis. Mesmo sendo interpretações retrospectivas, essas descrições atestam o trauma por que passaram os americanos nativos: Profecias e presságios haviam predito no final dos tempos; Então de repente, apareceram monstros de quatro pernas montados por criaturas brancas de aparência humana (WACHTEL 2008, pág 195).

Uma outra descrição dos espanhóis feita por mensageiros de Montezuma alerta o

imperador asteca sobre os homens estranhos (espanhóis) da seguinte forma:

Seus corpos são totalmente cobertos; somente seus rostos podem ser vistos e são brancos como giz. Têm cabelo amarelo, embora em alguns casos seja preto. As barbas são longas; os bigodes também são amarelos... Estão montados em seus “veados”. Empoleirados dessa forma, andam ao nível dos

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tetos. [...] Se o tiro (de um canhão) atinge um morro, parece parti-lo ao meio, arrebentá-lo, e se bate numa árvore, despedaça-a e esmaga-a, como que por um milagre, como se alguém a tivesse destruído soprando de dentro (LEÓN PORTILLA 1959, pág 34-35).

Essa teoria começa a clarear os fatos, mas não explica de maneira convincente a

ocupação espanhola, até porque, de acordo com Wachtel (2008), nem todas as

sociedades indígenas, acreditaram nessa teoria, principalmente as tribos nômades e

seminômades, ou a viam com certo receio, e após presenciarem a cobiça, ganância e o

abuso dos conquistadores, perceberam que ali não existiam deuses coisa nenhuma, e

sim homens como eles, de carne e osso.

Um notável incidente nos da a prova disso. Nas proximidades de Cuzco, os soldados de Pizarro capturaram mensageiros que Callcuchima enviara a Quizquiz; Levavam noticias importantes sobre a natureza dos invasores: Callcuchima os havia enviado para informar Quizquiz de que eles (os espanhóis) eram mortais. (ARQUIVOS HISTORICOS DE CUZCU, apud WACHTEL 2008, pág 198).

Então para entendermos de forma mais esclarecedora, deixemos de lado a visão

religiosa e mística dos índios pelos espanhóis e vamos analisar aqui a supremacia

militar espanhola.

Mas que supremacia era essa? Claro que armaduras contra as túnicas de algodão

dos indígenas, ou os arcos e flechas contra os arcabuzes espanhóis, as espadas de metal

contra as lanças de madeira, cavalaria contra infantaria, evidente que isso contribuiu,

mas no inicio da conquista os espanhóis contavam com poucos cavalos e armas de fogo,

de acordo com Todorov (2003). Isso foi mais um fator psicológico do que algo

realmente decisivo.

Então, o que fez os espanhóis terem essa superioridade frente aos milhões de

indígenas?

Tanto os astecas como os incas eram civilizações imperialistas, ou seja, haviam

se constituído através de sucessivas conquistas; e ai esta a chave da nossa questão.

Os povos dominados por essas civilizações enxergaram em Pizarro e Cortez, a chance

de se verem livres do domínio asteca e inca, fornecendo a maioria esmagadora de

homens para os exércitos espanhóis.

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O resultado do conflito não dependeu apenas da força dos oponentes: A partir da perspectiva dos derrotados, a invasão européia também continha uma dimensão religiosa e mesmo cósmica. Saques, massacres, incêndios: Os índios estavam vivendo o fim do mundo; A derrota significava que os deuses tradicionais haviam perdido seu poder sobrenatural. Os astecas acreditavam ser o povo escolhido de Huitzilopochtli, o deus Sol da guerra; Sua missão era colocar sob seu domínio os povos que rodeavam Tenochtitlán por todos os lados. Dessa forma, a queda da cidade significava infinitamente mais que uma simples derrota militar. Determinava o fim do reino do deus Sol. A vida terrena havia, por conseguinte, perdido todo o significado, e, uma vez que os deuses estavam mortos, somente restava aos índios também morrer (WACHTEL 2008, pág 198).

Já na sociedade dos Andes o inca, era considerado o filho do sol, e por isso era o

mediador entre os homens mortais e os deuses, inclusive ele próprio era adorado como

tal. Com sua morte o elo de ligação entre o sobrenatural e o físico se perdeu, e por essa

razão a sociedade andina, se viu em destruição. Sem o seu ponto de referência e

equilíbrio, caminhava para o fim “O sol fica amarelo, a noite cai misteriosamente; a

morte do Inca reduz o tempo ao bater de uma pálpebra; a terra se recusa a enterrar seu

senhor, e as escarpas rochosas tremem por seu amo entoando lamentos fúnebres”

(LEÓN PORTILLA apud WACHTEL 2008, pág 200).

Após a desestruturação de suas sociedades e as centenas e milhares de mortes

causadas pelas guerras, pela fome e principalmente pelas epidemias, a sociedade

indígena foi totalmente desestruturada, fazendo com que os nativos que ali habitavam

fossem tratados como escravos e como verdadeiros objetos.

Os espanhóis praticavam esses atos, segundo eles próprios, em nome dos reis da

Espanha e de Deus, sustentados pelo requerimiento que legitimava todos os seus atos

contra essa gente das Américas. Para entender o que era esse requerimiento, vamos

voltar um pouco na história, citando Jesus Cristo e seus discípulos. Jesus é tido como

chefe supremo da linhagem humana, e com isso tem o universo sob sua jurisdição.

Delegou aos discípulos essa missão de continuar seus ensinamentos. São Pedro por sua

vez delega ao papas que os sucederam. Estes papas legitimam a conquista dos reis da

Espanha, assim como fez Alexandre VI doando o continente americano aos espanhóis

(NASCIMENTO FILHO 2005).

Se não o fizerdes, ou demorardes maliciosamente para tomar uma decisão, vos garanto que, com a ajuda de Deus, invadir-vos-ei poderosamente e far-vos-ei a guerra de todos os lados e de todos os modos que puder, e sujeitar-vos-ei ao jugo e à obediência de Igreja e de Suas Santas Altezas. Capturarei a vós, vossas mulheres e filhos, e reduzir-vos-ei à escravidão. Escravos,

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vender-vos-ei e disporei de vós segundo as ordens de Suas Altezas. Tomarei vossos bens e far-vos-ei todo mal, todo o dano que puder, como convém a vassalos que não obedecem a seu senhor, não querem recebê-lo, resistem a ele e o contradizem (TODOROV, 1993 apud NASCIMENTO FILHO 2005, pág, 6 ).

Esbarramos então em um obstáculo considerável: a língua.Os espanhóis não

entendiam o idioma nativo, e nem faziam questão de qualquer interprete, ao menos

nesse caso. E por sua vez os índios não tinham noção do que os europeus falavam.

O requerimiento serviu apenas para os espanhóis legitimarem as suas ações em

terras americanas, sem se preocupar em fazer com que esses mesmos índios os

entendessem e assimilassem o que o documento queria dizer. Uma vez que não existia

esse dialogo, os espanhóis tomavam as atitudes dos nativos como uma desobediência a

eles e ao Rei da Espanha.

Os acontecimentos descritos a seguir incomodaram profundamente Las Casas.

Dentro de uma infinidade de passagens, compilamos alguns fatos que ocorreram entre

as presenças espanholas no México e Peru. Era difícil, ou melhor, incompreensível para

Las Casas os maus tratos que os espanhóis aplicavam aos índios. Lembremos o

pesquisador Tzvetan Todorov (2003) ao analisar o episódio da conquista que nos diz

que, estes mesmos índios que os consideravam deuses, seres imortais e que mal algum

fizeram para receber tamanho castigo.

No ano de 1516 foi a Nova Espanha (México) descoberta e os que realizaram essa façanha cometeram grandes desordens e matanças no arraial dos índios.No ano de 1518 foram para ali espanhóis cristãos, como se intitulam, para roubar e matar com a mesma facilidade com que dizem que vão para povoar a terra. [...] Não há língua humana que possa descrever as particularidades dos atos espantosos que esses inimigos públicos, quero dizer esses capitães inimigos do gênero humano, praticaram geralmente por toda parte, em lugares e tempos diversos, dentro da dita região.[...] Entre outros assassinatos e massacres praticaram também o seguinte, numa vila grande, onde havia mais de trinta mil lares, e que se chama Cholula: é que todos os senhores do país e dos arredores e, em primeiro lugar, os padres com seu grande pontífice, indo em procissão esperar os espanhóis a fim de os receber com grande acolhimento e reverência e conduzindo-os ao meio deles para os alojar na Vila, nas casas e abrigos do senhor ou dos principais senhores dali, os espanhóis tiveram a ideia de fazer um massacre ou castigo (como eles dizem) a fim de implantar e estabelecer o terror pelas suas crueldades e em todos os paises em que entraram, praticar incontinenti, à sua chegada, alguma cruel e notável matança a fim de que esses pobres e dóceis cordeiros tremessem do medo que lhes inspirava.[...]. E era coisa de inspirar infinita compaixão ver esses pobres índios apresentando-se para levar as cargas aos espanhóis. Vinham todos nus, tendo cobertas apenas as partes vergonhosas e trazendo

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cada qual sobre o ombro uma rede com um pouco de carne: abaixaram-se todos e ficaram acocorados como pobres cordeiros apresentando-se a espada. E estando todos eles assim reunidos no terreiro, uma parte desses traidores e pérfidos espanhóis, bem armados, se postaram nas portas para os guardar, enquanto os outros passaram esses pobres cordeiros a fio de espada e lança, de sorte que nenhum só pôde escapar que não fosse cruelmente posto à morte. Todos os senhores que eram mais de cem, haviam-nos conservado preso; e o capitão ordenou que fossem queimados vivos, ligados a troncos fixados no Chão. [...] (LAS CASAS on-line, pág 51-53-54-55).

Este trecho refere-se à chegada de Cortez às terras mexicanas, que por onde

passava aplicava esses métodos, implantando o terror aos nativos. Las Casas descreve

que os conquistadores não tinham motivo algum para cometer essas maldades contra os

índios desta terra. As torturas que ele descreve nos mostra como foi prejudicial aos

nativos as invasões de Cortez e demais colonos nas diversas áreas do continente. É

verdade que humanamente seria impossível presenciar todos os acontecimentos que

ocorreram durante as incursões da Espanha na América, em função deste fato,

apresentarei a descrição de um outro frei; Frei Marc De Nise, da Ordem dos

Franciscanos. Este homem, assim como Las Casas, escreve indignado os absurdos

cometidos no Peru pelas tropas de Francisco Pizarro.

Neste contexto, um outro nome esta presente no que diz respeito a Colonização

Espanhola no século XVI. Fora do mundo hispânico Theodor de Bry 11, através de sua

arte, vai representar em imagens os relatos e escritos de Las Casas, como demonstra a

imagem abaixo.

11Theodor de Bry nascido na Bélgica no ano de 1528 era ourives e seu talento com a calcografia ( Arte de gravar em metal, que se dá através de vários processos, sendo o mais antigo deles a gravura a buriu talho-doce, em que a gravação é feita diretamente no metal com um instrumento de aço chamado buril) o tornaram editor e criador das ilustrações sobre as descobertas.

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Figura I

Este tipo de tortura era muito comum no interior das aldeias, para forçar os

nativos a entregar o ouro que os espanhóis tanto procuravam, ou mesmo pelo simples

prazer da tortura, como já vimos em outros casos. O suplício de azeitar os pés era um

dos mais terríveis senão o pior dentre os maus tratos cometidos. O preso encontrava-se

amarrado com as costas coladas a um tronco de madeira fixado no chão, enquanto seus

pés eram banhados em uma espécie de melado, para que tostasse lentamente ao fogo,

causando uma dor inimaginável ao torturado. Las Casas descreve a cena da seguinte

forma:

Entre uma infinidade de malvadezas que foram feitas ou consentidas por esse Governador há também a seguinte: Havendo-lhe dado um cacique ou senhor, ou por sua própria vontade ou por temor (o que é mais verossímil) o peso de nove mil ducados, os espanhóis, não contentes com isso, prenderam o dito senhor, amarraram-no a um tronco, tendo o sentado no chão com os pés estendidos, contra os quais aplicaram fogo para obrigá-los a dar mais ouro. O senhor enviou-o à sua casa e foram trazidos mais três mil castelhanos. Os espanhóis voltaram a aplicar-lhe suplícios. E como o senhor não dava mais, ou porque não tivesse ou porque não quisesse dar, mantiveram-no assim com

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os pés contra o fogo até que a moela lhe começou a sair e correr pelas plantas, cousa da qual morreu. [...] (LAS CASAS on-line, pág 43).

Focando nos maus tratos, Todorov nos relata outras situações com base nas

cartas de um grupo de monges da Ordem dos Dominicanos que presenciaram nas ilhas

caribenhas outras formas de maus tratos sofridos pelos indígenas no ano de 1516.

Endereçadas ao Ministro Chiévres, Ministro de Carlos I (futuro Carlos V), as cartas

seguem deste modo:

Alguns cristãos encontraram uma índia, que trazia nos braços uma criança que estava amamentando; e, como o cão que os acompanhavam tinha fome, arrancaram a criança dos braços da mãe e, viva, jogaram-na ao cão, que se pôs a despedaçá-la diante da mãe.[...]Quando havia entre os prisioneiros mulheres recém paridas, por pouco que os recém-nascidos chorassem pegavam-nos pelas pernas e matavam-nos contra as rochas ou jogavam-nos no mato para que acabassem de morrer (TODOROV 2003, pág 202).

É nessa mesma linha que Frei Marc De Nise descreve o que viu no Império Inca,

agora dominado pelos homens de Francisco Pizarro. A seguir parte do seu testemunho

em relação ao que ele viu e presenciou.

Eu, Frei Marc De Nise, da Ordem de São Francisco, Comissário Superior dos outros irmãos da mesma ordem nas províncias do Peru, que fui dos primeiros religiosos a entrarem nas ditas províncias com os espanhóis: eu digo, dando verdadeiro testemunho de algumas cousas que vi de meus próprios olhos nessas províncias e que concernem ao tratamento e conquistas feitas sobre os naturais do país.[...]. Item, afirmo ter visto com meus próprios olhos que os espanhóis cortaram as mãos, o nariz e as orelhas de índios e índias sem nenhuma causa nem propósito, senão porque isso estava no capricho de sua fantasia e assim procederam em tantos lugares e em tantas regiões que seria muito prolixo recitá-los. E vi também que os espanhóis fizeram correr os cães sobre os índios para fazê-los em pedaços; e os vi queimarem um numero tão enorme de casas e de povoados que não poderia nunca dizer quantos. E também mui verdadeiro que arrancavam as criancinhas dos seios das mães e que, pegando-as pelos braços, as arremessavam tão longe quanto podiam; no mesmo sentido perpetraram outras enormidades e atrocidades sem causa alguma, que só de vê-las me davam medo e que seria demasiado longo referi-las.[...]. (DE NISE on-line, pág 127-130).

Frei Marc De Nise descreve os acontecimentos que presenciou durante a sua

passagem pelo em território inca, ficando na região por um período de mais ou menos o

tempo de 10 anos. A chegada de Francisco Pizarro, espanhol que dominou o império

andino, e as praticas adotadas por ele e seus homens, são descritas neste trecho, e

construídas através de imagens na obra de Theodore De Bry.

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Figura II

A gravura nos mostra em destaque o que o frei nos descreveu: a pratica de

queimar os nativos reunindo-os em uma cabana, para depois atear fogo matando todos

eles. Mais ao fundo podemos perceber as perseguições feitas pelos espanhóis, usando os

cavalos para impor o terror.

Outra pratica que o frei nos conta é a de cortar as partes do corpo, como mãos,

nariz, orelhas; Theodore De Bry vai representar esse relato através da seguinte gravura:

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Figura III

Para Tzvetam Todorov (2003) o único motivo evidente dessas praticas, era o de

obter o maior número de ouro dos nativos para enriquecer. E por que enriquecer? O

dinheiro sempre trouxe status e poder aos homens que o obtivessem, e quanto mais se

tinha mais poderoso o espanhol ficava.

Termino com uma citação de Las Casas a respeito das praticas adotadas pelos

espanhóis em território Andino, mas que poderia ser aplicada a qualquer dos reinos e

povoados no quais os conquistadores se depararam. Frei Bartolomé De Las Casas

descreve os acontecimentos da seguinte maneira:

Se tivéssemos que referir as particularidades das crueldades e matanças que os espanhóis cometeram e cometem ainda diariamente no Peru, sem duvida alguma falaríamos de cousas tão espantosas e em tão grande número, que tudo quanto se praticou em outras partes das Índias, ficaria esmaecido e pareceria pouca cousa em face da gravidade e grande número dos crimes que se perpetram no Peru (LAS CASAS 2007, pág 111).

E assim Las Casas descreve como os espanhóis “ensinavam” aos índios os

ensinamentos de Cristo. As coisas que ele presenciou, viveu e descreveu serão mais que

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suficientes para ele adotar uma posição contrária a essas práticas. Sua formação

religiosa e devoção às causas humanas farão com que ele interpele junto às autoridades

uma interferência nas Índias, devido a tudo aquilo que já vimos. A luta do frei estava

apenas começando. Sua vida será dedicada a tentativa de humanizar a América e

comprovar que os nativos daquele continente são os verdadeiros donos de como ele

mesmo chama “paraíso”. “Com o dom da vida, a liberdade é o que há de mais

precioso”. (Frei Bartolomé De Las Casas).

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Capitulo 3

A América sonhada: Sucessos e fracassos de Las Casas

Após presenciar diversas etapas da colonização espanhola em terras americanas,

Frei Bartolomé de Las Casas através de uma série de ações e tentativas de intervir a

favor dos índios na corte espanhola, vai atacar principalmente o sistema da encomienda,

assim como o trabalho servil imposto aos cativos indígenas e os mecanismos utilizados

para a manutenção da ordem colonial. Algumas de suas tentativas foram um fracasso;

como é o caso da tentativa de implantar uma colonização pacifica em território

venezuelano. Os colonos que não eram militares, mas sim lavradores e camponeses

foram os escolhidos para a missão de ocupar aquelas terras e fazer contato com os

indígenas de forma pacifica. O intuito de Las Casas era mostrar que os espanhóis

podiam trabalhar a terra, servindo de exemplo aos demais índios da região. O projeto

não vai a frente devido a um levante dos indígenas, no qual mataram boa parte desses

colonos, tendo a coroa de intervir com tropas militares. Analisaremos melhor este

episodio no decorrer do capitulo.

Outras ações do frei tiveram sucesso, como o fim do sistema da encomienda, o

que não significa que a postura dos colonos espanhóis tenha mudado com os índios da

América. A ecomienda era doada ao espanhol colono em forma de terras, essas terras e

os índios que habitavam nela seriam da responsabilidade do encomendeiro. De acordo

com Las Casas, o prejuízo que a encomienda trouxe para os índios foi sem duvida

enorme, no sentido de que os espanhóis responsáveis pela doutrinação e catequese

desses nativos não estariam interessados em aplicar os ensinamentos de Cristo,

buscando apenas os benefícios que o sistema colonial pudesse oferecer.

Por fim, a disputa mais intensa do frei em defesa das causas nativas será no

debate travado contra o bacharel em direito e defensor da colonização e do sistema

implantado, Juan Ginés Sepúlveda. Ginés Sepúlveda é defensor da colonização pela

visão aristotélica na qual o mais fraco por natureza é dominado pelo mais forte. Las

Casas consegue junto a corte a proibição do livro de Sepúlveda que defendia a guerra

justa contra esses nativos, intitulado “Demócrates segundo o De las justas causas de la

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guerra contra los índios”.12 O debate segue acompanhado por diversos teólogos,

juristas e o próprio rei da Espanha. Por fim, Frei Bartolomé de Las Casas consegue a

vitória sobre seu opositor, rebatendo uma a uma as objeções de Sepúlveda. Frei

Domingos de Soto teve a tarefa de compilar o debate em doze extratos, dando uma

copia a cada um dos debatedores.

Las Casas sempre considerou as vitórias que teve pequenas em comparação ao

estrago que esse sistema colonial infligiu à América. Porém, sua iniciativa de questionar

as práticas coloniais e a tentativa de humanizar o “Novo Mundo” foi de extrema

importância para nós, no sentido de imaginarmos como poderia ter sido se os espanhóis

aplicassem aquilo que se propuseram a fazer desde o inicio: ocupar, colonizar, doutrinar

e catequizar.

Entre os sucessos e fracassos de Las Casas em sua tentativa de dar novos rumos

a colonização espanhola na América, podemos destacar a criação das Leis Novas e a sua

reforma pacificadora em território venezuelano. As Leis Novas, de acordo com Frei

Carlos Josaphat (2000), foram elaboradas, alias, já estavam sendo elaboradas para uma

melhor intervenção da coroa, principalmente na ilha de Espanhola. O sermão do frei

dominicano Antonio de Montesinos e a sua repercussão ajudaram a acelerar o processo

da elaboração das leis. Decretadas no ano seguinte a seu sermão, em 1512, as Leis

Novas ou Leis de Burgos pretendiam determinar até mesmo a comida que se davam aos

índios, além de qualificá-los como ociosos e entregues aos “maus vicios”. Las Casas, ao

analisar as leis, não concordava com o documento, pedindo uma revisão jurídica na

elaboração destas. No ano de 1523 foram adicionadas mais quatro leis às Leis de

Burgos, as chamadas Leis de Valladolid. Mesmo após esta aparente vitória a favor dos

índios, pouca coisa mudou, as leis descritas acima não impediram que as praticas

coloniais fossem aplicadas, elas continuaram a ser usadas, consolidando ainda mais o

sistema.

Uma das brigas mais exaustivas de Las Casas foi em relação a ecomienda, prática

utilizada pelos colonos espanhóis para utilizar a mão de obra nativa em um sistema

servil. Mas o que é a ecomienda e o repartimiento? Tomaremos como base as

12Para uma análise mais profunda das ideias de Sepúlveda, ver em: http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12593394228031524198624/p0000001.htm#I_0_

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explicações do professor Antonio José do Nascimento Filho13 no que diz respeito a

encomienda e o repartimiento. A escravidão indígena não foi implantada logo no inicio

da conquista, ela se deu de forma crescente no decorrer dos anos. Antonio José nos

conta que era extremamente difícil extrair o ouro e a prata das minas, diferente das

cartas de Colombo, que fala das facilidades e abundancia dos metais. É bem verdade

que ao fazer isso Colombo queria chamar a atenção da coroa para as terras recém

descobertas. Voltando as explicações, a escravidão nativa foi um recurso dos

conquistadores e governantes coloniais para suprir os prejuízos das minas e tentar

arrecadar fundos. Mas lembremos a frase de Isabel à rainha católica, que dizia que “os

índios não podiam ser escravos e sim súditos da coroa”. O que nos da a entender que

era contrária a essa prática. O que se decretava na corte não necessariamente era

praticado na colônia; os repartidores, como eram chamados os governantes ou

funcionários do alto escalão, praticavam livremente a escravidão nativa, inclusive vem

dai o nome repartimiento, que consistia na divisão dos índios a serem entregues para os

colonos.

Ainda segundo o professor Antonio José, o período de duração seria de

aproximadamente dois anos podendo ser renovável por mais tempo a questão do

repartimiento. A legalização da escravidão só veio no ano de 1514 tornando o regime

não mais regulamentado em anos e sim vitalício. Em função disso criou-se o sistema da

ecomienda e a criação do termo encomendeiro, que seriam esses colonos,

conquistadores e governantes que tinham direito a esses índios, contanto que lhes

dessem a formação cristã. Para ter acesso a encomienda o encomendeiro deveria pagar a

instancia que governava a colônia uma quantia determinada em ouro por cada índio que

quisesse ter. Este sistema foi um agravante para a alta taxa de mortalidade dos nativos,

devido as más condições de trabalho e os maus tratos sofridos pelos índios.

Assim, a exploração foi a última de um conjunto de forças que levou os europeus a verem o seu relacionamento com o mundo sob uma perspectiva inteiramente nova. Os descobrimentos mundiais seriam seguidos pela transformação mundial igualmente obra dos europeus, estimulada crescentemente por uma confiança que aumentava a cada novo sucesso. Mas por volta de 1500 os grandes sucessos já estavam prontos para ser construído,

13Antonio José Nascimento Filho é mestre em teologia, em educação, Arte e História da Cultura e doutor em Missiologia pelo Reformed Theological Seminary, Jackson, Mississippi, EUA. Além de ser professor do Centro presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper e da Universidade Mackenzie, São Paulo.

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quando os europeus iniciaram uma longa época em que sua confiança e a sua arrogância aparentemente cresciam sem limites. O mundo não viera até eles; eles é que haviam partido para tomá-lo, e fizeram isto com muito mais sucesso do que seu antecessores nas cruzadas (ROBERT 2001, pág 406).

A intervenção de Las Casas não tardou a acontecer. Em 1515 segue para a

Espanha no intuito de falar com o rei Fernando, justamente para lhe informar sobre a

real situação dos seus súditos, os índios. Mas o nosso frei estava com pouca sorte; o rei

encontrava-se debilitado e sua saúde estava mal o que dificultou a audiência real. Para

piorar sua situação os assessores reais pouco se solidarizaram com o que Las Casas

tinha a dizer (Neto 2003). Com o falecimento do rei Fernando no ano de 1516, Las

Casas não teve sua audiência como pretendia, seguindo para Flandres 14 na expectativa

de poder enfim falar ao novo rei sobre os acontecimentos nas colônias. Quando passa

por Madri, Bartolomé de Las Casas é recebido pelo cardeal Cisneros e por Alexandre,

que era embaixador; deram conselhos para que ele, Las Casas, não seguisse viagem

esperando o novo rei por aqui mesmo. No desenrolar do dialogo os dois ficaram

interessados em saber o que tanto Las Casas queria com o novo rei, e o frei botou-se a

dizer aquilo que o afligia; uma intervenção real nas colônias para acabar principalmente

com o sistema do repartimiento e a encomienda

O clérigo lhes ofereceu um pequeno opúsculo denominado Memorial para el remédio de las Índias, em que apresentava algumas sugestões: a supressão total das encomiendas e repartimientos; que se declarasse a todos que os índios eram livres e que não podiam ser submetidos a qualquer forma de servidão; proibição de que os moradores da Espanha interferissem nos assuntos das Índias; que os clérigos que dirigissem as Índias fossem honestos e letrados; nomeação de uma pessoa religiosa que pudesse observar e fazer cumprir essas decisões (NETO 2003, pág 42).

Cisneros ficou bastante impressionado com Las Casas e as suas ambições em dar

novos rumos ao sistema colonial. O futuro Papa Adriano propôs então que o frei

preparasse uma comissão a fim de redigir um documento oficial para a reformulação

das Índias. Para isso contou com a ajuda do jurista Palácio de Rubios, além de convocar

seu amigo, frei Antonio de Montesinos, para fazer parte do grupo. Entre as principais

reivindicações da comissão estão: a não aceitação de que os índios são animais vis e

14A região de Flandres encontra-se na parte norte da atual Bélgica, juntamente com Bruxelas e Valônia formando as três regiões federais do país. Bartolomé segue para este local porque Felipe II originário desta região, seria o futuro rei da Espanha.

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idólatras corrompidos, podendo por isso ser submetidos a servidão e ao sistema das

encomiendas, um tratamento de igualdade entre colonos e nativos, pelos mandamentos

de Deus, “todos os homens são criaturas divinas feitas sob imagem e semelhança do

mesmo criador, não podendo haver qualquer forma de desajuste” (GIMENEZ 1953).

Ainda em sua denuncia, juntamente com seus amigos Palácios Rúbios e

Montesinos, Las Casas continua os relatos ao cardeal Cisneros descrevendo de forma

trágica aquilo que ele e Montesinos haviam visto em Espanhola.

En llegado a la isla Española, hagan llamar ante sí los principales cristianos viejos pobladores, y decirles que la causa principal de su ida es los grandes clamores que aça se han hecho contra ellos y contra los outros pobladores, especialmente contra los que han tenido y tienen índios conmendendados, que lso han maltratados y hecho muchos males, matando a muchos dellos sin causa y sin razón, tomandoles sus mujeres y hijas y haciendo dellas lo que han querido, haciéndolos trabajar demasiadamente y dandoles poço mantenimiento, compeliendo a las mujeres y los niños a que trabajasen, y otras muchas fuerzas y daños que se dieron (LAS CASAS 1995, pág 121-130).

Com as denuncias em mãos, finalmente o cardeal Cisneros resolveu mandar à

Espanhola um grupo de investigadores, para avaliar a situação da ilha, dando a Las

Casas a tarefa de designar os nomes que iriam até Espanhola. Sem nomes confiáveis a

indicar, o frei optou por deixar a tarefa nas mãos do próprio Cisneros que enviou para

ilha um grupo de monges da Ordem de São Jerônimo.15 Bartolomé de Las Casas

embarca na ilha de Espanhola junto com os outros monges, e percebe algo que já temia.

A proximidade dos monges de São Jerônimo com os colonos espanhóis, o que para Las

Casas significava uma coisa; a iminente chance de seu projeto ruir (NETO 2003).

De volta a Espanha no ano seguinte em 1517, coincidindo com a posse de Carlos

V e a morte de Cisneros em Setembro deste mesmo ano, Las Casas buscou ter com o rei

sua tão aguardada audiência para relatar suas queixas. Desta vez sua audiência tinha

outro intuito, um novo plano para a América; uma colonização pacifica para povoar,

doutrinar e colonizar as terras e os índios. Obtendo do rei autorização para seu

15Segundo o professor Freitas Neto e os estudiosos de Bartolomé de Las Casas, não se sabe o motivo ou os motivos que levaram o frei a não assumir a tarefa que o Cardeal Cisneros lhe dera.

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empreendimento, nosso frei da inicio a mais uma tentativa de humanizar o sistema

colonial. No território da atual Venezuela se da inicio o projeto.16

A colonização imaginada por Las Casas tinha como principal objetivo misturar

em todos os sentidos as duas culturas, espanhóis e índios trabalhando na mesma terra,

estimulando o comercio e a troca entre eles, e, porque não, contraindo casamento.

Nos projetos de colonização pacifica que Las Casas propôs as autoridades espanholas, destacam-se duas ideias básicas que definem a sociedade por ele imaginada: Colonizar com lavradores hispânicos, casados e pobres, que tivessem terras e gado; manter os povoados indígenas totalmente livres. Essas duas comunidades deviam conviver em pé de igualdade e estabelecer livremente os contatos necessários, fossem comerciais, sociais ou outros (HERNAN 1995, pág 79).

Tentando chamar a atenção da coroa para um número cada vez menor da mão de

obra nativa, gerando menos vassalos e menos tributos, Bartolomé de Las Casas vai usar

de estratégias políticas e econômicas para que seu projeto fosse enfim aceito pela coroa

de forma definitiva. Como já citado anteriormente, ele não era contrario a colonização,

defendia sim, que os índios deveriam trabalhar, mas sem em nada lembrar o sistema das

encomiendas. Las Casas buscava um equilíbrio entre os colonos e os nativos, por isso a

opção de espanhóis lavradores para servirem de exemplo e estimular o trabalho nativo

sem o uso da força. (HERNAN 1995).

De acordo com o historiador Álvaro Huerga, foram ao todo três tentativas de

pacificar as regiões da atual Venezuela. Entre os anos de 1513 a 1515 na região de

Tierra Firme, liderados por dominicanos, em 1515 a 1520 a chamada etapa de reforço

com a ajuda dos franciscanos e por fim a colonização mista na qual participou atuando

como líder da colonização, Bartolomé de Las Casas entre 1520 e 1521.

O fracasso de suas tentativas de colonizar as ditas regiões, começam a aparecer

de forma gradual. O primeiro fator foram os colonos que chegaram a essas regiões;

eram fanfarrões, em sua maioria, e não sabiam lidar com o gado e a terra, a falta de

recursos e o não cumprimento da cédula real, que dava a Las Casas terras virgens, ou

seja, terras com comunidades indígenas que nunca tiveram contato com os espanhóis

16Compilando as informações dos historiadores analisados até agora, as informações descritas acima seguem como parte do projeto de Las Casas de Pacificar a América não pela força, e sim pelas palavras e as doutrinas da fé. Entre as obras analisadas estão as dos professores Antonio José Nascimento Filho (2005), José Alves de Freitas Neto (2003), Hector Hernam Bruit (1995) e Frei Carlos Josaphat (2000).

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foram alguns dos fatores que levaram os seus planos ao fracasso. O levante dos

indígenas contra o grupo de missionários e colonos espanhóis foi o ponto final para esse

sistema pacifico, tendo a coroa que intervir com tropas militares para dar fim a essa

situação (NETO 2003).

Um dos mais importantes episódios no contexto da colonização espanhola no

século XVI, sem duvida alguma foi o embate jurídico e teológico entre Frei Las Casas e

Juan Ginés Sepúlveda. Cada um com a sua visão e a sua maneira de perceber o sistema

colonial; de um lado Sepúlveda, partidário da filosofia de Aristóteles na qual o mais

fraco se submete ao mais forte por uma razão lógica de superioridade. E do outro lado

frei Bartolomé de Las Casas, com toda sua experiência e vivencia na América,

acompanhando de perto o sistema, vai defender o direito dos índios, como verdadeiros

donos daquele continente, não diferindo espanhóis e nativos, já que todos eles são fruto

de um único Deus.

Para muitos o debate começou quando Sepúlveda publicou o seu livro

defendendo a implantação do regime e legitimando o uso da força contra os índios. Las

Casas tratou de usar de sua influencia para que o tal livro não fosse publicado, gerando

assim o inicio do debate.

Alguns historiadores crêem que o imperador Carlos V estava tão impressionado com os argumentos de Las Casas acerca da soberania dos índios sobre suas terras, que o próprio imperador estava disposto a abandonar o Peru por questões de consciência, e só não o fez porque o teólogo Francisco de Vitória o recomendou a não fazê-lo (BATAILLON 1965, pág 291).

Indo a Roma para publicar a edição do seu livro Democrates Primus, escrito em

latim no ano de 1535, Sepúlveda teve ampla aceitação do Papa, pois naquele período

suas idéias baseadas na filosofia de Aristóteles se encaixavam perfeitamente com as

guerras contra os turcos, na qual a Europa se encontrava. O interessante é que na

Espanha, essa teoria não era tão aceita como ele gostaria que fosse; nos principais

centros acadêmicos como o de Salamanca e Valladolid, podemos perceber isso.

Covarrubias, em sua tese de doutorado em Salamanca, em 1539, declarou que os impérios não são estabelecidos e mantidos pelas armas, e sim, pela cultura, porque a sabedoria e as letras são os instrumentos efetivos para

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verdadeiramente criar e defender a grandeza das nações (MISIÓN DE ESPAÑA EN AMÉRICA, 1540-1560. Pág 168).

Um dos mais brilhantes estudiosos das obras de Las Casas, Lewis Hanke,

continua a descrição do pensamento lascasiano momentos antes do debate de Valladolid

contra Sepúlveda. A insatisfação do Frei com o sistema, de acordo com Hanke, pode ser

resumida por essas palavras:

Em qualquer lugar neste mundo em que haja homens racionais vivendo felizes em suas populosas terras, sendo subjugados por homens cruéis e por injustas guerras chamadas de conquistas e ao mesmo tempo sendo repartidos e distribuídos como se fossem coisas inanimadas, escravizados de modo infernal, pior do que os judeus no tempo dos faraós no Egito, tratados como se fossem bois sendo conduzidos ao mercado, como é possível ser dado credito àquelas pessoas que cometem ou apóiam tais maus tratos (HANKE 1974, pág 67).

De forma impressionante, o Real Conselho das Índias deu um parecer favorável

as ambições de Las Casas. Lembremos sua ação, ou melhor, sua tentativa de pacificar as

regiões da Venezuela, uma de suas principais reivindicações era a de que as leis fossem

feitas e executadas por homens justos. Em nota oficial o Real Conselho descreve a

seguinte afirmação:

Nós, certamente, sentimos que estas leis não tem sido obedecidas, porque aqueles que conduzem estas conquistas não são acompanhados por pessoas que os reprovem ou acusem quando o fazem o mal. A dor daqueles que estão sob o domínio dos conquistadores, bem como a humilhação daqueles índios, é de tal natureza, que não é de esperar que alguma instrução seja obedecida. Assim, seria de bom alvitre que Sua Majestade ordenasse um encontro de homens notáveis, teólogos e juristas, para discutirem e considerarem a maneira pela qual estes conquistadores devem agir, com justiça e boa consciência. Alguma instrução com vistas a este propósito deve ser feita, levando em conta tudo o que for necessário para isto, e deve ser considerada uma lei para governar as conquistas, as quais devem ser aprovadas pelo Conselho, bem como as que forem aprovadas pelas audiências (HANKE 1974, pág 67).

Se considerarmos a atuação do rei Carlos V em 16 de Abril no ano de 1550,

ordenando que todas as conquistas na América fossem suspensas até que se formasse

uma junta com homens capacitados para conduzi-las, podemos dizer então que de forma

indireta Las Casas obteve sua primeira vitória contra Sepúlveda. Sendo assim ambos

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iriam se preparar para expor suas ideias de forma oficial em data marcada pelo

Conselho, no mesmo ano, dando inicio ao debate.

Começaremos com as exposições de Sepúlveda a favor das guerras justas contra

os índios. Este se baseou principalmente na obra de Aristóteles para formular suas teses.

Tentaremos compilar apenas as teorias principais de seus argumentos, começando pelo

pensamento do filosofo grego Aristóteles.

Há ainda, por ação da natureza e para manutenção das espécies, um ser que manda e outro que obedece. Pois aquele que tem inteligência capaz de prever tem, de modo natural, autonomia e poder de chefe; aquele que não tem senão a força física para executar deve, obrigatoriamente, obedecer e servir (ARISTÓTELES 166, pág 10).

Dando seqüência ao seu raciocínio Aristóteles conclui:

Fica demonstrado, de modo evidente, o que o escravo é em si e o que pode ser. Aquele que a se mesmo não se pertence, porém pertence a outro, e, contudo, é um homem, esse é naturalmente escravo. Ora se um homem é de outro, é algo possuído, ainda que seja homem. E uma coisa possuída é um instrumento de uso (ARISTÓTELES 166, pág 14).

Outras citações seguem nesse mesmo rumo, além de adjetivar o outro, no caso os

índios, de “bárbaros e selvagens”, desprovidos de inteligência e capacidade de

racionalizar, Sepúlveda mantém seus argumentos pautados no filosofo grego.

Se pudéssemos definir os argumentos de Sepúlveda com uma palavra, esta seria

hierarquia. A perfeição em oposição a imperfeição, o bom contra o mau estão presentes

na obra e na fala de Sepúlveda. Para ficar mais claro o que ele pretendia demonstrar,

seguiremos com a seguinte citação, extraída de seu livro Democrates Segundo.

Em prudência como em habilidade, e em virtude como em humanidade, esses bárbaros são tão inferiores aos espanhóis quanto as crianças aos adultos e as mulheres aos homens; entre eles e os espanhóis, há tanta diferença quanto entre gente feroz e gente de uma extrema clemência, entre gente prodigiosamente intemperante e seres temperantes e comedidos, e ousaria dizer, tanta diferença quanto entre macacos e os homens (SEPÚLVEDA 1951, pág 33).

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Vale destacar o trabalho do antropólogo François Laplantine e a questão do

outro. Quem realmente é o selvagem e o bárbaro? Os nativos eram tão cruéis e vis como

descritos nas crônicas? O que os índios pensavam a respeito dos europeus? São

perguntas pertinentes ao nosso estudo e merecem uma análise um pouco mais

aprofundada. O antropólogo francês François Laplantine, nasceu na cidade de Paris, no

ano de 1943. Doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Nanterre (Paris X) e em

Antropologia pela Sorbonne (Paris V). Suas principais pesquisas são realizadas na

América Latina, sobretudo no Brasil (LEVY 2003, on-line). E é com base em seus

estudos que analisaremos a questão do nativo americano. Eles andam nus ou se cobrem

com peles de animais, comem carne crua, seus modos alimentares são estranhos, os

espanhóis acreditam que eles eram canibais. Não compreendem nossa língua, a língua

do homem civilizado. Falam um dialeto estranho uma língua inteligível (Laplantine

2003).

Mostramo-lhes o alfabeto sem o qual os homens são como animais e o uso do ferro que é tão necessário ao homem.Também lhes mostramos vários hábitos, artes, costumes policiados para poder melhor viver. Tudo isso e até cada uma dessas coisas vale mais que as penas, as perolas, o ouro que tomamos deles, ainda mais porque não utilizavam esses metais como moeda (GOMARRA, 1555 apud LAPLANTINE 2003, pág 31).

O conceito de alteridade aqui é empregado em seu sentido mais pleno. A visão

ocidental, ou melhor, européia, imposta aos indígenas, desconstruindo a imagem que

eles possuíam, seja ela qual for, bom, mau, isso não importa, o que importa é que os

espanhóis trataram de adjetivar esses homens sem ao menos compreender sua

sociedade.

Assim como Las Casas em sua defesa das causas nativas, Laplatine nos descreve

como seria se os espanhóis fossem considerados os selvagens, os “bárbaros”. O

antropólogo nos da a entender que esses nativos não precisavam ser governados por

ninguém, já tinham um sistema complexo, tanto religioso e econômico, uma estrutura

social hierarquizada e viviam de acordo com seus costumes. O próprio Colombo ao

desembarcar na América, descreve o ocorrido da seguinte forma:

As pessoas estão nuas, são bonitas, de pele escura, de corpo elegante.Nenhum possui qualquer coisa que seja, pois tudo é colocado em comum. E os homens tomam por mulheres aquelas que lhes agradam, sejam elas sua mãe, irmã, ou

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sua amiga, entre as quais eles não fazem diferença. Vivem em torno dos cinqüenta anos.São muito mansos e ignorantes do que é o mal. Eles não sabem se matar uns aos outros (...) Eu não penso que haja no mundo homens melhores, como também não há terra melhor (COLOMBO 1492, apud LAPLANTINE 2003, pág 34).

Concluindo a sua avaliação, Laplatine nos diz que os homens brancos, os

espanhóis, não eram tão civilizados assim. Os índios da América poderiam ser

considerados selvagens devido as regras da razão ocidental européia, mas em relação ao

outro, ao espanhol, o nativo não superava toda a barbárie do homem branco.

E Sepúlveda continua seus argumentos, de forma um tanto repetitiva, sempre

difamando e adjetivando negativamente os índios. Seguiremos com mais uma de suas

citações, dessa fez fazendo alusão a engenhosidade nativa e os relatos de Cortes ao

avistar a magnífica capital asteca Tenochtitlan. Descreve Sepúlveda da seguinte forma:

Mesmo que haja algumas pessoas que admirem as pinturas dos índios, deve-se saber que não há nenhuma virtude ou valor artístico naquilo que os índios fazem, desde que animais pequenos tais como a aranha e os passarinhos são também hábeis para fazer teias e ninhos (SEPÚLVEDA 1951, pág 36).

Rebatendo um a um os argumentos de Sepúlveda, Frei Bartolomé de Las Casas

começa sua exposição comentando a respeito da primeira afirmação do referido

bacharel Sepúlveda de que os índios são bárbaros e por isso aptos a servidão. A primeira

categoria de bárbaro seria então aquela em relação ao comportamento, mas sabiamente

Las Casas faz com os grandes impérios e civilizações como os gregos e romanos

dizendo que estes também poderiam ser considerados bárbaros se o seu comportamento

fosse suficientemente selvagem. Relembrando Laplantine, os espanhóis ultrapassaram

qualquer outra nação neste quesito; os maus tratos impostos aos índios e a morte de

milhões de pessoas.

Contra a tese de que os índios eram idolatras e por isso a guerra seria justificada

contra eles, além de cometerem sacrifícios contra o próprio povo, o frei segue

contrariando esta tese descrevendo os índios e os seus costumes.

Os adoradores de ídolos, no mínimo no caso dos índios, os quais nunca ouviram o ensino de Cristo antes, são menos pecadores do que os judeus ou os sarracenos, pois o fato de ignorarem e nunca terem ouvido anteriormente a fé cristã atenua a falta dos índios. Baseados nisso, vemos que a igreja nunca

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puniu os cegos espirituais entre os judeus ou sarracenos, os quais vivem dentro das cidades e território cristãos na Espanha. Isto é obvio e não necessita de provas. Acidade de Roma, o bastião da religião cristã, possui muitos judeus e sinagogas, assim como a Germânia e outros reinos cristãos. Na Espanha temos sarracenos vivendo entre nós por muito tempo. Não obstante, a igreja não pune os descrentes entre os judeus e os sarracenos que vivem dentro dos territórios cristãos, tampouco deve a igreja punir os idolatras que vivem naquelas vastas porções de terras, os quais não sabem o que significa a Igreja e nunca antes estiveram sob jurisdição da Igreja ou de seus membros (LAS CASAS 1974, pág 78-79).

O terceiro argumento de Sepúlveda vem abaixo na dissertação de Las Casas.

Sepúlveda descrevia os índios como animais e seres bárbaros, que praticavam o

sacrifício humano em oferenda a seus deuses. Nada mais justo do que uma intervenção

armada para acabar com essa pratica. Ao contrario do doutor, Frei Bartolomé de Las

Casas de forma bem clara defende os nativos e sua pratica.

Portanto, esta claro que não é possível para nós, cristãos, fazer compreensível para os incrédulos em pouco tempo que sacrificar homens para Deus não é natural. Nessa perspectiva, chegamos à evidente conclusão de que conhecimento [de] que os nativos fazem sacrifícios aos deuses não é, em si, uma causa e um motivo para que façamos guerra contra eles e exterminemos suas nações. Se mudanças têm que acontecer, elas devem acontecer através da proclamação da fé cristã, mas de uma maneira amável, gentil e dócil, sem, contudo utilizar o instrumento da força e da coação. A mudança de um povo ou nação pagã para a fé cristã não é algo que aconteça rapidamente. Isto requer tempo e paciência para que absorvam os valores da religião cristã. Eles não podem ser tidos por culpados, se de inicio não entenderem os novos valores que lhes estão sendo ensinados, pois nem eles mesmos ainda sabem o que é melhor para eles (LAS CASAS 1974, pág 241-242).

Por fim, a ultima tese a ser derrubada era a de que os nativos poderiam ser

levados a guerra, já que não eram cristão e a força armada dos militares levaria a fé aos

mais distantes territórios. Como levar a fé através da força? Algo impensável para Las

Casas , por mais que os nativos fossem difíceis de conversão a paciência e dedicação

eram as armas mais importantes.

Justamente como não existe diferença na criação dos homens, assim também não existe diferença na chamada para a salvação de todos eles, não importando se são bárbaros ou sábios desde que a graça de Deus pode corrigir as mentes dos bárbaros a fim de que eles tenham um entendimento aceitável. [...] Ele pode mudar todas as pessoas, eu sei, não importando se boas ou más:

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o bom para que ele não pereça, e o mau para que ele não tenha desculpas perante Deus (LAS CASAS 1974, pág 271).

Feito as considerações finais, Frei Bartolomé de Las Casas teve ampla aceitação

nos debates, botando abaixo uma a uma as teses de Sepúlveda, ganhou de forma

unânime a tão acirrada disputa contra o doutor. Por uma América mais humana o Real

Conselho Das Índias interviu de forma marcante no sistema colonial. Com uma

regulação muito mais forte, mais participativa e principalmente fiscalizando e

considerando os direitos dos nativos. Entre os principais juizes do conselho podemos

citar Tomás López e Alonso de Zorita, partidários do pensamento lascasiano e

defensores de um sistema colonial justo.

Quero finalizar este capitulo com as palavras do professor Leandro Karnal que

descreve Las Casas e suas obras como sendo o despertar de um novo momento.

Como os habitantes da mítica Macondo de Garcia Márquez, os homens sofrem de ciclos de esquecimentos. Las Casas não desejava que a violência contra os indígenas fosse esquecida. Para isso denunciou as praticas que eliminaram grande parte da população nativa da América e propôs um Império Cristão sustentado na sua leitura religiosa. O texto de Las Casas adquiriu uma força tão extraordinária que seria correto considerá-lo o criador de uma versão solidificada do que teria sido a conquista da América pelos espanhóis. Associado ao poder imaginético das gravuras de De Bry, a obra do Bispo consagrou-se como um atestado duplo: de óbito para os indígenas e de nascimento para a nossa civilização.17

17Escrito por Leandro Karnal, Professor de História da Unicamp, com ênfase em História Das Américas. Texto encontrado na obra de José Alves de Freitas Neto já citado neste trabalho.

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Conclusão

O descobrimento da América por Cristóvão Colombo fez com que a Espanha

vivesse uma época de prosperidade e hegemonia no decorrer do século XVI. As ricas

terras recém descobertas foram exploradas de forma intensa pelos colonos espanhóis.

Posteriormente, o ouro e a prata encontrados nas minas andinas e no México central,

elevaram a coroa espanhola ao status de superpotência européia da época. Mas, se por

um lado a descoberta do continente americano foi bastante lucrativo para os espanhóis,

não se pode dizer o mesmo em relação aos habitantes da América. Escravizados,

tiveram suas sociedades destruídas, seus reinos tombados e a sua população quase que

extinta.

Para que esses nativos fossem reconhecidos como homens e verdadeiros donos

das referidas terras, Frei Bartolomé de Las Casas usou: sua retórica, as leis, o amor

cristão e toda sua influencia na corte.

Seus ganhos, entretanto, não garantiram que os índios deixassem de sofrer com o

sistema colonial, levando à extinção seus povoados, tribos e reinos. Os números

mostram que nenhum outro acontecimento histórico foi tão expressivo na quantidade de

mortos do que a Colonização Espanhola das Américas. Ao longo do trabalho, é

analisado o impacto desse sistema para as sociedades indígenas e concluiu-se que o

resultado deste foi o desaparecimento de como o próprio Las Casas chamava: “O

Paraíso”.

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