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Historiografia

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  • Bom dia camaradase um retrato de uma(infncia em) Angola

    Roberta Guimares Franco (UFF PG)

    infncia um antigamente que sempre voltaOndjaki

    los nios son las flores de la Humanidad!

    Fala do professor ngel

    A temtica da infncia j trabalhada por autores como Luandino Vieira, Pepetela, Arnaldo Santos, Boaventura Cardoso, Manuel Rui e tantos outros desempenha um importante papel, tanto na busca pela identidade, como na recuperao do passado, e ainda na possibilidade do desenho de um futuro, na esperana do novo. No livro Entre Voz e Letra, Laura Padilha atenta para o fio temtico da infncia e para os textos que colocam em contato o velho e o novo: Quando referenciada ao passado, a infncia, via de regra, metaforiza um tempo de prazer s em parte segmentado por diferenas de classe, raa, etc. Ao plasmar-se como metfora do futuro, ela se marca pelo dinamismo, passando a representar a confiana na reconstruo do corpo histrico fragmentado (PADILHA, 1995, p. 142).

    Assim como Laura Padilha, Pires Laranjeira, em Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa, ressalta o importante papel da temtica infantil, do confronto entre o novo e o velho, to presente na realidade dos pases africanos recm independentes:

    As crianas e os jovens tm sempre, na literatura prometeica, como a de toda a frica, um papel muito importante, de gazuas do futuro, simbolizando, em ltima instncia, o triunfo do novo sobre a velha tradio e sobre a dominao colonial (LARANJEIRA, 1995, p. 128).

    ABRIL Revista do Ncleo Estudos de Literaturas Portuguesa e Africanas da UFF, Vol. 1, n 1, Agosto de 2008 88

  • Bom dia camaradas e um retrato de uma (infncia em) Angola

    O jovem escritor angolano Ondjaki, hoje muito conhecido no Brasil, lanou, no ano de 2003 (pela Editorial Caminho), o livro Bom dia camaradas, no qual traz a representao da infncia, o retorno ao antigamente como projeo do futuro, como fica claro na epgrafe do prprio autor retirada da orelha do livro. A convite de um amigo, o escritor aceitou a idia de escrever algo sobre a histria de seu pas. Em entrevista revista eletrnica Carta Maior, enfocando a criao de seu romance, nos diz :

    Foi o desafio de um editor amigo, angolano. Ele queria um livro que falasse da minha perspectiva da independncia de Angola. Eu nasci em 1977, dois anos depois da independncia, e eu pensei que a minha viso sobre todo esse processo histrico era a da minha prpria infncia. Organizei algumas memrias, preparei alguns captulos e comecei a escrever. Claro que tive que ficcionalizar a minha vida, e a dos outros tambm. Mas um livro sempre isso. (www.cartamaior.com.br entrevista de 24/08/2006)Assim, trabalha com dois tempos, ou seja, o tempo do vivido e o tempo do relembrado: o autor recupera o ontem no hoje. memria pessoal do escritor se une um perodo da histria de Angola, como Ondjaki deixa claro na prpria orelha do livro: tudo isto contado pela voz da criana que fui; tudo isto embebido na ambincia dos anos 80 (...). No entanto, o autor confessa (em algumas entrevistas) que seu livro possui um material muito mais afetivo do que histrico.

    Ao fazer dialogar fico e histria, o romance do jovem Ondjaki relaciona-se com uma gama de romances angolanos (e no s) que, atravs de suas narrativas, contam, recontam e conservam a histria do pas, reavivando a memria do leitor para acontecimentos importantes. Estes textos literrios dialogam com a histria e com a memria, assumindo o papel de recuperar as vrias realidades para torn-las fico. Assim, a memria, parte integrante do processo de reviver o passado, contribui para o reforo da questo identitria. Como adverte o historiador francs Jacques Le Goff:

    a memria, onde cresce a histria, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. A memria um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual e coletiva, cuja busca uma das atividades fundamentais dos indivduos e das sociedades de hoje, na febre e na angstia.(LE GOFF, 1996, p. 477).

    Conforme Le Goff, cabe memria o papel de preservar o passado. Assim,

    parte-se do que foi, para pensar o que e o que ser (mais uma vez voltamos a epgrafe de Ondjaki). Esta preservao, contudo, no deve ser entendida como privilgio dos historiadores, pois tambm a literatura uma forma vlida e possvel de recuperar a memria do vivido e avaliar sua importncia na construo da identidade dos indivduos e da coletividade, repetindo o autor. Desta forma, impossvel no compreender a literatura como uma fonte rica e vasta para o entendimento do passado, servindo tanto como espelho como quanto reflexo desta memria.

    Assim, o passado ou o antigamente volta na voz de Ndalu (nome verdadeiro de Ondjaki), o menino-narrador do romance. O tempo da histria corresponde a de um ano letivo, localizado nos anos 80, deixando mais delimitado o espao e o tempo da narrativa. Nesse ano conhecemos os amigos da escola, principais personagens recriadas pela memria. Cludio, Murtala, Petra e Romina so os que aparecem com mais freqncia na narrativa, participando de atividades escolares ou de reunies na casa de algum deles. As crianas dividem as alegrias, os medos e as descobertas.

    No entanto, o livro no trar somente relaes infantis. Algumas personagens adultas mantm o antigo elo entre o velho e o novo, transformando o romance em um texto inicitico, ou ainda em um texto de formao. A principal personagem adulta do romance representada pela figura do camarada Antnio, empregado da famlia de Ndalu, com quem o menino sempre ter um forte dilogo:

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    Mas, camarada Antnio, tu no preferes que o pas seja assim livre? (...)- Menino, no tempo do branco isto no era assim...Depois, sorria. Eu mesmo queria era entender aquele sorriso. Tinha ouvido histrias incrveis de maus tratos, de ms condies de vida, pagamentos injustos, e tudo mais. Mas o camarada Antnio gostava dessa frase dele a favor dos portugueses, e sorria assim tipo mistrio. (ONDJAKI, 2003, p. 13)

    O camarada Antnio a ponte de ligao entre o presente independente de

    Angola e o seu passado colonial. Atravs das falas de Antnio, Ndalu aprender sobre o passado de seu pas, alm de uma posio contrria a da euforia da recente independncia, j que Antnio parece sentir certa saudade do tempo do colonizador e no confiar tanto na poltica atual. Os dilogos com Antnio marcaro toda a narrativa, dando ao final do romance uma idia de ciclo completo. O Camarada Antnio o grande iniciador do menino Ndalu. Assim, no espao da casa que Antnio participar da formao do menino, caracterizando o espao como um espao da oralidade, j que todo o processo inicitico se d atravs das falas de Antnio.

    Aparecem tambm, com bastante relevncia, os professores cubanos, em especial o professor ngel. Mais do que presenas adultas numa narrativa na qual um menino relata os fatos, os professores cubanos representam uma caracterstica poltica da poca: o apoio dado por Cuba, que enviou militares para Angola para atuarem nas reas da segurana nacional, da medicina e da educao. Os cubanos tambm representam a fora que vem de fora, depois de um longo perodo de rejeio do outro, no caso o portugus. As falas do camarada ngel do o tom de disciplina e resistncia, deixando claro que, para formar bem um pas, at mesmo os pequenos devem refletir sobre seus atos. A sua presena tambm coloca em evidncia o importante papel desempenhado pela escola (o espao das letras) nesse contexto, como um espao de resistncia e de formao do indivduo: No quiero que se queden con esa cara... estn plidos de miedo! Miren, la escuela tambin es un sitio de resistencia... (ONDJAKI, 2003, p. 68). Ou ainda: num pas em reconstruo era preciso muita disciplina. Ele tambm falou do camarada Che Guevara, falou da disciplina e que ns tnhamos que nos portar bem para que as coisas funcionassem bem no nosso pais. (ONDJAKI, 2003, p. 17).

    Ainda dentre os adultos encontramos a personagem tia Dada, a tia do menino Ndalu que vive em Portugal. Os dilogos entre os dois so repletos de ternura, amadurecimento e, principalmente, de uma ingenuidade, que esconde a ironia do autor. com tia Dada que o menino descobre a diferena do outro, mais do que a diferena entre o passado e o presente, discutida com o camarada Antnio, e mais do que o estranhamento da lngua dos professores cubanos. significativa a cena que descreve o dilogo entre tia Dada e Ndalu sobre os cartes de abastecimento cartes utilizados pelo regime socialista para o controle da quantidade de alimentos comprados por cada famlia quando Ndalu percebe que esta prtica no existia em Portugal:

    - No tenho nenhum carto de abastecimento, em Portugal fazemos compras sem carto.- Sem carto? E como que controlam as pessoas? Como que controlam, por exemplo, o peixe que tu levas? eu j nem lhe deixava responder.- Como que eles sabem que tu no levaste peixe a mais?- Mas eu fao as compras que quiser, desde que tenha dinheiro, ningum me diz que levei peixe a mais ou a menos... (ONDJAKI, 2003, p. 47)

    A troca entre a tia Dada e Ndalu reaviva a relao entre o velho e o novo. Com

    ela Ndalu aprende a olhar o seu pas com outros olhos, a ironia disfarada de ingenuidade questiona. Ao entrar em contato com o outro, o menino deixa a pura observao e passa a buscar um entendimento. Assim, Ndalu tenta entender porque os cartes de abastecimento so necessrios, o porqu da existncia de uma praia dos

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  • Bom dia camaradas e um retrato de uma (infncia em) Angola

    soviticos e os cuidados que cercam o camarada presidente, ao mesmo tempo em que a narrativa fornece informaes histricas sobre o perodo.

    Antes do contato com a tia e das reflexes despertadas pelo encontro, Ndalu ainda se aborrecia com a intensa presena dos assuntos polticos na vida cotidiana, irritao comum a qualquer criana. As notcias que chegavam atravs do rdio, e interrompiam qualquer conversa, foram utilizadas pelo autor como um boletim dentro do prprio texto, uma forma de dar conta dos fatos histricos no decorrer do romance. Assim como a presena do camarada Antnio, as notcias radiofnicas fecham um ciclo na narrativa, um ciclo pessoal de amadurecimento do menino Ndalu e um ciclo histrico das transformaes polticas do pas:

    Ns ficvamos um bocado aborrecidos com as notcias, porque era sempre a mesma coisa: primeiro eram as notcias da guerra, que no eram diferentes quase nunca, s se tivesse havido alguma batalha mais importantes, ou a UNITA tivesse partido uns postes. (...) eu fiquei a saber que havia um pas chamado frica do Sul onde as pessoas negras tinham que ir para casa quando tocava a campainha s seis da tarde (...) Foi tambm assim que percebi porqu que os sul-africanos eram nossos inimigos, e que o facto de ns lutarmos contra os sul-africanos significava que ns estvamos a lutar contra alguns sul-africanos, porque de certeza que essas pessoas negras que tinham um machimbombo especial para elas no era nossas inimigas. Ento tambm percebi que, num pas, uma coisa o governo, outra coisa o povo. (ONDJAKI, 2003, p. 26)

    Num primeiro momento as notcias do conta da distante soluo para os

    conflitos em Angola, das tentativas da frica do Sul de invadir o territrio angolano e da dura poltica do apartheid aplicada naquele pas. Apesar do inicial aborrecimento sentido por Ndalu, atravs das notcias ele consegue chegar a algumas concluses. J no fim do romance, as notcias que chegam atravs do rdio falam do fim da guerra e de uma futura eleio. Sabemos, no entanto, que a guerra no acabou nesse momento e, de certo modo, a indagao de Ndalu mostra a impossibilidade de paz:

    Quando ligamos o rdio que percebi: afinal estavam a dizer que a guerra tinha acabado, que o camarada presidente ia se encontrar com o Savimbi, que j no amos ter o monipartidarismo e at estavam a falar de eleies. Eu ainda quis perguntar mas como que vo fazer eleies, se em Angola s h um partido e um presidente..., mas mandaram-me calar para ouvir o resto das notcias. (ONDJAKI, 2003, p. 134).

    Nestes trechos evidencia-se a importncia do papel social do escritor. Atravs do

    texto, Ondjaki retoma momentos cruciais da histria de Angola, alm de reavivar a memria do leitor para acontecimentos que no devem se repetir, como o apartheid. Segundo Nicolau Sevcenko (2003) a literatura , antes de mais nada, um produto artstico, porm com razes no mbito social. Nesse sentido, pode falar ao historiador sobre a Histria que no ocorreu, sobre possibilidades que no aconteceram, planos que no foram concretizados. Mais do que um testemunho, ela revelar momentos de tenso. Assim, com o crescimento de Ndalu, o romance continuar at a ltima pgina contribuindo para a escrita da histria de Angola.

    O amadurecimento de Ndalu gradativo. Nos trechos que a princpio parecem inocentes conversas de crianas, como a velha histria de que os meninos no gostam de tomar banho, se transformam em dados histricos e em crticas sociais. Luanda no sofreu diretamente com a guerra civil, a capital no foi o palco central das batalhas (que ocorriam no interior do pas), no entanto sofreu os efeitos colaterais de uma guerra: a falta de alguns alimentos, de luz e de gua. Ento, Ndalu passa a observar os problemas causados pela guerra. O menino agora olha o seu entorno e pensa nos problemas que atingem o coletivo:

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    As minhas irms dizem que os rapazes so sempre assim, no gostam de tomar banho, mas eu tenho uma colega que s toma banho uma vez por semana, isso tambm porque na casa dela a gua s vem uma vez por semana, ento eles enchem a banheira e depois tm que poupar a gua durante a semana toda. (ONDJAKI, 2003, p. 61)

    A guerra causa muito mais do que danos materiais, a falta de perspectiva para o fim dos confrontos supera qualquer outra falta, a espera de uma possvel soluo altera a vida de todos. O cotidiano infantil completamente distorcido, os assuntos que deveriam fazer parte somente da vida adulta esto em toda parte. Os trabalhos escolares so grande prova dos distrbios causados por um estado de caos (seja ele uma guerra em Angola ou no atual Rio de Janeiro), o imaginrio infantil fica povoado por conflitos: Guerra tambm aparecia sempre nas redaces, experimenta s mandar um aluno fazer uma redaco livre para ver se ele num vai falar da guerra (...). Guerra vinha nos desenhos (as aks, os canhes monacaxito), vinha nas conversas (tou ta dizer, verdade...), vinhas nas pinturas na parede (os desenhos no hospital militar), vinha nas estigas (teu tio foi na UNITA combater, depois voltou, tava a reclamar l tinha bu de piolho...), vinha nos anncios da tv ( Reagan, tira a mo de Angola...!), e at vinha nos sonhos (dispara Murtala, dispara porra!). (ONDJAKI, 2003, p. 129)

    Apesar de todos os dados histricos contidos no romance, Ondjaki coloca em destaque a inocncia de Ndalu, que, no entanto, v as coisas de modo certeiro. O autor afirma que apostou mais nas verdades bonitas, em torno da ternura, que nas verdades que fossem buscar dores (O Estado de So Paulo, entrevista de 13/08/2006). Assim, Bom dia Camaradas sim um livro de ternuras, mas tambm marcado pelas despedidas, que de certa forma estavam ligadas guerra. O ano letivo acaba, alguns amigos se vo. Com o possvel fim da guerra os professores retornam a Cuba. E o camarada Antnio deixa mais do que um espao vazio na cozinha, deixa saudades.

    (Entregue para publicao em Maro/2007,Aprovado em Abril/2007)

    REFERNCIAS

    CAMPOS, Maria do Carmo Seplveda. Estrias de Angola: fios de aprendizagem em malhas de fico. Niteri: EDUFF, 2002.

    CHAVES, Rita. A formao do romance angolano. So Paulo: Via Atlntica, 1999. LE GOFF, Jacques. Histria e Memria. Campinas: UNICAMP, 1996.LARANJEIRA, Pires. Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa. Lisboa: Universidade

    Aberta, 1995.ONDJAKI. Bom dia camaradas. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra - o lugar da ancestralidade na fico angolana do

    sculo XX. Niteri: EDUFF, 1995.RUI, Manuel. Quem me dera ser onda. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005.SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso tenses sociais e criao cultural na primeira

    repblica. So Paulo: Companhia das Letras, 2003. SANTOS, Arnaldo. Prosas. Luanda: Unio dos Escritores Angolanos, 1985. VIEIRA, Jos Luandino. A cidade e a infncia: estrias. Lisboa: Edies 70, 1977.

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