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ISSN 2177-8892 1400 FORMAÇÃO DO PEDAGOGO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: CONTRADIÇÕES EM EVIDÊNCIA? Adriana Machado Penna 1 Lorene Figueiredo 2 Jéssica Angelo Pereira 3 Marcilene Rodrigues 4 Introdução A universidade pública brasileira vem sofrendo reformas que se articulam com os ditames do grande capital internacional. Atentos a esta conjuntura temos por objetivo neste artigo chamar a atenção para a formação do pedagogo sob as circunstâncias experimentadas pela universidade pública contemporânea. À universidade são impostos limites que dificultam a promoção de uma formação omnilateral5 na qual o saber científico, acumulado pelos homens durante a sua história, possa ser socializado. Nesse sentido, questionamos: Como a atual dinâmica produzida pelas relações entre trabalho e educação tem se expressado na formação do pedagogo? Quais os impactos dessas relações na práxis do futuro pedagogo? Inicialmente faremos um breve resgate da concepção original de universidade implementada no Brasil. Nossa intensão será identificar as principais transformações experimentadas por este modelo de universidade e suas consequências sobre a realidade atual. 1 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UERJ; Professora do curso de pedagogia da Universidade Federal Fluminense INFES - Instituto Noroeste Fluminense de Educação Superior, Campus Santo Antônio de Pádua RJ; Lider do Grupo de Pesquisa Centro de Pesquisa Marxismo, Educação e Emancipação Humana CPMEEH CNPq. 2 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ; Professora do curso de pedagogia do INFES; pesquisadora do CPMEEH. 3 Pedagoga pelo INFES, pesquisadora do CPMEEH. 4 Graduanda no curso de pedagogia do INFES; Monitora das disciplinas do campo Trabalho e Educação; pesquisadora do CPMEEH. 5 Educação omnilateral entendida aqui, segundo a herança marxista nas palavras do professor Mário Manacorda* (1964, apud. Saviani, 2003, p. 145), como uma concepção de formação humana que busca unificar teória e prática, opõe-se à divisão originária entre trabalho intelectual e manual, que a fábrica moderna exacerba”. SAVIANI, D. O choque teórico da politecnia. In: Trabalho, Educação e Saúde, 2003. Disponível em: http://www.revista.epsjv.fiocruz.br/upload/revistas/r41.pdf *MANACORDA, M. A. 1964. Il marxismoe l’educazione. Roma. Armando.

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FORMAÇÃO DO PEDAGOGO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO:

CONTRADIÇÕES EM EVIDÊNCIA?

Adriana Machado Penna1

Lorene Figueiredo2

Jéssica Angelo Pereira3

Marcilene Rodrigues4

Introdução

A universidade pública brasileira vem sofrendo reformas que se articulam com

os ditames do grande capital internacional. Atentos a esta conjuntura temos por objetivo

neste artigo chamar a atenção para a formação do pedagogo sob as circunstâncias

experimentadas pela universidade pública contemporânea. À universidade são impostos

limites que dificultam a promoção de uma ‘formação omnilateral’5 na qual o saber

científico, acumulado pelos homens durante a sua história, possa ser socializado. Nesse

sentido, questionamos: Como a atual dinâmica produzida pelas relações entre trabalho e

educação tem se expressado na formação do pedagogo? Quais os impactos dessas

relações na práxis do futuro pedagogo?

Inicialmente faremos um breve resgate da concepção original de universidade

implementada no Brasil. Nossa intensão será identificar as principais transformações

experimentadas por este modelo de universidade e suas consequências sobre a realidade

atual.

1 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UERJ; Professora do curso de

pedagogia da Universidade Federal Fluminense – INFES - Instituto Noroeste Fluminense de Educação

Superior, Campus Santo Antônio de Pádua – RJ; Lider do Grupo de Pesquisa Centro de Pesquisa

Marxismo, Educação e Emancipação Humana – CPMEEH – CNPq. 2 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ;

Professora do curso de pedagogia do INFES; pesquisadora do CPMEEH. 3 Pedagoga pelo INFES, pesquisadora do CPMEEH.

4 Graduanda no curso de pedagogia do INFES; Monitora das disciplinas do campo Trabalho e Educação;

pesquisadora do CPMEEH. 5 Educação omnilateral entendida aqui, segundo a herança marxista nas palavras do professor Mário

Manacorda* (1964, apud. Saviani, 2003, p. 145), como uma concepção de formação humana que busca

unificar “teória e prática, opõe-se à divisão originária entre trabalho intelectual e manual, que a fábrica

moderna exacerba”. SAVIANI, D. O choque teórico da politecnia. In: Trabalho, Educação e Saúde, 2003.

Disponível em: http://www.revista.epsjv.fiocruz.br/upload/revistas/r41.pdf

*MANACORDA, M. A. 1964. Il marxismoe l’educazione. Roma. Armando.

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Num segundo momento defenderemos a concepção de ‘formação humana’ e de

‘formação omnilateral’ como sendo o ideal para os interesses da classe trabalhadora de

modo geral, e para a formação do pedagogo de forma específica. Por fim indicaremos

alguns aspectos da reforma da universidade pública brasileira, destacando seus impactos

sobre a formação do pedagogo.

1- Universidade Pública sob a influência da expansão do capital

A universidade pública vive uma conjuntura, sobretudo a partir de 19946, na

qual o Banco Mundial (BM) passou a disseminar mais intensamente suas políticas para

o ensino superior em muitos países latino-americanos. Dando sequência a suas

investidas o Banco lança um documento intitulado “Higher Education: the Lessons of

Experience” no qual, entre outras questões, afirma que “Nações situadas na classe de

renda baixa ou médio-baixa [...] devem se limitar a desenvolver a capacidade para

acessar e assimilar novos conhecimentos. (World Bank: La Educación Superior en los

países en desarrollo: peligros y promesas, 2000, p.38, apud. LEHER, 2011 grifos do

autor). Tal documento demonstra sua harmonia com a nova lógica de gestão do

trabalho, esta última submetida à reestruturação produtiva mundialmente hegemônica a

partir dos anos de 1980. Decorre daí a exigência de um novo tipo de trabalhador que,

dotado de subjetividades impostas pelo mercado, sejam capazes de adaptar-se às

condições de flexibilidade e imprevisibilidade presentes na divisão internacional do

trabalho contemporânea. Assumir um perfil emprendedor passa a ser a nova senha que,

segundo o discurso pós-moderno, supostamente garante as condições de acesso ao

trabalho. Tudo isso sem que se revele a raíz das crises capitalistas, do desemprego

estrutural nem, tampouco os mecanismos de acréscimo de extração de mais-valia

(absoluta e relativa).

6 Roberto Leher chama a atenção para o ano de 1994 tendo em vista o documento publicado pelo Banco

Mundial sob o título “Educação Superior: lições derivadas da experiência” que, em síntese, já anunciava a

necessidade de políticas voltadas à educação superior em muitos países latino-americanos, em perfeita

harmonia com as suas frações burguesas dominantes. Nesse sentido, o objetivo maior daquele documento

seria o de iniciar a empreitada de desconstrução do chamado “modelo europeu” de universidade.

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Estudos que datam dos anos de 19907 são enfáticos ao demonstrar que a

intervenção dos organismos internacionais na educação superior passou a primar pela

desconstrução do chamado “modelo europeu de universidade”, o mesmo que serviu de

base à implementação da universidade brasileira e que, pelo menos nas últimas três

décadas, têm sido demolido pelos governos brasileiros. Tal fato ensaiou seus primeiros

passos desde Collor de Mello, sendo alavancado pelos governos FHC e seguidamente

aprofundado pelos governos Lula/Dilma. Esses governos, adeptos fieis às orientações

dos organismos internacionais também no setor da educação, criam as condições

objetivas para a efetivação daquilo que para o BM é fundamental. Ou seja, o fato de que

“a indissociabilidade entre ensino e pesquisa e a gratuidade das instituições públicas, os

traços mais distintivos deste modelo [modelo europeu de universidade], seriam

anacrônicas com a realidade latino-americana” (LEHER, 2011). Nesta linha de

pensamento, vale destacar ainda que o “modelo europeu de universidade” nasce e ganha

força ao ser propalado pelo próprio discurso liberal desde finais do século XVIII e todo

o século XIX. A universidade moderna foi um instrumento funcional à solidificação do

Estado-nação e, portanto, necessária à consolidação de uma nova sociedade contratual.

Deste modo, o “modelo europeu de universidade” apregoado por Humboldt8 entendia a

busca do conhecimento como um fim em si mesmo. Tratava-se, portanto, da produção

do conhecimento desinteressado.

Para Sguissardi (2005, 2008) já é bastante visível algumas mudanças

experimentadas pelas maiores universidades brasileiras; mudanças impostas ao modelo

7 Entre eles podemos destacar estudos de alguns autores brasileiros (apenas a título da relevância de suas

análises sem, contudo, descaracterizar outras pesquisas de viés crítico e que têm contribuído para o

aprofundamento do tema). Chamamos a atenção aqui para trabalhos publicados por: CHAUI, M. A

universidade em ruínas. In: TRINDADE, H. (Org.). Universidade em ruínas na república dos professores.

Petrópolis: Vozes; Porto Alegre: CIPEDES, 1999; CUNHA, L.A. Crise e reforma do sistema

universitário: debate. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, n. 46, 1996; CUNHA, L.A. Nova reforma do

ensino superior: a lógica reconstruída. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 101;

GENTILI, P. A. falsificação do consenso: simulacro e imposição na reforma educacional do

neoliberalismo. Petrópolis: Vozes, 1998; LEHER, R. Da ideologia do desenvolvimento à ideologia da

globalização: a educação como estratégia do Banco Mundial para o “alívio” da pobreza. Tese de

Doutorado, USP, 1998; LIMA, K. Reforma da Educação Superior nos anos de contra-revolução

neoliberal: de Fernando Henrique Cardoso a Luiz Inácio Lula da Silva. Tese de Doutorado defendida na

Universidade Federal Fluminense – Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação, 2005;

NEVES, Lúcia M.W., FERNANDES, Romildo Raposo. Política neoliberal e educação superior. In: O

empresariamento da educação: novos contornos do ensino superior no Brasil dos anos 1990. São Paulo:

Xamã 2002. 8 Modelo de universidade propagado por von Humboldt (Alemão que viveu entre 1769-1859).

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humboldtiano e que têm reflexos sobre o ensino-pesquisa-extensão. A implicação desse

processo resulta numa educação superior “pública e privada, neoprofissional,

heterônoma e competitiva”.

Saviani (PERSPECTIVA, 2008, p. 643) nos mostra que a universidade brasileira já

em meados dos anos de 1960 passava por uma forte alteração, introduzindo mudanças

de fundo em sua estrutura organizacional. No caso do ensino superior, diz Saviani, “nós

temos a regulamentação de 1969, decorrente da Lei 5540, de 19689”. Essa

regulamentação provocou a alteração no ensino superior, adotando um modelo com

fortes características que buscavam adaptar-se ao “modelo americano” de universidade,

priorizando suas concepções de investimento e organização científica e tecnológica.

Abre-se as portas da universidade brasileira para a priorização das análises pragmáticas

e cada vez mais funcionais às conjunturas políticas, econômicas e ideológicas

dominantes.

Foi sob este contexto que entra em vigor o sistema de créditos, a matrícula por

disciplina, os cursos semestrais, a departamentalização, além da separação entre ensino

e pesquisa. Essas são, argumenta Saviani, “consequências sérias que dizem respeito à

qualidade, negativas a meu ver, do ensino superior” (SAVIANI, 2008).

Ainda, segundo Saviani (Ibid.), a questão da precarização atual do ensino

superior concentra-se, sobretudo, nessa estrutura assimilada pela universidade brasileira.

Ora, fez-se o tempo toda a crítica ao modelo implantado pela reforma

universitária de 1968, fez-se a crítica às universidades, ao tecnicismo e

tudo mais. Depois vieram outras propostas, como a do Grupo

Executivo para a Reformulação do Ensino Superior (GERES) criado

em 1986, pelo então Ministro da Educação, Marco Maciel, que

introduziu a distinção entre universidades de pesquisa e universidades

de ensino. Mas não se modificou a estrutura, não se discutiu a

estrutura. Então, fala-se em reforma universitária, em reforma

curricular, mas mantém-se a estrutura atual, sendo que essa

estrutura é um óbice sério para uma educação mais qualitativa e

para o encaminhamento da formação para uma outra direção (SAVIANI, 2008, p.643-644, grifo nosso)

9 Aqui Saviani remete-nos ao Decreto-lei 477, de fevereiro de 1969 e suas portarias 149-A e 3524, que

como nos mostra Shiroma (2000, p. 35) “se aplicavam a todo o corpo docente, discente e administrativo

das escolas, proibindo quaisquer manifestações políticas nas universidades”.

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Sobre esse aspecto, vale lembrar do próprio movimento pela reformulação da

formação de educadores que, segundo as afirmações de Saviani (2008), avançou em

relação a determinadas questões, mas “nunca se aprofundou sobre questões ligadas a

própria estrutura da universidade enquanto instituição”.

No entanto, é preciso ficar claro que embora na segunda metade do século XX a

universidade tenha expressado suas contradições, ao produzir “majoritariamente

conhecimento funcional ao modelo dependente”, também foi neste mesmo período que

produziu – tanto em quantidade, quanto em qualidade – conhecimento crítico e

emancipatório “embora de forma minoritária” (LEHER, 2011). Cabe aqui destacar, por

exemplo, a emergência da pós-graduação em várias áreas do conhecimento. É fato que o

regime militar trouxe uma expansão da oferta de vagas públicas nas universidades, além

de sua proliferação em vários estados do país. Mas, ao mesmo tempo, também passou a

viabilizar “a transferência de recursos públicos para as instituições privadas de ensino

superior”, beneficiando seu crescimento em todo o país e com o controle débil por parte

do governo. O resultado disso, como nos alerta Shiroma (2000, p. 37), é que ao

retomarmos a década de 1990 fica visível a marcha ascendente do ensino superior

privado no qual “a rede particular de ensino superior atendia a 66,97% dos alunos,

restando à oficial 33,03%”.

Para efeitos de nossos estudos, as consequências de todo esse processo –

especificamente sobre sua expressão contraditória na educação e na formulação dos

cursos de graduação e pós-graduação – está na perigosa ameaça no que diz respeito à

produção do conhecimento de futuros educadores e de suas atividades político-

pedagógicas. Esta questão ganha um novo redirecionamento a partir dos anos de 1990

ao ser conduzida pelos organismos internacionais. Novos obstáculos são materializados,

inviabilizando a adoção de uma concepção de educação e de formação humana

emancipadoras.

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2 – ‘Educação omnilateral’ e ‘Formação Humana’

A educação enquanto processo de ‘formação humana’, se faz determinada por

ações que envolvem o próprio homem e a sua atividade através do trabalho; categoria

que funda o homem enquanto gênero humano e produtor de cultura. Assim, o ser social

se apropria do máximo de humanização produzido pela ação e pela interação dos

homens, concretizando-se nesse processo de apropriação/objetivação da cultura a

condição para a criação e recriação de novos conhecimentos, obras e produtos, valores e

normas, padrões e projetos sociais (NETTO e BRAZ, 2007).

Cabe-nos aqui explicitar algumas considerações acerca da transmissão do

conhecimento e sua relação com a formação do pedagogo e seu papel frente ao

“trabalho educativo”10

para a formação humana emancipada.

Chamamos a atenção, porém, para as relações entre trabalho, educação e a

‘formação humana’ que encontram-se submetidas aos padrões hedonistas de

competitividade e individualidade, perdendo a sua especificidade humanizadora. Sob

tais condições, a ‘formação humana’ tem sofrido fortes interferências que emergem dos

interesses das classes dominantes, aprofundando a alienação da humanidade e, ao

mesmo tempo, adiando a transformação humana tantos nos seus aspectos quantitativos,

quanto nos qualitativos. Nesse contexto, o conhecimento produzido ao longo da

história da humanidade mantem-se sob o controle da lógica da propriedade privada,

favorecendo as formas pragmático-cotidianas de transmissão do saber.

A lógica acima se faz cada vez mais presente na escola da classe trabalhadora, na

escola pública. No entanto, aparentemente, ao mesmo tempo em que o conhecimento é

negado na escola, tem-se a ilusão de que nunca esteve tão acessível a “todos”,

independentemente das circunstâncias marcadas pelas relações de classes antagônicas.

Cabe jogar luz nesta contradição, além de questionar: a que tipo de ‘formação humana’

esse modelo efêmero de conhecimento tem-se associado?

10

“Trabalho Educativo” entendido na perspectiva de Dermeval Saviani (2003*), como o ato de produzir

direta e intencionalmente, em cada indivíduo a humanidade produzida histórica e coletivamente pelo

conjunto dos homens.

*SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores

Associados, 2003.

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Duarte e Saviani (2012) destacam que a situação atual da ‘formação humana’ está

caracterizada de forma genérica por uma crise de referenciais teóricos. Sob este aspecto,

cabe àqueles que atuam na formação do educador priorizar o seu processo de

humanização levado a efeito pela educação. Desta forma, os autores acima defendem

que à filosofia da educação cumpre o papel preliminar de estabelecer a própria

identidade da educação, pois sua tarefa consiste em uma “reflexão radical, rigorosa e de

conjunto sobre os problemas que a realidade apresenta”. Daí a defesa da concepção

omnilateral de educação.

Ao contrário da defesa acima, constata-se o crescente fenômeno do aligeiramento

e da simplificação do real rumo ao conhecimento pragmático, espontâneo e imediato.

Assim, a busca por instrumentos que nos levem para além da aparência do objeto a ser

apreendido exigirá um elevado nível de pensamento abstrato, o qual se dá no campo das

ideias. Resumindo podemos afirmar que esse movimento “ideal” passa a exigir novos

questionamentos que negam a realidade imediata e fragmentada, levando-nos ao

conhecimento da realidade concreta, rica de suas múltiplas determinações. Este caminho

de produção do conhecimento, em busca da totalidade do objeto e da compreensão de

sua síntese, tem por principal objetivo desvendar a essência que constitui as relações

sociais capitalistas e suas formas de dominação do homem sobre o homem.

No entanto há limites que se impõem e que dificultam este percurso de apreensão

do real. Limites entre os quais se destaca a educação dominante enquanto processo de

‘formação humana’, pois ao mesmo tempo em que o capital precisa educar a classe

trabalhadora tem que fazê-lo de forma ponderada, “em doses homeopáticas”. Como se

vê, a educação enquanto instrumento da ideologia dominante não escapa de suas

próprias contradições. Destaca-se, assim, a empreitada do capitalismo em fragmentar e

aligeirar a formação daquele que exerce a função educativa. A constatação que se faz

aqui é a seguinte: uma formação deficiente dos conteúdos inerentes ao conhecimento

universal, aos clássicos, às artes, à filosofia, às ciências de um modo geral, acaba por

contribuir para a formação de um sujeito alienado e imerso no cotidiano. Sendo assim, a

educação de futuros pedagogos como instrumento da ‘formação humana’,

fundamentada pela concepção omnilateral vem sendo recorrentemente descaracteriza e

negada pela escola capitalista.

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Se não há, do ponto de vista capitalista, a necessidade de sujeitos humanizados, ou

seja, se não há a necessidade da formação do “indivíduo em si” (DUARTE, 2013), por

que, então, investir em uma formação do pedagogo, ou do docente voltada para

emancipação humana? Inserida nesta lógica, a universidade vem perdendo a ênfase na

transmissão das ciências, da cultura etc., nos cursos de formação de pedagogos.

Não está em questão nesta nova lógica, por exemplo, o grau de complexidade

dos conhecimentos apropriados pelo sujeito. Portanto, se existe a necessidade de um

novo sujeito, forjado pela atual fase do capitalismo, há também uma investida do capital

no sentido de reestruturar a formação dos educadores. Estes ocupam um papel

fundamental na transmissão dos conhecimentos e na construção do horizonte ético e

político da classe trabalhadora. O que se percebe nessa breve análise é a presença da

desvalorização do conhecimento, atingindo tanto a formação do pedagogo e do

educador de modo geral, refletindo na sua ação pedagógica. Diante desta lógica e sob a

sua imposição, Martins (2011, p. 27) argumenta:

Os professores já não mais precisarão aprender o conhecimento

historicamente acumulado, pois, já não precisarão ensiná-lo aos seus

alunos, e ambos, professores e alunos, cada vez mais empobrecidos de

conhecimentos pelos quais possam compreender e intervir na

realidade, com maior facilidade, se adaptarão a ela pela primazia da

alienação.

Os imperativos ideológicos, políticos e econômicos que emergem da dinâmica

liberal, tais como o consumismo, o individualismo e a competitividade, têm assumido

um lugar de destaque nas propostas e políticas para a educação superior, como vimos

acima. Não é de forma desinteressada que há tempos vem se empreendendo uma

campanha ideológica a favor da educação para “todos”.

O “trabalho educativo” constitui-se como processo humanizador – e aqui reside

a contradição da escola capitalista referida acima – entretanto, como pondera Saviani

(2008, p. 69), “acreditar que estão dadas, nesta sociedade, as condições para o exercício

pleno da prática educativa é assumir uma atitude idealista”. O capitalismo, sobretudo na

sua atual fase, não pode permitir sua investida na escola da classe trabalhadora.

Nesse sentido, Saviani afirma que o alcance da “plena prática educativa”

entendida como “plenitude humana” para uma formação emancipada, só será alcançada

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com a superação do antagonismo inerente à sociedade de classes. “Ser idealista em

educação” insiste Saviani, “significa justamente agir como se esse tipo de sociedade já

fosse realidade. Ser realista, inversamente, significa reconhece-la como um ideal que

buscamos atingir” (Ibid, p. 70).

3 - O Banco Mundial como educador dos países em desenvolvimento: um banco

que educa?

Em 1944 os EUA e o Reino Unido dão origem o Banco Mundial11

. Tal fato se

deu durante as então denominadas Conferências de Bretton Woods, as quais passam a

estabelecer as regras para as relações de mercado entre os países mais industrializados

do mundo e sua política internacional. O BM tinha por objetivo inicial reconstruir a

Europa após a Segunda Guerra Mundial. Posteriormente, em função de suas ações junto

à conjuntura mundial da época, passou também a atuar como instrumento central

também frente às formulações das políticas educacionais, sobretudo junto aos países

ditos em processo de desenvolvimento. Em sua origem o banco tinha como foco de ação

a relação entre a pobreza de inúmeros países periféricos e a instabilidade econômica em

curso em função da relação entre os EUA e grande parte do mundo. Sob esta

perspectiva a pobreza colocaria os países em perigo de segurança, fazendo, deste modo,

que parte da atenção do banco fosse voltada, sobretudo, para programas desenvolvidos

em países que atendessem diretamente “populações possivelmente sensíveis ao

‘comunismo’” (LEHER, p. 22)

As convulsões internas em quase toda a metade sul de nosso planeta,

nesta última década [anos 60 e 70], tem estado ligadas diretamente às

tensões explosivas engendradas pela pobreza (...). A pobreza no

exterior conduz à intranquilidade, a convulsões internas, a violências e

11

O Banco Mundial teve sua origem com a criação do Banco Internacional de Reconstrução e

Desenvolvimento (BIRD) nas Conferências de Bretton Woods, em 1945, junto com o Fundo Monetário

Internacional (FMI) e o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT). Inicialmente cabia ao Banco

Mundial promover o financiamento e reconstrução dos países destruídos pela Segunda Guerra Mundial.

Com o tempo sua missão evoluiu para a de financiar o desenvolvimento dos países mais pobres.

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à expansão do extremismo e provoca o mesmo dentro de nossas

fronteiras (MCNAMARA, apud PEREIRA 2010, p. 179).

Assim, a pobreza ganha relevância e é a partir deste momento que o BM passa a

intervir massivamente no campo da educação: “Por meio de escolas técnicas, programas

de saúde e controle da natalidade, ao mesmo tempo em que promove mudanças

estruturais na economia desses países, como a transposição da “revolução verde” para o

chamado Terceiro Mundo” (LEHER, p. 22).

Observa-se, ao mesmo tempo, que entre 1968-1970 os empréstimos na área da

educação eram de US$ 62 milhões e passaram para US$ 194 milhões em 1971-1973. “A

justificativa oficial para os desembolsos em educação continuava a ser,

irredutivelmente, a sua contribuição ao aumento da produtividade da economia”

(PEREIRA, 2010, pg 197). A partir deste período a educação passa a ser vista como

uma forma de lutar contra a pobreza ao ponto que ela se torna um elemento central no

ideal do capital humano.

A partir de 1981, sob as circunstâncias de reestruturação da produção mundial, o

banco secundariza o programa de redução da pobreza e assume um programa político

neoliberal. Leher (1999), ao analisar a mudança de política do banco descreve que

muitos “fatores concorreram para o esgotamento da estratégia centrada na conexão

segurança-pobreza. O principal deles, sem dúvida, foi a crise estrutural do capitalismo

que pôde ser evidenciada no início da década de 1970 (LEHER, p. 5).

A crise dos anos de 197012

, destacada acima por Leher fez com que os países em

desenvolvimento aumentassem as suas dívidas com o banco, aumentando seu poder e

12

Crise esta que repercutiu em todo o mundo e mostra seu peso ainda na atualidade por, de certa forma,

ter colaborado para a transição do Estado de Bem-Estar para o Estado neoliberal, sem que se

identificassem maiores resistências da classe trabalhadora. Esta crise teve no ano de 1973, o período que

marca o fim do processo de crescimento que fora estabelecido desde o final da segunda Guerra Mundial.

Foi no ano seguinte, em 1974, que despontou o início de mais uma grande crise histórica na qual as

contradições se tornaram cada vez mais evidentes, expressando-se na forma de recessão generalizada

sobre todas as grandes potências capitalistas simultaneamente, porém, especialmente sobre os Estados

Unidos da América, o Japão e o Reino Unido. Sob as circunstâncias da crise estrutural do capital, aberta

nos anos de 1970 e prolongando-se até a abertura do novo século, assiste-se ao acirramento da opressão e

de superdimensionamento dos artifícios que tentam justificar o desemprego estrutural, ou seja, o crescente

contingente de trabalhadores que compõem o exército de reserva ao redor do mundo. A resposta

dominante sempre apontou como sendo o grande culpado o trabalhador despreparado, inapto a lidar com

o arsenal tecnológico e informatizado que passou a integrar um mundo mais veloz e mais compacto.

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estimulando a investida de seus programas de ajustes estruturais “que se baseavam na

contenção do consumo interno, no arrocho salarial, no corte de gastos sociais e na

redução do investimento público, tudo para assegurar o pagamento do serviço da

dívida” (PEREIRA 2010, p 250).

Centralizando-nos mais pelas questões relativas às políticas do banco para a

Educação Superior, temos em 1994 o lançamento do documento La Enseñanza Superior

– Lãs Lecciones derivadas de La Experiência, que traz recomendações para este nível

de ensino. O documento faz uma consideração ao modelo europeu de instituição de

ensino superior, afirmando que:

O modelo tradicional de universidade europeia de pesquisa, com sua estrutura

de programa de um só nível, tem demonstrado ser custoso e pouco apropriado

no mundo em desenvolvimento. A maior diferenciação na educação superior, o

desenvolvimento de instituições não universitárias e o fomento de

estabelecimentos privados, pode contribuir para satisfazer a crescente demanda

social por educação pós-secundária e fazer os sistemas de nível terciário serem

mais sensíveis às necessidades mutantes do mercado de trabalho (BANCO

MUNDIAL, apud. GREGÓRIO 2012, p. 9).

Tal documento demonstra sua harmonia com a nova lógica da gestão do

trabalho, hegemônica a partir dos anos de 1980. Decorre daí a exigência de um novo

tipo de trabalhador que, dotado de subjetividades impostas pelo mercado, seja capaz de

se adaptar às mudanças contínuas tais como flexibilidade e a imprevisibilidade

presentes nas atuais circunstâncias da divisão internacional do trabalho. Portanto,

assumir um perfil empreendedor passar a ser a nova senha que segundo o discurso pós-

moderno, supostamente garantirá as condições de acesso ao mundo do trabalho. Tudo

isso sem que se revele a raiz das crises capitalistas, do desemprego estrutural e o

avançado processo de exploração do trabalho.

No tocante às especificidades brasileiras, vale relembrar aspectos gerais da reforma

jurídico-administrativa efetivada no governo FHC, que preparou o terreno para a

entrada das grandes corporações internacionais no país. Além das ameaças de

privatização das instituições públicas (que em determinados contextos, ultrapassaram o

campo da mera ameaça) que passam a se submeter ao projeto neoliberal. É importante

ressaltar que se este modelo de Estado (neoliberal) teve seus primeiros passos ensaiados

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nos dois governos FHC, obtendo avanços significativos, foi nos governos Lula/Dilma,

que tal modelo teve suas características amplamente aplicadas e aprofundadas.

As intervenções cada vez mais diretas dos organismos internacionais na educação

dos países da periferia da economia mundo buscam justificativas no discurso da

educação como um dos principais instrumentos para a minimização da pobreza entre os

povos e seu desenvolvimento econômico. É nessa perspectiva que os organismos

internacionais e seus programas de alívio à pobreza elegem a educação como alavanca

econômica para países da periferia do mundo, a exemplo do Brasil. Ou seja, assistimos

a retomada da ‘Teoria do Capital Humano’13

sob outra concentricidade, determinada

pelo aprofundamento de mais uma crise cíclica do capitalismo, buscando sustentação na

ideologia de um mundo supostamente globalizado e na ilusória ‘sociedade do

conhecimento’14

.

O discurso dominante busca sua justificativa na integração das universidades às

transformações e às significativas exigências, cada vez maiores, das ciências e das

tecnologias de ponta, adequadas às novas formas de produção mundial. Neste contexto,

a acusação mais comum é que as “universidades públicas são burocráticas,

conservadoras, elitistas e vivem protegidas por uma redoma de vidro que impede que se

tornem instituições ‘integradas’ com a sociedade, como se pudesse existir instituição

social fora da sociedade!” (LEHER, 2011).

Assim, os governos brasileiros, desde meados dos anos de 1990 têm adotado um

perfil aligeirado e massificado de educação superior, descaracterizando e fragmentando

aquele que tem sido historicamente o modelo da universidade clássica, sustentado sob o

tripé: ensino, pesquisa e extensão. Tal modelo tornou-se, segundo seus críticos,

13

A concepção de Capital Humano sob a perspectiva de Gaudêncio Frigotto (2001) em “A Produtividade

da Escola Improdutiva” ressalta que tal teoria “incute a crença de que as desigualdades regionais, a

concentração e a centralização do capital não são decorrência da própria forma de organização e das

relações capitalistas de produção, mas apenas de desequilíbrios determinados por diferentes fatores. A

diferença entre as classes reduz-se, como vimos, a uma diferença de estratos socioeconômicos, explicada

pela forma racional de utilização dos recursos (poupança, privação, etc.), pelo esforço e pelo mérito. [...]

Conceito que traduz a ideia de que a forma de ascender na vida é mediante a hierarquia dos postos de

trabalho nas diferentes escalas profissionais, onde o fator educação ou treinamento é determinante” (p

220-221). 14

Para uma análise mais aprofundada, consultar: DUARTE, Newton. Sociedade do Conhecimento ou

Sociedade das Ilusões? quatro ensaios críticos-dialéticos em filosofia da educação. Campinas, SP:

Autores Associados, 2008

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ultrapassado frente a um mercado soberano e versátil que, como afirma a professora

Acácia Kuenzer, teve a sua vinculação fragmentada

(...) entre formação escolar e exercício profissional, o que significa

dizer que a função certificadora de competências até então exercida

pelas agências formadoras, inclusive Universidades, passa a ser

desempenhada pelo mercado, que vai dizer que competências precisa

para cada situação, em que quantidade, e por quanto tempo

(KUENZER, 2003, o grifo é nosso).

Adepto da lógica mercantilista, pragmática e instrumental, tanto os cursos de

graduação, como os de mestrado (especificamente aqueles que atendem à modalidade

profissional), têm sido instrumentalizados e reestruturados com a finalidade de

responder diretamente às necessidades dos serviços oferecidos no mercado. Yolanda

Guerra (2012) afirma que ao se realizar a análise dos Planos Nacionais de Pós-

Graduação dos últimos 20 anos é possível verificar o aprofundamento de uma histórica

política de fomento, voltada a atender aos interesses meramente produtivistas da

indústria brasileira. Nesta perspectiva a autora demonstra que tal operação se dá na

direção de formar recursos humanos para o mercado, através de parcerias com

empresas.

Nesta mesma direção Roberto Leher (2011) vai mais longe ao afirmar que a

universidade brasileira foi construída a duras penas e em intervalo de tempo muito

pequeno, sendo o Brasil o último país da América Latina a ter instituições propriamente

universitárias. Na contemporaneidade, o modelo brasileiro de universidade é

“considerado um estorvo a ser reformulado inteiramente para atender às necessidades de

um mercado capitalista dependente que já não estaria demandando formação

acadêmico-profissional sólida e longa”. É daí, portanto, diz ele, que ganha relevo as

“fórmulas bancomundialistas”.

3.1 - Reforma Universitária brasileira: avanço ou recuo na formação dos

pedagogos?

Discutir a questão da identidade do curso de Pedagogia e a definição de suas

diretrizes curriculares nos impõe o resgate do longo caminho político e intelectual que

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fora aberto desde a LDB 9.394/1996 aos dias atuais. Trata-se, também, como nos

mostra Saviani (2008), de destacar um dos movimentos mais importantes de resistência

à política marcadamente economicista e mercadológica do Ensino Superior: o

movimento pela reformulação da formação de educadores.

Saviani (2009, p. 148) chama a atenção para a introdução dos cursos de

pedagogia e licenciatura nos institutos superiores de educação e nas Escolas Normais

Superiores, pelos quais a LDB materializou uma política educacional que promoveu um

“nivelamento por baixo” na medida em que:

(...) os institutos superiores de educação emergem como instituições

de nível superior de segunda categoria, provendo uma formação mais

aligeirada, mais barata, por meio de cursos de curta duração (Saviani,

2008c15

, p. 218-221). A essas características não ficaram imunes as

novas diretrizes curriculares do curso de pedagogia homologadas em

abril de 2006.

O amplo movimento que emerge das universidades federais em defesa da

formação do professor para as etapas iniciais do processo de escolarização em nível

superior, no curso de Pedagogia, foi embarreirado em função da política de formação

após a aprovação da LDB n. 9.394/1996. Esta que, “por meio de diversos dispositivos

legais tentou promover esta formação em outra instância e em outro curso, no Curso

Normal Superior a ser realizado nos Institutos Superiores de Educação (LIMONTA,

2011, p. 332).

No decorrer desse processo, e com o debate sobre a identidade do curso de

Pedagogia acirrado, abrem-se espaços para as discussões para a elaboração de Diretrizes

Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia. Vale lembrar que a primeira

proposta do Conselho Nacional de Educação (CNE/CP n. 05/200516

) (BRASIL, 2005, p.

7), indicava que o curso de Pedagogia formaria professores para exercer funções de

magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos

de Ensino Médio, na modalidade Normal, de Educação Profissional na área de serviços

15

SAVIANI, DERMEVAL. A nova lei da educação (LDB): trajetória, limites e perspectivas. 11. ed.

Campinas: Autores Associados, 2008c. 16

Esse parecer foi reexaminado pelo parecer CNE/CP nº 3/2006.

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e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos.

Esta resolução trazia em seu contexto uma clara separação entre a teoria e a prática,

além admitir em seu artigo 14 a formação do pedagogo somente em pós-graduação,

deixando para a graduação em pedagogia a formação do professor. Desta forma entra

em contradição com o artigo 64 da LDB n°. 9394/96 que abre possibilidade para a

formação do pedagogo também em pós-graduação, e não exclusivamente. Para Saviani

(2008) este parecer acabava por reduzir o curso de pedagogia ao normal superior.

Em abril de 2006 o Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação aprovou

a Resolução nº 1/06 (BRASIL. CNE, 2006), homologando assim as Diretrizes

Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia. A resolução define:

Art. 4º O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação

de professores para exercer funções de magistério na Educação

Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de

Ensino Médio, na modalidade Normal, de Educação Profissional na

área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam

previstos conhecimentos pedagógicos (BRASIL, 2006, p. 2).

Importante notar que as atuais condições objetivas como já abordamos acima,

tem inviabilizado o surgimento de alternativas mais progressistas no que se refere à

formação do educador (professores de modo geral, e os pedagogos em particular).

Assim, mesmo trazendo a alteração no artigo 14 em relação ao Parecer CNE/CP n°

05/2005, a Resolução nº 1/06 ainda apresenta “muitas imprecisões teóricas e não parece

expressar a elaboração coletiva da academia que vinha sendo feita ao longo de toda a

história do curso de Pedagogia” (SOARES E BETTEGA, 2008 p. 2894).

Para Soares e Bettega (2008) foi a partir da LDB n° 9394/96, culminando com a

publicação das DCNs de pedagogia, que fica clara a intenção de colocar a formação do

professor no centro do processo, deixando a formação do pedagogo para outro espaço.

Deste modo, as autoras inferem que:

(...) o poder legislativo determinou o modelo de curso que melhor

atende aos interesses do mercado mundial, deixando de lado a opinião

de importantes pesquisadores da área. As Diretrizes Curriculares

Nacionais para o Curso de Pedagogia são a expressão e legitimação de

um modelo mercantilista de educação, elas direcionam ao

esvaziamento do currículo do curso, valorizando a prática em

detrimento da teoria.

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Assim, cabe ainda problematizar o fato de que “a ênfase das DCNs de pedagogia

na docência para crianças de 0 a 10 anos” (SOARES e BETTEGA, 2008), é a expressão

da secundarização da

(...) formação de professores intelectuais que atuarão com consciência

e criticidade na educação básica, na elaboração de políticas públicas;

deixa-se de lado também a formação dos pedagogos que atuarão como

organizadores do trabalho pedagógico nas escolas e em instituições

não escolares, que atuarão como professores universitários e

pesquisadores. O campo da pedagogia é amplo e reduzi-lo, como fez a

Resolução CNE/CP n° 01/2006, é no mínimo um equívoco (SOARES

e BETTEGA, 200817

, p. 18, apud. SOARES e BETTEGA, 2008, p.

2894 ).

Voltando ao contexto da LDB 9.694/1996, está previsto no seu artigo 64 aquilo

que seria entendido como a “base comum nacional de formação de professores”, ou

seja, o fato de que o educador será formado ou no curso de pedagogia ou em nível de

pós-graduação, passando a ser confirmado pelo artigo 14 das DCNs. A luta por uma

“base comum nacional”, que era uma palavra de ordem na luta nos movimentos de

resistência, nas diretrizes fora “transformada em base docente e a licenciatura e o

bacharelado transformaram-se em uma coisa só (SAVIANI, 2008, p. 644). Sobre isso

vale acrescentar que:

(...) a queda da base comum nacional talvez tenha se dado porque

nunca conseguimos uma definição positiva dela. Sabíamos que não

era sinônimo da parte comum do currículo e nem de currículo

mínimo; que não seria obtida por definição de algum colegiado; e que

também não resultaria da elaboração de intelectuais que supostamente

fossem especialistas na área e reconhecidos como tais. Ela deveria

surgir do movimento, quer dizer do coletivo.

Deste modo, a concepção de “base comum nacional” permaneceu em suspenso

mantendo-se, objetivamente, a mesma estrutura do curso. Formar para a docência

passou a ser entendida como a base comum, ou seja, formar professores para a

17

SOARES, S.T.; BETTEGA, M. O. de P. Políticas Públicas de Formação Docente e a Ação Pedagógica

no Ensino Superior. In: VII Seminário de la Red Latinoamericana de Estudios sobre Trabajo Docente:

Nuevas Regulaciones em América Latina, Anais. Buenos Aires: Redestrado, 2008.

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Educação Infantil e para os anos iniciais do Ensino Fundamental em detrimento da

formação do pedagogo. Reforça-se desta forma a fragmentação do futuro educador.

Saviani (2008, p. 644) fala da necessidade de insistirmos que “o curso de

pedagogia deveria ser um ambiente rico, intenso e exigente de estímulo intelectual, que

retomasse os clássicos, acolhesse os jovens e os colocasse em processo de formação”.

Para tanto, diz ele, faz-se necessário negar a formação do especialista no professor, ou

seja, negar a ideia de que para ser educador primeiro tem que ser professor. Ao

contrário, defende Saviani, “em lugar de formar o especialista no professor eu propunha

formar seja o especialista seja o professor no educador”. Vale dizer, formar o “professor

naquele sentido forte da palavra, não apenas de transmissor do conhecimento” (2008, p.

645).

Nessa perspectiva, cabe às Faculdades de Educação “em lugar de dissuadir os

jovens interessados na educação, acolhê-los imediatamente e colocá-los num ambiente

rico e estimulante, envolvendo-os diretamente nas atividades de ensino, estudos e pes-

quisas” (645).

Parece que o caos presente nessa tese da docência como base da formação do

pedagogo é, segundo Saviani, “a ideia de que a educação é um processo multifacetado

que consiste na docência, mas a docência está ligada a um aspecto da visão majoritária,

da educação formal, da educação escolar”.

Defendemos, portanto, a necessária integração entre a formação do pedagogo

enquanto especialista, e a formação do professor. Tal posição admite que o princípio da

omnilateralidade se faça presente também na sua formação, ocorrendo no mesmo curso,

o de pedagogia. Mas, para tanto, assevera Saviani (2008), torna-se urgente que o curso

de pedagogia se paute pela organização e pelo funcionamento escolar e sua relação com

as contradições da sociedade contemporânea.

Considerações provisórias

Como uma síntese provisória do presente artigo, identificamos que o discurso

em defesa das concepções trazidas pelas diretrizes da pedagogia acabou criando um

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curso para formar profissionais diferentes (professor e pedagogo). Por esse motivo

torna-se uma tarefa impossível sob tais condições e, portanto, deve ser negada e

superada. Ao contrário, seguindo na linha de entendimento desenvolvido por Saviani,

defendemos uma formação na qual o pedagogo ou o especialista da educação tenha

acesso aos conhecimentos necessários ao domínio sobre as condições objetivas que

determinam a escola. “Assim, o pedagogo, ao dominar o modo como a escola funciona,

estaria, sem dúvida, capacitado tanto para ministrar o ensino, como para coordenar as

atividades didático-pedagógicas ou gerir o funcionamento da escola” (2008). Partindo

dessa concepção de docência, percebe-se a possibilidade para que no curso de

pedagogia se ofereça tanto a formação do professor, do gestor, bem como do

pesquisador. É nesse sentido que explicitamos a nossa defesa por uma educação

omnilateral, na busca por integrar essas três dimensões no processo formativo do

pedagogo, contribuindo para a definição da identidade do curso. No entanto, Saviani

chama a atenção para o fato de que há que se tomar cuidado para que esta concepção de

docência não seja deturpada no campo das relações entre capital e trabalho, onde quase

sempre os conceitos são indevidamente apropriados e distorcidos para gerar ainda mais

exploração do trabalhador.

Grande parte das contradições acima é resultante das políticas adotadas para a

educação superior, e que têm se configurado num quadro geral cujas características

principais são a flexibilidade de postos e contratos de trabalho, o congelamento de

salários de todos os professores (neste caso, não apenas dos docentes em nível superior),

além da redução do repasse de recursos públicos. Amalgamando todos esses elementos,

há a ameaça constante (que sob muitos aspectos já se tornou realidade) da privatização

da universidade pública.

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