Fisiopatologia das cefaléias

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Fisiopatologia das cefaléias Dr. Maurice Vincent, Ph.D. Serviço de Neurologia, Hospital Universitário Clementino Fraga Filho Universidade Federal do Rio de Janeiro Av. das Américas, 1155/504 Brasil 22631-000 Rio de Janeiro Phone: (+5521)4399245 Fax: (+5521)4943648 E-mail: [email protected] Apesar dos avanços em epidemiologia, classificação, e novos medicamentos, perguntas elementares em relação ao mecanismo fisiopatológico das cefaléias ainda permanecem. Este texto revê alguns aspectos relacionados à fisiopatologia de cefaléias primárias. Antigamente, as cefaléias eram consideradas "vasculares" e "não vasculares"(1). Esta divisão é inadequada. Durante 50 anos prevaleceu a idéia de que a aura surge devido à vasoconstricção; e a dor devido à vasodilatação(2). A teoria vasoespástica de Wolff, passou a ser questionada no início da década passada(3). Em 1981, Olesen e cols. encontraram redução do fluxo sangüíneo cerebral regional (rCBF) durante a aura, iniciando no polo occipital e avançando progressivamente para outras regiões. Este fenômeno foi denominado spreading oligoemia(4), ou spreading hypoperfusion (hipoperfusão alastrante - SH)(5). O fato da SH espalhar-se pelo encéfalo sem respeitar a anatomia dos territórios vasculares a uma velocidade de 2.2 ± 0.3 mm/min sugere a existência de um mecanismo neuronal subjacente ao invés de um fenômeno primariamente vascular. Admite-se que a SH represente a repercussão hemodinâmica da "depressão alastrante (DA) de Leão". Lashley concluiu, estudando a maneira pela qual as desordens visuais se deslocavam pelo campo visual durante a aura, que algo se propagava pelo cortex visual primário a uma velocidade de aproximadamente 3 mm/min(6). Pouco depois, em 1944, estudando eletrofisiologia no cortex de coelhos em Harvard, EUA, o Professor Aristides Leão, do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, observou um fenômeno de depressão da atividade elétrica que, quando experimentalmente induzido, propagava-se pelo cortex em todas as direções(7). Este fenômeno foi denominado "depressão alastrante" ("spreading depression (SD) of Leão"). Como a velocidade de propagação da SD era semelhante à velocidade de propagação do fenômeno cortical que Lashly sugeria ser o responsável pela aura visual, Leão sugeriria posteriormente que a SD poderia estar relacionada à fisiopatologia da enxaqueca(8). Woods et al. verificaram por PET alterações do rCBF em uma enxaquecosa(9). A partir da 6ª num total de 12 medições sucessivas, a paciente teve sintomas enxaquecosos. Ocorreu redução do rCBF inicialmente nos lobos occipitais,

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Fisiopatologia das cefaléias

Dr. Maurice Vincent, Ph.D.

Serviço de Neurologia, Hospital Universitário Clementino Fraga Filho Universidade Federal do Rio de Janeiro

Av. das Américas, 1155/504 Brasil 22631-000 Rio de Janeiro Phone: (+5521)4399245

Fax: (+5521)4943648 E-mail: [email protected]

Apesar dos avanços em epidemiologia, classificação, e novos medicamentos, perguntas elementares em relação ao mecanismo fisiopatológico das cefaléias ainda permanecem. Este texto revê alguns aspectos relacionados à fisiopatologia de cefaléias primárias.

Antigamente, as cefaléias eram consideradas "vasculares" e "não vasculares"(1). Esta divisão é inadequada. Durante 50 anos prevaleceu a idéia de que a aura surge devido à vasoconstricção; e a dor devido à vasodilatação(2). A teoria vasoespástica de Wolff, passou a ser questionada no início da década passada(3). Em 1981, Olesen e cols. encontraram redução do fluxo sangüíneo cerebral regional (rCBF) durante a aura, iniciando no polo occipital e avançando progressivamente para outras regiões. Este fenômeno foi denominado spreading oligoemia(4), ou spreading hypoperfusion (hipoperfusão alastrante - SH)(5).

O fato da SH espalhar-se pelo encéfalo sem respeitar a anatomia dos territórios vasculares a uma velocidade de 2.2 ± 0.3 mm/min sugere a existência de um mecanismo neuronal subjacente ao invés de um fenômeno primariamente vascular. Admite-se que a SH represente a repercussão hemodinâmica da "depressão alastrante (DA) de Leão". Lashley concluiu, estudando a maneira pela qual as desordens visuais se deslocavam pelo campo visual durante a aura, que algo se propagava pelo cortex visual primário a uma velocidade de aproximadamente 3 mm/min(6). Pouco depois, em 1944, estudando eletrofisiologia no cortex de coelhos em Harvard, EUA, o Professor Aristides Leão, do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, observou um fenômeno de depressão da atividade elétrica que, quando experimentalmente induzido, propagava-se pelo cortex em todas as direções(7). Este fenômeno foi denominado "depressão alastrante" ("spreading depression (SD) of Leão"). Como a velocidade de propagação da SD era semelhante à velocidade de propagação do fenômeno cortical que Lashly sugeria ser o responsável pela aura visual, Leão sugeriria posteriormente que a SD poderia estar relacionada à fisiopatologia da enxaqueca(8).

Woods et al. verificaram por PET alterações do rCBF em uma enxaquecosa(9). A partir da 6ª num total de 12 medições sucessivas, a paciente teve sintomas enxaquecosos. Ocorreu redução do rCBF inicialmente nos lobos occipitais,

com alastramento sucessivo para áreas mais anteriores. Welch et al. detectaram, por magnetoencefalografia, alterações em enxaquecosos que não estavam presentes em outras cefaléias(10). Sua presença constitui evidência indireta da presença da SD. O mesmo grupo, usando estimulação magnética transcraniana, observou redução do limiar de excitabilidade no cortex occipital na enxaqueca com aura, o que favoreceria o surgimento da DA(11). Embora estes estudos sugiram a participação da DA na fisiopatologia da enxaqueca, um dos argumentos mais fortes em contrário tem sido a falta de uma demonstração inquestionável de sua existência em humanos, in vivo. Recentemente, porém, evidências sugerindo a presença do fenômeno foram obtidas no córtex de num paciente em coma após traumatismo crânio-encefálico(12).

Friberg et al, usando doppler transcraniano juntamente com SPECT, registraram dilatação da artéria cerebral média durante ataques enxaquecosos. A administração de sumatriptan reduziu a dor ao mesmo tempo que retornou o calibre ao diâmetro normal(13). Isto não prova, entretanto, que haja uma relação de causa e efeito entre vasodilatação e a crise enxaquecosa. Nem todos os pacientes com enxaqueca têm vasodilatação, que pode ser comparativamente discreta(14). As alterações vasculares são epifenômenos que se desenvolvem paralelamente à crise de exaqueca sem constituir sua causa.

Muitos neurotransmissores, co-transmissores e neuromoduladores, alguns com ação vasomotora, têm sido implicados na fisiopatologia das cefaléias. Três tipos de fibras nervosas existem na parede das artérias intracranianas(15). Estas fibras apresentam pequenas dilatações sucessivas, tal como contas de um colar, dentro das quais existem as substâncias neurotransmissoras vasoativas que são liberadas quando da passagem do estímulo nervoso e interagem com substâncias vasoreguladoras presentes no sangue e/ou no vaso, liberadas pelo endotélio.

As fibras simpáticas, originadas no gânglio cervical superior, contém principalmente, além da Noradrenalina (NA), o Neuropeptídeo Y (NPY), um neurotransmissor com atividade vasoconstrictora. As fibras parassimpáticas, originadas no gânglio esfenopalatino, contém acetilcolina (Ach), vasodilatador e endotélio-dependente, e o Peptídeo Intestinal Vasoativo (VIP), também vasodilatador, além de liberar óxido nítrico (NO, fator de relaxamento derivado do endotélio)(16). As fibras trigeminais sensitivas, a partir do gânglio de Gasser, contém Substância P (SP), o Peptídeo Relacionado ao Gene da Calcitonina (CGRP), a dinorfina B, o "Pituitary Adenylate Cyclase Activating Peptide" (PACAP), além de outras taquiquininas, como a Neurokinina A (NKA).

A endotelina (ET-1, a ET-2 e a ET-3) tem sido considerada importante na fisiopatologia da enxaqueca(17) e da Cefaléia em Salvas(18). O NO é também um neurotransmissor, pois a NOS (enzima que o sintetiza) está presente em fibras nervosas. Como a inflamação neurogênica constitui um modelo experimental ainda não comprovado em humanos, e os principais neuropeptídeos a ela relacionados não causam dor per se, Olesen e colaboradores cogitaram a possibilidade do NO constituir uma importante

molécula algógena na enxaqueca(19). É provável que o NO neuronal tenha menor importância na crise enxaquecosa, pois a administração de um inibidor não-seletivo da NOS, como o L-NAME (atua tanto na NOS neuronal quanto endotelial), bloqueia o extravasamento de plasma no modelo da inflamação neurogênica, ao passo que um inibidor seletivo da NOS neuronal (7-nitroindazole) é comparativamente ineficaz(20). Curiosamenete, a DA pruduz uma "up-regulation" da NOS endotelial em ratos(21), podendo justificar, em parte, uma alteração da susceptibilidade à dor em pacientes enxaquecosos.

Moskowitz e colaboradores desenvolveram um modelo experimental em ratos no qual o estímulo trigeminal induz, antidromicamente, vasodilatação e extravasamento de plasma. Este fenômeno, secundário à liberação dos transmissores mencionados acima, têm sido correlacionado à enxaqueca(22,23). A primeira evidência da liberação de CGRP durante ataques de enxaqueca foi obtida por Goadsby, Edvinsson e Ekman(24). Na enxaqueca, porém, não há liberação de VIP (aumentado na cefaléia em salvas) e de SP(25).

Nem sempre os resultados experimentais no modelo da inflamação neurogênica correspondam obrigatoriamente às respostas obtidas na clínica. Os antagonistas do receptor NK-1 (receptor para SP) RPR100893 e Lanepitant mostraram-se ineficazes contra a enxaqueca, embora experimentalmente bloqueassem a inflamação neurogênica(26,27). O mesmo ocorreu com o Bosentan (RO470232), um antagonista da Endotelina(28).

Receptores para sumatriptan pré-juncionais (5-HT1D) parecem importantes na crise enxaquecosa. É possível que seu estímulo reduza a liberação de mediadores como o CGRP. Utilizando-se [3H]sumatriptan, sítios de ligação para esta substância no sistema nervoso central foram mapeados no homem(29). É curioso haver muitos receptores no córtex visual. Pode ser que os triptans interfiram com a DA(30).

A enxaqueca sofre influência genética(31). Uma doença cerebrovascular familiar denominada "CADASIL" (Cerebral Autosomal Dominat Arteriopathy with ubcortical Infarcts and Leucoencephalopathy) foi identificada recentemente, estando sua ocorrência ligada ao cromossoma 19p12(32). Curiosamente, pacientes com CADASIL sofrem mais enxaqueca com aura do que a população geral(33). Esta associação levou à possibilidade do cromossoma 19 ser também o responsável pela transmissão de uma das formas genéticas da enxaqueca, a "enxaqueca hemiplégica familiar" (FHM), associação confirmada em 1994(34). Quatro mutações diferentes na subunidade a 1 de um canal de cálcio voltagem-dependente tipo P/Q, específico do cérebro, mapeadas no gene CACNL1A4 no cromossoma 19p13.1, foram identificadas em 4 famílias com FHM(32). Logo verificou-se novos loci no cromossoma 1q21-23(35) e 1q31(36).

A ignorância fisiopatológica presente na enxaqueca ainda é maior em relação a outras cefaléias. A cefaléia do tipo tensão (CTT), confundida com enxaqueca(37,38), já foi denominada cefaléia de contração muscular, mas não há evidência conclusiva da relação entre esta condição e os músculos(39). A

toxina botulínica parece não influenciar beneficamente pacientes com CTT(40). Embora estudos conflitantes possam sugerir o contrário, o metabolismo serotoninérgico parece normal em pacientes com CTT crônica(41). Shoenen propõe que a redução do período de supressão exteroceptiva (ES2) detectado na CTT se deve a redução da excitabilidade de centros no tronco cerebral como a substância cinzenta periaquedutal e o núcleo da rafe(42).

A cefaléia em salvas (CS) é a dor de cabeça primária mais intensa(43). Há participação de vasos com ativação do sistema trigeminovascular(44) e alterações autonômicas confirmadas, por exemplo, por estudos de resposta pupilar e sudorese(45). Os ritmos diário e anual e as alterações hormonais (melatonina, testosterona, cortisol, TRH, entre outros) levantam a suspeita de participação hipotalâmica. Ativação do hipotálamo ipsilateral foi verificada por PET em 17 pacientes com CS, sugerindo especificidade fisiopatológica desta região(46). Embora a participação genética possa ser suspeitada pela ocorrência em gêmeos(47) e parentes(48), o modo de transmissão não é conhecido.

Há anos sabe-se que cefaléias podem surgir no pescoço(49,50), mas a sua fisiopatologia não é conhecida. Não existem necessariamente anormalidades aos exames de imagem(51). Como bloqueios em diversas regiões do pescoço podem reduzir a dor por períodos relativamente longos, é possível que mecanismos de hipersensibilização nociceptiva desenvolvam papel importante na fisiopatologia desta cefaléia.

A hemicrania continua e a hemicrania paroxística crônica são cefaléias que cedem ao uso da indometacina(52,53). Fisiopatologicamente, seus mecanismos permanecem obscuros. É intrigante o fato de outros inibidores da ciclooxigensase, em doses equipotentes, não apresentarem o mesmo efeito. A compreensão do mecanismo de ação da indometacina pode ajudar a esclarecer a fisiopatologia destas cefaléias.

"Idiopathic stabbing headache" (síndrome "jabs & jolts") consiste em dores de localização e freqüência variadas, na maioria das vezes durando um segundo(54). Estas dores são comuns e surgem freqüentemente junto com outras cefaléias. Sua fisiopatologia é desconhecida. A duração relativamente curta dos episódios sugerem mediadores de ação rápida, provavelmente de origem neuronal.

Casos de SUNCT tem sido descritos por vários autores(55). O seu mecanismo é obscuro. Suas características pemitem suspeitar que o processo patológico envolve aspectos comuns à neuralgia do trigêmio (presença de zonas de gatilho, duração curta) e à cefaléia em salvas (predominância masculina, localização da dor e presença de alterações autonômicas óculo-faciais).

A enxaqueca não é a cefaléia mais frequente, tampouco a mais intensa, mas é a mais estudada. Mesmo assim, sua fisiopatologia não é completamente conhecida. Impedem o avanço do conhecimento a inexistência de modelos experimentais adequados, a inexistência de marcadores diagnósticos objetivos,

a raridade de algumas cefaléias e a dificuldade em realizar testes durante crises espontâneas.