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    C L S S I C O S C O N R A D

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    CL S S I CO S CONRAD

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    Copyright 1927, Vanguard Press Inc.

    Copyright desta edio 2000, Conrad Editora do Brasil

    CONRAD LIVROS

    Rua Maraca 185 AclimaoSo Paulo-SP 01534-030

    Fone: 11 279.9355 Fax: 11 3341.7752e.mail: [email protected]

    site: www.conradeditora.com.br

    EDITORA ASSISTENTE: Priscila Ursula

    CAPA: Kalu Castro e Ayala Jr.

    (baseada no original norte-americano)

    TRADUO: Laura Pinto Rebessi

    PREPARAO DE ORIGINAIS: Brbara Guimares Arnyi

    REVISO: Sandra Martha Dolinsky

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Reed, John, 1887-1920.A filha da revoluo / John Reed ; traduo de Laura Pinto Rebessi.

    -- So Paulo : Conrad Editora do Brasil, 2000.

    Ttulo original: Daughter of the revolution and other storiesISBN 85-87193-14-7

    1. Contos norte-americanos I. Ttulo

    00-0715

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Contos : Sculo XX : Literatura norte-americana813.5

    2. Sculo XX : Contos : Literatura norte-americana813.5

    CDD-813.5

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    Sumrio

    Prefcio......................................................A filha da revoluo....................................O mundo perdido.......................................Noite na Broadway.....................................Mac, o americano.......................................

    Endymion ou na fronteira..........................Retratos mexicanos....................................Os direitos das pequenas naes ................A coisa certa a fazer.......................................O chefe de famlia......................................O capitalista..............................................

    Onde o corao est...................................Um gosto de justia....................................Ver crer....................... .............................Outro caso de ingratido............................Vinhetas revolucionrias............................

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    Prefcio

    um pouco embaraoso ter que admitir para umsujeito que voc conhece que ele um gnio. As palavrasde Walter Lippmann a respeito de John Reed demonstramcomo o autor de Os Dez Dias que Abalaram o Mundoeravisto j por seus contemporneos. Um gnio e um heri.

    Muitos heris reunidos em um s homem. Poucas pes-soas tiveram maneiras to espetaculares de transformarsuas idias em prtica.

    Filho de uma famlia rica e tradicional do Oregon,John Reed forma-se em Harvard em 1910. Depois daformatura, parte para a Europa. A tpica atitude de umestudante da Harvard de seu tempo. A diferena que

    Reed faz sua viagem como trabalhador em um cargueiro.Desembarca na Inglaterra j preso, acusado de assas-sinato. Ele prova sua inocncia e segue como andarilhopela Inglaterra, Espanha e Frana. Arrumando um jeitode, novamente, ser detido nesses outros pases.

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    A verdadeira paixo de Jack ser preso, reclamaum amigo irritado ao receber a notcia de que John Reedestaria em uma cadeia na Itlia, por nadar em uma fonte

    desenhada por Michelngelo.Volta para os Estados Unidos e, em pouco tempo,

    proclamado o Golden Boyda cena bomia de GreenwichVillage. Suas poesias so publicadas ao lado das de EzraPound, William Butler Yeats e William Carlos Williams.

    Quando resolve fazer teatro, coloca mais de dois mil

    operrios grevistas representando operrios grevistas, noMadison Square Garden, e o seu espetculo aclamadocomo uma nova forma de arte. Decide ser reprter e ra-pidamente torna-se to popular que seu salrio passa aser um dos maiores da Amrica. Os jornais o anunciamcomo o Kipling americano, quando isso era um grandeelogio. E o prprio Kipling vem a pblico para elogiar, de

    maneira entusistica, o trabalho de John Reed.Seus contemporneos acompanham todas as suas

    aventuras. Chocados e, ao mesmo tempo, maravilhados.Num dado momento, John Reed est preso junto comtrabalhadores imigrantes grevistas, em outro est vivendocom uma milionria em Florena. Ora est cavalgando

    junto ao exrcito de Pancho Villa durante a revoluomexicana, ora est numa festa em Paris com GertrudeStein e Pablo Picasso. Ou nas trincheiras nos Blcs.Ainda na Frana, apaixona-se pela namorada de umamigo e foge com ela para tentar se casar em Berlim, emplena Primeira Grande Guerra. Logo chega a notcia deque est preso na Rssia czarista. Mas depois est noutra

    priso, na Finlndia.Ento, Reed aparece defendendo a si prprio num

    julgamento espetacular nos EUA. Nesse meio tempo,consegue fazer teatro com Eugene ONeill, entrevistarTrotsky, jogar em Monte Carlo e ser aplaudido por guer-

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    rilheiros mexicanos numa de suas brilhantes exibiesde bebedeira. Quando morre, aos 33 anos, enterradocom todas as honras na Praa Vermelha, como heri da

    Revoluo Russa. Passara-se apenas dez anos desde odia em que se formara em Harvard.

    Um humorista bolchevique, um desordeiro profissio-nal, fundador do Partido Comunista Norte-americano edefensor da revoluo sexual, um jornalista que era not-cia, um playboy da revoluo e um feminista militante,

    John Reed teve o cuidado de cruzar todas as fronteirasque viu pela frente.

    E isso aparece claro em seu texto. Se Os Dez Dias queAbalaram o Mundo considerado um marco na histriado jornalismo e o principal livro-reportagem do sculoXX, , ao mesmo tempo, literatura. E se as histriasdeste livro so jias da literatura norte-americana, sotambm reportagens.

    John Reed aparece aqui como um elo entre MarkTwain, Jack London, Walt Whitman e aquilo a que nosacostumamos chamar de new journalism.

    As histrias deste livro so crnicas (esta a melhorpalavra?) que John Reed escreveu para publicaes al-

    ternativas de seu tempo, num trabalho paralelo ao quefazia para a grande imprensa.

    Mesmo quando os cofres dos magnatas do jornalismose abriram para ele e seu nome era famoso em todo opas, Jack Reed sempre foi fiel nossa pequena revistarevolucionria, que no pagava nada e no tinha mais

    que dez mil leitores, conta Max Eastman, na poca editordo The Masses. Ele nunca falhou em suas colaboraes.No importava onde estivesse, nunca deixou de nosenviar histrias melhores que aquelas que vendia paraseus empregadores.

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    O conto que d nome a este livro um exemplo damistura de realidade e literatura, que fez algum dizer quese a vida de John Reed parece fico, seus contos sem-

    pre so fatos. Publicada pelo The Massesem fevereirode 1915, A filha da revoluo retrata a perplexidade deReed e sua gerao ante a brutalidade estpida e tediosada Primeira Guerra Mundial.

    Sabe-se que Reed realmente freqentou aquele peda-o de Paris durante a Guerra. O personagem chamado

    Fred na verdade Fred Boyd, socialista ingls e amigode Reed. Marcelle talvez no tenha existido antes, masaparece to viva neste conto que certamente passou aexistir de fato depois.

    A histria seguinte, O mundo perdido, to impres-sionante quanto, pelo que tem de atual. O personagemTakits, um ex-militante comunista srvio, transformado

    em soldado leal do exrcito nacionalista srvio, mostrao quanto a Histria pode se repetir. Foi publicada em fe-vereiro de 1916 tambm pelo The Masses, mas soa comoum retrato dos Blcs de hoje, perdidos em guerras eesquecimentos fatais.

    Em abril, dois meses depois de O mundo perdido,

    o The Massespublicou Noite na Broadway. E no msseguinte, O capitalista. Duas histrias em Nova York.Esta a cidade de Reed. No a Nova York do Poder, masa cidade dos vagabundos, prostitutas, mendigos e malan-dros. dela que Reed fala tambm em Onde o coraoest, Outro caso de ingratido, Um gosto de justia eVer crer. So algumas das histrias mais citadas por

    aqueles estudiosos que consideram Reed precursor deNorman Mailer, Hunter S. Thompson e Tom Wolfe.

    Mac, o americano realmente existiu. Um sujeito aquem o escritor recorreu como auxlio para conseguirentrar nos sertes do Mxico durante a Revoluo de

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    Villa e Zapata. A antipatia de Reed pelo companheiro explcita. Se esse conto amarra-se com Endymione Retratos mexicanos como descrio da marginlia

    norte-americana na fronteira, amarra-se tambm a Osdireitos das pequenas naes como retrato do ameri-cano horrvel. Vemos aqui o av daquele americano decamisa havaiana e culos Rayban envolvido em negocia-tas sangrentas da United Fruits ou nas aes da CIA emdefesa do Mundo Livre. Cnicos, corruptos, arrogantes

    e incapazes de ver qualquer beleza em algo que no sejauma Amrica Branca idealizada, que s existe na TV.Reed at pode desprezar aristocratas decadentes comoos personagens de A coisa certa a fazer, Endymione O chefe de famlia, mas seu dio sempre esteve re-servado para os americanos tranqilos de mos sujas,como Mac e Frank.

    O livro vai ento Rssia das vsperas da revoluobolchevique. Fala de soldados disputando cigarros, lama,esperanas e de um gentil pastor ortodoxo desempre-gado que perdeu suas ovelhas para a Revoluo. Entochegamos em Chicago, em um julgamento de militantesoperrios.

    Paris, Blcs, Texas, Nova York, Mxico, Rssia eChicago. John Reed no seguiu o conselho de cantarsua aldeia para falar do Universo. Mas Reed falou de seutempo, e assim falou de todos os tempos.

    Rogrio de Campos

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    A filha da revoluo

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    16 A filha da revoluo

    Naquela noite caa uma dessas chuvas de Paris queparecem nunca molhar como as outras. Estvamossentados no terrassedo Rotonde, mesa do canto, Fred,

    Marcelle e eu, bebendo um Dubonnet. Era uma noitequente, apesar de ser novembro. Em funo da guerra,todos os cafs fechavam s oito em ponto, e ns semprecostumvamos ficar at essa hora.

    Perto de ns estava um jovem oficial francs, com acabea envolvida por uma bandagem e o brao conforta-

    velmente em torno dos ombros de Jeanne, cobertos poruma capa verde. Beatrice e Alice estavam mais afastadas,sob o claro das luzes. Atrs de ns havia uma fendana cortina da janela, atravs da qual podamos espiar e sobreviver a sala fumacenta de dentro: um ruidosogrupo de homens prensados entre garotas, batendo nasmesas e cantando, dois velhos franceses em seu tranqilo

    jogo de xadrez, um compenetrado estudante escrevendouma carta para casa, a cabea de suaamieapoiada emseu ombro, cinco estranhos absolutos e o garom ou-vindo sem flego as histrias de um soldado de pernasenlameadas, recm-chegado dofront.

    As luzes amarelas inundavam-nos e salpicavam com

    ouro o negro e brilhante asfalto. Pessoas com guarda-chuvas passavam numa corrente constante. Um velhofarrapo humano procurava furtivamente por bitucasde cigarros sob nossos ps. Na rua, o arrastar de psde homens marchando passava, mas nossos ouvidosj estavam acostumados e indiferentes. As baionetaspingando cruzavam um raio de luz vindo do outro lado

    do Boulevard Montparnasse.Naquele ano todas as garotas no Rotonde vestiam-

    se igual. Tinham pequenos chapus redondos, cabelocurto, cinturas baixas e capas longas, at os ps, comas pontas jogadas sobre os ombros moda espanhola.Marcelle era a imagem das outras. Alm disso, seus

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    l-bios estavam pintados de escarlate, suas faces erammuito brancas e falava obscenidades quando no estavaem seus momentos de dignidade. Nestes, era sentimen-

    tal. Presenteara-nos com a histria de sua muito rica erespeitvel famlia, de como fora tragicamente seduzidapor um duque, de sua virtude inata e orgulhosamentedeixara bem claro que no era uma vagabunda qual-quer

    Naquele momento, ela alternava comentrios malicio-

    sos com apelos por dinheiro a quem passava diante deseus olhos, numa vozinha irritante. E eu pensei comigoque ns j conhecamos Marcelle a fundo. Seus comen-trios sobre coisas e pessoas eram pungentes, vigorosos,originais, mas suavizavam-se depois de um tempo. Seualvoroo e seu amor desavergonhado pela vida durariams mais um pouco. Ela j estava corrompida pelo muito

    uso...Ouvimos uma discusso violenta e uma garota alta

    vestindo um suter laranja saiu, seguida por um garomque gesticulava e exclamava:

    Mas os oito anisettesque voc pediu, nom de Dieu!Eu disse que vou pagar, gritou ela, estridente, por

    cima do ombro. Vou ao Dome fazer algum dinheiro. Eatravessou correndo a rua iluminada. O garom ficouparado, olhando para ela, mexendo com os trocados emseu bolso.

    No adianta esperar, gritou Marcelle. O Dome temoutra porta na Rue Delambre! Mas o garom no prestouateno. Ele mesmo j pagara as bebidas no caixa. E, de

    fato, a garota nunca mais apareceu.Esse truque velho, disse-nos Marcelle. fcil,

    quando voc no tem dinheiro, pegar uma bebida dogarom, porque eles no ousam pedir para voc pagaradiantado. uma coisa boa de se saber em perodos de

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    guerra, quando os homens so to poucos e pobres...Mas, e o garom!, objetou Fred. Ele tambm tem

    que ganhar a vida!

    Marcelle deu de ombros. E ns a nossa, disse ela.Costumava haver uma belle type pelo Quarter,

    continuou ela depois de um minuto, que chamava a simesma de Marie. Ela tinha um cabelo lindo patante e adorava viajar... Uma vez encontrou-se em um barcono Mediterrneo, rumo ao Egito, sem um sou nada

    alm da roupa do corpo. Um monsieurpassou por elaenquanto se debruava sobre a amurada, e disse: Voctem um cabelo maravilhoso, mademoiselle.

    Eu o vendo para voc por cem francos, respondeuela rapidamente. E ento cortou fora seu lindo cabelo efoi para o Cairo, onde conheceu um lorde ingls.

    O garom deu um suspiro profundo, sacudiu triste-

    mente a cabea e entrou. Ficamos calados, pensando emjantar. A chuva caa.

    No sei como isso aconteceu, mas Fred comeou aassobiar distraidamente a Carmagnole. Eu no terianotado se no ouvisse uma voz acompanhando. Olheiem volta e vi o oficial francs machucado, cujo brao

    cara dos ombros de Jeanne, olhando para o nada dooutro lado da calada, cantarolando aCarmagnole. Quevises estaria tendo esse jovem de aparncia sensvel,trajando o uniforme do exrcito de seu pas, cantando acano da revolta! Quando olhei, caiu em si, parecendotomar conscincia, e levantou-se rpido, arrastandoJeanne com ele.

    No mesmo instante Marcelle agarrou Fred pelo bra-o.

    dfendu vai fazer com que sejamos todos pegos!,gritou ela, com algo mais forte que medo nos olhos, des-pertando meu interesse. E, alm disso, no cante essas

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    canes sujas. Elas so revolucionrias, cantadas porvoyous pobres esfarrapados...

    Ento voc no uma revolucionria?, perguntei.

    Eu? Bien, no, eu juro para voc!, sacudiu a cabeaviolentamente. Os mchants, os viles, eles querem dei-xar tudo de cabea para baixo! Marcelle tremeu.

    Olhe aqui, Marcelle! Voc est feliz no mundo do jeitocomo ele est? O que mais faz por voc, alm de mand-la para as ruas, para se vender? Fred estava tomadoagora por uma onda fervente de propaganda. Quando odia vermelho chegar, eu sei de que lado das barricadasvou estar...

    Marcelle comeou a rir, uma risada amarga. Era aprimeira vez que eu a via sem autocontrole.

    Ta gueule, meu amigo, interrompeu ela, brusca-mente. Conheo esse papo! Eu ouvi isso desde que era

    deste tamanho... Eu sei. Ela parou, riu para si mesmae lanou: Meu av foi fuzilado contra uma parede emPre Lachaise por carregar uma bandeira vermelha naComuna. Parou, olhou para ns envergonhada e sorriu.Por isso, vocs vem que venho de uma famlia sem valornenhum

    Seu av!, gritou Fred.

    Basta do meu av!, disse Marcelle, indiferente. Dei-xemos o velho louco, de mos sujas, o bobo, descansar emseu tmulo. Eu nunca falei dele antes e no vou acendervelas pela sua alma...

    Fred alcanou a mo dela. Estava exaltado. Deussalve o seu av!

    Com a sagacidade de sua profisso, Marcelle perce-beu que, por algum motivo misterioso, agradara. Comoresposta, comeou a cantar baixinho as ltimas linhasdaInternationale.

    Cest la lutte finale, coqueteou com Fred.Conte-nos mais sobre seu av, pedi.

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    No h nada mais a contar, disse Marcelle, meioenvergonhada, meio satisfeita e totalmente irnica. Eleera um homem selvagem de Deus sabe onde. No tinha

    me nem pai. Era pedreiro e, segundo dizem, um bomtrabalhador. Mas desperdiava seu tempo lendo livros eestava sempre em greve. Era um brbaro, sempre gritan-do Abaixo o governo e os ricos!. As pessoas o chamavamde Le Farou. Lembro-me do meu pai contando como ossoldados vieram tir-lo de casa para fuzil-lo. Meu pai era

    um rapaz de catorze anos, e escondeu meu av embaixodo colcho da cama. Mas os soldados cutucaram o lugarcom suas baionetas, uma atravessou seu ombro, e elesviram o sangue. Ento meu av fez um discurso paraos soldados ele estava sempre fazendo discursos epediu a eles para no acabarem com a Comuna... Masos soldados apenas riram dele. E Mar-celle riu, porqueera divertido.

    Mas meu pai, continuou, Cus! Ele era ainda pior.Lembro-me da grande greve nas obras de Creusot espereum minuto era o ano da Grande Exposio. Meu paiajudou a fazer aquela greve. Meu irmo era, ento, s umbeb. Tinha oito anos e j estava trabalhando, como as

    crianas pobres fazem. E na manifestao dos grevistas,de repente, meu pai ouviu uma vozinha gritando para eleatravs das filas: era meu irmozinho, marchando comuma bandeira vermelha como um dos camaradas!

    Ol, velho!, ele chamou o meu pai. a ira!Eles atiraram em vrios homens naquela greve. Mar-

    celle balanou a cabea, enojada. Argh! A escria!Fred e eu tremamos de frio por termos ficado muito

    tempo na mesma posio. Batemos na janela e pedimosmais conhaque.

    E agora vocs j ouviram o suficiente sobre a minha

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    famlia miservel, disse Marcelle, numa tentativa detornar as coisas mais leves.

    Continue, disse Fred, rouco, com olhos brilhantes.

    Mas voc vai me levar para jantar, nest-ce pas?, in-sinuou Marcelle. Eu disse que sim. Pardi!, continuou,com um sorriso. No foi assim que meu pai morreu Ele!Depois que meu av morreu, meu velho no conseguiaencontrar trabalho. Estava passando fome e ia de casaem casa pedindo comida. Mas as mulheres dos camara-

    das de meu av fechavam a porta na cara dele, dizendo:No lhe d nada, o salaud. Ele filho de Le Farou, quefoi fuzilado. E meu pai arrastava-se entre as mesas doscafs, como um cachorro, em busca de migalhas paramanter seu corpo e sua alma. Isso me ensinou muito,disse Marcelle, balanando seu cabelo curto, a mantersempre boas relaes com aqueles que me alimentam.

    por isso que no roubo do garom como aquela garotafez: e digo a todos que minha famlia era respeitvel. Elespodem me fazer sofrer pelos pecados do meu pai, comoele sofreu pelos do pai dele.

    Tudo ficou claro para mim e mais uma vez o intriganteprimitivismo da humanidade justificou-se. Ali estava a

    chave para Marcelle, sua fraqueza, sua futilidade. Entono fora o vcio que a desviara do caminho, mas a in-tolervel degradao do esprito humano pelos mestresda Terra, a terrvel punio daqueles que lutam porliberdade.

    Lembro-me como, disse ela, depois que a greve deCresout terminou, os patres livraram-se dos trabalhado-

    res que causavam confuso. Era inverno e, por semanas,tnhamos apenas a madeira que minha me apanhava noscampos para nos aquecer e um pouco de po e caf queo Sindicato nos dava. Eu no tinha mais do que quatroanos. Meu pai decidiu ir a Paris e ns fomos caminhando.

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    Ele me carregava em um ombro e no outro uma pequenatrouxa de roupas. Minha me carregava outra, mas elaj tinha tuberculose e precisava descansar a cada hora.

    Meu irmo vinha atrs... Percorremos a estrada branca,reta, coberta pela neve suave, entre os altos chouposnus. Dois dias e uma noite... Quando veio a escurido,amontoamo-nos numa cabana abandonada, minha metossindo, tossindo. Depois samos de novo, antes do Solnascer, vagando pela neve. Meu pai e meu irmo gritando

    frases revolucionrias, e cantando:Dansons la CarmagnoleVive le son Vive le sonDansons la CarmagnoleVive le son du canon!

    Marcelle levantou a voz, inconscientemente, enquanto

    cantava a cano proibida. Suas bochechas coraram,seus olhos estalaram, e batia o p. De repente, parou eolhou em volta com medo. No entanto, ningum havianotado.

    Meu irmo tinha uma vozinha aguda, como a deuma menina, e meu pai comeava a rir quando via o

    filho marchando inflexivelmente a seu lado, rugindo ascanes de dio como um velho grevista.Allons! Petit chemineau, seu pequeno vagabundo!

    Aposto que a polcia vai conhecer voc um dia! E ele davaum tapa em suas costas. Isso fazia minha me empa-lidecer e, s vezes, durante a noite, ela saa da cama eia at o canto onde meu irmo dormia. Acordava-o para

    dizer, chorando, que ele devia crescer para ser um bomhomem. Uma vez meu pai acordou e pegou-a mas issofoi mais tarde, em Paris...

    E eles cantavam:Debout frres de misre!

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    (Avante, irmos da misria!)Ne voulons plus de frontires;(No queremos mais fronteiras;)

    Pour gorger la bourgeoisie,(Para saquear a burguesia,)Et supprimer la tyrannie,(E suprimir a tirania,)Il faut avoir du cur,(Ns precisamos ter corao,)Et de lnergie!(E energia!)

    E ento meu pai olhava para a frente com olhosbrilhantes, prosseguiu Marcelle, marchando como umexrcito. Toda vez que seus olhos brilhavam daquelejeito minha me tremia porque significava algumaluta incansvel e terrvel contra a polcia, ou uma grevesangrenta, e ela temia por ele. Eu sei como ela devia se

    sentir, pois era uma seguidora da lei como eu. E o meupai, ele no tinha jeito. Marcelle estremeceu e tomouseu conhaque de um s gole.

    Eu s comecei a saber das coisas depois que viemospara Paris, porque ento comecei a crescer. Minha pri-meira lembrana, praticamente, de quando meu pai

    liderou a grande greve no Thirions, o campo de carvo naAvenida de Maine, e veio para casa com o brao quebradopela polcia. Depois disso era trabalho, greve trabalho,greve com pouco para comer em casa, minha me fi-cando cada vez mais fraca, at morrer. Meu pai casou-senovamente, com uma mulher religiosa, que acabou dandopara ir continuamente igreja rezar pela alma imortal

    dele porque ela sabia o quanto ele odiava Deus.Ele costumava vir para casa noite, depois das reu-

    nies semanais do Sindicato, seus olhos brilhando comoestrelas, rugindo blasfmias pelas ruas. Era um homemterrvel. Era sempre o lder. Lembro-me quando saiupara ajudar numa manifestao em Montmartre. Era na

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    frente do Sacr Cur, a grande igreja branca no alto damontanha, de onde se v toda a Paris. Vocs conhecema esttua do Chevalier de la Barre, logo abaixo dela?

    de um jovem de tempos antigos que se recusou a saudaruma procisso religiosa. Um padre quebrou seu braocom a cruz que carregavam e o jovem foi queimado pelaInquisio. Ele est l em p, com seu brao tombado, suacabea levantada de uma maneira to orgulhosa. Ehben, os trabalhadores manifestavam-se contra a Igreja,

    ou algo assim eu no sei o qu. Faziam discursos. Meupai estava parado nos degraus da baslica quando, derepente, o curda igreja apareceu. Meu pai gritou, comuma voz de trovo, basos padres! Esse porco queimouaquele rapaz! E apontou para a esttua. Para o Lanternecom ele! Enforquem-no! Ento eles todos comearam agritar e ir em direo aos degraus. E a polcia avanou

    na multido com revlveres... Bem, meu pai chegou emcasa, naquela noite, todo coberto de sangue e quase semconseguir arrastar-se.

    Minha madrasta encontrou-o na porta, muito irritada,e disse, Bem, onde voc esteve, seu Joo-ningum?

    Numa manifestao, quoi!, resmungou ele.

    Isso bom para voc, disse ela. Espero que vocesteja curado agora.Curado?, gritou ele, rugindo, com a boca ensangen-

    tada e sem dentes. At a prxima vez! a ira!E, na verdade, no dia em que Lebuf foi guilhoti-

    nado, os couraceiros pegaram os socialistas e depoiscarregaram meu pai para casa com um corte de sabre

    na cabea.Marcelle inclinou-se, um cigarro na boca, para acen-

    der no de Fred.Eles o chamavam de Casse-Tte Poissot o Quebra-

    cabea, e ele era um homem duro. Como ele odiava o

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    Governo! Uma vez, cheguei da escola e disse a ele quetinha aprendido a cantar aMarselhesa.

    Se um dia eu pegar voc cantando essa maldita

    cano de traidores por aqui, gritou comigo, cerrando opunho, quebro a sua cara!

    Fiz uma figura mental desse velho guerreiro grosseiroe limitado, cheio de cicatrizes de uma centena de lutasvs e sujas com a polcia, voltando para casa por ruasimundas depois de reunies do Sindicato, seu crebro

    iluminado por vises de uma humanidade regenerada.E o seu irmo?, perguntou Fred.Oh, ele era ainda pior que meu pai, disse Marcelle,

    rindo. Voc podia conversar com meu pai sobre muitascoisas, mas h coisas sobre as quais voc no podia con-versar com meu irmo de jeito nenhum. Mesmo quandomenino ele era terrvel. Ele dizia: Depois da escola venha

    me encontrar em tal igreja, eu quero rezar. Encontrava-mecom ele nas escadas, entrvamos juntos e nos ajoelhva-mos. E, quando eu estava rezando, ele pulava de repente esaa correndo e gritando pela igreja, chutando as cadeirase derrubando as velas que queimavam nas capelas... E,quando via um curna rua, marchava bem atrs gritan-

    do: bas les calottes! bas les calottes! Vinte vezes foipreso e at posto no reformatrio, mas sempre escapou.Quando no tinha mais que quinze anos, fugiu de casa eno voltou por um ano. Um dia entrou na cozinha ondeestvamos tomando caf da manh.

    Bom dia, disse, como se nunca tivesse ido embora.Manh fria esta, no?

    Minha madrasta gritou.Eu fui ver o mundo, ele continuou. Voltei porque no

    tinha dinheiro e estava com fome. Meu pai no brigoucom ele, apenas deixou-o ficar. E ele passava o dia no cafda esquina, nunca voltava para casa antes da meia-noite.

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    26 A filha da revoluo

    Ento, uma manh ele desapareceu de novo, sem dizeruma palavra a ningum. Em trs meses estava de volta,morrendo de fome. Minha madrasta disse a meu pai para

    fazer o menino trabalhar, que j era duro o suficiente comum homem preguioso e desregrado para sustentar. Masmeu pai apenas riu.

    Deixe-o em paz!, disse. Ele sabe o que est fazendo.H bom sangue de lutador nele.

    Meu irmo continuou saindo e voltando assim at

    quase os dezoito anos. Nos ltimos tempos, antes de seestabelecer em Paris, quase sempre trabalhava apenasat ter juntado dinheiro suficiente para ir embora. Ento,finalmente pegou um trabalho fixo numa fbrica aqui,e casou-se...

    Ele tinha uma voz boa para cantar e deixava aspessoas pasmas com a maneira como entoava canes

    revolucionrias. noite, depois de terminar seu trabalho,costumava amarrar um leno vermelho em volta do pes-coo e ir a alguma casa noturna ou cabar. Ele entravae, enquanto algum cantor se apresentava no palco, derepente levantava a voz e comeava com o a iraou comaInternationale. O cantor no palco era forado a parar

    e toda a platia voltava-se e olhava para meu irmo, lnos bancos mais altos do teatro.Quando terminava, gritava: O que vocs acham dis-

    so? E ento o ovacionavam. E ele gritava: Todo mundocomigo, abaixo os capitalistas! basa polcia! Para oLanterne com os flics! Havia aplausos e assobios. Euouvi algum assobiar para mim?, gritava. Vou esperar l

    fora pelo homem que ousou assobiar para mim! E depoislutava com dez ou quinze homens, numa briga furiosana rua at a polcia chegar.

    Ele tambm estava sempre liderando greves, mastinha um jeito galante, risonho, que fazia com que todos

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    os camaradas o amassem. Poderia ter se tornado umdelegado, se meu pai no tivesse lhe ensinado a ser umfora-da-lei quando era pequeno

    Onde est ele agora?, perguntou Fred.L nas trincheiras, em algum lugar, ela abanou o

    brao vagamente para o leste. Teve que ir com os outrosquando a guerra comeou, embora odiasse o exrcito.Quando cumpriu o servio militar foi horrvel. Nuncaobedecia. Ficou na priso por quase um ano. Uma vez,

    decidiu ser promovido e em um ms fazia parte da corpo-rao, ele era to inteligente. Mas, no primeiro dia recu-sou-se a dar ordens aos soldados de seu esquadro... Porque eu deveria dar ordens a esses camaradas?, gritou.Eu recebo ordens de comand-los a cavar trincheiras.Voyons, eles so escravos? Rebaixaram-no, ento, a sol-dado raso. E ele organizou uma revolta e aconselhou-osa atirar nos oficiais... Os prprios homens ficaram toinsultados que jogaram-no contra a parede. Ele odiavaa guerra! Quando a Lei Militar dos Trs Anos estava naCmara, foi ele quem levou a multido ao Palais Bourbon...E agora tem que ir para matar os Bches, como os outros.Talvez esteja morto. Eu no sei, no ouvi dizer nada. E

    depois acrescentou, distrada. Ele tem um filhinho decinco anos.

    Trs geraes de sangue impetuoso, livre, lutandoinfatigavelmente por um tnue sonho de liberdade. Eagora uma quarta no bero! Eles sabiam por que luta-vam? No importava. Era uma coisa mais profunda que

    a razo, um instinto do esprito humano que nem foranem argumento jamais poderiam exterminar.

    E voc, Marcelle?, perguntei.Eu?, ela riu. Devo contar para vocs que no fui

    seduzida por um duque? Deu uma risadinha amarga.

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    28 A filha da revoluo

    Ento vocs no vo mais me respeitar porque perceboque vocs, amigos de passagem, querem sua diversotemperada com romance. Mas direi a verdade. No foi

    romntico. Naquela vida hedionda e severa que levva-mos, sempre desejei alegria e felicidade. Queria semprerir, estar alegre, mesmo quando era um beb. Costumavaimaginar-me bebendo champanhe, indo ao teatro, e que-ria jias, vestidos finos, automveis. Bem cedo meu paipercebeu que meus interesses iam por esse caminho. E

    ele disse: Eu vejo que voc quer jogar tudo para o alto evender-se para os ricos. Deixe-me dizer que, na primeirafalta que voc cometer, ponho voc pela porta afora enunca mais a chamo de minha filha.

    Tornou-se intolervel a vida em casa. Meu pai noperdoava mulheres que se entregavam sem estaremcasadas. Ficava dizendo que eu estava no caminho dopecado. Quando fiquei mais velha, no podia sair semminha madrasta. Assim que alcancei idade suficiente,ele correu para arrumar um marido para mim, para mesalvar. Um dia, chegou em casa e disse que encontraraum um jovem plido, manco, filho do gerente de umrestaurante da mesma rua. Eu o conhecia. No era mau,

    mas eu no podia nem pensar em casamento. Queriamuito ser livre. Assustamo-nos, Fred e eu. Livre! Noera por isso que o velho lutara tanto?

    Ento, naquela noite, continuou, eu sa da cama,coloquei meu vestido de domingo, o vestido de todo diapor cima dele e fugi. A noite inteira andei pelas ruas e o

    dia seguinte tambm. Naquela tarde, tremendo de medo,fui at a fbrica onde meu irmo trabalhava e esperei quesasse. No sabia se ele me entregaria ou no a meu pai.Logo ele veio, gritando e cantando com alguns camaradas,e ento me viu.

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    Bem, garota, o que traz voc aqui?, gritou, pegandoo meu brao. Problemas? Contei que havia fugido. Eleficou parado olhando para mim. Voc no comeu, disse

    ele. Venha para casa comigo e conhea minha mulher.Voc vai gostar dela. Vamos todos jantar juntos! Entoeu fui. A mulher dele era maravilhosa. Recebeu-me debraos abertos e eles me mostraram o beb, de apenasum ms de idade... E to gordo! Tudo era quente e feliz lnaquela casa. Lembro-me que ela mesma fez o jantar, e

    nunca comi um jantar assim! Eles no me perguntaramnada at terminarmos de comer. Meu irmo acendeu umcigarro e me deu um. Eu tinha medo de fumar porqueminha madrasta havia dito que isso trazia o inferno parauma mulher... Mas minha cunhada sorriu para mim epegou um para ela.

    Agora, disse meu irmo. Bem, quais so seus pla-

    nos?Eu no tenho, respondi. Preciso ser livre. Eu quero

    alegria e roupas bonitas. Quero ir ao teatro. Quero beberchampanhe.

    A mulher dele sacudiu a cabea, triste.Nunca ouvi falar de nenhum trabalho para uma

    mulher que desse essas coisas, disse ela.Acha que eu quero trabalhar?, soltei. Acha que que-ro ser escrava a vida inteira por dez francos por semana,ou pavonear-me usando vestidos de outras mulheres emalgumacouturiresna Rue de la Paix? Voc acha que vouaceitar ordens de algum? No, eu quero ser livre!

    Meu irmo olhou para mim, gravemente, por um

    longo tempo. Depois disse: Temos o mesmo sangue.No adiantaria nada discutir com voc, ou forar voc.Cada ser humano tem que resolver a prpria vida. Vocvai e vai fazer o que quiser, mas eu quero que saiba quequando estiver com fome, ou sem coragem, ou desolada,

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    minha casa estar sempre aberta para voc. Sempre serbem-vinda aqui, enquanto voc viver...

    Marcelle enxugou os olhos com as costas da mo e

    prosseguiu:Fiquei l aquela noite e no dia seguinte andei pela

    cidade e conversei com as garotas dos cafs. Garotascomo sou agora. Elas me aconselharam a trabalhar se euquisesse um amante fixo. Ento entrei em uma grandeloja de departamentos por um ms. Tive um amante,

    um argentino que me deu roupas bonitas e levou-me aoteatro. Nunca fui to feliz!Uma noite, quando amos ao teatro, passamos pela

    casa de meu irmo e eu pensei em parar e dizer-lhe co-mo achava a vida maravilhosa. Eu usava um vestidocharmeuseazul lembro-me dele agora, era adorvel!Sandlias de saltos muito altos e brilhantes nas fivelas,

    luvas brancas, um chapu enorme com uma pena deavestruz preta, e um vu. Por sorte o vu estava abaixado,porque quando entrei pela porta da casa de meu irmo,meu pai estava l nos degraus! Ele olhou para mim. Euparei. Meu corao parou. Mas pude ver que ele no mereconheceu.

    Va ten!, gritou ele. O que o seu tipo est fazendoaqui, na casa de um trabalhador? O que voc quer vin-do aqui e nos insultando com suas sedas e suas penas,fruto do suor de homens pobres em moinhos, e de suasmulheres tuberculosas e suas crianas moribundas? Vembora, sua vadia!

    Eu estava apavorada, pensando que pudesse me

    reconhecer!S o vi uma vez mais. Meu amante me deixou e eu tive

    outros amantes... Meu irmo e sua mulher foram viverperto de meu pai em St. Denis. Eu s vezes passava anoite com eles, para brincar com o beb, que cresceu to

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    rpido... Aqueles eram tempos realmente felizes. Eu iaembora de manh, para evitar encontrar meu pai. Umamanh, quando sa na rua, vi meu pai indo trabalhar

    ao alvorecer, com sua marmita! Ele no vira meu rosto.No havia nada a fazer seno andar pela rua adiantedele. Eram umas cinco horas e logo percebi que eleestava andando mais rpido. Ento, ele disse com umavoz baixa, Mademoiselle, espere por mim. Ns estamosindo na mesma direo, hein? Andei mais rpido. Voc

    bonita, mademoiselle. E eu no sou velho. No podemosir a algum lugar? Eu entrei em pnico. Estava to cheiade horror e de medo que ele visse meu rosto! No ousavavirar uma esquina, porque ele veria o meu perfil. Entofui direto em frente em frente por horas, por milhas.No sei quando ele parou. No sei se agora ele est morto.Meu irmo disse que ele nunca falou de mim

    Ela parou de falar e os rudos da rua tornaram-seaparentes de novo aos nossos ouvidos, que haviam fica-do alheios a eles por tanto tempo. Agora pareciam ter odobro da altura de antes. Fred estava excitado.

    Maravilhoso, por Deus!, gritou ele, batendo na mesa.O mesmo sangue, o mesmo esprito! E veja como a re-

    voluo ficou mais doce, mais ampla, de gerao paragerao! Veja como o irmo entendeu a liberdade por umngulo ao qual o velho pai era cego!

    Marcelle olhou-o com admirao. O que voc querdizer?, perguntou.

    Seu pai, lutando a vida toda por liberdade... noentanto, ps voc para fora porque voc queria asua

    liberdade!Oh, mas voc no entende, disse Marcelle. Eu er-

    rei. Sou m. Se tivesse uma filha como eu, teria feito amesma coisa.

    Voc no v?, gritou Fred. Seu pai queria liberdade

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    para os homens, no para as mulheres!Naturalmente, ela deu de ombros. Homens e mu-

    lheres so diferentes. Meu pai estava certo. Mulheres

    devem ser respeitveis!As mulheres precisam de uma outra gerao, sus-

    pirou Fred, triste.Eu peguei a mo de Marcelle.Voc se arrepende?, perguntei a ela.Arrepender-me da minha vida?, ela jogou o cabelo

    para trs, orgulhosa. Dame, no. Eu sou livre!

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    O mundo perdido

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    quais Iovanovitch disse, rindo, que haviam sido captura-dos dos austracos duas semanas antes. E samos paravisitar as baterias.

    A oeste, sobre as colinas bsnias, um plido Sol deprimavera aparecia baixo num cu turquesa. As peque-nas nuvens queimavam em vermelho dourado, escarlate,vermelho, rosa-plido e cinza, no enorme arco do cu.Pssaros sonolentos gorjeavam e um leve vento frescovinha do oeste.

    Iovanovitch voltou-se para mim:Voc queria ver um socialista srvio, disse ele. Bem,ter sua chance. O capito no comando da bateria que nsvamos ver lder de um dos partidos socialistas srvios,ou pelo menos era, nos dias de paz. No, eu no sei quaisso suas doutrinas. Perteno Juventude Radical, eleriu. Ns acreditamos no Grande Imprio Srvio.

    Se todos os socialistas fossem como Takits, disse ocoronel, tragando satisfeito seu charuto, eu no terianada a dizer contra o socialismo.

    Numa trincheira funda, curvada em forma de meia-luano canto de um campo, quatro canhes escondiam-seatrs de uma tela de salgueiros novos. Havia um telhado

    sobre eles, quase no nvel do campo, e sobre esse telhadosementes foram plantadas, e grama e arbustos cresciampara escond-los dos avies. O coronel respondeu sau-dao em staccatodo sentinela, e bradou: Takits! Doponto dos canhes veio um homem, enlameado at osjoelhos e sem chapu. Era alto e encorpado. Seu uniformegasto assentava-lhe como se um dia tivesse sido mais

    robusto. Uma barba grossa e descuidada cobria seu rostoat as mas, e seus olhos eram calmos e francos.

    Eles disseram alguma coisa em srvio para o capito,e ele riu.

    Ento, disse ele, dirigindo-se a mim com um brilho

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    nos olhos, falando um francs titubeante, como se noo usasse h muito tempo. Ento, voc est interessadoem socialismo?

    Eu disse que estava. Disseram-me que voc era umlder socialista neste pas.

    Eufui, disse ele, enfatizando o tempo passado. Eagora

    Agora, interrompeu o coronel, ele um patriota eum bom soldado.

    Diga apenas um bom soldado, disse Takits, e sentiuma sombra de amargura em sua voz. Desculpe-me sefalo um francs ruim. Faz muito tempo que no conversocom estrangeiros, embora j tenha feito discursos emfrancs

    E o socialismo?, perguntei.Bem, vou contar a voc, comeou, vagarosamente.

    Ande comigo um pouco. Ps seu brao sob o meue franziu a testa, olhando para a terra. De repentevoltou-se, preocupado, e gritou para algum invisvelna trincheira: Peter! Ponha leo na culatra da armanmero um!

    Os outros caminhavam adiante, rindo e fazendo obser-

    vaes por sobre os ombros, da maneira como os homensfazem quando comeram e esto satisfeitos. A noite subiarpido e escondia aquelas nuvens brilhantes, colocandoseu trem de estrelas como uma capa para cobrir todo oparaso. Em algum lugar, nas trincheiras distantes, vo-zes cantavam uma trmula cano macednia sobre asglrias do imprio do Tsar Stefan Dushan, e um violino

    acompanhava, arranhando e guinchando sob a mo deum gooslarcigano. Na leve encosta de uma colina, lon-ge, do outro lado do rio, no pas inimigo, uma fasca dechama tremulou, avermelhada...

    Veja, nosso pas diferente do seu, comeou Takits.

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    guerra quando quisessem, simplesmente recusando-se alutar. Deus! Havia apenas alguns de ns, no uma grandee slida classe operria como na Alemanha ou na Frana,

    mas ns achvamos que podia ser feito.E agora, em que voc acredita?Takits voltou-se para mim devagar, e seus olhos eram

    trgicos e amargos. No sei. No sei. Era o eu antes daguerra que falava com voc agora mesmo. Que choquefoi ouvir minha voz dizendo essas coisas velhas, gastas!

    Elas so to sem sentido agora! Cheguei a pensar quetudo tem que ser feito de novo a construo da civiliza-o. De novo temos que aprender a lavrar o solo, a viverjuntos sob um governo comum, a fazer amigos alm dasfronteiras, com outras raas, pessoas que se tornaramapenas rostos escuros, maus e falando lnguas que noso a nossa. Esse mundo tornou-se um lugar de caos,

    como na Era das Trevas. E, no entanto, vivemos, temosnosso trabalho a fazer, sentimos alegria num dia claro etristeza quando chove. Isso mais importante que qual-quer coisa agora. Depois vir a grande guinada para forado barbarismo, para um tempo em que homens penseme raciocinem, e conscientemente organizem suas vidas de

    novo... Mas isso no ser no nosso tempo. Morrerei semver isso o mundo que ns amvamos e perdemos.Ele olhou para mim com uma emoo extraordinria,

    olhos flamejantes e escuros, e agarrou meu brao. Este o ponto, o ponto trgico. J fui um advogado. Outrodia, o coronel perguntou-me sobre uma questo legalcomum, e eu havia esquecido. Quando conversei com

    voc sobre o meu partido, descobri que tudo tambmera vago, nebuloso. Voc notou o quanto fui obscuro egeral, no notou? Bem, eu esqueci meus argumentos eperdi minha f.

    H quatro anos luto no exrcito srvio. No comeo

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    odiava, queria parar, era oprimido pela irracionalidadedisso tudo. Agora meu trabalho, minha vida. Passo odia inteiro pensando nessas armas. Passo a noite em

    claro preocupado com os homens na bateria, se fulanoou sicrano faro sua sentinela sem negligncia, se vouprecisar de cavalos novos no lugar dos mancos, o quepode ser feito para corrigir o pequeno defeito de coice docanho nmero trs. Essas coisas so minha comida, mi-nha cama, o tempo essa a vida para mim. Quando vou

    para casa de licena, para visitar minha mulher e meusfilhos, sua existncia parece muito mansa, distante darealidade. Fico entediado rapidamente e aliviado quandochega a hora de voltar para os meus amigos aqui, meutrabalho, minhas armas... Essa a parte horrvel.

    Ele parou, e caminhamos adiante em silncio. A ce-gonha de grandes asas veio pousar em seu ninho, sobre

    o telhado da casa. Ao longe, no rio, uma repentina ondade tiros de rifle soou inexplicavelmente, e terminou comum silncio lancinante.

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    Noite na Broadway

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    42 Noite na Broadway

    Ele estava parado na esquina da Broadway com a Rua42, um homem bem-apessoado com costeletas grisalhas,uma boca plcida, culos benevolentes presos na ponta

    do nariz, e o ar de um clrigo humanista. Mas na frentede seu alto chapu-coco estava fixada uma etiqueta,Notcias Matrimoniais. Uma outra estava pendurada emseu peito, outra em seu brao direito esticado, e ele car-regava uma pilha de jornais em sua mo esquerda. Detempos em tempos sua boca abria-se mecanicamente e

    ele entonava, com sotaque clerical:Compre o Notcias Matrimoniais. Se voc quer umamulher ou um marido. Cinco centavos a cpia. Apenasum nquel pela alegria do casamento. Apenas meio dime*

    por uma vida inteira de felicidade.Dizia isso sem qualquer expresso, olhando vagamen-

    te para a multido que passava.

    Ondas de luz branca, verde, amarelo-metlica, ver-melha batiam nele. Sobre sua cabea um gato de trsmetros brincava com um rolo monstruoso de fio vermelho.Uma guia gigante batia suas asas devagar. Colossaisescovas de dente apareciam como solenes pressgios nocu. Um escocs verde e vermelho e azul e amarelo, alto

    como uma casa, danava com uma gaita de foles silen-ciosa. Dois gigantes em roupas de baixo e luvas de boxelutavam a uma jarda de distncia. Uma cerveja brilhantecaa de garrafas dentro de copos coroados de espuma in-candescente. Dedos invisveis traavam palavras da lidadomstica pelo cu, tingindo-o em letras de fogo. E tudoem volta eram ondas e espirais de chama colorida.

    Se voc quer uma mulher ou um marido. Apenasum nquel pela alegria do casamento, vinha a voz me-

    * Dime o nome dado moeda de dez centavos de dlar. Nquel a de cinco centavos. (N. da T.)

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    tlica.Mantinha-se imvel, como uma rocha em meio tor-

    rente. Os teatros estavam fechando. Como uma imen-si-

    do de toras se move descendo o rio, uma corrente duplade motores gritando e enfumaando enchiam a Broadway,a Stima Avenida, a Rua 42, correndo, parando, libertan-do-se novamente... Uma serpente iluminada de bondesbloqueados, barulhentos.

    Os pedestres corriam como gelo na primavera, rpidos

    e ruidosos, apertados dos dois lados. Homens magros comcara de doninha, mulheres magras de face branca, brilhode golas brancas, chapus de seda, grandes chapusfloridos balanando, vus de seda sobre cabelos escuros,sbrios pequenos chapus duros e com pinceladas devermelho, sandlias de cetim, barras de anguas, ver-nizes, ruge e esmalte e malhas. Perfumes voluptuosos,

    excitantes. Fumaa azul de cigarro, tomando um brilhode ouro. Msica de caf e restaurante levemente audvel,rtmica. Luzes, som, prazeres febris, rpidos... Primeiro aonda veio devagar, depois como mar cheia peles maisricas que na Rssia, mais sedas que no Oriente, maisjias que em Paris, rostos e olhos e corpos, o desejo do

    mundo , depois a rpida vazante, e os vagabundos.Cinco centavos a cpia. Apenas meio dime por umavida inteira de felicidade.

    Voc pode garantir isso?, perguntei.Lanou-me seu olhar calmo e gentil e pegou meu

    nquel antes de responder.Abra na pgina dois, ordenou. V essa foto? Leia.

    Linda jovem, vinte e nove anos, em perfeita sade, her-deira de quinhentos mil dlares, deseja correspondnciacom solteiro. Objetivo: matrimnio, se a parte certa forencontrada. Milhares alcanaram a felicidade por essaspginas. Se voc ficar desapontado, olhou gravemente

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    44 Noite na Broadway

    por sobre seus culos, se voc ficar desapontado, nsdevolvemos o seu nquel.

    Voc j tentou?

    No, respondeu ele cuidadosamente. Serei francocom voc. Eu no tentei. Aqui, interrompeu-se parasuplicar ao mundo que passava: Compre o Notcias Ma-trimoniais. Se voc quer uma mulher ou um marido...

    No tentei, continuou. Tenho cinqenta e dois anose minha mulher est morta h cinco. Conheci de tudona vida. Por que deveria tentar?

    Besteira!, exclamei. Hoje em dia a vida no estacabada aos cinqenta e dois. Veja Walt Whitman e Su-san B. Anthony.

    No conheo essas pessoas que voc menciona, res-pondeu o homem do Notcias Matrimoniais, seriamente.Mas digo-lhe, meu jovem, o tempo de terminar de viver

    depende de se voc viveu ou no. E eu j vivi. Voltou-separa gritar: Cinco centavos a cpia. Apenas um nquelpela alegria do casamento...

    Meus pais eram operrios. Meu pai foi morto numacidente na casa de mquinas do reservatrio do CentralPark. Minha me morreu de tuberculose causada portrabalhos intensos em casa. Eu fui ajudante em uma

    loja de armarinhos, mensageiro num hotel, depois dirigium carro de entregas para o Evening Journal, at queme quebrei todo numa briga: minha constituio erafraca. Ento entrei na escola noturna e tornei-me umescriturrio. Trabalhei em diversos escritrios, at quefinalmente entrei na Smith-Tellfair Company, Banquei-ros e Operadores da Bolsa, Rua Broad, 6. E l, minhavida comeou. Metdico, sem pressa, gritou de novo asvirtudes do Notcias Matrimoniais.

    Aos vinte e sete anos me apaixonei, pela primeiravez em minha vida. Logo nos casamos. No vou me de-morar a respeito das dificuldades do incio, nem sobre o

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    nascimento de nosso primeiro filho, que morreu logo emseguida, em grande parte porque nossos meios no nospermitiam viver onde houvesse luz e ar suficientes para

    um beb doente.Depois, no entanto, as coisas tornaram-se mais f-

    ceis. Fui promovido a escriturrio-chefe na Smith-Tell-fair. Quando a segunda criana nasceu, uma menina,tnhamos uma casinha em White Plains, pela qual eupagava gradualmente, economizando em tudo. Aqui ele

    fez uma pausa. Muitas vezes fiquei pensando, depoisdessa experincia, se economia vale mesmo a pena. Po-deramos ter tido mais prazeres em nossa vida, e tudoteria dado na mesma, afinal. Ele parecia perdido em seuspensamentos. Acima, o caos nervoso de luzes brilhavaem glria. Duas mulheres, usando sapatos brancos desaltos altos, passaram, olhando para trs por cima de

    seus ombros para os homens furtivos. Meu amigo gritouseus preos mais uma vez.

    De qualquer forma, minha garotinha cresceu. Deci-dimos que ela deveria aprender piano e algum dia seriauma grande msica, com seu nome num luminoso aqui.Apontou para a Broadway. Quando ela estava com cinco

    anos, um filho nasceu. Este seria um soldado, um generaldo exrcito. Aos seis anos, minha filha morreu. O proble-ma era nos canos de esgoto da cidade. Os empreiteirosque fizeram a obra eram corruptos, e ento houve umaepidemia de febre tifide.

    Ela morreu Myrtle morreu. Depois disso minha mu-lher nunca mais foi a mesma. Infelizmente, logo depois ela

    engravidou de novo. Sabamos que as condies dela noeram boas e tentamos o que podamos para encontrar ummeio de evitar. Eu ouvi que h meios mas ns no osconhecamos e o mdico no queria fazer nada. A criananasceu morta. Minha mulher no sobreviveu.

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    46 Noite na Broadway

    Deixou a mim e ao pequeno Herbert, que devia ser umgeneral, voc lembra Foi mais ou menos nessa pocaque o jovem senhor Tellfair sucedeu o pai na chefia do

    negcio. Ele acabara de sair da faculdade, com idias so-bre eficincia e reorganizao de escritrio. E descartou-me primeiro, porque meu cabelo j era branco... Depoispersuadiu a Associao de Construo e Emprstimo asuspender minhas prestaes pela casa por seis meses,enquanto eu buscava uma nova situao. Herbert tinha

    catorze anos. Era muito importante que ele continuassena escola, para preparar-se para os exames de WestPoint porque ele ia para l.

    Foi impossvel encontrar outra colocao como es-criturrio, embora eu procurasse em todos os lugares dacidade. Acabei tornando-me vigia noturno numa casa detintas e couros perto do distrito financeiro. Claro que o

    salrio era menos da metade do que eu costumava ga-nhar. Meus pagamentos pela casa recomearam, mas euera incapaz de cumpri-los. Ento, eu a perdi.

    Trouxe Herbert comigo para a cidade. Ele foi para aEscola Pblica. E quando tinha dezesseis anos, h apenasdoze meses, meu pequeno Herbert morreu de escarlatina.

    Logo depois eu tropecei neste emprego, que garante umavida confortvel.Ele parou, voltando-se novamente para os passantes,

    chamando-os suavemente: Comprem o Notcias Matri-moniais. Apenas um nquel pela alegria do casamento.Meio dime por uma vida inteira de felicidade

    v

    Os nomes brilhantes, as vastas conflagraes lumino-sas, as incandescentes pernas de danarinas todas asluzes que forram as fachadas dos teatros apagaram-seuma a uma. As lojas de bijuterias apagaram as iluminaesde suas vitrines, porque esposas e noivas j haviam ido

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    John Reed 47

    para casa, e mulheres da rua, atrizes e grandes cocotesestavam danando o tango em troca de champanhe em lin-dos cabars. Cincias Domsticas e Higiene Pessoal ainda

    disputavam espao no cu. Mas a Broadway estava maistnue, mais quieta. E as fantsticas garotas desfilandosozinhas, em duplas, em alerta, olhos em guarda, moviam-se sedutoramente entre luz e sombra. Na obscuridade,homens moviam-se furtivamente, e viravam as esquinas.Eles iam pela rua, as golas dos casacos levantadas e cha-

    pus puxados para baixo, devorando as mulheres comolhos duros. Suas bocas estavam secas e eles tremiam,febris e excitados com a caada.

    Aqui. Me d um, disse uma voz enferrujada. Umamulher gorda, de vestido largo, curto, sapatos de saltocinza com rendas na parte de trs, um chapu rosa dotamanho de um boto, esticou um nquel com dedos gor-

    duchos em luvas brancas sujas. Ao longe, a uma distnciade trs quarteires numa rua escura, voc poderia t-lajulgado jovem. Mas, olhando de perto, seu cabelo tinhafios prateados entre os descoloridos, e havia frestas decarne branca morta sob todo aquele vermelho artificial;buracos e rugas.

    Boa noite, madame, disse meu amigo, levantandocortesmente o chapu. Suponho que esteja bem. Comovai o negcio esta noite?

    No mais como era quando comecei a fazer a Bro-adway, respondeu a dama, sacudindo a cabea. Hojeem dia, s o que temos so pes-duros e garotos de ca-ridade. Uns caras novinhos fizeram gracinha l perto do

    Shanleys, convidaram-me para jantar. Deus, o que vocacha disso? Eles estavam me gozando, no final. J estiveem tantos lugares legais quanto qualquer outra garotada cidade. Olhe s! Eu encontro um cara l na Rua 45 eele diz, Aonde a gente vai?, e eu digo, Eu conheo um

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    48 Noite na Broadway

    lugar l na Stima Avenida. Na Stima!, diz ele. Sete meu nmero de azar. Boanoite!, e saiu fora. Que coisa!Ela tremeu com uma boa risada. Nesse momento, entrei

    em seu campo de viso. Quem seu jovem amigo, Bill?,disse ela. Apresente a gente, ela baixou a voz. Diz a,benzinho, quer se divertir? No?, bocejou, revelandodentes de ouro. Bem, hora de cama mesmo. Vou pracasa tirar um ronco.

    Procurando um marido?, disse eu, apontando para

    o Notcias Matrimoniais.Olhe s! Diga-me, voc j conheceu uma garota queno estivesse? Se voc tiver algum amigo legal com ummilho de dlares, deixe um recado com o Bill, aqui. Eleme v toda noite.

    Mas voc s compra o Notcias Matrimoniaisaos s-bados, disse Bill.

    Para ler aos domingos, respondeu ela. Eu descansode verdade aos domingos. Nunca trabalho no dia do Se-nhor. Nunca trabalhei. Jogou a cabea para trs, orgu-lhosa. Nunca, no interessava o quanto estivesse dura.Fui educada severamente e tenho escrpulos religiosos.Ela foi embora, balanando os enormes quadris.

    O agente do Notcias Matrimoniaisdobrou seus pa-pis. hora de cama para mim tambm, meu jovem, dis-

    se. Ento, boa noite. Quanto a voc, acho que vai sair pora atrs de bebida e mulheres. Ele balanou a cabea,meio triste. Bem, siga o seu caminho. Eu j deixei deculpar qualquer um por qualquer coisa.

    v

    Sa pela rua febril, quadriculada de luz e sombra,coroada com colares e pingentes e medalhes e raiosde luz, entulhada de trapos e papis, quebrada para aconstruo do metr, patrulhada pelos grupos de mulhe-

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    John Reed 49

    res. Eu observava uma garota alta e magra que andavaa minha frente. Seu rosto era muito plido e seus lbioscomo sangue. Trs vezes a vi conversando com homens

    Trs vezes entrou no caminho deles e num movimentode falco com a cabea murmurou algo para eles, como canto da boca.

    Apressei meu passo e alcancei-a. Quando passei frente, olhou para mim friamente, num convite violen-to.

    Ol, disse eu, diminuindo o passo. Mas ela paroude repente, olhou-me com dio, como se eu fosse umestranho, e elevou-se.

    Com quem voc pensa que est falando!, perguntou,com uma voz dura.

    Isso, disse eu, o que eles chamam de SeleoNatural!

    v

    A prxima no foi to difcil. Ela estava depois da es-quina da Rua 37, e parecia esperar por mim. Aproxima-mo-nos como m e ao e juntamos as mos.

    Vamos a algum lugar, beber alguma coisa, disseela.

    Era robusta e jovem, voraz, com cores vivas de se olhar.Ningum danava como ela no restaurante onde fomos.Todos se voltavam para v-la: os garons com cara denada, insolentes, o homem de peito engomado mordendocharutos, as mulheres alegres e as descontentes, quesentavam-se l como se tudo tivesse sido organizado paradeix-las de fora. Em seu chapu de palha preto com a

    pena azul, sua roupa marrom de tweedum pouco surrada,ela soprou, como um vento fora-da-lei, um suave calorsobre o ouro, os espelhos, o ragtimehistrico do lugar.

    Sentamo-nos contra a parede, olhando o fluxo derostos, a brancura de ombros magros, ouvindo a risada

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    50 Noite na Broadway

    muito alta, cheirando fumaa de cigarros e aquele odorque como o gosto de champanhe em excesso. Duasorquestras tocaram e vibraram alternadamente. Uma

    dana para os clientes depois danarinos e cantoresprofissionais, indo e vindo espasmodicamente, grunhin-do palavras sem sentido, apenas para dar ritmo. Ento,todas as luzes se apagaram, com exceo do spot sobreos artistas, e na escurido bbada trocamos um beijoquente. Flash! As luzes acenderam-se novamente, rudo

    de uma hilaridade dura, redemoinho de palavras gritadas,palavras, palavras, corrida de parceiros para a pista dedana, a orquestra batendo uma imbecilidade sincopa-da, sem flego, corpos movendo-se e brincando em umunssono selvagem...

    Seu nome era Mae. Escreveu-o num carto, junto comseu endereo e nmero de telefone, e deu referncias de

    diplomatas sul-africanos a quem haviam agradado seusencantos, se eu quisesse recomendaes... Mae nunca liaos jornais e estava apenas vagamente consciente de quehavia uma guerra. No entanto, como conhecia a Broadwayentre a Rua 33 e a Rua 50! Como era uma perfeita donado seu mundo!

    Viera de Galveston, no Texas, segundo disse. Orgu-lhou-se de contar que sua me era espanhola, e hesitouem admitir que seu pai era cigano. Tinha vergonha disso,e quase nunca contava a ningum.

    Mas no era um desses ciganos que vo como vaga-bundos pelas estradas e roubam coisas, acrescentouMae, assegurando a respeitabilidade de sua paternidade.

    No, ele vem de uma famlia cigana muito fina

    1916

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    52 Mac, o americano

    Conheci Mac no Mxico na cidade de Chihuahua na vspera de Ano Novo. Ele era um sopro de sua ptria,um americano nu e cru. Assim que samos do hotel para

    tomar um Tom e Jerry no Chee Lee, os sinos rachados daantiga catedral chamaram enlouquecidos para a missa dameia-noite. Acima de ns estavam as quentes estrelas dodeserto. Por toda a cidade, dos cuartelsonde o exrcitode Villa estava escondido, dos destacamentos avanadosnas colinas nuas, dos sentinelas nas ruas, vinha o som

    de tiros exultantes. Um oficial bbado passou por ns econfundindo afiestagritou: Cristo nasceu! Na esquinaseguinte um grupo de soldados enrolados at os olhos emseus ponchos estava sentado em volta de uma fogueira,cantando a interminvel Cano da Manh para FranciscoVilla. Cada cantor tinha que fazer um novo verso sobreas faanhas do Grande Capito...

    Diante das enormes portas da igreja, atravs dos ca-minhos cobertos de sombra do Plaza, tornando-se visveise desaparecendo de novo nas bocas das ruas escuras, assilhuetas sinistras e silenciosas de mulheres vestidas depreto juntavam-se para lavar-se de seus pecados. E daprpria catedral saa uma plida luz vermelha e estra-

    nhas vozes ndias cantavam uma cano que eu ouviraapenas na Espanha.Vamos entrar e assistir missa, disse eu. Deve ser

    interessante.Que diabo, no!, disse Mac, com uma voz um pouco

    forada. No quero me intrometer na religio de nin-gum.

    Voc catlico?No, respondeu ele. Acho que no sou nada. Eu

    no entro numa igreja h anos.Bom para voc!, lamentei. Ento voc tambm no

    supersticioso!

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    Mac olhou para mim com um certo desgosto. Eu nosou um homem religioso, soltou. Mas no saio por ame batendo com Deus. muito arriscado.

    Arriscado como?Ora, quando voc morre voc sabe, agora ele estava

    desgostoso e irritado.No Chee Lee encontramos mais dois americanos. Eram

    do tipo que comea todos os comentrios com: Estouneste pas h sete anos, e conheo esse povo como a

    palma da minha mo!As mulheres mexicanas, disse um, so as maispodres do mundo. Elas nunca se lavam mais que duasvezes por ano. E quanto virtude, simplesmente noexiste! Elas nem se casam. S pegam qualquer um dequem gostem. As mulheres mexicanas so todas vadias, isso que so!

    Eu peguei uma indiazinha legal l em Torreon, co-meou o outro homem. um absurdo. Ora, ela nem sepreocupa se vou casar com ela ou no! Eu

    assim com elas, interrompeu o outro. Soltas! isso que elas so! Estou no pas h sete anos.

    E voc sabe, o outro homem sacudiu o dedo seve-

    ramente para mim. Voc pode dizer tudo isso para ummexicano que tudo o que ele far rir de voc! essetipo de cafajestes sujos que eles so!

    Eles no tm orgulho, disse Mac, melancolicamen-te.

    Imagine, comeou o primeiro compatriota. Imaginese voc dissesse isso para um americano!

    Mac bateu com o punho na mesa. A mulher ameri-cana, que Deus a proteja!, disse ele. Se algum homemousasse sujar o bom nome da mulher americana paramim, acho que o mataria. Ele olhou ao redor da mesa e,como nenhum de ns manchasse a reputao da femini-

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    54 Mac, o americano

    lidade da Grande Repblica, continuou: Ela um idealpuro e temos que mant-la assim. Eu gostaria de ouviralgum falar mal de uma mulher na minha frente!

    Tomamos nossos Tom e Jerries com a virtude de umaconveno de Galahads.

    Diga, Mac, o segundo homem falou de repente. Vocse lembra das duas garotinhas que eu e voc tivemos emKansas City naquele inverno?

    Se eume lembro?, corou Mac. E voc se lembra do

    terrvel apuro em que voc pensou que estava?Nunca me esquecerei!O primeiro homem falou: Bem, voc pode pegar as

    suas lindas seoritaso quanto quiser. Mas paramim,d-me uma menininha americana limpinha...

    v

    Mac tinha mais de um metro e oitenta de altura um

    homem enorme, na magnfica insolncia da juventude.Tinha apenas vinte e cinco anos, mas j vira muitos lu-gares e trabalhara em muitas coisas: mestre de ferrovia,capataz de plantao na Georgia, chefe dos mecnicosem uma mina mexicana, vaqueiro e delegado-xerife noTexas. Era natural de Vermont. Por volta do quarto Tom

    e Jerry, Mac levantou o vu do seu passado.Quando cheguei em Burlington para trabalhar nomoinho de madeira, eu era um garoto de uns dezesseisanos. Meu irmo trabalhava l havia um ano e hospe-dou-me na casa em que morava. Ele era quatro anosmais velho que eu. Um cara grande, tambm, mas meiomole... Sempre ficava falando por a que era errado brigar,

    e esse tipo de coisa. Nunca me batia, nem quando estavairritado comigo, dizendo que eu era menor.

    Bem, tinha uma garota na casa, que o meu irmovinha levando havia um bom tempo. Fui um tanto per-verso, riu Mac. Sempre fui. No me faria diferena

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    nenhuma, mas eu ia pegar aquela garota do meu irmo.E logo, logo eu consegui. Bem, senhores, vocs sabemo que aquela diabinha fez? Uma vez que o meu irmo

    a estava beijando, ela disse de repente: Ora, voc beijaigualzinho ao Mac!

    Ele veio me procurar. Todas as idias dele sobre nobrigar tinham desaparecido, claro. No valem nadapara um homem de verdade. Ele estava to branco quequase no o reconheci, os olhos soltando fogo como um

    vulco. Ele disse: Seu maldito, o que voc andou fazendocom a minha garota? Era um cara bem grande e por umminuto fiquei um pouco assustado. Mas ento lembreio quanto ele era mole, e eu, valente. Se voc no podesegur-la, disse eu, deixe-a ir!

    Foi uma briga feia. Ele queria me matar. Tentei mat-lo tambm. Uma nuvem enorme, vermelha, apossou-se

    de mim e fiquei enraivecido, louco. V essa orelha? Macindicou a parte do corpo a que se referia. Ele fez isso.Peguei um olho dele, porm, e ele nunca enxergou denovo. Ns logo paramos de usar os punhos. Arranhamos,estrangulamos, mordemos e chutamos. Disseram que meuirmo soltava um rugido de quando em quando, mas eu

    apenas abri minha boca e gritei o tempo todo... Logo dei-lhe um chute no num lugar que doeu, e ele caiu comose estivesse morto. Mac terminou seu Tom e Jerry.

    Algum pediu outro. Mac continuou:Um tempo depois disso eu vim para o sul e meu ir-

    mo entrou para a Polcia Montada do Noroeste. Vocs selembram daquele ndio que matou um cara em Victoria

    em 1906? Bem, meu irmo foi mandado atrs dele elevou um tiro no pulmo. Por acaso eu estava visitandoos velhos, nica vez que voltei, quando meu irmo veiopara casa para morrer... Mas ele ficou bom. Lembro que,no dia em que fui embora, ele tinha acabado de sair da

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    cama. Caminhou comigo at a estao, implorando paraeu falar uma palavra com ele. Esticou a mo para euapertar, mas s virei para ele e disse: Seu filho da puta!

    Um pouco depois ele foi de volta para o trabalho, masmorreu no caminho...

    Uau!, disse o primeiro homem. Polcia Montada doNoroeste! Isso sim que deve ser trabalho. Um bom riflee um bom cavalo e nenhuma estao fechada para a caaaos ndios! isso que chamo de esporte!

    Falando de esporte, disse Mac, o melhor esportedo mundo caar negros. Depois que deixei Burlington,vocs lembram, eu fui para o sul. Sa para ver o mundode cima para baixo, e acabara de descobrir que podiabrigar. Deus! As lutas em que eu costumava me meter...Bem, de qualquer jeito, acabei numa plantao de al-godo na Georgia, perto de um lugar chamado Dixville.

    Acontece que eles estavam precisando de um capataz,ento eu fiquei.

    Lembro-me daquela noite perfeitamente, porqueestava sentado em minha cabine escrevendo para casa,para minha irm. Ela e eu sempre nos demos bem, masno conseguamos nos dar bem com o resto da famlia.

    No ano passado ela se juntou com um caixeiro-viajanteAh, se um dia eu pegar esse a Bem, como eu dizia, euestava sentado l, escrevendo sob a luz de uma lampa-rina a leo. Estava uma noite quente, mida, e a tela dajanela era uma massa contorcida de mosquitos. Fiqueicom coceiras s de v-los engatinhando uns por cima dosoutros. De repente, minhas orelhas levantaram-se e o

    meu cabelo comeou a se arrepiar. Eram cachorros, cessanguinrios, vindo espalhados em meio escurido. Nosei se vocs j ouviram um co ladrar quando est atrsde um humano... Qualquer co ladrando noite a coisamais solitria, mais assustadora do mundo. Mas aquilo

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    era pior. Fazia voc sentir como se estivesse parado noescuro, esperando por algum que vai estrangul-lo evoc no pode escapar!

    Por mais ou menos um minuto tudo que ouvi foramos ces, e depois algum, ou alguma coisa, caiu por cimada minha cerca. Ps pesados, correndo, passaram bemem frente a minha janela e ouvi o rudo de respirao.Vocs sabem como um cavalo teimoso respira quandovoc est apertando o pescoo dele com uma corda?

    Daquele jeito.Fui para a varanda num pulo, a tempo de ver osces pularem minha cerca. Ento algum que eu noconseguia ver gritou, to rouco que mal podia falar: Praonde ele foi?

    Passou a casa e foi para trs!, disse eu, e comeceia correr. Havia uns doze de ns. Nunca descobri o que

    o negro fez, e acho que a maioria dos homens tambmno. No ligvamos. Corremos como uns loucos pelocampo de algodo, pelos campos pantanosos com asinundaes, nadamos no rio, mergulhamos por sobre ascercas, de um jeito que normalmente cansaria um homemem cem metros. Mas ns nem sentimos. A saliva conti-

    nuava brotando em minha boca. Era a nica coisa queme incomodava. Era lua cheia e, de tempos em tempos,quando chegvamos a uma clareira, algum gritava, Lvai ele!, e pensvamos que os ces haviam se enganadoe ido atrs de uma sombra. Sempre os ces na frente, la-drando como sinos. Diga, voc j viu um co sanguinriocorrendo atrs de um homem? como uma corneta. Eu

    bati minha canela em umas vinte cercas, e a cabea emtodas as rvores da Georgia, mas nem senti...

    Mac estalou os lbios e bebeu. claro, disse ele, quando o alcanamos, os cachor-

    ros tinham acabado de fazer o nego em pedaos.

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    58 Mac, o americano

    Sacudiu a cabea com uma lembrana brilhante.Voc terminou a carta para a sua irm?, pergun-

    tei.

    Claro, disse Mac, secamente.v

    Eu no gostaria de viver aqui no Mxico, disse Mac.As pessoas no tm corao. Gosto de pessoas amigveis,como os americanos.

    1914

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    Endymionou na fronteira

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    Presidio, Texas, uma dzia de choupanas de barroe uma loja de madeira de dois andares, espalhadas entrearbustos numa desolada plancie de areia ao longo do Rio

    Grande. Ao norte, o deserto segue gentilmente em direoao azul forte e trmulo, uma terra quieta e destruda.O rio marrom e calmo serpenteia entre as barreiras deareia como uma cobra preguiosa, a menos de cem me-tros dali. Do outro lado do rio fica a cidade mexicana deOjinaga, no topo de sua pequenamesa um aglomerado

    de muros brancos, tetos retos, as cpulas de sua igrejaantiga, como uma cidade oriental sem um minarete. Aosul, a terra erma, terrvel, espalha-se em grandes plan-cies elevadas de areia, arbustos de algarobeira e slviaenrugando-se no horizonte em um conjunto de picosbaixos e pontudos.

    Em Ojinaga estavam os destroos do Exrcito Fede-

    ralista, expulso de Chihuahua pelo avano vitorioso dePancho Villa, aguardando apaticamente a vinda dele atali, fronteira amiga. Milhares de civis, atrados pelaslendas selvagens do Tigre do Norte, acompanharam ossoldados em retirada por aquelas quatrocentas milhassinistras, pela plancie escaldante. A maioria dos refu-

    giados estava acampada nas terras ao redor de Presidio.Alegremente desamparados, subsistindo do Comissaria-do da Cavalaria Americana local, dormindo o dia todo,fazendo amor e brigando a noite inteira.

    Os saldos da guerra deram fama a Presidio. Ela apa-recia nos despachos das notcias enviadas ao resto domundo pelo nico fio telefnico do exrcito. Automveis,

    acinzentados pelo p do deserto, desciam atravessando aferrovia, setenta e cinco milhas ao norte, para corrompersua imaculada inocncia. Uma poro de corresponden-tes de guerra sentava-se ao Sol, reclamando, e duas vezesao dia maquinava histrias curtas, cheias de som e fria.Hacendadosricos que cruzaram a fronteira paravam um

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    pouco por l para esperar a batalha que deveria decidir odestino de suas propriedades. Agentes secretos dos cons-titucionalistas e os federais conspiravam e contracons-

    piravam por todos os lados. Representantes de grandesinteresses americanos distribuam taxas de segurana eenviavam incessantes telegramas em cdigo. Caixeiros-viajantes de companhias de munio ofereciam armas noatacado e no varejo para qualquer um que planejasse umarevoluo. Para no dizer como dizem em programas de

    comdia musical cidados, guardas, xerifes, soldadosda cavalaria americana, ofi-ciais Huertistas de licena,oficiais de alfndega, vaqueiros de ranchos prximos,mineiros etc.

    O velho Schiller, o dono da loja, andava por ali comum revlver enorme preso cintura. Schiller estavaficando rico. Ele fornecia comida, roupas, ferramentas

    e medicamentos para a nova populao da cidade. Ti-nha o monoplio no negcio de cargas. Havia rumoresde que conduzia um jogo de pquer e um bar privadona sala dos fundos. E sessenta homens dormiam nocho e nos balces de sua loja a vinte e cinco centavospor cabea.

    Eu caminhava pela cidade com um vaqueiro de pernasarqueadas e rosto sardento chamado Buchanan, quetrabalhava num rancho em Santa Rosalia, esperando queas coisas se acalmassem para poder voltar. Buck estavano Mxico havia trs anos, mas no consegui descobrirse isso deixara alguma impresso nele com exceo dereclamaes pelos mexicanos no falarem ingls, mesmo

    com seu espanhol reduzido a umas poucas palavras parasatisfazer seus apetites naturais. Certa vez, men-cionouDayton, em Ohio a cidade da qual havia fugido numtrem de carga quando tinha doze anos.

    Parecia ser um tipo bem comum por ali. Um menino

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    62 Endymion: ou na fronteira

    forte, corpo robusto, corajoso, duro, sem incomodar-secom qualquer sentimento nobre. Ainda no havia passadomuitas horas com ele quando comeou a falar sobre o

    Doutor. De acordo com Buck, o Doutor fora o primeirocidado de Presidio. Era um grande cirurgio e, mais queisso, um dos melhores msicos do mundo. Porm, o maismarcante de tudo, para mim, eram o orgulho e a afeiona voz de Buck quando falava de seu amigo.

    Ele consegue arrumar uma canela quebrada com um

    graveto e um fio de crina de cavalo, disse Buck, srio.E curar uma mordida de tarntula no mais difcilpra ele que tomar uma dose ou duas pra mim ou pravoc... E tocar nossa! O Doutor pode tocar qualquercoisa. Por Deus. Acho que se qualquer um de Nova Yorkou Cleveland o ouvisse tocar, ele teria um lugar de honrano palco do Opera House, agora, ao invs de estar aqui

    em Presidio!Fiquei interessado. Doutor o qu?, perguntei.Buck pareceu surpreso. Ora, s Doutor.Depois do jantar, naquela noite, arrastei-me pela areia

    em direo casa de tijolo do Doutor. Era uma noite cal-ma, com grandes estrelas. De algum lugar no rio vinha

    o som de tiros preguiosos. Em toda a volta, no descam-pado, queimavam as fogueiras dos campos de refugia-dos. Mulheres davam gritos nasalados para seus filhosvirem para casa. Garotas riam na escurido. Homensde sapatos com esporas andavam ruidosamente pelaareia. E, como o acompanhamento de um baixo, soava oinsistente murmurar dos agentes secretos conspirando

    na varanda da loja de Schiller. Bem antes de eu chegarperto da casa, j podia ouvir os acordes familiares daabertura do Tannhauser, tocada num rgo aleijado. E,imediatamente em frente da casa, quase tropecei numafila dupla de mexicanos, acocorados na areia, embrulha-

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    dos at os olhos em ponchos, imveis, ouvindo.Dentro do nico cmodo branco, dois oficiais da ca-

    valaria americana estavam sentados de olhos fechados,

    fingindo apreciar o que consideravam entretenimentode alto nvel. Estavam na fronteira havia oito meses,longe dos refinamentos da civilizao, e ouvir esse tipode msica fazia com que se sentissem cultos. Bucha-nan, fumando um cachimbo de espiga de milho, estavaesticado numa poltrona, seus ps sobre o fogo, seus

    olhos brilhantes fixos com franco prazer nos dedos doDoutor, enquanto estes saltavam em cima das teclas. ODoutor estava sentado de costas para ns uma pequenafigura pattica, gorducha, de cabelos brancos. Algumasdas teclas do rgo no produziam som algum. Outras,um guincho morto. E as outras estavam desafinadas.Enquanto tocava, cantava roucamente e balanava para

    frente e para trs, como que envolvido pela harmonia.Era um cmodo notvel. Num canto estavam os restos

    de uma elaborada mesa cirrgica com tampo de vidro.Atrs dela, um armrio de instrumentos cirrgicos enfer-rujados a prateleira de cima cheia de vidros de plulas e um armrio de livros contendo cinco volumes: um livro

    de trechos de peras para piano, parte de um volume dasSinfonias de Beethoven arranjadas para quatro mos,dois volumes de Diagnstico Prticoe Os Poemas de JohnKeats, encadernao marroquim, manu-seado e gasto.Havia uma mesa, tambm, com papis empilhados. Eem toda a volta do quarto havia instrumentos musicaisem vrios estgios de degradao: sanfona, violino, vio-

    lo, clarineta francesa, corneta, harpa. Um cachorrinhomexicano de plo curto, com catarata em um dos olhos,sentado aos ps do Doutor, seu nariz levantado para oteto, uivava sem parar.

    O Doutor tocava cada vez mais furiosamente, murmu-

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    64 Endymion: ou na fronteira

    rando, enquanto seus dedos tortos pulavam pelo teclado.De repente, no meio de um acorde trovejante, parou,deu meia-volta olhando para ns e, alongando as mos,

    reclamou entre suas costeletas:Minhas mos so muito pequenas! Sempre h algo

    de errado comigo, em tudo. Ai!, suspirou. Franz Liszttinha dedos curtos tambm. Ih! Mas no como os meus.No dedos curtos na cabea... Suas palavras sumiramem murmrios indistintos.

    Buck bateu os ps no cho e deu um tapa no joelho.Deus, Doutor!, gritou. Se voc tivesse mos grandesno sei que diabo voc poderia fazer!

    O Doutor olhou para o nada no cho. O cachorrinhops as patas em seu colo, choramingando, e o velhopousou sua mo trmula sobre a cabea do animal. Osdois oficiais saram, sem jeito. Nesse momento, o Doutor

    acendeu um cachimbo enorme, rosnando e grunhindopara si mesmo, a fumaa flutuando por seu bigode, nariz,olhos e ouvidos.

    Com uma certa reverncia Buck me apresentou. ODoutor acenou com a cabea e me encarou com olhinhosturvos que pareciam no ver. Seu rosto redondo, inchado,

    estava coberto de uma penugem branca. Atravs de umbigode amarelo, descuidado, vieram as indistintas runasde uma articulao cultivada. Ele tinha um cheiro fortede conhaque.

    Ai, voc no um desses pulgas-do-mar bl-bl-bl, disse ele, olhando para mim. Do mundo grande. Domundo grande. Diga a eles que o meu nome est escrito

    em gua bl-bl-bl.Ningum sabia coisa alguma sobre ele, a no ser o

    que deixara escapar quando bbado. Ele mesmo pare-cia ter esquecido seu passado. Os mexicanos, entre osquais se dava a maioria dos seus clientes, amavam-no

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    com devoo e mostravam isso pagando suas contas. ODoutor sempre cobrava a mesma quantia por qualquerservio curar uma fratura, amputar um membro, fazer

    um parto ou dar uma dose de xarope contra tosse , vintee cinco centavos. Mas ele falara de Londres, da sala darainha, do conservatrio musical, de ter estado na ndia eno Egito e de ter ido a Galveston como chefe do hospital.Afora isso, nada alm de nomes de cidades mexicanas,de pessoas desconhecidas. Tudo o que Presidio sabia

    dele era que atravessara a fronteira sem nome e bbadodurante a revoluo de Madero, e estivera l sem nomee bbado desde ento.

    Por Nossa Senhora!, disse o Doutor de repente.Andando em suas carruagens! E eu, aqui..., resmun-gou um pouco e soluou. Sim, isso a matou, mas nofui eu

    Fiquei conversando com ele, tentando apertar algumatecla que destrancasse sua vida.

    Ouvi dizer que voc teve conexo com o ConservatrioMusical de Londres.

    Ele ficou em p de um salto, cerrando os dois punhos,e olhou em volta. Quem disse isso?, grunhiu. Depois

    sentou-se novamente. E agora sou um velho mdico va-gabundo em Presidio!, terminou e riu sem amargura.Tentei com Egito e ele disse: Naqueles dias havia uma

    floresta de mastros na enseada de Alexandria espes-sa... Depois falei da ndia, mas ele apenas murmurou:Em Darjelling, perto do grande cedro, na grama. Oh,Deus... bl-bl...

    Galveston!, gritou e esticou o corpo. Sim, eu estavaem Galveston quando a inundao Minha mulher afo-gou-se... Disse isso sem muito sentimento e, levantan-do-se, foi cambaleando at o armrio de livros e pegouum dos livros de diagnsticos prticos, que trouxe para

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    mim como uma criana teria feito. Na primeira pginahavia Galveston, 18 de setembro de 1901, e recortesde jornais sobre a inundao estavam colocados de

    qualquer jeito entre as pginas. Levei o livro de volta aoarmrio e, despreocupadamente, peguei Os Poemas deJohn Keats. Abri. Dentro da capa estava escrito, em tintaquase invisvel:

    Junho de 1878Para Endymion

    Com meu corpo e almaA. de H. K.

    Endymion, ele! Para que mulher aqueles destroosbatidos e velhos teriam sido Endymion? 1878. Aos vintee poucos anos, talvez bonito, um sonhador.

    Ouvi um rosnado triste e olhei para cima para ver

    o Doutor em p, dobrando-se e olhando para mim deforma estranha.

    O que voc tem a? O que voc tem a?, ele quasegritava. Ponha de volta... Enquanto veio cambaleandoat mim, escorreguei o livro de volta ao armrio. Segurouminhas duas mos e levantou-as at seus olhos. Depois

    deixou-as cair e virou-se.Nada, balbuciou. Eu tinha esquecido... Eu perdi emMonterey..., ficou parado, resmungando para si mesmo.Agora, o que a trouxe de volta, afogada h trinta anos?Bem, afogue-a de novo! Ele foi at o canto, pegou umagarrafa preta e levantou-a at os lbios. Depois procurouentre seus instrumentos e sacou um velho acordeo.

    Sentando-se em sua cadeira de novo, comeou de repen-te a tocar o que podia ser reconhecido como aTerceiraSinfoniade Beethoven. Foi assustador.

    Mas tocou apenas um minuto. Parou, sacudiu acabea e suspirou. Herica!, disse. Herica! Bl-bl-

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    bl. O que vocs, pulgas-do-mar, sabem sobre grandestragdias? Estou ficando velho, cacei minha vida inteirae nunca encontrei Encontrar o qu? Fama? Riqueza?

    Amor? Verdade?...v

    Na noite seguinte jantamos, Buchanan, o Doutor eeu, num restaurante mexicano de uma nica sala, cujoproprietrio j possura um pequeno rancho do outrolado do rio. Rancho esse que Enrique Creel vendera a

    William Randolph Hearst, embolsando o dinheiro. Ho-mens grandes, morenos, de botas e esporas, entraram,e cada um parou de um lado da mesa para dizer: Eento, Doutor? Como anda? O garom mexicano serviuo Doutor primeiro e, quando um rico fazendeiro quechegara naquela manh comeou a xingar o garom deengor-durado preguioso, um dos guardas aproximou-se

    e bateu no brao dele.O Doutor primeiro, estranho, disse ele, baixinho.

    Depois disso voc pode fazer o que quiser.O Doutor levantara-se tarde, atormentado pelos fogos

    do inferno. E, embora j houvesse engolido um quartode aguardente, ela ainda no surtira efeito. Estava som-

    brio e quieto, respondendo aos cumprimentos com umgrunhido.Perto de mim estava um sujeito ativo com um queixo

    retrado, um homem urbano. Era um agente da Com-panhia Crayon de Ampliaes de Retratos, de KansasCity, Montana, e estava muito contente com o volume denegcios que havia conseguido em Presidio, tirando fotos

    e recebendo encomendas dos mexicanos. Todos mesaficaram ouvindo suas histrias orgulhosas com rostosgraves, mas rindo por dentro. Conforme Buck explicou-me depois, um mexicano adora ser fotografado. E ummexicano faz encomendas de qualquer coisa, ou assina

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    seu nome em qualquer lugar mas no paga.Mexicanos so timos objetos para fotografia, dizia

    o agente, entusiasmado. Eles mantm a pose por quinze

    minutos sem se moverO Doutor levantou sua cabea de repente, resmungou

    algo e depois disse com distino: por isso que meu retrato no foi terminado. Era

    difcil posar para Freddie Watts.Voc quer dizer, em Londres?, perguntei rapida-

    mente.Hampsted, respondeu o Doutor, ausente. O estdiodele era em Hampsted...

    Ento, se o Doutor no tivesse se cansado de posar,seu retrato estaria pendurado entre os de William Morris,Rossetti, George Meredith, Swinburne e Browning, naNational Gallery!

    Voc conheceu William Morris?, disse eu, sem fle-go.

    Um pedante desgraado!, gritou o Doutor, de repen-te, batendo o punho na mesa. Entusiasmado, pergunteisobre os outros. Mas ele continuou comendo, como seno ouvisse. Diletantes. Uma corja de amadores!, gritou,

    finalmente, e no disse mais nada.O agente das Ampliaes Crayon fez continncia paraa companhia e um sinal com o dedo para o Doutor. Eleno vale nada, no ?, comentou com um sorriso deespecialista. No tem nada na cabea, hein? Um olharhostil prolongado encontrou seus olhos. Da cabeceirada mesa um caubi srio jogou nele um pedao de po

    e comentou:Seu cabrito cabea oca, melhor voc ficar quieto.

    O Doutor aqui amigo meu e ele esqueceu mais do quevoc jamais vai saber.

    O Doutor pareceu nem perceber. Mas quando samos,

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    mais tarde, eu o ouvi murmurar algo sobre pulgas-do-mar. Caminhamos em direo a uma choupana demadeira, onde uma mesa de bilhar havia sido colocada,

    e tentei descobrir quando ele sara do grande mundo.Reagiu ao nome de Pasteur, mas era evidente que Ehr-lich, Freud e os outros nomes da medicina moderna nosignificavam nada para ele. Na msica, Saint-Saens eraum jovem interessante e nada mais. Strauss, Debussy,Schoenberg, mesmo Rimsky-Korsakoff, eram grego para

    ele. Ele odiava Brahms, por alguma razo.Havia jogo na sala de bilhar quando chegamos, masalgum gritou L vem o Doutor!, e os jogadores bai-xaram seus tacos. O Doutor e Buck jogaram na mesacapenga, enquanto fiquei sentado ali perto. O jogo dovelho era magnfico. Parecia nunca perder uma jogada,no importava o quo difcil, embora mal pudesse ver as

    bolas. Buck quase no tinha chance de jogar. Ao redor,encostados nas paredes, formando um cinturo slido,sentavam-se mexicanos com seus altos e largos sombre-ros, com ponchos de cores desbotadas mas maravilho-sas, grandes fivelas nas botas e esporas grandes comodlares. Quando o Doutor fez uma grande tacada, um

    coro de aplausos suaves veio deles. Quando seu cachim-bo escorregou e caiu, dez mos embaralharam-se pelahonra de reav-lo...

    Na leve, profunda noite aveludada, fomos para casapela areia. J havamos caminhado uma pequena dis-tncia quando o Doutor parou de repente.

    Aqui, Tobey! Aqui, Tobey!, gritou, voltando-se e

    procurando com os olhos na escurido. Perdi meu ca-chorrinho. Onde ser que est aquele cachorrinho? Achoque deve estar l no bilhar. Aqui, Tobey! Tenho que voltare encontrar meu cachorrinho.

    Diabo, Doutor, disse Buck, impaciente. Seu ca-

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    chorro vai voltar bem. Deixe-me ir e traz-lo para voc.Voc est cansado.

    O Doutor sacudiu a cabea, resmungando. Eu tenho

    que encontrar meu cachorrinho, disse. Ningum podeencontrar coisa alguma para mim. Cada um tem queprocurar sozinho, sabe? E ele voltou.

    Buck e eu ficamos perto da trilha e acendemos uns ci-garros. nossa volta, a noite espessa, extica, era rica desons e cheiros. Abruptamente Buck comeou a falar:

    No me lembro nada do meu pai, exceto que era umfilho-da-puta. Mas eu pensava que todos os velhos fos-sem como ele. Realmente, nunca encontrei um homemde verdade ou nenhum outro tipo de homem que no seimportasse s consigo mesmo, at que conheci o Doutor.Toda essa coisa crist nunca significou nada pra mim atagora. Mas esse Doutor, ele tem um tipo de combinao

    de bondade terrvel, e s sofrendo como um pobre diaboo tempo todo que bem, eu no sei, mas eu eu amoesse homem. Grande ele um grande homem, sei disso.Ele todo grande. Uns imbecis por a dizem que louco.Mas s vezes penso que todos ns outros que somos.Ele fica bbado o tempo inteiro, o Doutor, mas tudo que

    diz, mesmo as coisas mais loucas, de alguma forma metocam aqui dentro co