Fichamento - Cancioneiro Geral
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Erasto Santos Cruz nº USP: 5930240
Universidade de São PauloLiteratura Portuguesa I
Prof. Marcia Maria de Arruda FrancoSexta feira – das 08h00m às 09h40m
Fichamento – Cancioneiro Geral de Garcia de Rezende
A poesia palaciana na dupla vocação do convívio e do espetáculo
Garcia de Rezende e a poesia palaciana.
Pode dizer-se, em suma, que, apesar da contradição em que os protestos de
modéstia integrados na prática retórica da captatio benevolentiae o levam a cair, ao
Cancioneiro Geral atribui o seu compilador uma dupla função: cumpre-lhe registrar,
para que se não percam no esquecimento, os trabalhos poéticos realizados nos
últimos decênios, mas, acima de tudo, estimular a produção de obras de maior fôlego
e profundidade, que permitam conservar a memória das grandes ações realizadas
pelos heróis nacionais, assegurando também a perpetuação do nome dos poetas seus
cantores e a dos reis que as patrocinaram. Na fixação impressa de uma poesia
essencialmente destinada a circular na corte e a animar momentos de convívio e lazer
deve afinal ler-se, a dar crédito às palavras do prólogo, o apelo a maiores
cometimentos poéticos, dignos da celebração de uma História pontuada por triunfos
militares e políticos, conquistas e descobertas – ou, por outros termos, o convite à
epopéia, então ainda por escrever.
Pag. 19
A corte tornou-se então um espaço concentracional que, por razões políticas e
econômicas, atraía ao seu seio os aristocratas, mas também se abria àqueles que,
oriundos de uma burguesia em ascensão, conseguiam “medrar”; nela se mediam e
defrontavam as forças reais do país, cujos destinos aí eram traçados; e, a par da
instalação duma pesada máquina administrativa, exigida pelo afluxo da gente que
obedecia a esse movimento centrípeto, assistiu-se ao desenvolvimento de novas
1
práticas sociais e culturais, estimuladas pelo monarca, a quem agradava uma situação
que lhe permitia exercer o poder de forma discreta.
Pag. 22
Portugal mantinha então contatos diplomáticos e comerciais com a
França, a Borgonha, o reino de Nápoles, mas a política de alianças, que vinha
sendo desenvolvida, favoreceu em particular a circulação entre as cortes
castelhana e portuguesa, o conhecimento e a admiração pelos grandes poetas
espanhóis do tempo, o bilingüismo que muitos dos nossos cultivaram.
O fato de quase 10% dos textos incluídos no Cancioneiro Geral serem
escritos em castelhano- e quase todos por autores portugueses – atesta a
aspiração a uma comunidade cultural alargada, fortalecida pela cumplicidade das
referências comuns. Os contatos poéticos entre as cortes peninsulares não eram
puramente epidérmicos; é possível assinalar analogias profundas e até uma
imitação, às vezes servil, por parte dos poetas portugueses, de modelos
castelhanos.
Pag. 22-23
Para além dessa “prova evidente e cabal do conhecimento de específico
ângulo cultural das letras castelhanas de então, os motos, vilancetes, cantigas e
romances glosados por poetas do Cancioneiro, os motos ostentados por damas do
paço e ainda as trovas centônicas demonstram, claramente, a existência de uma
cultura subsidiária de Castela, no âmbito do lirismo amoroso, e até da sátira, e
patenteiam um conhecimento de textos que têm permanecido no anonimato”,
mas exercem também a sua influência entre os criadores nacionais.
Pag. 23
A poesia como diálogo
O espaço fechado da corte favorece a circulação restrita do discurso
poético, que por seu turno gera uma espécie de diálogo, desenvolvido a vários
níveis: pelos sistemas da pergunta/resposta, da glosa ou da ajuda; pela prática
2
epistolar, patente em poemas que asseguram a comunicação à distância e
informam sobre uma realidade que o destinatário – singular, à partida, mas logo
tornado plural, pelo ato público da leitura – ignora ou de que tem uma visão
distorcida; ou menos agreste, de regra adequado aos moldes de um processo
judicial. Não deve, porém, negligenciar-se, neste quadro, o fato de esse diálogo
ter como objeto de predileção pessoas ou casos conhecidos de todos os
circunstantes, o que constitui incentivo a uma participação alargada, sancionada
pelo equívoco instaurado entre “criação e manufatura poética”. “Cada qual
intervém afoitamente nos serões e engendra a sua troca na euforia duma
demonstração pública de desembaraço, de espírito, de capacidade repentista e
até de boa-vontade em colaborar no divertimento dos mais. Deste modo, em vez
de servir a poesia, o versejador pretende sobretudo beneficiar a sua própria
imagem social ou mundana”, nessa feira de vaidades em que a corte se tornou.
A respeito destas motivações menos próprias, a verdade é que, na prática,
“tudo se passa como se cada texto apenas pudesse sobreviver na relação que
com outros estabelece: convocação explícita do outro (na carta) ou inscrição do
texto alheio no próprio (na glosa)”.
Poema-missiva
O poema-missiva, visa superar a distância física que o legitima e tomar um
ausente presente, graças à circulação do discurso que produziu. Ao fazê-lo,
porém, facilmente constrói uma outra distância, ideológica ou moral – que umas
vezes procura sublinhar, outras vezes atenuar, pela conquista do interlocutor para
o sei próprio campo - , e permite, não raro, a introdução de uma perspectiva
crítica na avaliação do mundo.
Pag. 23-24
Porque se compraz em inscrever a diferença, a fissura, da carta pode
talvez dizer-se ser a mais controversa das formas que o diálogo assume na
sociedade palaciana.
Pag. 25
3
Pergunta-resposta
Já a pergunta/resposta é, de entre elas, a mais próxima do mero ritual
cortesão. Jogo potenciador de um debate raras vezes desenvolvido, constitui, por
parte do perguntador, um desafio ao perguntado, que implica muito mais do que
o teor da resposta, dada a obrigatoriedade de esta se conformar, no respeitante
ao tipo de estrofe, ao metro e, as mais das vezes, à rima, ao modelo que a
pergunta, uma vez formulada, passa a constituir. O teste proposto é o quase
sempre menos ao saber, ao engenho ou ao humor do interpelado do que ao seu
adestramento formal.
Pag. 25
Apesar de tudo isto, numa pergunta/resposta se origina o extensíssimo
texto inaugural da recolha - o célebre debate do "Cuydar & sospirar" -, a cuja
leitura é inevitável evocar as cortes de amor, que parecem ter proliferado nos
meios cultos da Provença e do norte e oeste da França, desde o século XII, e em
especial a que em tempo de Carlos VI, e sob a direta influência de Isabeau da
Baviera, se constituiu. A esta afamada Corte de Amor, nascida em Janeiro de 1400
e organizada à semelhança de um tribunal, cabia pronunciar-se sobre matéria
essencialmente literária, no qua¬dro de certames poéticos que permitiam o
debate em torno de princípios doutrinários, relativos ao sentimento amoroso e à
cortesia, e que terminavam com a atribuição de prêmios aos mais inspirados
defensores da causa justa; mas ela esteve também aberta à possibilidade de
ajuizar das infrações às leis da honra e do amor cometidas por indivíduos
concretos, que se arriscavam então a serem banidos do espaço convivial e por
conseqüência privados do relacionamento com as senhoras que o freqüentavam.
Pag. 25-26
A poesia como jogo.
Integrando-se num contexto social de lazer, convívio e festa, a poesia
chama a si a possibilidade de preencher a necessidade do lúdico experimentada
pelo homem. Entendida como motivo de divertimento, ela segue três grandes
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orientações: uma delas valoriza a visão satírica do mundo concreto e não hesita
em tomar como tema pormenores ínfimos e caricatos, pretexto para um riso de
que todos os presentes possam participar; outra se constrói em torno da
subordinação a motes, propostos pelas damas ou por outros intervenientes nos
certames poéticos; a terceira prende-se a questões de ordem essencialmente
formal e traduz-se no comprazimento proporcionado pelo respeito de regras que,
espartilhando mais e mais a invenção poética, obrigam a malabarismos verbais,
gratos a quem compõe os versos e a quem os escuta. A par destas, que têm no
Cancioneiro Geral múltiplas representações, pode ainda registrar-se uma quarta
orientação, visível nas últimas trovas incluídas na obra, testemunho de como a
poesia, ao serviço do puro jogo, pode ser parte integrante, fundamento mesmo,
do serão áulico, enquanto tempo e lugar de recreação.
Pag. 29
Definitivamente abandonada a cantiga paralelística, que constituíra o
núcleo fundamental da poesia dos trovadores, a preferência divide-se agora entre
a cantiga e o vilancete, ao lado dos quais se cultivam também a esparsa e as
trovas.
Esparsa
A esparsa, importada da Provença, é uma composição monostrófica,
constituída por um pequeno número de versos que oscila entre os oito e os
dezesseis. A sua brevidade e o tratamento direto do assunto tornam-na
particularmente adequada ao improviso, caro a muitos poetas cortesãos,
interessados em impressionar o auditório com a facilidade e o engenho das suas
produções.
Cantiga
Já a cantiga é, tal como o vilancete, uma composição sujeita a mote. A
principal diferença entre uma e outro é da ordem da extensão, maior na primeira
que no segundo: assim, enquanto a cantiga consta de um mote de quatro ou
cinco versos seguido de uma glosa de oito ou dez, o vilancete apresenta um mote
de dois ou três versos e uma glosa de sete; numa e noutro, a glosa ou volta
5
retoma e desenvolve, como o próprio nome deixa entender, a idéia contida no
mote, reproduzindo, no seu final, textualmente ou com variantes, o último ou os
dois últimos versos deste. Todavia, o fato de poemas como o de D. João de
Meneses "a hua escraua sua" ou o de Bernardim Ribeiro cujo primeiro verso diz.
"Antre mim mesmo & mim" 15 serem chamados vilancetes mostra que a estes,
como de resto às cantigas, é permitida desde cedo, e apesar da definição um
tanto limitativa, a multiplicação das voltas, sempre obrigadas, porém, ao mesmo
esquema estrófico.
Trova
Às trovas - designação abrangente, aplicável a todas as composições não
sujeitas a mote -, cabe uma maior liberdade face aos constrangimentos formais.
São constituí¬das por um número variável de estrofes uniformes, em geral
oitavas, não necessariamente isométricas.
Pag. 31
Qualquer que seja, porém, a forma poética cultivada, o metro preferido é
sempre o de redondilha maior (sete sílabas poéticas), por vezes conjugado, em
textos compostos por estrofes heterométricas, com o de redondinha menor
(cinco sílabas) ou com o seu quebrado (três sílabas), resultando, dessas
combinações, interessantes efeitos rítmicos. Mas, suscitados decerto pelo que se
considera ser a maior dignidade de alguns temas, ocorrem também, no
Cancioneiro de Resende versos de arte maior (dez e onze sílabas, em alternância),
quase exclusivamente reservados às poesias heróica e elegíaca.
Pag. 32
Os gêneros
O Cancioneiro Geral é largamente dominado pela presença do amor como
tema principal. Nesse sentido, pode dizer-se que o tom lhe é dado pelo longo
debate que o inicia e que, centrado na oposição entre duas formas distintas de
entender e exprimir o sentimento amoroso, coloca em termos teóricos o que em
muitos outros textos se apresenta co¬mo resultado de uma vivência subjetiva,
6
real ou ficcionada, que na expansão lírica encontra registro. Atravessado por
motivos recorrentes que o trabalham internamente - herdados uns da tradição
trovadoresca, importados outros da poesia italiana (de Dante, de Petrarca) -, o
lirismo amoroso diversifica-se em função do louvor da amada, do lamento pela
indiferença desta, da nostalgia suscitada pelo apartamento, do despeito
provocado pela preferência dada a um rival, da pulsão de morte ativada pelo
desengano, da prospecção de estados íntimos às vezes paradoxais, do olhar
transfigurador de uma natureza na qual se busca a identidade.
Quanto à vertente satírica desta poesia de corte, também abundante,
desenvolve-se essencialmente segundo dois vetores: um, mais significativo em
termos de quantidade, é o da crítica individual, o da troça voltada para o cortesão
que os hábitos, as roupas, a verborreia, a pelintrice, a galanteria serôdia tornam
ridículo; o outro, menos representa¬do mas mais profundo, é o da crítica social, o
da denúncia do desconcerto do mundo, o da condenação de classes e instituições
divorciadas dos valores ancestrais, corrompidas pela ambição, pelo
desregramento, pela hipocrisia. Mais esporadicamente, a sátira alia-se à
escatologia ou ao erotismo, tomando-se então grosseira e chegando a tocar as
raias da obscenidade.
Mas, se a maioria das composições insertas no Cancioneiro Geral é de
índole amorosa - seguidas, à distância, pelas de caráter jocoso -, ao lado delas
alinham-se, numa presença que se manifesta em escala muito menor, outros
temas, que suscitam o aparecimento de outros gêneros: alguns exemplos existem
de poesia alegórica, heróica, elegíaca, religiosa, e até encontramos nele, para usar
a expressão de Andrée Rocha, alguns esboços dramáticos.
Pag. 32-33
Poesia heróica
Vários são os exemplos de atribuição de falas a mortos ilustres, exemplos
que têm as suas raízes na tradição narrativa medieval aqui prolongada em vários
poemas com componentes alegóricas em que é dada voz a deuses, heróis e
poetas já desaparecidos, mas em que ganham particular significado as trovas de
7
Luís de Azevedo à morte do Infante D. Pedro, em AIfarrobeira, as quais vão "em
nome do ifante", e as de Garcia de Resende à morte de D. Inês de Castro, cuja
parte mais substancial é constituída por uma longa fala autobiográfico da heroína.
Pag. 36
Pese embora a diversidade que os caracteriza e que obsta a que sejam
considerados como verdadeiros exemplos do gênero, poemas como o de Luís
Anriques ou o de Resende integram uma dimensão dramática, pelo modo como
dão corpo e voz a personagens autônomas, que vibram ao viverem ou evocarem
situações marcantes da sua própria existência , presente ou passada.
Pag. 37
Poesia religiosa
Uma última palavra para a religiosidade, que também encontra expressão
entre os poetas do Cancioneiro. Embora se evidencie pela existência de algumas
preces, que ora assumem o aspecto de puro exercício poético, como a glosa do
Pai-Nosso da autoria de Luís Anriques, ora são diretamente inspiradas por
circunstâncias nefastas - guerra, fome, epidemias - que se deseja ver eliminadas,
manifesta-se ocasionalmente na piedade que inspira dissertações moralizantes,
como a das incompletas trovas de D. João Manuel sobre os sete pecados mortais,
ou dolorosas reflexões acerca da morte e emerge até, estranhamente talvez, em
trovas como as de Francisco Mendes de Vasconcelos "hyndosse meter frade", a
que as de García de Re¬sende a Rui de Figueiredo Potas “estando detreminado
pera se meter frade” servem de contraponto. No que a es¬tes dois últimos
poemas diz respeito, ambos dão a ver - primeiro, em positivo, o segundo, em
negativo; um, em tom sério, outro, em tom jocoso - a experiência religiosa no
quadro da vida monástica. Mas não é difícil adivinhar que, apesar da dispersão de
marcas de religiosidade, apenas às composições pertencentes ao grupo referido
em primeiro lugar convém a designação de poesia religiosa.
Pag. 38-39
8
A poesia palaciana e o espetáculo da corte e do mundo
O Cancioneiro Geral é um documento importante, não apenas sobre o
ressurgimento da poesia no Portugal de Quatrocentos, mas também para o
conhecimento de alguns aspectos característicos da sociabilidade na corte
portuguesa de então: ele permite reconstituir, a par dessa renovada imagem da
poesia, algumas das práticas típicas dos serões palacianos, algumas modas, alguns
tiques, alguns vícios. Além disso, nele, como no espaço social de que de algum
modo é espelho, encontram livre expressão posições antagônicas face à política
dominante, o entusiasmo e o cepticismo relativamente à ação expansionista, o
espanto e o desencanto perante uma generalizada inversão de valores e os danos
morais que dela resultam, assomas de religiosidade e arroubos de licenciosidade,
devaneios e desenganos.
Caracterizada afinal por um certo hibridismo, a poesia de corte, a
despeito:' do caráter lúdico que lhe está à partida consignado, enquanto
"gentyleza" ou "cousa de folguar", cumpre outras funções no interior da
sociedade da qual emana: ela é dissertação, não raro fastidiosa, acerca do amor e
das suas regras; desabafo lírico; registro, discreto ou eufórico, de acontecimentos;
louvor de personagens insignes; caricatura de costumes individuais ou coletivos;
prece humilde endereçada à Virgem ou a santo de especial devoção; e até da
aridez de algumas trovas menos inspiradas se ergue, de quando em quando, a
imagem de um mundo em decomposição que urge restaurar
Pag. 40-41
9