Fichamento - Cancioneiro Geral

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Erasto Santos Cruz nº USP: 5930240 Universidade de São Paulo Literatura Portuguesa I Prof. Marcia Maria de Arruda Franco Sexta feira – das 08h00m às 09h40m Fichamento – Cancioneiro Geral de Garcia de Rezende A poesia palaciana na dupla vocação do convívio e do espetáculo Garcia de Rezende e a poesia palaciana. Pode dizer-se, em suma, que, apesar da contradição em que os protestos de modéstia integrados na prática retórica da captatio benevolentiae o levam a cair, ao Cancioneiro Geral atribui o seu compilador uma dupla função: cumpre-lhe registrar, para que se não percam no esquecimento, os trabalhos poéticos realizados nos últimos decênios, mas, acima de tudo, estimular a produção de obras de maior fôlego e profundidade, que permitam conservar a memória das grandes ações realizadas pelos heróis nacionais, assegurando também a perpetuação do nome dos poetas seus cantores e a dos reis que as patrocinaram. Na fixação impressa de uma poesia essencialmente destinada a circular na corte e a animar momentos de convívio e lazer deve afinal ler-se, a dar crédito às palavras do prólogo, o apelo a maiores cometimentos poéticos, dignos da celebração de uma História pontuada por triunfos militares e 1

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Erasto Santos Cruz nº USP: 5930240

Universidade de São PauloLiteratura Portuguesa I

Prof. Marcia Maria de Arruda FrancoSexta feira – das 08h00m às 09h40m

Fichamento – Cancioneiro Geral de Garcia de Rezende

A poesia palaciana na dupla vocação do convívio e do espetáculo

Garcia de Rezende e a poesia palaciana.

Pode dizer-se, em suma, que, apesar da contradição em que os protestos de

modéstia integrados na prática retórica da captatio benevolentiae o levam a cair, ao

Cancioneiro Geral atribui o seu compilador uma dupla função: cumpre-lhe registrar,

para que se não percam no esquecimento, os trabalhos poéticos realizados nos

últimos decênios, mas, acima de tudo, estimular a produção de obras de maior fôlego

e profundidade, que permitam conservar a memória das grandes ações realizadas

pelos heróis nacionais, assegurando também a perpetuação do nome dos poetas seus

cantores e a dos reis que as patrocinaram. Na fixação impressa de uma poesia

essencialmente destinada a circular na corte e a animar momentos de convívio e lazer

deve afinal ler-se, a dar crédito às palavras do prólogo, o apelo a maiores

cometimentos poéticos, dignos da celebração de uma História pontuada por triunfos

militares e políticos, conquistas e descobertas – ou, por outros termos, o convite à

epopéia, então ainda por escrever.

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A corte tornou-se então um espaço concentracional que, por razões políticas e

econômicas, atraía ao seu seio os aristocratas, mas também se abria àqueles que,

oriundos de uma burguesia em ascensão, conseguiam “medrar”; nela se mediam e

defrontavam as forças reais do país, cujos destinos aí eram traçados; e, a par da

instalação duma pesada máquina administrativa, exigida pelo afluxo da gente que

obedecia a esse movimento centrípeto, assistiu-se ao desenvolvimento de novas

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práticas sociais e culturais, estimuladas pelo monarca, a quem agradava uma situação

que lhe permitia exercer o poder de forma discreta.

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Portugal mantinha então contatos diplomáticos e comerciais com a

França, a Borgonha, o reino de Nápoles, mas a política de alianças, que vinha

sendo desenvolvida, favoreceu em particular a circulação entre as cortes

castelhana e portuguesa, o conhecimento e a admiração pelos grandes poetas

espanhóis do tempo, o bilingüismo que muitos dos nossos cultivaram.

O fato de quase 10% dos textos incluídos no Cancioneiro Geral serem

escritos em castelhano- e quase todos por autores portugueses – atesta a

aspiração a uma comunidade cultural alargada, fortalecida pela cumplicidade das

referências comuns. Os contatos poéticos entre as cortes peninsulares não eram

puramente epidérmicos; é possível assinalar analogias profundas e até uma

imitação, às vezes servil, por parte dos poetas portugueses, de modelos

castelhanos.

Pag. 22-23

Para além dessa “prova evidente e cabal do conhecimento de específico

ângulo cultural das letras castelhanas de então, os motos, vilancetes, cantigas e

romances glosados por poetas do Cancioneiro, os motos ostentados por damas do

paço e ainda as trovas centônicas demonstram, claramente, a existência de uma

cultura subsidiária de Castela, no âmbito do lirismo amoroso, e até da sátira, e

patenteiam um conhecimento de textos que têm permanecido no anonimato”,

mas exercem também a sua influência entre os criadores nacionais.

Pag. 23

A poesia como diálogo

O espaço fechado da corte favorece a circulação restrita do discurso

poético, que por seu turno gera uma espécie de diálogo, desenvolvido a vários

níveis: pelos sistemas da pergunta/resposta, da glosa ou da ajuda; pela prática

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epistolar, patente em poemas que asseguram a comunicação à distância e

informam sobre uma realidade que o destinatário – singular, à partida, mas logo

tornado plural, pelo ato público da leitura – ignora ou de que tem uma visão

distorcida; ou menos agreste, de regra adequado aos moldes de um processo

judicial. Não deve, porém, negligenciar-se, neste quadro, o fato de esse diálogo

ter como objeto de predileção pessoas ou casos conhecidos de todos os

circunstantes, o que constitui incentivo a uma participação alargada, sancionada

pelo equívoco instaurado entre “criação e manufatura poética”. “Cada qual

intervém afoitamente nos serões e engendra a sua troca na euforia duma

demonstração pública de desembaraço, de espírito, de capacidade repentista e

até de boa-vontade em colaborar no divertimento dos mais. Deste modo, em vez

de servir a poesia, o versejador pretende sobretudo beneficiar a sua própria

imagem social ou mundana”, nessa feira de vaidades em que a corte se tornou.

A respeito destas motivações menos próprias, a verdade é que, na prática,

“tudo se passa como se cada texto apenas pudesse sobreviver na relação que

com outros estabelece: convocação explícita do outro (na carta) ou inscrição do

texto alheio no próprio (na glosa)”.

Poema-missiva

O poema-missiva, visa superar a distância física que o legitima e tomar um

ausente presente, graças à circulação do discurso que produziu. Ao fazê-lo,

porém, facilmente constrói uma outra distância, ideológica ou moral – que umas

vezes procura sublinhar, outras vezes atenuar, pela conquista do interlocutor para

o sei próprio campo - , e permite, não raro, a introdução de uma perspectiva

crítica na avaliação do mundo.

Pag. 23-24

Porque se compraz em inscrever a diferença, a fissura, da carta pode

talvez dizer-se ser a mais controversa das formas que o diálogo assume na

sociedade palaciana.

Pag. 25

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Pergunta-resposta

Já a pergunta/resposta é, de entre elas, a mais próxima do mero ritual

cortesão. Jogo potenciador de um debate raras vezes desenvolvido, constitui, por

parte do perguntador, um desafio ao perguntado, que implica muito mais do que

o teor da resposta, dada a obrigatoriedade de esta se conformar, no respeitante

ao tipo de estrofe, ao metro e, as mais das vezes, à rima, ao modelo que a

pergunta, uma vez formulada, passa a constituir. O teste proposto é o quase

sempre menos ao saber, ao engenho ou ao humor do interpelado do que ao seu

adestramento formal.

Pag. 25

Apesar de tudo isto, numa pergunta/resposta se origina o extensíssimo

texto inaugural da recolha - o célebre debate do "Cuydar & sospirar" -, a cuja

leitura é inevitável evocar as cortes de amor, que parecem ter proliferado nos

meios cultos da Provença e do norte e oeste da França, desde o século XII, e em

especial a que em tempo de Carlos VI, e sob a direta influência de Isabeau da

Baviera, se constituiu. A esta afamada Corte de Amor, nascida em Janeiro de 1400

e organizada à semelhança de um tribunal, cabia pronunciar-se sobre matéria

essencialmente literária, no qua¬dro de certames poéticos que permitiam o

debate em torno de princípios doutrinários, relativos ao sentimento amoroso e à

cortesia, e que terminavam com a atribuição de prêmios aos mais inspirados

defensores da causa justa; mas ela esteve também aberta à possibilidade de

ajuizar das infrações às leis da honra e do amor cometidas por indivíduos

concretos, que se arriscavam então a serem banidos do espaço convivial e por

conseqüência privados do relacionamento com as senhoras que o freqüentavam.

Pag. 25-26

A poesia como jogo.

Integrando-se num contexto social de lazer, convívio e festa, a poesia

chama a si a possibilidade de preencher a necessidade do lúdico experimentada

pelo homem. Entendida como motivo de divertimento, ela segue três grandes

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orientações: uma delas valoriza a visão satírica do mundo concreto e não hesita

em tomar como tema pormenores ínfimos e caricatos, pretexto para um riso de

que todos os presentes possam participar; outra se constrói em torno da

subordinação a motes, propostos pelas damas ou por outros intervenientes nos

certames poéticos; a terceira prende-se a questões de ordem essencialmente

formal e traduz-se no comprazimento proporcionado pelo respeito de regras que,

espartilhando mais e mais a invenção poética, obrigam a malabarismos verbais,

gratos a quem compõe os versos e a quem os escuta. A par destas, que têm no

Cancioneiro Geral múltiplas representações, pode ainda registrar-se uma quarta

orientação, visível nas últimas trovas incluídas na obra, testemunho de como a

poesia, ao serviço do puro jogo, pode ser parte integrante, fundamento mesmo,

do serão áulico, enquanto tempo e lugar de recreação.

Pag. 29

Definitivamente abandonada a cantiga paralelística, que constituíra o

núcleo fundamental da poesia dos trovadores, a preferência divide-se agora entre

a cantiga e o vilancete, ao lado dos quais se cultivam também a esparsa e as

trovas.

Esparsa

A esparsa, importada da Provença, é uma composição monostrófica,

constituída por um pequeno número de versos que oscila entre os oito e os

dezesseis. A sua brevidade e o tratamento direto do assunto tornam-na

particularmente adequada ao improviso, caro a muitos poetas cortesãos,

interessados em impressionar o auditório com a facilidade e o engenho das suas

produções.

Cantiga

Já a cantiga é, tal como o vilancete, uma composição sujeita a mote. A

principal diferença entre uma e outro é da ordem da extensão, maior na primeira

que no segundo: assim, enquanto a cantiga consta de um mote de quatro ou

cinco versos seguido de uma glosa de oito ou dez, o vilancete apresenta um mote

de dois ou três versos e uma glosa de sete; numa e noutro, a glosa ou volta

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retoma e desenvolve, como o próprio nome deixa entender, a idéia contida no

mote, reproduzindo, no seu final, textualmente ou com variantes, o último ou os

dois últimos versos deste. Todavia, o fato de poemas como o de D. João de

Meneses "a hua escraua sua" ou o de Bernardim Ribeiro cujo primeiro verso diz.

"Antre mim mesmo & mim" 15 serem chamados vilancetes mostra que a estes,

como de resto às cantigas, é permitida desde cedo, e apesar da definição um

tanto limitativa, a multiplicação das voltas, sempre obrigadas, porém, ao mesmo

esquema estrófico.

Trova

Às trovas - designação abrangente, aplicável a todas as composições não

sujeitas a mote -, cabe uma maior liberdade face aos constrangimentos formais.

São constituí¬das por um número variável de estrofes uniformes, em geral

oitavas, não necessariamente isométricas.

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Qualquer que seja, porém, a forma poética cultivada, o metro preferido é

sempre o de redondilha maior (sete sílabas poéticas), por vezes conjugado, em

textos compostos por estrofes heterométricas, com o de redondinha menor

(cinco sílabas) ou com o seu quebrado (três sílabas), resultando, dessas

combinações, interessantes efeitos rítmicos. Mas, suscitados decerto pelo que se

considera ser a maior dignidade de alguns temas, ocorrem também, no

Cancioneiro de Resende versos de arte maior (dez e onze sílabas, em alternância),

quase exclusivamente reservados às poesias heróica e elegíaca.

Pag. 32

Os gêneros

O Cancioneiro Geral é largamente dominado pela presença do amor como

tema principal. Nesse sentido, pode dizer-se que o tom lhe é dado pelo longo

debate que o inicia e que, centrado na oposição entre duas formas distintas de

entender e exprimir o sentimento amoroso, coloca em termos teóricos o que em

muitos outros textos se apresenta co¬mo resultado de uma vivência subjetiva,

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real ou ficcionada, que na expansão lírica encontra registro. Atravessado por

motivos recorrentes que o trabalham internamente - herdados uns da tradição

trovadoresca, importados outros da poesia italiana (de Dante, de Petrarca) -, o

lirismo amoroso diversifica-se em função do louvor da amada, do lamento pela

indiferença desta, da nostalgia suscitada pelo apartamento, do despeito

provocado pela preferência dada a um rival, da pulsão de morte ativada pelo

desengano, da prospecção de estados íntimos às vezes paradoxais, do olhar

transfigurador de uma natureza na qual se busca a identidade.

Quanto à vertente satírica desta poesia de corte, também abundante,

desenvolve-se essencialmente segundo dois vetores: um, mais significativo em

termos de quantidade, é o da crítica individual, o da troça voltada para o cortesão

que os hábitos, as roupas, a verborreia, a pelintrice, a galanteria serôdia tornam

ridículo; o outro, menos representa¬do mas mais profundo, é o da crítica social, o

da denúncia do desconcerto do mundo, o da condenação de classes e instituições

divorciadas dos valores ancestrais, corrompidas pela ambição, pelo

desregramento, pela hipocrisia. Mais esporadicamente, a sátira alia-se à

escatologia ou ao erotismo, tomando-se então grosseira e chegando a tocar as

raias da obscenidade.

Mas, se a maioria das composições insertas no Cancioneiro Geral é de

índole amorosa - seguidas, à distância, pelas de caráter jocoso -, ao lado delas

alinham-se, numa presença que se manifesta em escala muito menor, outros

temas, que suscitam o aparecimento de outros gêneros: alguns exemplos existem

de poesia alegórica, heróica, elegíaca, religiosa, e até encontramos nele, para usar

a expressão de Andrée Rocha, alguns esboços dramáticos.

Pag. 32-33

Poesia heróica

Vários são os exemplos de atribuição de falas a mortos ilustres, exemplos

que têm as suas raízes na tradição narrativa medieval aqui prolongada em vários

poemas com componentes alegóricas em que é dada voz a deuses, heróis e

poetas já desaparecidos, mas em que ganham particular significado as trovas de

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Luís de Azevedo à morte do Infante D. Pedro, em AIfarrobeira, as quais vão "em

nome do ifante", e as de Garcia de Resende à morte de D. Inês de Castro, cuja

parte mais substancial é constituída por uma longa fala autobiográfico da heroína.

Pag. 36

Pese embora a diversidade que os caracteriza e que obsta a que sejam

considerados como verdadeiros exemplos do gênero, poemas como o de Luís

Anriques ou o de Resende integram uma dimensão dramática, pelo modo como

dão corpo e voz a personagens autônomas, que vibram ao viverem ou evocarem

situações marcantes da sua própria existência , presente ou passada.

Pag. 37

Poesia religiosa

Uma última palavra para a religiosidade, que também encontra expressão

entre os poetas do Cancioneiro. Embora se evidencie pela existência de algumas

preces, que ora assumem o aspecto de puro exercício poético, como a glosa do

Pai-Nosso da autoria de Luís Anriques, ora são diretamente inspiradas por

circunstâncias nefastas - guerra, fome, epidemias - que se deseja ver eliminadas,

manifesta-se ocasionalmente na piedade que inspira dissertações moralizantes,

como a das incompletas trovas de D. João Manuel sobre os sete pecados mortais,

ou dolorosas reflexões acerca da morte e emerge até, estranhamente talvez, em

trovas como as de Francisco Mendes de Vasconcelos "hyndosse meter frade", a

que as de García de Re¬sende a Rui de Figueiredo Potas “estando detreminado

pera se meter frade” servem de contraponto. No que a es¬tes dois últimos

poemas diz respeito, ambos dão a ver - primeiro, em positivo, o segundo, em

negativo; um, em tom sério, outro, em tom jocoso - a experiência religiosa no

quadro da vida monástica. Mas não é difícil adivinhar que, apesar da dispersão de

marcas de religiosidade, apenas às composições pertencentes ao grupo referido

em primeiro lugar convém a designação de poesia religiosa.

Pag. 38-39

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A poesia palaciana e o espetáculo da corte e do mundo

O Cancioneiro Geral é um documento importante, não apenas sobre o

ressurgimento da poesia no Portugal de Quatrocentos, mas também para o

conhecimento de alguns aspectos característicos da sociabilidade na corte

portuguesa de então: ele permite reconstituir, a par dessa renovada imagem da

poesia, algumas das práticas típicas dos serões palacianos, algumas modas, alguns

tiques, alguns vícios. Além disso, nele, como no espaço social de que de algum

modo é espelho, encontram livre expressão posições antagônicas face à política

dominante, o entusiasmo e o cepticismo relativamente à ação expansionista, o

espanto e o desencanto perante uma generalizada inversão de valores e os danos

morais que dela resultam, assomas de religiosidade e arroubos de licenciosidade,

devaneios e desenganos.

Caracterizada afinal por um certo hibridismo, a poesia de corte, a

despeito:' do caráter lúdico que lhe está à partida consignado, enquanto

"gentyleza" ou "cousa de folguar", cumpre outras funções no interior da

sociedade da qual emana: ela é dissertação, não raro fastidiosa, acerca do amor e

das suas regras; desabafo lírico; registro, discreto ou eufórico, de acontecimentos;

louvor de personagens insignes; caricatura de costumes individuais ou coletivos;

prece humilde endereçada à Virgem ou a santo de especial devoção; e até da

aridez de algumas trovas menos inspiradas se ergue, de quando em quando, a

imagem de um mundo em decomposição que urge restaurar

Pag. 40-41

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