Fialho de Almeida - Os Gatos

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os Gatos

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  • OS GATOS

  • FIALHO De ALeIDA

    OS GATOS

  • EXPO'98

    II) 1990. Parque EXPO 90, S.A.

    Os excertos aflui publicados roram extrados do livro 05 0,1(05.

    Ilustrao e Deslgll

    luis Filipe ClInha

    Tiragem

    5000 exemplares

    COnllloslO

    FOlocol11pogr rica

    Seleco de Cor

    Graflsels

    Impresso e Ac,lball1cnto

    Prlnter Portuguesa

    DCI1Silo Lesai

    119 540/90

    ISBN

    972.-396-44-9

    Lisboa, Naro de 1998

  • lO de Dezembro

    Setbal , como naturalmente sabem, uma ci

    dade pequena, na margem do Sado, vivendo

    magramente de banhistas e fbricas de sardi

    nha. Tem quatro velhas parquias, de roda de

    cujas igrejas se enroscam vielas nauseabun

    das, dois conventos ou trs, sem maior im

    portncia arqueolgica - excepo feita ao

    de Jesus, de que falarei depois com mais va

    gar - e como obras modernas, uma extensa

    avenida marginal sem terraplenos de cais

  • FIALIIO OE ALMEIDA

    ocultando a imundcie da praia coberta de

    dejectos, alguns desmazelados jardins impas

    seveis, e uma esttua a Bocage, vestida de

    criado de pera, defronte dum portal gtico,

    e ao p dum chafariz seco. Na varruscadela

    pressa das ruas, na brunidura mdica de cer

    tas casitas novas, na ornamentao dos pas

    seios e alamedas suburbanas, uma pelintrice

    salta, de cidade que se acapitala, sem esti

    pndios fixos, particulares ou municipais, e a

    quem a necessidade da clientela banhista im

    pe, no Vero, despesas, cujos frutos a pen

    ria do Inverno inutiliza.

    Nos bairros velhos, como as construes

    so primitivas, nulo o conforto, a higiene um

    mero acinte, acontece que a podrido dos la

    res corre nas ruas, descoberta, em jorros ne

    gros, cujo fartum humano se intromete ao do

    peixe podre, e ao dos monturos acogulados

    pelos cantos. Esta povoao de meias sujas,

  • OS GATOS

    velha e mesquinha, espcie de Ribeira Velha

    complicada de Alfama e Cruzes da S, alastra

    -se beira-rio num leque branco, cicuntorna

    do de pomares e de arvoredos, para alm de

    cuja fmbria se alteia depois um aro de serras

    magnficas, com tiaras de rochas e pinhais.

    Estes pomares, laranjais na maior parte,

    que a epidemia arrasou em alguns anos de de

    vastaes no combatidas, foram por muito

    tempo em Portugal um osis raro, tornando o

    vale de Setbal numa corbeille-caoila, re

    construda sobre desenhos do den, e a que

    parecia estar de guarda, Palmela, a prumo na

    serra, crenelada e estupenda, com o seu for

    midvel ar de ninho de drages. A laranjeira

    morta, as vinhas filoxeradas, outras frondes

    cobriram a argila riqussima das veigas, rvo

    res novas supriram, nos regadios das quintas,

    os cadveres das antigas, e o pinheiral desceu

    at dos pncaros, a povoar as calvas que os

  • FIALIIO DE ALMEIDA 10

    agricultores no replantavam. De sorte que o

    forasteiro sincero, depois que passeado na ci

    dade, se vai desinfectar do seu mau cheiro

    aos campos, ao surpreender o contraste da

    obra de Deus com a dos homens, a primeira

    orao que faz pedir aos cus o terremoto,

    agora que o marqus de Pombal j c no

    volta, com um indulto para o Convento de Je

    sus, para os castelos de S. Filipe da Serra e

    S. Tiago de Outo, para os portais da igreja

    do Sapal, e algumas miudezas mais de que es

    te exguo roteiro no d conselho.

    Foi o que eu fiz em toda a conscincia, de

    pois dum dia de passeios no Bonfim e gasosas

    no Lapido, vendo as scias alentejanas, com

    colares de varina, pavonear modas confeccio

    nadas nos a teliers da Rua do Joo Galo e Beco

    das Donzelas, sobre fazendas de quatrocentos

    e quarenta o metro, entrando as guarnies.

    Fui-me prs campos, e como tinha os ouvi-

  • OS GATOS

    dos cheios de sumptuosidades reais da torre

    de Outo, tomei um carro e fiz-me transpor

    tar t l, no decidido propsito dum inquri

    to formal sobre as quantias e luxo esparso

    naquele troncio estbulo de Vero.

    H um macadame de via larga, entre a ci

    dade e o castelo, beira-rio (a famosa estra

    da de cinquenta contos o quilmetro, feita

    em trs meses, a tiros na rocha, cos britado

    res suspensos de cordas, a medonhas alturas

    sobre o rio), e assim o percurso antigo se

    abrevia, por maneiras de pr Outo num ar

    rabalde quase da cidade. Apenas transposta a

    casaria do arrabalde, a poente, e os pomares

    e jardins da casa O'Neill, comea uma rampa

    leve a nos fazer subir os planaltos primeiros

    da riba Sado. esquerda o rio alarga-se; pela

    direita, montes cavalgando, vinhedos, rvo

    res, moinhos: e para trs Setbal, e S. Filipe a

  • FIALIIO DE ALMEIDA 12

    cavaleiro. Jibia a estrada em sucessivos zi

    guezagues, sem afastar-se da gua um s mo

    mento, trepando sempre, de sorte que a pai

    sagem desfrutada, da Toca do Pai Lopes

    Comenda, no faz seno ir decuplicando o

    raio da mais embriagante marinha que olhos

    tourstes podem contemplar. A poucos metros

    da Toca, que um corredor triangular entre

    duas massas de salo desagregvel. separadas

    talvez por alguma comoo subterrnea, a es

    trada despega um ramal que desce praia,

    parando porta de Albarquel. um velho forte

    de cantaria, quadrado e inofensivo, colabo

    rando nas antigas obras de defenso do rio, e

    com algumas peas ferrugentas na plataforma,

    para enviar descargas flor da gua. O forte

    hoje casa de Vero do Sr. Peito de Carva

    lho, que anexou jardinetes esplanada, tor

    nando as casernas em residncia confortvel.

    e envolvendo os canhes numa camisa de tre-

  • 13 OS GATOS

    padeiras cascatantes. Anda-se alm, e a estra

    da trepa mais, sobre verdadeiros montes ago

    ra, internando-se ao de leve, para nos fazer

    gozar todos os pontos panormicos do seu

    curso; e assim, junto Comenda, no mais so

    branceiro trmite do macadame, a duzentos

    metros da gua, o espectculo quanto pode

    ser de exttico e magnfico! Tem-se pra bai

    xo, esquerda, esborcinando o olhar da amu

    ra de madeira, fundos precipcios, revolues

    de terra que as guas castigaram, calvrios

    destacados, ravinas bruscas, quebradas, tudo

    duma cor vermelho-sangue, cortada de verde

    -bronze, ou sujo, ou mais vivo, ou mais vio

    lento, e sobre este casco de gangas ferrugino

    sas, da cor trgica das guerras e dos poentes,

    pinheiros direitos, decapitados nas copas, es

    galhados lugubremente nas braadas, alter

    cando entre si como cruzes que se disputam

    um mau ladro para um suplcio.

  • f I A L II O O E A L M E I O A 14

    Pela direita toda, sempre a serra, com as

    suas massas de argilas fuscas, areias quater

    nrias, calhaus conglomerados em cabeorras

    nuas, l nos pncaros - a serra a despenhar

    -se sobre o viandante, cheia de cicatrizes dos

    tiros dos britadores, lascada a prumo por ma

    chados de cilopes furiosos, e curveteando

    sempre, e desdobrando-se com um extraordi

    nrio pitoresco de agulhas, crenis, contra

    fortes de apoio, linhas, socalcos, fustigada da

    luz, zebrada de nevoeiro, em destaques cruis

    e escuros rembrandtescos e duma infinita

    poesia de ajoelhar e dizer os hinos de Eurico

    sobre o Calpe! Tal a viso da terra. Para ex

    primir a do rio, necessrio se faz f1uidar tin

    tas de estilo t um inverosmil lance de gra

    daes quase incorpreas, ter ligeirezas de

    tom capazes de exprimir no sensaes, mas

    sonhos de sensaes, almas de cores, to va

    porosa imaterialidade se exala dessa marinha

  • 15 OS GATOS

    nica de harmonia, embaladora de idlio, a

    entredizer, num murmrio de beijos, como o

    Hamlet:

    . . . dormir, talvez sonhar, talvez! . . .

    - Dormir, sonhar . .. Oh! como a baa ga

    nha, entre Setbal e Tria, tons de safira e

    azul-ferrete, duma frescura de mar grego, on

    de as silhuetas dos barcos pem sua asa nti

    da e cantante! Atrs de ns a cidade uma

    manchinha jovial, entre azuis de gua e ver

    des de arvoredo, com as gredas da Sade,

    amarelas de blis, contrastando; depois na

    outra margem do golfo, Tria e as areias

    brancas, invasoras, palhetadas de mica, avan

    ando a estrangular o corredor da entrada

    dos navios, e para alm de Tria o mar intr

    mino, com gargalhadas de espuma em pelo

    tes sobre os bancos de areia afogados na

  • FIALIIO O E ALME IDA

    gua viva, o mar risonho, o mar supremo,

    com seus mosqueios de chispas custicas, lis

    tras claras zebrando-lhe o azul-ventre-de

    -carpa, e aqueles fundos de azul-plido, que

    ao achegarem-se rocha vm cambiando at

    ao verde-ultramarino. Abaixo de cada ravina

    ou convulso violenta das barreiras, um por

    tinho doce, alcatifado de branco, cheio de

    conchas e algas, onde romanescos saveiros se

    balanam: - e um tal silncio, um sossego,

    que as mesmas gaivotas caminham com o

    acento circunflexo das asas, procura duma

    exclamao mais alta, pra velarem ... A car

    ruagem internou-se agora entre duas colinas

    redondas, vinhedos e oliveiras, vem-se ca

    sas, uma capela sem cruz, com as janelas do

    coro atochadas de molhos de feno - postes

    de pedra apoiando latadas j sem uvas, ci

    prestes e cedros em avenidas entre as cepas,

    e inda arribanas, e alpendroadas com utens-

  • 17 OS GATOS

    lios de cultura, carros de mato em fueiros, to

    nis sem arcos, e alfim, numa pirmide de ro

    chas, entre eucaliptos e abetos, beira de

    gua, a casa nobre da quinta da Comenda,

    propriedade dum conde de Armand, antigo

    embaixador francs, em Portugal. o momen

    to em que a estrada, deixando o estrangula

    mento entre montanhas, resvala docemente

    ribeira de Ajuda, uma risonha garganta, que,

    enfeixando os caminhos de gua dos mame

    Ies das serras prximas, abre at ao mar seu

    largo leito, entre decoraes alpinas, e basti

    dores de piarra e mato inimitveis.

    A estrada circuntorna a garganta, em fer

    radura, como se quisesse prolongar ao vian

    dante o angelus da cismadora beleza ali goza

    da, e aproveita o estrangulamento que os

    regatos da serra fazem entrada, pra lhes

    saltar por cima, e prosseguir, cingida ao con

    traforte de alm, t aos baluartes de Outo,

  • FI ALIIO DE ALMEID A 18

    outra vez agora beira de gua. Mas que sos

    sego! nem um rumor despaisando a quietura

    unssona desse mimoso e grcil paraso! al

    gum passarito nos medronhais do mato a pi

    piar, sem eco, clogas do tempo em que no

    havia setas nem espingardas. No cho da ri

    beira, fofos tapizes de erva eternamente ver

    de, fetos mui tnues, ris de gua e capilrias

    em pequenos pufs de folhagem. Prticos de

    granito, com botarus grosseiros, isolados co

    mo monlitos de sepulcros, restos da antiga

    guarnio mural da propriedade, hoje em ru

    nas. direita e esquerda, montanhas gigan

    tescas, com o peplum de argilas roto, e ma

    melas de rochas encaroadas de calhaus,

    todas mostra. Depois ao fundo, cnicos

    montes de pinhais verde-esmeralda, penetra

    dos de vapores, as cristas cintilantes, e to a

    prumo na cena, com seus crenis feudais e

    veludos verdes nos ombros de reis brbaros,

  • 11 OS GATOS

    que eles chegam a parecer encantamentos de

    antigos gnios do humus terrae postos de guar

    da aos vales onde o silncio mora, e ao luar

    as antigas almas se assembleiam. Emfim a tor

    re. Como fixar-lhe agora a configurao irre

    gular, acessvel do lado de terra por uma es

    pcie de porta de quinta com fecharias de

    bronze, ornada de lampees, e da banda do

    mar como noutrora, por formidveis pontes

    levadias? A porta aberta, d-se por um cor

    redor de abbada, na esplanada do meio, ou

    da cisterna, e alando a vista, apercebemos

    cravada no enorme terrao uma torre de pe

    dra, quadrada e bronca, corpos de construo

    mais sobranceiros, a lanterna do farol por ci

    ma, e mais esquerda, escalonadas, como

    apoiando-se nos contrafortes granticos da

    serra, as casamatas trreas, a capela, e outras

    dependncias rasas do baluarte.

    Outo um exemplar de arquitectura guer-

  • FIALHO DE ALMEIDA 20

    reira de h dois sculos, hiante boca da

    barra, e coas baterias na posio de varrer

    rasa de gua. Tem fundaes de 1390, poca

    do mestre de Avis, que a assentara, dizem, no

    mesmo local onde dantes havia umas runas

    dum templo de Neptuno. Foi sucessivamente

    acrescentada por vrios grandes reis da casa

    de Avis, D. Manuel e D. Sebastio menciona

    damente, e poucos anos depois da Restaura

    o, o prprio Joo IV ali mandou fazer con

    sertos. O estado de conservao perfeito, e

    a alvenaria to slida, que tendo os tremores

    chanfrado, de baixo a cima, S. Filipe, jamais a

    Outo puderam fazer a mais pequena esgara

    dura. A solidez tal, que a fortaleza, com

    seus terraos, crceres, obras cobertas, me

    lhor se diria uma grande pedra com buracos.

    A esplanada ou plataforma que primitiva

    mente seria uma, de nascente a poente, avan

    ando numa espcie de grande miradouro em

  • 21 OS GATOS

    leque, sobre o mar, acha-se agora partida em

    trs bocados, pela interposio de constru

    es fortuitas, que foi necessrio ajuntar

    medida que a torre caa, de baluarte de guer

    ra, em residncia de Vero. O bocado mais

    extenso fica a poente, grande como uma pra

    a, o plaino de lajedo, circuitado todo de pa

    rapeito, e com suas guari tas crivadas de se

    teiras. Por baixo, crceres terrveis, salitro

    sos de abbada, com gua at cinta nas

    mars, e onde presos polticos clebres jaze

    ram, Matias de Albuquerque entre outros, e

    muitos dos venerandos lutadores de tl"n ta e

    quatro. Para a esplanada do centro rasgam

    quase todas as portas das dependncias supe

    riores da construo, junto das quais ultima

    mente se ps um guarda-vento envidraado,

    fazendo galeria por diante da capela, e da

    quilo que doravante pode chamar-se o pal

    cio real - venho a dizer um pedao de casa-

  • FIALtIO OE ALMEIDA 22

    mata, a torre de menagem, e algumas casas

    novas que por trs desta engerocou um arqui

    tecto pobre e pouco imaginoso. Quando no

    primeiro ano de reinado, o Sr. D. Carlos ape

    teceu residir no castelo coa famlia, revestia

    -se dum toldo branco este terrao, estendia-

    -se uma alcatifa no lajedo, e fazia-se da pea

    hall para as preguias da calma, vendo as gai

    votas subir o rio co vento leste, e ouvindo a

    mar fluir e refluir contra a muralha.

    Para a estao balnear do ano seguinte re

    quereram os reis obras na torre, e uma adap

    tao quanto possvel garrida, da velha forta

    leza, a voJiere de grous coroados. Ainda na

    quele tempo, para se vir por terra de Setbal

    a Outo, era necessrio tomar o carreiro de

    Albarquel, trepando outeiros aps, e palmi

    lhando calhaus na mar baixa, para chegar

    Ajuda, e trepar depois aos espinhaos da ser-

  • 23 OS GATO S

    ra, at ao farol velho (runa a prumo no ver

    tiginoso rochedo sobranceiro fortaleza)

    donde aos tropo-galhopos seguidamente se

    descia, entre mil perigos, t ao postigo da

    ponte levadia do castelo. Por consequncia,

    aos aconchegos ou preparos do palcio rgio,

    urgia, como complemento, abrir a estrada no

    torcicolo, de despenhadeiros e montes inter

    postos, o que tudo se fez em quatro meses,

    porque o rei tinha pressa, gastando-se na

    obra aproximadamente trezentos contos. Foi

    uma labuta a peso de esterlinas, esse capri

    cho de rei puindo a misria do errio estan

    que, numa quadra em que as rendas pblicas

    mal chegam para pagar os juros dos emprsti

    mos. J lhes falei da estrada de Outo, e co

    mo artista no nego encmios ao personagem

    que influiu no seu traado. a mais bela coi

    sa de Setbal, essa avenida atravs de alcan

    tis e bosques ribeirinhos, sobrepujante a um

  • F I A L II O O E A L M E IDA 14

    golfo de guas puras, azul-ferrete, e em cu

    aberto, entre casitas e crenis tisnados de

    fortalezas e redutos. Ningum que faa o

    passeio de Outo fica disposto a maldizer a

    famosa estrada de pedras de oiro, to este

    siante gozo infunde o percorr-Ia, e to con

    densada impresso se traz dessa paisagem

    nica, e tereal, onde cada coisa prossegue no

    seu dilogo com Deus, sem lhe importar quem

    vai passando.

    Direi agora das sumptuosidades do alcar

    realengo, que de propsito fui ver com olhos

    jacobinos, decidido a flagelar os desperdcios

    da coroa, em frases cutilantes. Compem-se

    duma casa de jantar deitando sobre a espla

    nada, o parque t de rosceas, madeira a trs

    cores, claro, preto e cor de avel - as pare

    des e tecto em caixes e molduras de carva

    lho, com filetes a fogo, guarnies mais es-

  • 25 OS GATOS

    curas e pregaria forjada, aqui e alm. No

    meio do tecto e muros, pintura decorativa em

    tela, e nos cimos das portas um delicado en

    tablamento de escultura, saindo airosamente

    da ornamentao comum da boiserie. Esta pe

    a est pouco mais ou menos no pavimento

    das cozinhas, que so corredores de abbada

    caiada, pavesados de asfalto, com cabides de

    taberna, e mesas de pinho cobertas de zinco.

    Sobe-se uma escadinha de alvenaria, larga

    dum metro, tomando por labirintos de corre

    dores sem luz, por estucar, caiados a correr,

    e a espaos suando penduricalhos de salitre,

    ao fim do que se consegue chegar sala de

    recepo. a antiga sala nobre da torre de

    menagem, quadrada, alta, a abbada em tia

    ra, e quatro grandes nervuras de pedra nas

    cendo-lhe dos cantos, at se entrelaarem no

    fecho, em guisa de floro. Este recinto tudo

    o que pode haver de menos majestoso, uma s

  • FIALIIO DE ALMEIDA 21

    janela de balco, dando pr golfo, e pela di

    reita o vo dum arco, com ares de capela va

    zia, sua escaiola barata, e sobre cuja volta o

    arquitecto ps umas armas reais, guardadas

    por drages. A decorao tambm quase re

    les: h uma guarnio de carvalho, lisa, emol

    durando lambis de serapilheira pintada a

    borra-vinho, com castelos e flores-de-lis a oi

    ro e prata: as nervuras da abbada tm sua

    silva a grisalha, e os espaos entre elas simu

    lam cu, com suas nuvens; em termos que at

    como decorao de teatro esta borradela de

    artista era chinfrim! Mais escadinhas, corre

    dores partidos em compartimentos de restau

    rante pobre, por biombos de casquinha sem

    pintura, e recebendo luz por lucarnas de mas

    morra. - Eis o toile t te e o quarto de dormir,

    diz-nos o guarda. Antes de o abordarmos,

    uma sala de banho com etruscos macacos,

    desmobilada, escura, e sem torneiras, e lfim

  • 27 OS GATOS

    o toile t te, num Lus XV de Oliveira e Costa,

    com asco de boudoir de Dama das Camlias, a

    esfarinhar o estuque e o oiro pelos casacos

    dos visitantes. Entre duas portas fica o lava

    trio, com pedra branca, as duas cuve t tes de

    loia, em bsculo automtico, e o espelho

    acima, com moldura no estuque, e por sinal

    fazendo a cara torta. Tanto no tecto, como

    nos panos murais, decoraes a leo, inde

    centes de cor, desenho e arquitectura (e to

    das as pinturas de Outo partem com esta),

    verdadeira irriso da mediocridade protegi

    da em detrimento de artistas verdadeiros.

    O quarto de dormir , como a casa de jantar,

    uma excelente adaptao da boiserie moderna

    s confortabilidades senhoriais da residncia.

    Tectos, lambis, prticos, almofadas, tudo

    simples e dum gosto srio, realado de riqueza

    e de elegncia. Aqui, porm, como nas outras

    quadras, veio o pintor enodoar a obra do

  • F I A L II O O E A L M E IDA 28

    ebenista, e marcar de grotesco a harmonia

    sria que a casa de jantar e a cmara de dor

    mir podiam ter. Em todo o palcio no h um

    mvel ou um tapete, e como vem, as apregoa

    das sumptuosidades de Outo no passam do

    arreglo que qualquer remediado burgus po

    deria ter feito num casaro dos seus antepas

    sados. Custaria isso oitenta vezes mais caro

    que o razovel? o vcio fundamental de to

    das as administraes do Estado, mas releve

    -se ao reinante a responsabilidade de haver

    ladres midos no reino, que bem lhe basta o

    remorso de pregar s vezes gr-cruzes no pei

    to de alguns ratoneiros desc0!l1passados.

    Nos varandins do farol levanto os braos:

    domino a torre e o mar, topeto quase os des

    penhadeiros do farol velho, e as gaivotas cru

    citam, saveiros pesca, Tria fronteira, o

    mar sem fim, azul no rio, e l nos confins do

    cu chispando brasa ... Depois os meus olhos

  • 11 OS GATOS

    baixam ainda sobre as esplanadas da praa,

    onde, como Hamlet, o espectro do pai podia

    dizer ao filho lembra-te!. Mas levanto a ca

    bea ansiosa de ar, coisas brancas ao longe,

    espuma, velas, areais, iluses e nuvens pli

    das. Oh, como eu quisera ser tudo isto, sem

    perder a conscincia do que sou!

  • 30 de Maro - Manh no Tejo.

    Enquanto o vapor no chega detenho-me a

    abranger amorosamente, dos terraos da esta

    o do Barreiro, a marinha plcida que a

    meus olhos se desenrola, um quase nada per

    dida nas musselinas ondeantes da manh.

    O Sol no rompe, h vento, e como choveu de

    noite, um vago vu de lgrimas suspende-se

    no espao, e irrita-me a respirao de frgi

    das picadas. Daquela altura da riba, a expan

    so que faz o Tejo, d-me uma sensao de

  • FIALIIO OE ALIEIOA 32

    taa cheia, to fechado o circuito das suas

    margens .. . No primeiro plano, direita, uma

    lngua de areia contm moinhos e casare lhos

    brancos, muros de quinta, oliveiras e eucalip

    tos tristes que se acurvam a saudar a lufada

    hmida da aurora, vinda da barra. Pela es

    querda uma barreira brusca de terra verme

    lha, alteada, chanfrada, comida dos assaltos

    das cheias, rachada da gua, com cabelugens

    de mato e pinheiros anes dum verde-bronze.

    As casas parecem sucessivamente mais humil

    des, medida que se distanciam pelos planos

    alm da perspectiva - so quadradinhos de

    calia, com pontos negros de portas e janelas,

    telhados negros, paliadas de quintais e de

    arribanas; depois alm, fazendo fundo, no

    ponto onde o cotovelo do rio pe em relevo

    os montes de Cacilhas, a casaria complica-se

    em povoaes midas, com chanfraduras de

    caminhos, mirantes, quintas, dedos de campa-

  • 33 OS GATOS

    nrios e chamins de fbricas apontando o

    cncavo da cpula astral. que as nvoas lam

    bem, semelhante a uma fumarada de turbu

    los. Para trs os pinheirais aquietam-se, ne

    gros ainda duns restos da noite chuviscosa;

    uma grande muralha de nuvem veda a ecloso

    do Sol, como um pano de teatro, por trs do

    qual se est preparando uma apoteose. O va

    por da carreira d sinal, e a primeira escuma

    escachoa-Ihe das rodas, com um escarro de

    fumista, no instante em que rente do cais

    uma fragata passa, com uma espcie de deus

    marinho r, puxando a vela, enquanto o

    resto da companha desvia com arpes o cos

    tado da pesada traquitana, e o co de bordo

    agita a cauda aos f1avores da caldeirada que

    no convs refoga alegremente, sobre um la

    maru jovial de pinho e de urze.

    Circunscrevemos a ponta dos moinhos, e a

    enseada alarga-se, a toalha lquida desdobra-

  • F I A L II O O E A L M E IDA 34

    -se - a gua mal se enruga, uma placidez de

    espelho reflecte os mastros das barcaas -

    e ainda por alguns instantes a fragata nos le

    va emps de si o olhar artista, que lhe apre

    cia a mancha, como um momento da luz a es

    correr de sensao. Na r, curvando-se a cada

    instante aos movimentos da corda que pe em

    riste a vela, a figura colossal do rapaz linda

    de energia, e a lentido da manobra, cons

    tante duma srie de movimentos anlogos de

    durao e de amplitude, parece feita de ver

    sos mimados, cujo magnfico ritmo enche du

    ma ternura fsica a natureza. Pouco a pouco,

    a luz transmuta-se, cambiam-se no ar tonali

    dades que a fugida das nvoas renova e subs

    titui com uma instantnea agilidade, e que

    merc dela, tiram dessa mesma paisagem cen

    tenas de clichs todos diferentes, qual mais

    vaporosamente irisado de estro trgico. J as

  • 35 OS GATOS

    margens do rio se afastam, verdadeiramente

    vencidas pela fora de expanso do volume

    de gua, que vai de rio a oceano, e abarca no

    mar da palha uma distncia intrmina e ra

    diosa. esquerda, os pormenores da riba

    acentuam-se e definem-se, grupo a grupo, e

    comeam-se apontar povoaes, Arrentela,

    Seixal, Ginjal, Cacilhas, Almada a cavaleiro:

    vem-se prdios, ponta is, baas do tamanho

    de bandeiras, um formilhar de manchas claras

    em fundos de pinhal e de olivedo, onde um

    ou outro moinho move circularmente as suas

    velas crists, em ptalas de crucfera, guin

    chando ao vento, como os bibes nos lavra

    dios, caa de minhocas. Pela direita, porm,

    a margem foge, acachapa-se, humilha-se, es

    quece, e verdadeiramente colossal a mari

    nha que sob o meu olhar se desenrola! No

    fundo do poente, a nvoa sempre, nvoa cor

    de prola, f1uidssima, ar visvel, que nasce

  • FIALIIO OE ALMEIDA 3&

    da barra como o nimbo de no sei que formi

    dvel ascenso, e tolda a cidade, as serras da

    foz do rio, os arrabaldes, preparando o final

    de acto ferico que h-de ser a nossa chegada

    vista de Lisboa. Venho r do vapor lanar

    um ltimo adeus s perspectivas que ficam, e

    vejo a nascente o pano de nuvens baixar cali

    ginosamente ao rs das terras, fugir para o

    interior do pas, prenche de chuva, como um

    odre benfico que Deus tivesse vindo encher

    ao rio, para o espargir depois sobre as cearas

    e vinhas do Alentejo. So sete e meia, os pri

    meiros bicos da coroa solar queimam no cu,

    doirando as fmbrias dos pinhais e a faixa de

    nvoas que por cima de mim vai migrando

    lentamente para o Sul - tempo expressivo,

    como os ribeirinhos dizem - orfeo matinal,

    cuja monotonia enorme determina uma assun

    o de sonhos para o azul, para o azul que o

    meu esprito atravessa, ai de mim! ralado de

    deboches, procura do amor definitivo!

  • 37 OS GATOS

    . . . OS primeiros bicos da coroa queimam

    no cu. Marchamos a vapor, sente-se por

    baixo a gua insondvel. cheia de penumbras

    verdes e de sepulcros misteriosos, incrustados

    de madrporas, com grinaldas de lquenes, e

    romarias de peixes ouvindo derredor dos cas

    cos submersos, quotidianas missas de finados.

    Primeiro uma cor unida, opaco chumbo, que

    lentamente passa a hidrargrio, a azul-ventre

    -de-peixe, sem rugas, plcido de hausto, e

    com essa languidez dum ser que se aborrece e

    flana no seu leito, procura dum centro his

    tergeno que fazer vibrar para sair daquela

    lassido. Progressivamente depois a luz ascen

    de, e comea uma sinfonia constitucional de

    azul e branco, que varre o resto dos seus es

    pectros nocturnos. - Tempo claro, mar claro,

    luz circulante, circundante, envolvente, fun

    dente, com uma preocupao monocrdia de

    tornar os objectos luminosos, e de fundir toda

  • FIALIIO DE ALMEIDA 38

    a marinha numa aguada de azul imaterial.

    Sim, a criao mais montona do que varia

    da. Barbey de Aurevilly tinha razo - Deus

    Vtor Hugo, s dum lado.

    Oh gua sem rugas, perfdia dos lagos pl

    cidos, vida lquida, que de aparncia imbil,

    contudo correis vertiginosa como a idade -

    eis a minha alma que adormece das suas in

    quietaes, vendo-vos dormir assim to trai

    oeira, enquanto as nuvens fogem, e a brisa

    do Sul rosna nas bailadeiras, inquisidor mal

    dito, o de profunds do naufrgio! Varrei, t

    gides minhas, os monstros esponjosos do agua

    ceiro - vagas, trazei nas vossas lpides os

    funreos n pace dos meus irmos que a bor

    rasca sorveu numa hora de rancor, e se a vida

    do mar tem voz, essa voz me fale a minha ln

    gua, para que eu nela reconhea o remember

    dos ancestrais de quem herdei esta angstia

    terrvel do au-del!

  • 31 OS GATOS

    Marchamos a v por; em pleno mar da pa

    lha, h vento; a vaga porm, dulcssima, como

    um semicpio morno, faz a perder de vista

    uma alcatifa de felpa, por onde o barco pisa

    alegremente. A vastido do horizonte mara

    vilhosa, e com detalhes supremos de transpa

    rncia matinal. Alguns barcos ao longe, de

    vela oblqua, fulvos na luz, parecem, nas en

    volvncias da bruma, postos de propsito pa

    ra fazerem bater o corao dum colorista.

    Mais longe, para alm, ligeiras nvoas avelu

    dam Lisboa e as cordilheiras graves dessa

    margem, mostrando-as como uma sucesso de

    terraos sobre o Tejo, no deixando porm

    ver por detalhe os bairros da cidade, exage

    rando as dimenses da imensa casaria, e en

    fim dando retina uma tal sensibilidade, que

    no h ponto que ela no aperceba, nem pa

    pila nervosa do corpo que ela para assim di

    zer no torne em rgo de viso. Assim, mau

  • FIALIIO OE ALMEIOA 40

    grado a sua magnificncia e largura panor

    mica, essa marinha guarda sempre uma niti

    dez de vinheta a talhe-doce, um golfo de

    mgica, volatizado de poeiras de oiro, e onde

    s faltam sereias e trites, empurrando a

    concha de Neptuno .

    . . . com o Sol alto, o cu fica varrido dos

    aguaceiros de passagem, e por todo o plaino

    ento os valores da luz tomam uma meiguice

    adolescente, uma subtilidade irreal vaporiza

    da, branco sobre prola, com efeitos rseos

    na franja das brumas longnquas, e rosceas

    de liIs-difano, que fazem pensar na cor do

    no-me-esqueas. Como nos longes a bruma

    insiste sempre em vortilhar, polvilhando o

    desenho das montanhas da barra e da cidade,

    v-se a luz do Sol zebr-Ia de faixas loiras,

    por trs de cuja diafaneidade as velas dos

    barcos parecem traos duma escrita de crian

    a, e a silhoue t te das serras surge incorpo-

  • li OS GATOS

    reamente, como uma sombra numa sombra.

    Certo, esse momento da luz transcendente:

    que verdadeiramente essa gua canta um tre

    no de safira, azul-ar, verde-lavado, lils-opa

    lescente, preldio vago que se difunde de on

    da em onda, vago e to psquico, s l de

    quando em quando zimbrado pela arieta alegre

    dalguma asa de gaivota. Nem uma vaga ao lar

    go, nem um leno de escuma correndo a ace

    nar ao vapor que nos transporta - o mar qua

    se branco no horizonte, branco-sohlr como a

    couraa de Lohengrin . . . E naquela magnfica

    natureza, formilhante de mistrio, ideal de

    alacridade, feita de bilies de almas anni

    mas, que ela, olheirenta ainda dos cansaos

    da viagem, sentindo-se acordar, diz como em

    sonho - Mas tu ento no vs que uma in

    justia envelhecer? No vs que eu nasci para

    ter asas, e que me sinto roubada de no po

    der servir-me delas?