Festa - Uma Transgressão que Revela e Renova

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    FESTA:

    Uma transgresso que revela e renova

    Lcia Lobato1

    As festas, cada vez mais, vem sendo reconhecidas no campo dasHumanidades como um fenmeno necessrio para a renovao e restauraodo equilbrio coletivo. Autores como Jean Duvignaud e Norberto Luiz Guarinelo, apartir de enfoques distintos, dedicaram ateno especial ao tema buscandocompreender seu significado histrico e social na transformao das vidas emsociedade.

    Ambos ressaltam o ldico como um dos elementos constitutivos das festas.Nesse sentido Johan Huizinga (2004, p. 234) argumenta que:

    Uma verdadeira civilizao no pode existir sem um certo elementoldico, porque a civilizao implica a limitao e o domnio de si prprio,a capacidade de no tomar suas prprias tendncias pelo fim ltimo dahumanidade, compreendendo que esse est encerrado dentro decertos limites livremente aceitos.

    Este elemento ldico tem expanso garantida nas festas. Digamos que oshomens, para conviver com suas limitaes acordadas em sociedade,desenvolveram uma espcie de fair play, que seriam aes realizadas de boa fe com um evidente sentido ldico.

    Para Duvignaud a festa estaria contemplada nesse savoir faire que destri aaparente normalidade da vida coletiva, pois quebra com a seqncia do cotidianoinstaurando o que sabiamente denominou subverso exaltante (1983, p. 31).Estaria na essncia da festa a capacidade de despertar e animar os sentidos. Nelao participante perde o domnio da percepo e imerge no terreno das dimensesocultas que o remetem, por sua vez, dimenso do imaginrio.

    1 Professora Doutora da Escola de Dana e do Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas da Escolade Teatro e da Escola de Dana da UFBA.

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    As dimenses ocultas (DUVIGNAUD, 1983, p. 55) so dimenses daexistncia que deixam de corresponder s conformaes tradicionais ou sconfiguraes estabelecidas do espao cotidiano e em geral contestam edestroem tais formas.

    As festas acontecem em extenses existenciais que so, para o autor, porexemplo, as ruas, as praas, os mercados, os bares, enfim, qualquer espaoonde pessoas possam se encontrar e comemorar um acontecimento ou atmesmo o simples encontro. o lugar privilegiado do possvel, da transgresso edo desafio. Nele a festa promove um recorte e constri um cenrio que pode sersocial, religioso, militar entre outros, identificado pelos smbolos da tradio ondeas pessoas vo interagir se vestindo, se movendo, cantando e danando comopersonagens de uma cena.

    Duvignaud sublinha na festa o elemento do transe que, segundo ele,instaura um estado onde tudo possvel. Para o autor a festa no est vinculada normalidade, funcionalidade, nem rentabilidade, o que no a torna por essarazo uma irracionalidade. A festa tem uma lgica interna que a constitui e paracompreend-la necessrio o estado presencial. preciso vivenci-la, respiraro seu ambiente, mesmo como um espectador com o corpo contrado. Odinamismo da festa repleto de performances e aes espetaculares, queconsagram a razo da existncia e promovem a renovao. Nesse sentido, parao autor o elemento orgistico o principal responsvel das festas.

    Norberto Luiz Guarinello, partindo de uma outra tica, prope pensara festa a partir de quatro categorias de anlise: 1- Fazer uma fenomenologiada festa sem ignorar os sentimentos, os afetos e as emoes vivenciadaspelos participantes; 2- No pensar a festa como uma instituio passvel dehistria; 3- Abandonar a proposio de uma tipologia das festas; e finalmente,na 4 categoria, prope entend-la como estrutura do cotidiano e no comouma realidade oposta. A partir dessas categorias elabora a seguinte definiopara a festa:

    A festa , portanto, sempre uma produo do cotidiano, umaao coletiva, que se d num mesmo tempo e lugar definidos eespeciais, implicando a concentrao de afetos e emoes em

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    torno de um objeto que celebrado e comemorado e cujoproduto principal a simbolizao da unidade dos participantesna esfera de uma determinada identidade. (GUARINELLO, 2001,p. 972)2 .

    importante destacar que o autor no compreende o cotidiano como adimenso do particular, mas sim o espao e o tempo concreto das realizaessociais. Para Guarinelo, a festa parte integrante deste cotidiano e implicanecessariamente uma estrutura de produo e de consumo que vai determinaruma estrutura de poder que, por sua vez, tentar impor sua identidade, seusgostos, sua ideologia. Mas por outro lado, reconhece que por mais controladae manipulada que seja uma festa, sempre um ato de exploso coletiva eproduzir identidades provisrias em diferentes graus. Produto da realidadesocial, a festa produz identidades, mas nunca alcana o consenso, muito pelocontrrio ressalta e expressa os conflitos e as tenses dessa mesma sociedade.

    Segundo Guarinelo, a festa unifica a partir de suas prprias regras ecdigos de conduta, mas tambm diferencia. possvel dizer que cria uma espciede unidade diferenciada que aglutina extremos aparentemente contraditriosnuma prtica ldica ao mesmo tempo de cooperao e competio.

    Na viso de Guarinelo, resumindo, a festa implica numa produo socialque subentende um trabalho com custos, planejamento, hierarquias e funesenvolvendo uma participao coletiva que se legitima e conseqentemente de-fine suas regras.

    Em outra direo, para Duvignaud nenhum regulamento sobrevive nasfestas, pois no ser obedecido e nenhum ideal conseguir se fixar. Nomomento em que a festa se instaura se apoderando de um determinadoespao, estimulada digresso e o homem se v diante de um mundo semcdigos num reinado do desregramento. Segundo o autor nesse momentoque a festa se torna o instrumento para a comunidade alcanar a suafinalidade ltima: o mundo reconciliado a partir de um estado fraternal.

    2 In JANCS, Istven e KANTOR, ris. Festa: Cultura e sociabilidade na Amrica Portuguesa.V. II. SoPaulo: Hucitec, EDUSP, Fapesp: Imprensa Oficial.

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    Se relacionarmos os dois posicionamentos conceituais sobre o fenmenoda festa e visitarmos o sentido da celebrao na Antiguidade seria possvelentender a festa de Guarinelo com um olhar apolneo enquanto a festa deDuvignaud certamente s poderia ser apreendida sob as lentes de Dionsio.Enquanto Guarinelo privilegia a necessidade da obedincia s regras e umacerta organizao que implica acordos para o acontecimento, Duvignaud inverteessa razo apontando que justamente o carter da subverso ao estabelecidoque promover a festa.

    O Carnaval considerado uma festa por excelncia. Se tomarmos comoexemplo para nossas conjecturas o carnaval baiano e suas transformaespodemos melhor compreender as distines propostas pelos dois autores. inquestionvel que o carnaval baiano deixou de ser o espao da irrevernciaespontnea, da brincadeira inconseqente e da farra coletiva. O que antes era arealizao da vontade festiva descompromissada transformou-se em exibiono formato de uma espetacularidade produzida, permitida e controlada pelosrgos oficiais do poder municipal e estadual. O atual carnaval baiano,profissionalizado e mercadolgico, tornou-se um teatro vivo da sociedade,passarela da performance dos famosos e dos polticos. Tornou-se a vitrine deprodutores, emissoras locais, nacionais e internacionais interessadas mais naexplorao dos efeitos da imagem lucrativa que nos registros da festa em si.

    Nessa nova realidade as entidades populares, para sobreviver, tm que seintegrar e interagir com essa proposta de festa. Para tanto devem provar que tmum produto de valor, pois so portadoras legtimas das simbologias que do aimagem e a digital local da festa. Tudo isso leva ao fenmeno contemporneode fortalecimento de uma cultura popular peculiar que, ao contrrio das culturasde matrizes regionais tradicionais, supera os limites geogrficos e se impecomo fenmeno planetrio: a cultura miditica. Esta nova cultura veicula umamentalidade e um conjunto de valores idnticos em qualquer parte do mundo, aservio de uma indstria em expanso, a indstria cultural.

    A festa passa a ser um novo e atrativo produto de mercado que impe atodo momento a novidade e o indito. Assim so introduzidas as tcnicas queatingem a emoo e acionam uma lgica da diverso. Nesse sentido a festa

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    cooptada para o marketing que seduza e ative esse desejo criando umanecessidade no natural de consumir.

    E nesse momento que cabe refletir sobre as propostas dos autores dereferncia nesse artigo pensando o carnaval contemporneo de Salvador.Estamos diante de um carnaval apolneo ou dionisaco? um reflexo do cotidianocontemporneo da mentalidade soteropolitana? um evento que exclui ouinclui? Qual a sua prtica marcadamente ldica? Quais so os elementos quedeterminam a cooperao e a competitividade? Onde possvel encontrar oespontneo, a brincadeira, a descontrao e a farra? Onde a diversidade estestimulada? Onde h digresso e a quais cdigos e padres?

    Mas, seja l como for, a festa sempre presencial e renovao. CitandoHuizinga (2004, p. 222) em tempos contemporneos, o jogo se transforma emnegcio e, porque no os negcios se transformam em jogo. Essas so apenasconjecturas acadmicas que esto ao largo da festa. E vale lembrar que muitasvezes o que festa para uns pode no ser para outros, mas indubitavelmentetodos sabemos o que uma festa.

    Bibliografia:

    DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizaes. Fortaleza: Edies UniversidadeFederal do Cear; Rio de Janeiro Tempo Brasileiro: 1983.

    GUARINELLO, Norberto Luiz. Festa Trabalho e Cotidiano. In: Jancs,Istvan e Kkantor, ris Festa: Cultura e Sociabilidade na AmricaPortuguesa. V.II. So Paulo: Hucitec; Editora Universidade de So Paulo/Fapesp: Imprensa Oficial, 2001.

    HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Trad. Joo Paulo Monteiro. 5 ed. SoPaulo: Editora Perspectiva, 2004.