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    A beleza do desespero - o prazer da decifrao emWalter Benjamin

    Gil A. Baptista Ferreira

    1 A magia da linguagem 22 A experincia da comunicabilidade 43 Processo(s) da indeterminao inter-

    pretativa 54 Concluso 8

    Tanto pela originalidade como pela ampli-tude da sua obra, Walter Benjamin dos pen-sadores que continua determinante na culturamoderna ocidental, passados que esto maisde cinquenta anos da sua morte. Nesta an-lise procurar-se-, acima de tudo, compreen-der a lgica interna do pensamento de Ben-jamin no domnio da filosofia da linguagem,descurando embora outros aspectos da suaobra. Pretende-se, sobretudo, reflectir a es-trutura das suas anlises da linguagem, semesquecer o carcter relacional que orientouum pensamento coerente, embora original.

    Contudo, veremos aqui uma filosofia dalinguagem sem o que se pode considerarcomo uma formulao ou estatuto cient-fico. que o prprio Benjamin nada pos-sua de filsofo no sentido tradicional dotermo;1tambm na sua filosofia da lingua-

    Universidade da Beira Interior. Fevereiro de1998.

    1 Cfr. Adorno, T.W., Caracterizao de Walter

    gem, como em tudo o resto, a tendncia de

    Benjamin consistia em ir contra a interpre-tao habitual.2Tudo, visto por si, tomavanecessariamente um aspecto diferente, e daa originalidade das suas anlises e da suaforma de pensar. Na feliz anlise de Adorno,sob o olhar das suas palavras, tudo se trans-forma, como se se tornasse radioactivo.3

    O mrito de Benjamin - e do seu pensa-mento considerado como um todo - consis-tiu sobretudo em relacionar-se com os objec-

    tos de acordo com a sua organizao interna,de um modo prprio, como se a convenono tivesse qualquer poder sobre eles. E por isso, como referiu de forma metaf-rica em Rua de Sentido nico, que todosos golpes decisivos so atestados com a es-querda; 4ou seja, sempre da forma menoshabitual e menos esperada que se consegueo inesperado. Precisamente porque Benja-min via que todo o conhecimento assume a

    forma de interpretao, compreendeu a b-via importncia de ir contra qualquer inter-

    Benjamin, in Sobre arte, tcnica, linguagem e pol-tica, Benjamin, Walter, Relgio dgua, Lisboa, 1992.

    2Sontag, Susan, Sob o signo de Saturno, in Ruade Sentido nico, Benjamin, Walter, Relgio dgua,Lisboa, 1992.

    3Adorno, Op.cit., pg.9.4Benjamin, Walter, Rua de sentido nico, Relgio

    dgua, Lisboa, 1992.

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    conceito filosfico-religioso de revelao. Aideia de Benjamin a de que o domnio es-piritual mais elevado da religio simultane-amente o nico que o inexprimvel no co-nhece. Porque interpelado no nome e semanifesta como revelao.19 Imagina poisuma ordem genealgica da linguagem, a par-tir de um evento irruptivo. No entanto, Ben-jamin sustenta que s em Deus existe a re-lao absoluta do nome com o reconheci-mento, s a o nome idntico palavra

    criadora.20Considera, assim, ter havido nacomunicao entre os homens a perda da lin-guagem originria - a linguagem dos nomes,que nada sabe da exterioridade e na qual onome e a coisa coincidem de maneira quaseabsoluta.21 que, como afirmara, a lingua-gem s se exprime de um modo puro quandofala no nome, a verdadeira e ltima invoca-o da linguagem. No nome, acumula-se atotalidade intensa da linguagem.22 Mas fora

    dele, no uso, fica a indeterminao, dado quea nunca se trata nem da verdadeira nem daltima invocao da linguagem.

    2 A experincia da

    comunicabilidade

    A partir do momento preciso da perda da lin-guagem originria e da multiplicao de lin-guagens, toda a linguagem humana ape-

    nas reflexo da palavra no nome.23

    Assim,19 Idem, pg. 184-185.20 Idem.21Cfr. Duttman, Alexander Garca, Tradio e Des-

    truio: a poltica da linguagem em Walter Benjamin,in A Filosofia de Walter Benjamin, org. Benjamin,Andrew e Osborne, Peter, Jorge Zahar Editor, Rio deJaneiro, 1997, pg. 49-52.

    22Benjamin, Walter, Op.cit., pg.183.23Benjamin, Walter, Op.cit., pg. 187.

    a linguagem surge com possibilidades limi-tadas, isto quando comparada com a pala-vra Criadora, a palavra de Deus. E ento,refere, o reflexo mais profundo a que pode-mos aceder o nome humano - s a atin-gimos uma modesta participao ntima napalavra divina, na sua infinitude.24 No en-tanto, sublinhe-se que nesse mesmo pontoque o nome a palavra no pode tornar-se palavra finita nem conhecimento.25 Ouseja, no pode ser alvo de uma nica e l-

    tima interpretao, de uma definitiva porqueconclusiva anlise. No sempre ou ne-cessariamente o mesmo aquilo a que a lin-guagem se refere. E deste modo, lingua-gem dispersada e transformada num (mero)sistema de signos arbitrrios. Com o usoda linguagem, surge ela perante ns, uten-tes, carimbada pela conveno, e cada deno-minao pode assim nomear uma ou outracoisa. Sublinhe-se como notria e deter-

    minante a brecha que se abriu aqui entre acoisa e o nome - d-se a perda da lingua-gem dos nomes, o que ocorre no momentopreciso em que o uso chega.26Esta ideia dalinguagem dos nomes parece conformar-se ideia tradicional de obra de arte,27 que Ben-jamin to bem reflecte. Na tradio, a obrade arte apresentada como com uma exis-tncia autntica, nica, com o hic et nunc deum evento irredutvel e insubstituvel: comoa apario daquilo que permanece protegidoda reprodutibilidade geral. A obra de artetradicional gera um efeito de sacralizao

    24Cfr. Benjamin, Walter, Idem, pg.187.25Idem.26Benjamin, Walter, A obra de arte na era da

    sua reprodutibilidade tcnica, in Sobre Arte, Polticalinguagem e tcnica, Relgio dgua, Lisboa, 1994,pgs. 192-193.

    27Cfr. Benjamin, Walter, Idem.

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    que remete de volta a uma funo ritual; emcerta medida, ela um nome. Como mostraBenjamin no ensaio sobre a arte, a repro-duo tcnica que destroi a autenticidade daobra de arte tradicional. Isto tambm vis-vel no processo que submete a linguagem aoprincpio da reproduo, e nomeadamente dareproduo tcnica.

    Benjamin refere num outro ensaio sobreo jornalista e polemista Karl Kraus comoo seu objectivo era desmascarar o inautn-

    tico. Para isso, Kraus atacava a imprensa,a linguagem jornalstica e os clichs, comosendo todos criaturas monstruosas da tc-nica. Mas a forma que a linguagem as-sume na era da reprodutibilidade tcnica precisamente esta: falar e escrever em cli-chs. Quando cunhamos ditos usamos emcada vez expresses to gastas que acabampor assegurar que a linguagem criada pelaimprensa (tida como a instituio da repro-

    dutibilidade tcnica) uma linguagem decitaes sem referncias. A citao apa-rece assim como um vestgio da comuni-cabilidade no interior da prpria comunica-o. E deste modo que, nas palavras deDuettmann, esta linguagem da comunicabi-lidade mal chega a ser uma linguagem: ela a prpria coisa da linguagem, ou a lin-guagem como a prpria coisa.28 Partindode tal concepo de linguagem, podemos di-zer que quando lemos um texto ou comen-trio, uma anlise ou interpretao, em vezde comearmos por nos aprisionar no conhe-cimento centrado numa reproduo de dog-mas e de formas institudas, antes sofremosum choque que nos lana para a frente e paratrs, levando-nos a pensar e a escrever. Esta, pois, a experincia da comunicabilidade.

    28Duettmann, Alexander Garca, Op.cit., pg. 58.

    Jacques Derrida, pensador contemporneo,enuncia esta ideia de forma implcita na suaobra Glas. Refere ele como procurava pro-duzir um outro tipo de escrita, uma escritaviolenta que demarque as falhas e desviosde linguagem; de modo a que o texto pro-duza uma linguagem dele prprio, nele pr-prio, que, enquanto continua a operar atra-vs da tradio desponte num determinadomomento como um monstro, uma mutaomonstruosa sem tradio ou precedente nor-

    mativo. 29O desejo de produzir monstros traduz-

    se no desejo de produzir novas interpreta-es, produzir novos discursos a partir doacontecimento singular de todo o discurso.Todo o discurso surge como o sobreviventede uma catstrofe que foi o seu prprio acon-tecimento. Duettmann, de modo que julga-mos brilhante e claro, resume a questo daforma seguinte: a lei da tradio inven-

    tada todas as vezes que o pensamento ou aescrita rompem com a tradio. 30

    3 Processo(s) da indeterminao

    interpretativa

    A leitura de Kafka por Walter Benjamindesenvolve-se entre 1934 e 1938 e foi parteessencial na troca de ideias que manteve como seu amigo (j referido) Gershom Scholem,

    versando principalmente a filosofia messi-nica da histria. Iniciou-se Benjamin emKafka com a leitura de O Processo31 quandouma ictercia o obrigou a recolher-se ao leito,em 1927. A interpretao que ento fez de

    29Derrida, Jacques, Glas, Galile, Paris, 1974,pg.123.

    30Duettmann, A.G., Op.cit., pg. 59.31Kafka, Franz, O Processo, Livros do Brasil, Lis-

    boa, s/d.

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    Kafka (inesperada, como era de esperar) di-vergiu da que lhe era proposta por Scholem;mas disso daremos conta adiante.

    Considera-se ter Benjamin duas etapas nasleituras que fez de Kafka. Na primeira lei-tura verificou como a transio da tradiopara a modernidade se manifesta do ponto devista da modernidade, como uma possibili-dade que se abre. Na segunda etapa, reflectiuo ponto de vista da tradio. O ensaio queescreveu sobre Kafka de 193432 e a linha

    de argumentao a bastante clara. O pontode partida um exame da natureza do mundode Kafka, centrado no lugar que nele ocupa alei: em Kafka, a lei escrita est contida noslivros, mas estes so secretos; por se basearneles, o mundo pr-histrico exerce o seu do-mnio de maneira ainda mais impiedosa.33

    O carcter secreto da origem da lei torna asituao do acusado desesperada. E essedesespero que revela a beleza do acusado.

    que Kafka torna belo o desespero daque-les que sofrem uma lei desconhecida, atra-vs da descrio da sua situao sem soluoaparente, sejam quais forem as suas esperan-as individuais. Este desespero distancia aobra de Franz Kafka da restaurao do mito:at o mundo mtico, que este contexto nosevoca, incomparavelmente mais jovem queo mundo de Kafka, a que o mito prometeuredeno. Como um novo Ulisses, ele livra-se das sereias graas ao seu olhar ... fixo nadistncia.34A lgica da interpretao benja-miniana de Kafka oscila, pois, nesta duplareferncia: por um lado, um mundo anterior

    32Benjamin, Walter, Kafka, in Essais 1 1922-1934,Gonthier, Paris, 1983.

    33 Benjamin, W., Idem, pg. 187. Benjamin acres-centa que no mundo pr-histrico, leis e formas defi-nidas permanecem no escritas.

    34 Idem, pg. 188.

    ao mito; por outro, um mundo que o superou(justamente pela existncia da lei).

    Ao fazer parte de um mundo em que arealidade da lei legitimada no tocante sua forma escrita, Kafka no pode deixar deapresentar a opacidade dessa lei para o in-divduo, em termos de alguma origem es-crita. Trata-se assim de um mundo pr-histrico (na sua exterioridade cega, incom-preensvel, quase natural) e ps-mtico (nasua apresentao da forma racional da lei). A

    principal consequncia dessa projeco duale contraditria a indeterminao interpre-tativa: uma indeterminao que constitui osignificado da obra de Kafka. O mundo deKafka determinado s na sua indetermina-o. Como afirma Benjamin, toda a obrade Kafka constitui um cdigo de gestos quecertamente no tinham de incio nenhum sig-nificado simblico para o autor; ao contr-rio, o autor tentou extrair deles um signifi-

    cado em contextos cambiantes e arranjos ex-perimentais. Isto do mesmo modo que osseus personagens usam para, em vo, ex-trair um significado conclusivo das circuns-tncias em que se inserem.35 As histrias deKafka pedem para serem lidas como parbo-las e, ao mesmo tempo, recusam-no. Elasno querem ser tomadas pelo seu valor nomi-nal; prestam-se a citaes e podem ser con-tadas para fins de esclarecimento. Mas, serque, por acaso, temos a doutrina que as pa-lavras de Kafka interpretam e que as atitu-des de K. e os gestos dos animais elucidam?Essa doutrina no existe; tudo o que pode-mos dizer que temos, aqui e ali, uma alu-so a ela. Kafka poderia dizer que essas coi-sas so relquias que transmitem a doutrina,embora as possamos, igualmente, conside-

    35Cfr. Benjamin, W., Idem.

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    4 Concluso

    Se a importncia da reflexo conjunta deBenjamin e de Kafka fulcral para a com-preenso de ambas as obras, -o no me-nos numa perspectiva de anlise da teoria dalinguagem, verdadeiro propsito deste traba-lho. Neste sentido, observmos como os es-critos de Kafka proporcionaram a Benjaminelementos de anlise do polo da tradio -mas de uma tradio em luta com a moderni-

    dade, e dessa mesma tradio em crise. Tam-bm a modernidade em Kafka assim vistasob o signo da tradio (e da cabala, comoforma de interpretao e de conhecimento).Segundo a teoria da linguagem de Benjamin,o que a linguagem tem de comum com a suacomunicabilidade uma nfima e inquantifi-cada sombra de verdade; verdade essa que,contudo, est acima de qualquer linguagemem particular. A importante tentativa de co-municar a experincia da modernidade numalinguagem da tradio e o seu fracasso, reco-nheceu Benjamin, tornam a obra de Kafkaaxial para o ilustrar o seu pensamento. Po-rm, central na obra de Kafka para esta ques-to a indeterminao interpretativa, inde-terminao essa que constitui o significadoda obra de Kafka. Como em Benjamin, tam-bm a verdade est nos livros, numa es-crita primeira afastada na lonjura, a que notemos acesso. que o seu carcter secreto

    no nos permite ter as coisas pela linguagemde forma definitiva, alguma vez acabada. Haqui, como em Benjamin, o desespero (para-doxalmente) fascinante de no nos podermosadaptar conveno; o tal prazer em que searticulam sentidos e espritos, na interpre-tao, na crtica e na anlise.Terminamos este trabalho tornando presente

    uma passagem de O Processo42 que nos pa-rece, de algum modo, evocar o esprito quepresidiu sua elaborao. Um homem estfrente porta que o separa da Lei. O porteirod-lhe um banco, onde fica sentado duranteanos. Para l desse porteiro, que enorme einacessvel, esto, garante ele, muitos outros,cada vez mais difceis, at se poder atingir aLei. J perto da velhice, o homem conseguedistinguir um fulgor que jorra da porta daLei. Mas a sua vida aproxima-se do fim. Per-

    gunta ento ao guarda porque ningum tinhaprocurado entrar por aquela porta, ao longodos anos que esperara. qu Idem. e nin-gum mais podia por ela entrar, respondeu oguarda, por essa porta que estava a ele (Cfr.Benjamin, Walter, Op.cit., pg.177. e s aele) mesmo destinada.Tambm ns, para atingir a verdade da lin-guagem temos que passar mltiplas portas,portas difceis (como com a cabala e seus

    inmeros degraus), sem termos ainda che-gado coisa em si. Tudo isto porque seperdeu a linguagem originria. No entanto,cada comentrio, cada interpretao, cadaverdade, possvel embora apenas nos per-tena, confrontados com a experincia quedeu origem; h um texto que s ns lemosde tal forma ? uma forma que no nem de-finitiva nem nica. que temos portas ques a ns esto destinadas e que estamos con-denados a permanentemente abrir.

    42Kafka, Franz, O Processo, Livros do Brasil, Lis-boa, s/d.

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