fermentario_escolas

download fermentario_escolas

of 18

description

escolas- antiga e moderna

Transcript of fermentario_escolas

  • MISCELNEOS

    Fermentario N. 8, Vol. 2 (2014)

    ISSN 1688 6151

    Instituto de Educacin, Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educacin, Universidad de la Repblica. www.fhuce.edu.uy

    Faculdade de Educao, UNICAMP. www.fe.unicamp.br

    A escola moderna em comparao com a dos antigos: apontamentos introdutrios para

    (re)pensarmos a escola na atualidade

    La escuela moderna en comparacin con el antiguo: notas introductorias a (re)pensar en la

    escuela hoy

    The modern School compared with the ancients: introductory notes to (re)think the School in

    modernity

    Andr Campos de Camargo

    Raphael Guazzelli Valerio

    Resumo: Esse texto fala da escola. Pretende-se analis-la em dois momentos distintos, a saber, na modernidade e na antiguidade. Deste modo, dividimos o texto em dois momentos. Em primeiro lugar ocupa-se da noo de escola na modernidade, a partir das anlises de Foucault e Aris. A seguir lana-se um olhar para a escola antiga, por meio do pensamento de Hadot. Por fim, espera-se promover algumas comparaes entre esses dois momentos da escola. Palavras-chave: Escola. Educao. Modo de Vida. Subjetivao.

    Resumen: Este texto habla de la escuela. Tenemos la intencin de analizarlo en dos momentos

    Graduado em Histria (Frea), Mestre em Educao (Unicamp). [email protected]. Graduado em Histria (Frea), Mestre em Filosofia (Unesp), Doutorando em Educao (Unesp). [email protected].

  • 2

    diferentes, a saber, en la modernidad y la antigedad. As, dividido el texto en dos ocasiones. Ante todo ofertas con la concepto de la escuela en la modernidad, de los anlisis de Foucault y Aris. La siguiente lanza una mirada a la vieja escuela, por el pensamiento de Hadot. Por ltimo, esperado promover algunas comparaciones entre estos dos momentos de la escuela. Palabras clave: Escuela. Educacin. Estilo de Vida. Subjetividad.

    Abstract: This paper speaks of school. It is intended analyze it in two different moments, in the modernity and in the antiquity. We divide the paper in two moments. Firstly is concerned the schools Idea in modernity, from analyzes of Foucault and Aries. The following launches a look to old school, by Hadots thinking. In the end, expected to promote some comparisons between these two moments of school. Keywords: School. Education. Way of Life. Subjectivity.

    INTRODUO

    A escola, tal qual a concebemos hoje, fruto do sculo XVIII e consolida-se no sculo

    XIX. Desenvolve-se tendo em vista um processo histrico bastante preciso, qual seja, a formao

    dos Estados Nacionais. Para a constituio dessas comunidades polticas, centrais para o mundo

    contemporneo, fazia-se necessrio certa homogeneidade cultural e lingustica que no existia

    nesses territrios (ainda hoje no existem em certos casos), sendo preciso, pois, realiz-las.

    Pode-se dizer, sem dvida, que a escola moderna faz parte do projeto iluminista, mas

    num sentido diverso daquele que se tem comumente. Explica-se. Tomemos uma passagem de

    Vigiar e Punir:

    E se (...) o regime representativo permite que (...) a vontade de todos forme a instncia fundamental da soberania, as disciplinas do, na base, garantia da submisso das foras e dos corpos. As disciplinas reais e corporais constituram o subsolo das liberdades formais e jurdicas. (FOUCAULT, 2009, p. 209).

    A escola uma instituio disciplinadora, isto quer dizer que mais ou menos do que garantir o

    esclarecimento e maioridade das massas, ela se prope a formar corpos dceis e utilizveis,

    subjetividades moldveis e normalizadas. Desta perspectiva, dois discursos contemporneos,

    aparentemente opostos, sobre ela, caem por terra. So discursos sobre uma eventual crise ou

    fracasso dessa instituio. O primeiro, os derrotistas de toda sorte, crem que a escola j no

    funciona mais, que no conseguem esclarecer e tornar crticos seus alunos, transmitir-lhes

    conhecimentos necessrios a essas funes. O segundo, os salvacionistas de toda ordem,

    argumentam que o processo de educao do povo lento e uma necessidade democrtica, a escola

  • 3

    o nico lugar onde as massas tm acesso cultura e a instruo. Ora, sob nossa perspectiva, a

    escola (moderna) nunca parou de funcionar, porm, no sentido de ser uma instituio formatadora

    mais do que esclarecedora. Em poucas palavras, a escola moderna nunca foi e no o lugar dos

    conhecimentos, da liberdade, da cidadania ou da tica.

    Quadro distinto deste poder ser visto se analisarmos a concepo de escola (schola,

    eschole) dos antigos, sobretudo na Antiguidade grega clssica e helenstica. Essas escolas destoam

    da moderna tanto em suas caractersticas institucionais, como, poderamos dizer, em suas funes

    sociais. Mas tambm em relao forma como eram concebidas, pensadas e, sobretudo, vividas.

    Contudo, no final da antiguidade tardia romana, poderemos observar uma crise aguda desse modelo

    de instituio e o nascimento de uma tradio escolstica da qual a escolstica da Idade Mdia ser

    a herdeira e, de certa forma, todas as instituies escolares modernas do sculo XVIII.

    Nesse texto, nos propomos a sistematizar algumas diferenas entre as concepes e o

    prprio funcionamento da escola, para os antigos e para ns, os modernos (ou ps-modernos). Para

    tanto, analisaremos a concepo de escola a partir da analtica do poder foucaultiana, bem como as

    anlises culturais de Philippe Aris, na inteno de compreend-la na modernidade. A seguir,

    voltaremos aos antigos na companhia de Pierre Hadot, para demarcar a concepo que dela tinham

    os antigos.

    A ESCOLA MODERNA

    Segundo Philippe Aris, a escola moderna surge, por volta do sculo XVIII1, para dar

    conta da formao do carter da criana (ARIS, 1981, p. 178-182). Para ele, a noo de infncia

    no a-histrica, isto , o infantil, tal qual o concebemos, um produto histrico recente; a

    sociedade do medievo europeu no possua uma conscincia ou um sentimento de infncia2. Se a

    escola aparece como instituio destina s crianas, essa tese que aprece em seu trabalho,

    preciso que nossa anlise se d em dois movimentos: primeiro, compreender a constituio dessa

    noo de infncia para, em seguida, analisar a formao da escola.

    O que hoje chamamos de infantil, e que no existia na Idade Mdia europeia, estava

    limitado a certo perodo da vida, corporalmente frgil, onde o indivduo no era capaz de realizar ou

    suprir sozinho as necessidades mais elementares da existncia. Era um perodo da vida, de fato,

    menosprezado e esperava-se que a criana sobrevivesse a ele para entrar na vida propriamente

    1 Interessante notar que as dataes, ou periodizaes de Aris, sobre a formao da noo de infncia, bem

    como das instituies destinadas a elas, coincidem com as de Foucault e o desenvolvimento das instituies disciplinares, no havendo, no entanto, nas teses do primeiro qualquer referncia ao pensamento desse ltimo. 2 Walter Kohan discorda parcialmente dessas afirmaes. Para ele os gregos j possuam certa concepo de

    infncia, tratar-se-ia, pois, da inveno de uma infncia, a dos modernos. Ver: KOHAN, W. O. Infncia. Entre Educao e Filosofia. Belo Horizonte. Autntica. 2005 e tambm: KOHAN, W. Infncia, estrangeiridade e ignorncia. Belo Horizonte. Autntica. 2007. De qualquer maneira, concorda com Aris no que concerne a uma concepo histrica de infncia/criana.

  • 4

    dita.

    Uma das fontes centrais na pesquisa de Aris foi a arte iconogrfica em que, segundo o

    historiador francs, at aproximadamente o sculo XIII, impossvel encontrar qualquer aluso

    infncia. A concepo de criana comea a se formar entre os sculos XVII e XVIII quando essas

    passam a ser vistas, num primeiro momento, como adultos em miniatura e serviam diverso e aos

    mimos dos adultos. Nem infncia, nem adolescncia, tampouco juventude, at ento se passava da

    condio de beb para a de adulto, ou mais precisamente, para de homem/mulher. Ao estar

    fisicamente apto, o indivduo comea a habitar o mundo dos adultos, tornava-se um adulto, de modo

    que as crianas no passavam muito tempo com a famlia. De fato, no existiam, como hoje, lugares

    especficos para elas. Nesse mundo adulto, aqueles que hoje chamamos crianas eram educadas

    sem que existissem instituies especiais para elas (KOHAN, 2005, p. 64).

    A partir dos sculos XVII e, sobretudo XVIII, a criana comea a ser o centro das

    atenes da instituio familiar, bem como, passar a ocupar preocupao significativa por parte do

    Estado3 que cria, ento, uma srie de instituies para isol-la e separ-la do mundo adulto, entre

    elas, sem dvida, a mais importante ser a escola. Para resumir, poderamos dizer que h a

    inveno da infncia (ou de uma infncia como prope Kohan) para, em seguida, inventar-se a

    escola4, tratemos, pois, dessa ltima.

    A escola uma instituio disciplinar e, como tal, no transmite conhecimentos ou no

    apenas isso mas, mais importante, ela produz sujeitos. Em Vigiar e Punir Foucault inventariou

    diversas caractersticas ou dispositivos disciplinares, um sem nmero deles est presente na escola.

    Conforme Ramos do (2009, p.111), nela os mecanismos disciplinares da direo de conscincia e

    da prtica da confisso se misturam de modo a atingir as ramificaes mais delicadas dos alunos. O

    esprito e o corpo das crianas so tidos como pginas em branco, isto , como realidades moldveis

    onde a escola capaz de inscrever praticamente qualquer coisa. No entanto, ao mesmo tempo, cada

    escolar deve descobrir em si mesmo suas realidades e potencialidades j constitudas, deve, pois,

    relatar e revelar.

    Deste modo, vemos aparecer a mais escolar de todas as tcnicas disciplinares: o

    exame. Nenhuma instituio disciplinar a priso, ou a fbrica, por exemplo institui melhor o

    exame do que a escola. Podemos defini-la, com Foucault, como um aparelho de exame ininterrupto

    3 Esse cuidado por parte da famlia e do Estado com a condio infantil explica-se, talvez, pela assuno, j em

    finais do sculo XVIII, da ordem burguesa e, portanto, por uma srie de problemas relativos ao direito burgus, como a herana por exemplo. Isso no fica claro no livro de Aris, nem no trabalho de Kohan. Outra hiptese, que no descarta a primeira, se inscreveria no mbito da produo biopoltica do corpo dos Estados nacionais, conforme analisado por Foucault e outros. O desenvolvimento dessas hipteses seria tarefa de um outro trabalho. 4 Se levarmos essas anlises ao campo da biopoltica, como sugerido na nota anterior, acreditamos de tratar-se

    aqui da inveno de dois dispositivos (para usar a terminologia de Giorgio Agamben). A escola necessitou, primeiramente, ou conjuntamente talvez, da criao de um dispositivo biopoltico chamado criana ou infncia, para enquadr-lo, ou submet-lo a essa instituio formadora. O desenvolvimento dessas anlises,no entanto, no caberia no espao destinado a esse texto.

  • 5

    que acompanha em todo o seu comprimento a operao do ensino (FOUCAULT, 2009, p 178.).

    Trs so as principais caractersticas do exame. Primeiro, o exame inverte a economia da

    visibilidade no exerccio do poder (FOUCAULT, 2009, p.179), isto , torna visvel o examinado

    escondendo o examinador; em segundo lugar, o exame faz tambm a individualidade entrar no

    campo documentrio (FOUCAULT, 2009, p.181), cria-se assim um imenso sistema de registro,

    identificao, catalogao, descrio, etc.; por fim, o exame, cercado de todas as suas tcnicas

    documentrias, faz de cada indivduo um caso (FOUCAULT, 2009, p. 183), permite, portanto,

    classificar, julgar, mas, sobretudo, comparar para inscrever o escolar numa linha de normalidade que

    se pretende atingir. Voltaremos a esses trs pontos, antes, no entanto, vejamos como Foucault

    sintetiza esse dispositivo, mostrando sua centralidade nos mecanismos disciplinares:

    O exame est no centro dos processos que constituem o indivduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto do saber. ele que, combinando vigilncia hierrquica e sano normalizadora, realiza as grandes funes disciplinares de repartio e classificao, de extrao mxima das foras e do tempo, de acumulao gentica contnua, de composio tima das aptides. Portanto, de fabricao da individualidade celular, orgnica, gentica e combinatria. Com ele, se ritualizam aquelas disciplinas que se pode caracterizar com uma palavra dizendo que so uma modalidade de poder para o qual a diferena individual pertinente. (FOUCAULT, 2009, p. 183-184).

    A economia interna do poder disciplinar pode ser dada pela seguinte equao: quanto

    mais o poder annimo, mais individualizados os sujeitos se tornam. O exame a caracterstica

    mais individualizadora do poder disciplinar. Na escola, diz Foucault, a criana est mais

    individualizada que o adulto. (KOHAN, 2005, p. 78) At o sculo XIII os colgios no so mais do

    que asilos para estudantes pobres e s a partir do sculo XIX que se tornam instituies de ensino.

    Mais do que isso, s a partir dos dezenove que se tornam instituies formadoras de crianas, at

    ento, adultos, jovens e crianas dividiam o espao do colgio5. A escola como instituio destinada

    exclusivamente s crianas , portanto, uma inveno moderna. A idade dos alunos no era

    relevante, como veremos, para os antigos.

    A vida interna da escola distribui as funes e os indivduos constituindo o que Kohan

    chama de blocos de capacidade-comunicao-poder, isto , os espaos so delimitados, o tempo

    regulado e cada etapa cumprida na instituio constitui nos indivduos certas capacidades e funes

    que se esperam dele. H, pois, uma interveno de tipo clnico, ou, microfsico. Age-se no detalhe.

    Nessas etapas, no se mede ou examina-se os conhecimentos adquiridos, mas, sobretudo, seus

    comportamentos e aptides. Esses exames que homogenizam, paradoxalmente, produzem

    visibilidade aos indivduos. , pois, todo um poder que individualiza justamente na medida em que

    5 Cf. ARIS, P. Histria Social da Criana e da Famlia. 2 Ed. Rio de Janeiro. Zahar Editores. 1981 p.

    169-171.

  • 6

    obriga homogeneidade. (, 2009, p.112).

    Nesse minucioso sistema cada indivduo ocupa um lugar especfico, professores,

    alunos, administradores, etc. e so, portanto, afetados de diferentes maneiras, de modo que no se

    deve falar aqui de opresso, tirania ou violncia. Foucault mostra, no apenas em Vigiar e Punir, mas

    em seus primeiros cursos no Collge de France como o poder disciplinar e, mais tarde as artes de

    governar que lhe so correlatas, um substituto, por assim dizer, da simples violncia6 e,

    justamente por isso, que esses dispositivos produzem os seus sujeitos, quer dizer, subjetivam; so

    mquinas de governar mais do que simplesmente aparelhos de dominao e violncia.

    Os indivduos so sujeitados na escola de diversos modos, conforme seu lugar relativo

    na rede e, conforme um jogo de verdade (poder/saber) que lhes imposto. Podem ser tomados

    como objeto de investigao, mas tambm como produtores de verdade. So, pois, subjetivados

    nesses exerccios em que so exortados a falarem de si, contriburem nas prticas institucionais,

    examinarem e serem examinados. De fato, esse poder escolar recai muito mais sobre a criana, ou

    melhor, na forma criana, ou dispositivo criana7, que a instituio escolar produz e dissemina. Ele, o

    poder escolar, procura atingir todas elas (as crianas), na mesma forma, a mesma linha de

    normalidade, isto , no se produz um sujeito qualquer, mas um sujeito calculado pelas prticas de

    disciplina e governamento. Como nos diz Kohan (2005, p. 81):

    O que um indivduo e no , o que ele sabe e no sabe de si, objeto de intervenes, tendentes constituio de um tipo especfico de subjetividade. Nas escolas, os indivduos tm experincias de si que modificam sua relao consigo mesmos numa direo precisa. So experincias demarcadas por regras e procedimentos que incitam subjetividades dceis, disciplinadas, obedientes. A escola moderna no hospitaleira da liberdade, embora precise dela para acolher o exerccio do poder disciplinar e no a mera submisso do outro.

    O desenvolvimento da escola possibilita o aparecimento de um monstruoso sistema de

    anotaes e registros, das aptides, biografias, capacidades, etc. dos escolares. Dessa imensa

    massa documental resulta a extrao de saberes das crianas que sero usados na sua formao,

    mais do que isso, possibilita a emergncia de certas cincias positivas, como a psicologia e a

    pedagogia principalmente que se formam

    a partir das prprias adaptaes da criana s tarefas escolares, adaptaes observadas e extradas do seu comportamento para tornarem-se em seguida leis de funcionamento das instituies e forma de poder exercido sobre a criana. (FOUCAULT, 2003, p. 122).

    6 Ver, por exemplo, a primeira aula de O Poder Psiquitrico. FOUCAULT, M. O Poder Psiquitrico: Curso no

    Collge de France (1973-1974). So Paulo. Martins Fontes. 2006 p. 3-24. 7 Cf. nota 4.

  • 7

    uma espcie de circularidade, da extrao do saber dos escolares mediante as

    tcnicas e aparelhos disciplinares h a formao dos saberes pedaggicos que, em troca, ditaro as

    regras de funcionamento da instituio, estabelecero uma normalidade, isto , uma mdia, uma

    linha, segundo a qual o indivduo se objetiva numa relao com ela. Aps objetivar-se possvel

    classific-lo, contudo, o processo no desaparece e volta-se, portanto, circularidade. Poderamos

    assim dizer que a tarefa primordial da escola a normatizao, apesar dessa nunca ser enunciada

    como tal na economia interna da instituio; o que se enuncia so os desvios. De qualquer modo,

    essa linha de normatizao que se procura atingir e, conforme os referenciais e dispositivos

    poder/saber que j enunciamos.

    Por fim, podemos dizer que a escola ocupa lugar central, ou privilegiado, nessa

    grandiosa mquina de administrar que chamamos de governo. Por meio dela, e de outros

    dispositivos certamente, possvel fazer funcionar o complexo jogo daquilo que Foucault chama

    governamentalidade, quer dizer, governar sem governar. O desenvolvimento dessas noes, no

    entanto, foge do mbito desse texto. Nosso objetivo agora analisar a concepo de escola em

    outro registro, em outro contexto. Passemos a ele.

    A ESCOLA PARA OS ANTIGOS

    Entre os gregos antigos, em especial os atenienses, vigorava entre a maior parte dos

    cidados livres, o desejo de se formar e de se educar. Desde os tempos Homricos, a educao dos

    jovens fora a grande preocupao da classe dos nobres, daqueles que possuam a aret, isto , a

    excelncia adquirida pela consanguineidade, como se tornar mais tarde, para certa parcela dos

    cidados livres, uma busca por virtude (aret), isto pela nobreza da alma8.

    Segundo Hadot9, podemos fazer uma ideia dessa educao aristocrtica graas a uma

    compilao de preceitos morais conhecida como Tegnis. A educao aristocrtica em Atenas era

    dada pelos adultos no prprio grupo social. Preparava-se o jovem para adquirir fora fsica, coragem,

    senso de dever e de honra. A partir do sculo V a.C., com o desenvolvimento da democracia

    ateniense, alm dos exerccios corporais, da ginstica e da msica, a filosofia se tornar o principal

    meio para se atingir a aret. A partir desse momento no sero apenas os nobres que conseguiro

    alcanar a excelncia, mas todos os cidados que se dedicassem filosofia.

    Com a ampliao da vida democrtica em Atenas, as lutas pelo poder se acirraro, e

    nessas circunstncias que a habilidade retrica adquirir importncia central nos debates polticos.

    8 interessante mencionar que Foucault (2006, p. 48) compreende a passagem da educao aristocrtica (da

    aret consangunea) para a educao filosfica (aret adquirida pelo aprendizado filosfico), como uma crise da pedagogia ateniense. FOUCAULT, Michel. A Hermenutica do Sujeito: Curso no Collge de France (1981-1982). 3 ed. So Paulo. WMF Martins Fontes. 2010 p. 48. 9 HADOT, Pierre. O que a Filosofia Antiga. 5 ed. So Paulo. Edies Loyola. 2011.

  • 8

    Ser necessrio persuadir o povo, faz-lo tomar essa ou aquela deciso na Assembleia. na

    procura por adquirir a habilidade da linguagem que o movimento sofstico se desenvolve. Se antes

    da democracia em Atenas, os jovens eram educados pela synousa, isto , pela frequentao do

    mundo adulto, com o objetivo de adquirir uma aret aprendida informalmente, com os filsofos

    sofistas, ao contrrio, a formao se dava artificialmente, ou seja, pela educao obtida

    formalmente. Pode-se dizer, pois, que a escola (schola, eschole) sofista , de maneira formal, a

    primeira. Os sofistas no dispunham de instituies fsicas destinas ao ensino, tampouco, de planos

    estruturados ou doutrinas que eram necessrias atingir por meio de um modo de vida especial, como

    veremos nas escolas (schola, eschole) subsequentes. Fundaram, portanto, escolas de pensamento,

    mais do que instituies filosficas. Era geralmente em lugares emprestados ou alugados, que os

    sofistas ensinavam, alm das tcnicas de persuaso, contedos de cultura geral para serem

    utilizados nos discursos. Eram profissionais do ensino, verdadeiros professores preocupados em

    transmitir saberes. Como nos diz Hadot (2011, p. 33):

    Eles so os profissionais do ensino, antes de tudo pedagogos... (...) Por um salrio, eles ensinam a seus alunos receitas que lhes permitissem persuadir os ouvintes, defender, com a mesma habilidade, pr e o contra (antilogia).

    Diferentemente dos sofistas que se preocupavam em transmitir conhecimentos,

    encontraremos, em Atenas, nesse mesmo momento, a figura de um filsofo que buscar fazer que

    os outros homens tomem conscincia de seu prprio no-saber, de sua no sabedoria. Esse filsofo

    Scrates. Antes dele, de acordo com Hadot (2011, p. 52-53), havia dois tipos de mestres do

    conhecimento. De um lado: os aristocratas do saber, isto , os mestres da sabedoria ou da verdade,

    como Parmnides, Empdocles ou Herclito, que opunham suas teorias ignorncia da multido; de

    outro, os democratas do saber, que pretendiam vender o saber, os sofistas. Scrates destoar dos

    aristocratas e dos democratas do saber, pois se constituir como um mestre do cuidado de si. Um

    mestre que, sem cessar, cuidar de si mesmo, ao mesmo tempo em que cuidar do cuidado com

    que os outros tm consigo mesmos10

    .

    Para Scrates, o saber no um conjunto de proposies e frmulas feitas que se

    possa prescrever ou vender, pois o saber no um objeto fabricado, um contedo acabado,

    transmissvel diretamente pela escritura ou discurso. Seu mtodo filosfico consistir no em

    transmitir um saber, mas, ao contrrio, em interrogar as pessoas, pois ele mesmo no tem nada a

    10

    Um exemplo interessante do cuidado de si socrtico descrito por Michel Foucault no curso A Hermenutica do Sujeito. Segundo o filsofo francs, Plato narra no dilogo intitulado Alcibades I, a histria de um Alcibades que est prestes a comear sua vida pblica, no entanto, se encontra insatisfeito com a educao aristocrtica que lhe fora conferida por nascena, j que ela havia sido superada pela educao filosfica. Por esse motivo procurar o filsofo Scrates para ajud-lo a cuidar de si e consequentemente a obter uma nova educao. FOUCAULT, Michel. A Hermenutica do Sujeito: Curso no Collge de France (1981-1982). 3 ed. So Paulo. WMF Martins Fontes. 2010 p. 25-96.

  • 9

    dizer-lhes, nada a ensinar-lhes de contedo terico. O objetivo de Scrates consiste em simular

    aprender alguma coisa de seu interlocutor, para lev-lo a descobrir que no conhece nada no

    domnio do que pretende ser sbio. dessa ironia que fustiga seus interlocutores com questes que

    os pem em dvida, que os obrigam a prestar ateno a si mesmos, a tomar cuidado consigo

    mesmos e consequentemente a cuidar da cidade (plis), que Scrates se diferencia dos demais

    mestres.

    A postura de Scrates, como o filsofo do cuidado de si, que procurava a um s tempo

    vincular discurso e modo de vida filosfica, foi imortalizado por Plato em diversos dilogos. Plato e

    posteriormente todos os filsofos da antiguidade procuraro fazer o mesmo, porm, com uma

    diferena que merece ser pontuada: enquanto Scrates no objetivava constituir uma escola de

    pensamento, nem fundar uma instituio escolar consagrada filosofa, os outros filsofos,

    buscavam, ao contrrio, realiz-las. Para Scrates a educao deveria realizar-se no em um meio

    artificial, como nos sofistas, mas como fora o caso da tradio antiga, misturando-se vida da cidade

    (plis), porm com uma diferena radical em relao s pocas anteriores: ao mesmo momento em

    que convidava todos os cidados para examinar seus valores, sua maneira de agir, para cuidarem

    de si mesmos, ele propunha, no interior desse discurso, uma ruptura radical com a vida cotidiana,

    com os hbitos e as convenes da vida corrente. No foi por outro motivo que acabou sendo

    condenado morte por ingesto de cicuta.

    Depois da morte de Scrates, Plato cr na possibilidade de mudar a vida poltica das

    cidades pela educao filosfica de seus membros mais influentes, como ainda, em alguns casos,

    de seus governantes. Inicialmente, o prprio Plato agir dessa forma. Arriscar perder a vida e a

    liberdade duas vezes em Siracusa, por acreditar na educao filosfica de seus governantes. Em um

    segundo momento, depois de fundar uma escola filosfica em Atenas11

    , a famosa Academia, Plato

    prosseguir com o seu objetivo poltico. Segundo Hadot: Muitos alunos da Academia

    desempenharam efetivamente um papel poltico em diferentes cidades, seja como conselheiros de

    soberanos, seja como legisladores, seja ainda como opositores da tirania (2011, p. 94).

    A educao na Academia ser feita em comunidade, em grupo, em um crculo de

    amigos, onde se compartilhar o amor pelo conhecimento. Alm dos membros mais conhecidos -

    Eusipo, Xencrates, Espeusipo e Aristteles , Plato contou com muitos outros, inclusive com

    discpulas, como Axiotia e Lastenia. O amor pelo conhecimento no reunia apenas queles que se

    ocupavam da filosofia, como se costuma crer, mas ainda cientistas, notadamente astrnomos e

    matemticos, como Eudoxo e Teeteto. A liberdade de pensamento reinava na Academia, uma vez

    que teorias que no estavam totalmente de acordo com Plato eram discutidas e ensinadas. Para

    Hadot (2011, p. 101-102):

    11

    interessante lembrar que Plato no foi o nico, nessa poca, a fundar uma instituio escolar, o sofista Iscrates fizera o mesmo, como ainda, alguns discpulos de Scrates, como o caso de Antstenes, Euclides de Megera e Aristipo de Cirene.

  • 10

    a Academia era um lugar de livre discusso e que no havia ortodoxia na escola, nem dogmatismo. (...) Pode-se dizer, creio, que, se Plato e outros professores da Academia tinham desacordo sobre pontos de doutrina, todos eles admitiam, apesar de tudo, graus diversos de escolha do modo de vida, da forma de vida, proposta por Plato.

    Dessa perspectiva, o objetivo da discusso e o contedo doutrinal tm importncia

    secundria. O que conta a prtica do dilogo e a transformao qual ela leva. O conhecimento

    para Plato, portanto, nunca puramente terico e abstrato, mas algo que lentamente forma e

    transforma os seres humanos12

    . Mesmo quando os conhecimentos da Academia so expressos por

    meio da escrita, o que nos leva a pensar em um saber acabado, fechado em si mesmo, Plato nos

    surpreende com uma escrita em forma de dilogos. Segundo Hadot (2011, p. 111):

    O dilogo para Plato no transmite um saber acabado, uma informao, mas o interlocutor conquista seu saber por seu esforo prprio, descobre-o por si mesmo, pensa por si mesmo. Ao contrrio, o discurso escrito no pode responder s questes, impessoal, e pretende dar imediatamente um saber acabado, mas que no tem a dimenso tica que representa uma adeso voluntria. S h verdadeiro saber no dilogo vivo.

    Da mesma forma que Plato, Aristteles fundar em 335 a.C. na cidade de Atenas uma

    escola, o Liceu. A escola criada com o propsito de ser, como a Academia, uma instituio durvel,

    porm com uma diferena marcante: s forma para a vida filosfica. O ensino prtico e poltico

    dirigir-se- a um pblico mais amplo, a homens polticos, de fora da escola, mas que desejam se

    instruir sobre a melhor forma de organizar a cidade. J os membros internos e permanentes da

    instituio se ocuparo da felicidade filosfica, que corresponde theora, ou seja, um gnero de

    vida consagrado integralmente atividade do esprito. A felicidade poltica ou a prtica da virtude na

    cidade, visto pelos membros do Liceu como algo secundrio, ficar de fora da escola. Para

    Aristteles, a filosofia consiste em um modo de vida teortico. Em relao palavra teortico

    necessrio no confundi-la com terico. Vejamos o que Hadot (2011, p. 124) nos mostra a respeito

    da diferena entre essas duas palavras:

    Em relao a isso, importante no confundir teortico com terico. Terico uma palavra que tem precisamente origem grega, mas no aparece em Aristteles, e significa, em outro registro que no o filosfico, o que se refere ao que se v. Na linguagem moderna, terico ope-se prtico, como o que abstrato, especulativo, em oposio ao que tem relao com a ao e o concreto. (...) Mas o prprio Aristteles s

    12

    Alm dos conhecimentos em forma de dilogos formadores, Plato valorizava os exerccios espirituais para permitir o completo cuidado de si. Entre os exerccios mostrados por Pierre Hadot, destacamos: o da preparao para o sono, o da utilizao de mximas capazes de mudar nossas disposies interiores e o da preparao para a morte. HADOT, Pierre. O que a Filosofia Antiga. 5 ed. So Paulo. Edies Loyola. 2011 p. 125.

  • 11

    emprega a palavra teortico, e a utiliza para designar, por um lado, o modo de conhecimento que tem por fim o saber pelo saber e no um fim exterior a si mesmo e, por outro, o modo de vida que consiste em consagrar sua vida a esse modo de conhecimento.

    Dessa forma, no podemos confundir um discurso filosfico puramente terico com

    uma vida filosfica de cunho teortico. Enquanto a primeira, designa discursos abstratos,

    especulativos que se ope ao prtico, o segundo, ao contrrio, tem uma relao com a ao, com o

    concreto, com a vida prtica. seguindo o modo de vida teortico que os membros da escola

    aristotlica dedicam-se a procura por informaes em diferentes domnios: histricos (lista de

    vencedores dos jogos Petiscos), sociolgicos (constituio de diferentes cidades), psicolgicos

    (opinies de antigos pensadores), alm de produzirem riqussimas observaes zoolgicas e

    botnicas. A reunio de informaes em forma de compilaes servia para fazer comparaes e

    analogias, instaurando uma classificao dos fenmenos e produzindo uma gigantesca obra em

    diferentes reas do conhecimento humano.

    De certa forma, todas as obras13

    atribudas a Aristteles, so frutos, alm da prpria

    atividade teortica do filsofo, tambm de sua escola. O ensino ministrado no Liceu se distanciava

    muito do ensino praticado em nossos dias. Segundo Hadot (2011, p. 134), um curso ministrado por

    Aristteles no se parecia nem um pouco com os cursos oferecidos hoje por professores. Aristteles

    esperava de seus interlocutores uma discusso, uma reao, um juzo, uma crtica por no acreditar

    que o discurso por si s pudesse agir sobre o ouvinte sem que houvesse sua colaborao. O ensino

    continuava, assim como em Scrates e Plato, um dilogo.

    Por volta do fim do sculo IV a.C., encontra-se em Atenas quatro escolas: a Academia,

    fundada por Plato, o Liceu, fundado por Aristteles, o Jardim, fundado por Epicuro e a Stoa por

    Zeno. De acordo com Pierre Hadot (2011 p.150), h at o fim da poca helenstica, uma

    coincidncia entre a escola como tendncia doutrinal, a escola como lugar no qual se ensina e a

    escola como instituio permanentemente organizada. Neste primeiro momento, iremos destacar as

    principais caractersticas das escolas filosficas que preenchem as duas ltimas categorias de

    escola, apresentadas por Hadot acima. Tais instituies se diferenciavam das escolas dos sofistas,

    entre outros, pela permanncia dos seus membros e a escolha de um sucessor aps a morte de

    seus fundadores. Nelas os diferentes chefes que sucedem ao fundador so escolhidos pelos votos

    dos demais membros ou designados por seu predecessor. Essas escolas so amplamente abertas

    ao pblico. Os alunos escolhem a escola que pretendem frequentar, principalmente em funo do

    13

    Hadot afirma, em sua aula inaugural no Collge de France, que todas as produes filosficas no se dirigiam, como as obras modernas, a todos os homens, a um auditrio universal, mas prioritariamente ao grupo formado pelos membros da escola. Somente as obras de propaganda se dirigiam a um pblico mais amplo. HADOT, Pierre. Elogio da Filosofia Antiga. Traduo: Flvio Fontenelle Loque, Lorraine Oliveira. So Paulo: Edies Loyola, 2012. p. 32.

  • 12

    modo de vida que nela se pratica e no por sua doutrina e posio terica. Isso demonstra, de certa

    forma, que os estudantes no eram crianas, mas, em sua maioria jovens rapazes, contando

    tambm com a adeso de adultos, ou seja, a idade, apesar de relevante, parece-nos pouco

    importante para essas escolas. A maior parte dos filsofos, mas nem todos, ensinam sem receber,

    por isso, as escolas aceitavam de seus membros pequenos recursos pecunirios ou doaes

    externas provenientes de benfeitores. Vejamos resumidamente, as principais caractersticas da

    escola epicurista e da escola estoica.

    Epicuro funda em Atenas, no ano 306 a.C., uma escola que permanecer atuante at o

    sculo II d.C. Segundo Hadot (2011, p. 170), para uma pessoa aderir verdadeiramente ao

    pensamento e ao modo de vida epicurista, ela teria que passar por uma experincia e por uma

    escolha. A experincia estaria ligada carne, em libertar a carne de seu sofrimento, o que

    permitiria ao indivduo atingir o prazer14

    . Porm, isso s correria a partir de uma educao filosfica.

    Explicamos. Como o indivduo movido apenas pela procura de seu prazer e de seu interesse, o

    papel da educao filosfica consistiria em levar o indivduo a atingir o prazer de maneira racional,

    isto , faz-lo procurar o nico prazer verdadeiro, ou seja, o puro prazer de existir.

    Para completar a experincia em se libertar das dores da carne, o indivduo deveria

    realizar uma escolha. A escolha, contudo, seria justificada por um discurso sobre a tica, que

    propor uma definio do verdadeiro prazer e uma ascese do desejo. Segundo Hadot, para Epicuro,

    h prazeres em movimento que afetam a carne e provocam uma excitao violenta e efmera. por

    procurar esses prazeres que os homens encontram a insatisfao e a dor. No entanto, existem

    prazeres estveis que trazem o equilbrio, a tranquilidade da alma e a ausncia de perturbao

    (ataraxia). Para ating-los, Epicuro propem uma ascese dos desejos, que ser fundada na distino

    entre os desejos naturais e necessrios, aqueles que levam a libertar-se de uma dor e a realizar as

    necessidades bsicas vitais, os desejos naturais e no-necessrios, como alimentar-se de forma

    suntuosa e manter um constante desejo sexual e, enfim, os desejos vazios, os que no so naturais

    nem necessrios, como aqueles de riqueza, poder e glria ilimitados. Para atingir a tranquilidade, os

    indivduos deveriam procurar realizar os desejos naturais e necessrios; limitar a realizao dos

    desejos necessrios, mas no naturais; e por fim, suprimir os desejos que no so naturais e nem

    necessrios.

    Fiel as teses de Leucipo, Demcrito e Lucrcio15

    , Epicuro prope, em sua escola, uma

    fsica de desdobramentos ticos16

    . Tendo como ponto de partida a tese atomista de que o medo da

    morte est na base de todas as paixes que tornam os homens infelizes, Epicuro prope, assim

    como os atomistas, o no temor da morte. Para ele, como a alma e o corpo so compostos de

    14

    A carne neste contexto, no significa uma parte anatmica do corpo, mas sim, um sujeito da dor e do prazer. 15

    Filsofos que desenvolveram e divulgaram o atomismo na antiguidade ocidental. De acordo com essa teoria, tudo o que existe composto por elementos indivisveis chamados tomos. 16

    No se deve pensar a fsica epicurista como uma teoria cientfica, mas como um meio para se atingir a ataraxia e a apatia.

  • 13

    tomos, quando se morre, ocorre uma desagregao atmica que impede qualquer perturbao. Por

    isso no se deve tem-la. Podemos resumir a despreocupao epicurista com a morte da seguinte

    forma: quando estamos, ela no est, e quando ela est, ns no estamos. Outra tese atomista,

    utilizada pela fsica epicurista, diz respeito a eliminao do medo que os homens tm dos deuses.

    Para Epicuro, o homem no deve temer os deuses, pois apesar deles existirem, no exercem

    nenhuma influncia sobre a ao e o mundo dos homens.

    Alm dos preceitos mostrados anteriormente, Epicuro, propunha aos alunos de sua

    escola uma srie de exerccios prticos, pois era necessrio exercitar-se constantemente para

    alcanar a cura da alma e consequentemente a tranquilidade. Entre os exerccios praticados,

    podemos citar a meditao, como uma tcnica para se tomar conscincia dos ensinamentos

    fundamentais dados na escola e a terapia da palavra, realizada entre os membros da escola em

    forma de direo e exame de conscincia. Podemos constatar nos exemplos acima que, a tica, a

    fsica e os exerccios prticos, ensinados na escola epicurista, eram uma exortao felicidade,

    tranquilidade e ao prazer.

    Seis anos depois da fundao da escola epicurista fundada em Atenas, por Zeno de

    Citium, no Prtico denominado Stoa Poikil, a escola estoica. Dizem os historiadores antigos que

    Zeno tinha muitos alunos, contudo, eles se diferenciavam entre os simples ouvintes e os

    verdadeiros discpulos. Aps a morte do grande mestre estoico, diferentes tendncias doutrinais se

    manifestaram com Ariston de Quos, Cleanto e Crisipo. Mesmo depois, no Imprio Romano, com

    Sneca, Musnio, Epteto e Marco Aurlio, a doutrina estoica continuou a florescer a partir de

    algumas divergncias em relao doutrina original.

    Os ensinamentos estoicos, como nos diz Hadot, partiam da doutrina de Scrates, na

    qual, no h, para o homem bom, nenhum mal, quer na vida, quer na morte. Pois o homem bom

    considera que no h mal seno o mal moral e que no h bem seno o bem moral. O bem o valor

    supremo pelo qual o indivduo no deve hesitar em enfrentar a morte17

    . Dessa forma, para os

    estoicos a busca pela felicidade consiste em realizar a escolha do bem, sempre conduzido pela

    razo.

    J a experincia estoica consistia em uma tomada de conscincia da situao trgica

    do homem causada pelo destino. Segundo os estoicos, uma vez que no somos livres para quase

    nada, pois no depende absolutamente de ns sermos belos, fortes, saudveis, ricos,

    experimentarmos o prazer ou escaparmos ao sofrimento, no devemos sofrer com aquilo que no

    depende de ns. Porm, h uma nica coisa que depende de ns para sermos felizes: a vontade de

    fazer o bem, a vontade de agir de acordo com a razo. dessa oposio radical entre o que depende

    de ns e pode ser bom ou mau, porque objeto de nossa deciso, e o que no depende de ns, mas

    de causas exteriores, por isso indiferente, que os estoicos encontravam subsdios para uma vida

    17

    Devemos tomar cuidado em interpretar o bem e o mal no sentido cristo, seria mais apropriado, apesar a distancia temporal, utilizar a distino espinosista de bom e mau.

  • 14

    sem perturbaes.

    O discurso estoico, assim como o dos epicuristas, comporta uma fsica18

    . O discurso

    filosfico a respeito da fsica justificar a escolha de vida voltada para o bem e explicitar a maneira

    racional de ser no mundo dos estoicos. Para eles, a racionalidade da ao humana fundi-se na

    racionalidade da natureza, isso ocorre porque o mundo um nico ser vivo, tambm coerente

    consigo mesmo, no qual, como em uma unidade orgnica, tudo tem relao com tudo e tudo tem

    necessidade de tudo. Portanto, viver de acordo com a razo ser viver de acordo com a natureza, de

    acordo com a Lei Universal, que move do interior aquilo que anima o mundo19

    .

    Entretanto, se o homem tem que viver de acordo com a razo universal, como explicar a

    possibilidade de liberdade de escolha entre fazer o bem e o mal? A nica possibilidade, segundo

    Hadot, mostrada pelos estoicos se revoltar contra a ordem universal e de agir contra a Razo

    universal e a natureza, isto , de se separar do universo. Essa recusa, no entanto, no mudar em

    nada a ordem do mundo. Como nos diz Hadot (2011, p. 193), citando Sneca: Os destinos guiam

    quem os aceita, arrastam quem a eles resiste. Frente a essa sentena, pode-se perguntar: se nada

    mudar a ordem do mundo, por que continuar a recusar a ordem e a Razo universal? Vejamos.

    Para os estoicos existem duas razes, a razo humano-discursiva e a Razo universal. A primeira

    emite juzos em formas de discursos que exprimem a realidade, por isso tm o poder de dar um

    sentido sobre os acontecimentos que o destino impe. A segunda substancial, formadora,

    imediatamente imanente s coisas que existem na Natureza. Sendo assim, a razo discursiva

    interessa mais aos homens, pois os sentidos construdos a partir dos acontecimentos afetam o seu

    dia a dia mesmo que a ordem mundial no seja alterada.

    Alm dos ensinamentos tericos, os estoicos dispunham tambm de exerccios

    prticos. Entre eles destacam-se: a vigilncia dos discursos para verificar se um juzo de valor errado

    no se introduziu neles; o pr-exerccio (praemeditatio) dos males, exerccio preparatrio para as

    experincias do avano das dificuldades, dos sofrimentos e da morte.

    Diferentemente das escolas mencionadas anteriormente, existiu em Atenas, no mesmo

    perodo, ainda, o pirronismo (ceticismo) e o cinismo. Ambas no tinham uma organizao escolar

    propriamente dita, no entanto, se caracterizavam como escolas de pensamento. Poder-se-ia

    caracterizar essas escolas como aquilo que gostaramos de chamar de contra-escolas. Essa noo

    parece funcional tanto em um nvel institucional, como se v, mas poderamos dizer que ela se

    exerce tambm em um nvel doutrinal, isto , como escola de pensamento, como veremos abaixo.

    18

    No se deve pensar a fsica estoica como uma teoria cientfica, mas como um meio para se atingir o bem e agir de acordo com a razo. 19

    Se compararmos, como nos diz Hadot, a fsica epicurista com a estoica, perceberemos que elas so opostas. Enquanto a primeira diz que os corpos so um agregado de tomos que no formam com outros corpos uma verdadeira unidade e o universo apenas uma justaposio de elementos que no se fundem, por isso em seu vazio infinito forma-se uma infinidade de mundos, a segunda, ao contrrio, diz que tudo est em tudo, que os corpos e o Mundo so orgnicos, e tudo acontece por necessidade racional. No tempo infinito, h um nico cosmos que se repete uma infinidade de vezes.

  • 15

    Talvez valha a pena aprofundar essa noo. Enquanto as outras escolas desenvolveram uma

    doutrina complexa e uma vasta obra, os cnicos e os pirrnicos, por sua vez, no deixaram nada

    escrito, nem ofereceram um ensino sistematizado. Era a prpria vida de seus membros que tinha

    em si mesma o sentido e implicava uma doutrina e um exerccio de transformao do modo de se

    viver. Vejamos mais de perto algumas caractersticas das duas escolas.

    Pirro, fundador do pensamento ctico, foi contemporneo de Digenes de Snope e de

    Alexandre, inclusive acompanhou o macednico em sua expedio para a ndia, tendo ali se

    encontrado com sbios orientais. Embora no tenha escrito nenhuma obra, muito menos se

    dedicado ao ensino, viveu rodeado de discpulos que imitavam seu modo de vida. O comportamento

    de Pirro corresponde a uma escolha de vida que pode ser resumida em uma palavra: a indiferena.

    Como nos diz Hadot (2011, p. 167):

    Pirro vive em uma perfeita indiferena a todas as coisas. Ele permanece sempre no mesmo estado, isto , no experimenta nenhuma emoo, nenhuma transformao de suas disposies, sob a influncia das coisas exteriores; no d nenhuma importncia ao fato de estar presente nesse ou naquele lugar, de encontrar essa ou aquela pessoa; no faz nenhuma distino entre o que considerado habitualmente perigoso ou, ao contrrio, inofensivo, entre tarefas julgadas superiores ou inferiores, entre o que denomina sofrimento ou prazer, a vida ou a morte. Pois os juzos que os homens atribuem ao valor dessa ou daquela coisa so fundados apenas em convenes.

    Para Pirro, tudo indiferente, salvo a indiferena que se tem pelas coisas, que passa

    ser uma virtude. Como nos outros modos de vida filosficos o pirronismo busca a tranquilidade e a

    paz interior, adquiri-las, no entanto, no tarefa fcil, pois antes de tudo, esse movimento exige um

    exerccio de transformao do prprio modo de vida. Graas a Sexto Emprico, os principais

    ensinamentos pirrnicos (cticos) foram preservados. Dessa forma, podemos compreender que o

    ctico consegue realizar a paz interior, renunciando filosofia, entendida como discurso filosfico.

    Para eles necessrio um discurso filosfico para eliminar o prprio discurso filosfico. Isto , s a

    partir da escolha filosfica que se construir um modo de vida no-filosfico que proporcionar a

    tranquilidade interior.

    Antstenes, discpulo de Scrates, considerado o fundador do movimento cnico,

    contudo, Digenes de Snope a figura mais marcante desse movimento. Da mesma forma que

    Pirro, Antstenes e Digenes no fundaram nenhuma escola, nem escreveram nenhum livro, tudo

    que se sabe sobre os cnicos foram relatos que surgiram posteriormente morte dos dois principais

    expoentes desse movimento.

    O modo de vida cnico ope-se no s ao dos no-filsofos, mas aos dos outros

    filsofos. O que eles rejeitam aquilo que os homens consideram as regras bsicas indispensveis

    para a vida em sociedade, tais como, a propriedade, o governo e a poltica. Eles no seguem as

  • 16

    convenincias sociais, praticam o impudor, masturbam-se ou fazem amor em praa pblica, no se

    preocupam com as opinies alheias, desprezam o dinheiro e mendigam. Carregam consigo apenas

    aquilo que necessrio para sobreviver. No temem as autoridades e exprimem-se em todos os

    lugares de forma provocadora (parrhesia) 20

    . Assim como os cticos, os cnicos formaram uma

    escola, na medida em que se pode reconhecer entre os seus membros, uma relao de mestre e

    discpulo.

    Com o passar dos sculos, precisamente durante os primeiros trs de nossa era, o

    platonismo, o aristotelismo, o estoicismo e o epicurismo sero ministrados em instituies escolares

    que no mantinham nenhuma relao de continuidade com seu fundador. Em cada cidade

    importante do mundo antigo ocidental havia instituies nas quais se podia aprend-las. Para Hadot

    (2011, p. 214) assiste-se a um processo que tivera o incio no sculo II a.C. quando a instituio

    oficial da efebia ateniense ps em seu programa de ensino aulas de filosofia escolhidas

    provavelmente por representantes das quatro grandes escolas filosficas. Por essa participao em

    um servio pblico, a cidade remunerava os filsofos que ministravam as aulas.

    Esse movimento se expandiu na era Imperial, ainda mais quando Marco Aurlio funda,

    em 176 a.C., quatro ctedras imperiais, remuneradas pelo Tesouro Imperial, nas quais sero

    ensinadas as quatro doutrinas tradicionais: platonismo, aristotelismo, epicurismo e estoicismo. As

    ctedras no tinham nenhuma relao de continuidade com as antigas escolas atenienses, mas

    eram uma tentativa, por parte do imperador, de fazer com que Atenas voltasse a ser um centro de

    cultura filosfica. Ao lado desses funcionrios municipais e imperiais, existiam os professores

    particulares de filosofia Amnio Sacas em Alexandria, Plotino em Roma, Jmblico na Sria -, que

    abriam escolas, por vezes sem sucessor, nessa ou naquela cidade do Imprio.

    A partir do final do sculo III e incio do IV d.C., o estoicismo, o epicurismo vo, pouco a

    pouco quase desaparecer, para dar lugar ao que se denomina neoplatonismo21

    . Nessa poca, a

    escola platnica de Atenas chega a ressuscitar artificialmente a organizao da antiga Academia, no

    entanto, no passou de uma recriao sem qualquer continuao com a antiga tradio. Sua

    biblioteca, por exemplo, no continha os textos das aulas e das discusses dos diferentes dirigentes

    que sucederam Plato. No mximo alguns textos dogmticos de alguns comentadores podiam ser

    lidos. A liberdade de discusso, que sempre existira, se tornou restrita. No era mais ensinado

    mtodos de pensamento e de argumentao, pois o ensino de uma ortodoxia tornava-se a regra.

    Segundo Hadot, as razes dessa transformao so mltiplas. Primeiro, porque alguns acadmicos

    dessa poca procuraram consagrar a maior parte de seus ensinamentos a discutir os textos

    dogmticos. Alm disso, com o avano dos sculos, os textos tornaram-se mais difceis de ser

    20

    Sobre a noo de parresa ver, sobretudo, as quatro primeiras aulas de Foucault em A Coragem da Verdade. FOUCAULT, Michel. A Coragem da Verdade: Curso no Collge de France (1983-1984). So Paulo. WMF Martins Fontes. 2011, p. 3-135. 21

    O neoplatonismo em certo sentido, uma fuso do aristotelismo e do platonismo.

  • 17

    compreendidos pelos aprendizes, e, sobretudo, representava-se a partir de ento a verdade

    recebida das autoridades.

    Nessa poca, ser muito frequente a tendncia em satisfazer-se com o conhecimento

    dos dogmas das escolas, sem se preocupar em adquirir uma verdadeira formao que permite uma

    transformao do seu modo de vida. Nesse momento o prprio ensino de filosofia, se torna no seu

    essencial, um comentrio de texto. J no se discutem os prprios problemas, j no se fala

    diretamente das coisas, mas do que Plato ou Aristteles disseram dos problemas das coisas.

    tambm a era dos manuais e dos resumos, destinados seja a servir de base a uma exposio

    escolar oral, seja a iniciar os estudantes e talvez o grande pblico nas doutrinas de um filsofo. Entre

    eles destacam-se: Plato e sua doutrina, obra de Apuleio, Lio sobre as doutrinas de Plato, escrita

    por Alcno, um resumo de dogmas de diversas escolas, de rio Ddimo. Pode-se dizer, como nos

    sugere Hadot (2011, p. 220), que em certo sentido, o discurso filosfico dessa poca, sobretudo o

    neoplatonismo, considera a verdade como algo revelado. E so nessas escolas que reproduzem o

    verdadeiro discurso filosfico que nasce uma tradio escolstica da qual a escolstica da Idade

    Mdia ser a herdeira e, de certa forma, as instituies escolares modernas do sculo XVIII.

    ALGUMAS CONSIDERAES

    Das observaes aqui empreendidas acerca da escola na modernidade em

    comparao com a escola na antiguidade clssica e tardia, depreendemos trs diferenas que

    julgamos de importncia para se repensar a escola na atualidade. Essa breve comparao, no

    entanto, no esgota por completo outras aproximaes no contempladas nem, tampouco, de um

    aprofundamento ulterior das que aqui realizamos.

    A primeira, diz respeito a no distino de idade que existia nas escolas antigas em

    comparao com as escolas modernas. Nas primeiras no est presente aquilo que denominamos

    dispositivo infncia/criana, pois esta , como vimos, uma noo moderna, de modo que a idade era

    pouco relevante. Evidentemente h, tanto aqui como ali, uma preocupao formativa, mas,

    radicalmente distintas, o que nos leva a segunda diferena. A segunda que a escola na antiguidade

    no produz um indivduo para, pode-se dizer, o Estado, como ocorre na modernidade. Ou seja, no

    havia nelas uma preocupao normalizadora, de produo de subjetividades para determinadas

    funes e capacidades sociais e/ou econmicas, no havia a inteno de produzir e alcanar quela

    linha normatizadora da qual parece-nos ser a principal preocupao da escola moderna. Pelo

    contrrio, as escolas forneciam meios para as pessoas se autogovernarem. Por mais que as escolas

    antigas, sobretudo a Academia platnica, visassem uma vida para a plis, o que lhes interessava era

    muito mais um modo de vida em conformidade com a virtude, mesmo quando esse se chocava com

    os valores da plis. O caso socrtico e as escolas ctica e cnica so emblemticas nesse sentido.

    Por fim, a escola neoplatnica na antiguidade tardia forneceu subsdios para a instaurao de uma

  • 18

    tradio escolar que perdura, do nosso ponto de vista, at os dias atuais atravs de uma

    escolarizao escolstica. No sem motivo, que os discursos proferidos por alguns tericos e

    professores a respeito do mau e do bom funcionamento da escola convergem para uma positividade

    quase que religiosa. Enquanto alguns acreditam na possibilidade do retorno a um ideal de escola

    perdido no passado, outros creditam suas esperanas, poderamos dizer f, na escola que temos

    hoje.

    BIBLIOGRAFIA

    AGAMBEN, Giorgio. O que o contemporneo? E outros ensaios. Chapec, SC: Argos, 2009.

    ARIS, P. Histria Social da Criana e da Famlia. 2 Ed. Rio de Janeiro. Zahar Editores. 1981.

    FOUCAULT, Michel. Microfsica do Poder. 3 ed. Rio de Janeiro. Edies Graal. 1982.

    __________, ______. Vigiar e Punir. 37 Ed. Petrpolis. Vozes. 2009.

    __________, ______. A verdade e as formas jurdicas. 3 ed. Rio de Janeiro. NAU Editora. 2009.

    __________, ______. A Hermenutica do Sujeito: Curso no Collge de France (1981-1982). 3

    ed. So Paulo. WMF Martins Fontes. 2010.

    __________, ______. A Coragem da Verdade: Curso no Collge de France (1983-1984). So

    Paulo. WMF Martins Fontes. 2011.

    HADOT, Pierre. O que a Filosofia Antiga. 5 ed. So Paulo. Edies Loyola. 2011.

    _______,_____. Elogio da Filosofia Antiga. Traduo: Flvio Fontenelle Loque, Lorraine Oliveira.

    So Paulo: Edies Loyola, 2012.

    KOHAN, W. O. Infncia. Entre Educao e Filosofia. Belo Horizonte. Autntica. 2005.

    _______, ____. Infncia, estrangeiridade e ignorncia. Belo Horizonte. Autntica. 2007.

    Recebido em setembro de 2014.

    Aprovado em outubro de 2014.