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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X FEMINISMOS JOVENS AUTONOMISTAS EM CONEXÃO TRANSLOCAL Autor/a 1 : Laura Franca Martello Coautor/a 2 : Amália Coelho Resumo : O presente texto parte de experiências de acumulação dos feminismos autônomos em Belo Horizonte situando as atividades desenvolvidas pe lo grupo “Feminismo Ocupa a Cidade” em um corpo teórico-prático feminista. Apontando para as dissidências, disputas e alcances dessas iniciativas com destaque ao “Festival DiVeRsAs, feminismo, arte e resistência” que em sua última edição (2016) reuniu mais de 120 artistas autônomas, em um festival completamente autogestionado por mulheres. Apresentaremos também algumas bases teóricas do feminismo antiracista e lésbico na América Latina para pensar perspectivas decoloniais e interseccionais em uma contextualização do feminismo autônomo Latinoamericano e suas principais críticas e formas de resistência antipatriarcal e anticapitalista, inclusive os questionamentos realizados pelas feministas jovens. Por fim, apresentaremos as características específicas do campo dos feminismos autônomos e autonomistas em suas práticas de resistências e elaborações crítico-ideológicas às formas de organização e ação política. Palavras-chave : feminismos, juventude, autonomia, movimentos sociais, América Latina Feminismo ocupa a cidade Diversas feministas de diferentes vertentes políticas vinham se reunindo a fim de fortalecer a luta por moradias, creches, direito das mulheres e apoio às ocupações urbanas na região metropolitana de BH. Estes grupos se articulavam por meio de um grupo publico na rede social do Facebook “Feminismo Ocupa Cidade” e se reuniram em um evento importante na cena da militância citadina, o “Feminismo Ocupa a Cidade” 3 , em 12 de março de 2015, no centro cultural autogestionado e recém ocupado Luiz Estrela. Para além de debater assuntos relevantes para o feminismo, o encontro foi o germe de um cenário de cooperação entre diversas frentes e coletivas feministas da cidade. A rede “Feminismo Ocupa a Cidade” funcionava como apoio para ações feministas, atuando co mo meio de disseminação de informações, oficinas, encontros e textos. A primeira grande iniciativa deste grupo, bastante fluido, foi a criação de um festival de arte feminista durante as mobilizações do 8 de março. O intuito era visibilizar a produção cultural de mulheres no cenário cultural citadino, assim como promover uma dissidência em relação aos movimentos feministas que monopolizavam as articulações em torno do instituído “Dia da Mulher”. 1 Doutoranda em Ciência Política, UFMG, Belo Horizonte, Brasil. 2 Bacharel em Antropologia, UFMG, Belo Horizonte, Brasil. 3 Esse encontro foi filmado pelo Pós -Tv, mídia do Fora do Eixo. Para saber ma is ver : http://foradoeixo.org.br/2014/03/13/debate-feminismo-ocupa-a-cidade/

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th

Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

FEMINISMOS JOVENS AUTONOMISTAS EM CONEXÃO TRANSLOCAL

Autor/a1: Laura Franca Martello

Coautor/a2: Amália Coelho

Resumo: O presente texto parte de experiências de acumulação dos feminismos autônomos em

Belo Horizonte situando as atividades desenvolvidas pe lo grupo “Feminismo Ocupa a Cidade” em

um corpo teórico-prático feminista. Apontando para as dissidências, disputas e alcances dessas

iniciativas com destaque ao “Festival DiVeRsAs, feminismo, arte e resistência” que em sua última

edição (2016) reuniu mais de 120 artistas autônomas, em um festival completamente

autogestionado por mulheres. Apresentaremos também algumas bases teóricas do feminismo

antiracista e lésbico na América Latina para pensar perspectivas decoloniais e interseccionais em

uma contextualização do feminismo autônomo Latinoamericano e suas principais críticas e formas

de resistência antipatriarcal e anticapitalista, inclusive os questionamentos realizados pelas

feministas jovens. Por fim, apresentaremos as características específicas do campo dos feminismos

autônomos e autonomistas em suas práticas de resistências e elaborações crítico- ideológicas às

formas de organização e ação política.

Palavras-chave: feminismos, juventude, autonomia, movimentos sociais, América Latina

Feminismo ocupa a cidade

Diversas feministas de diferentes vertentes políticas vinham se reunindo a fim de fortalecer a

luta por moradias, creches, direito das mulheres e apoio às ocupações urbanas na região

metropolitana de BH. Estes grupos se articulavam por meio de um grupo publico na rede social do

Facebook “Feminismo Ocupa Cidade” e se reuniram em um evento importante na cena da

militância citadina, o “Feminismo Ocupa a Cidade”3, em 12 de março de 2015, no centro cultural

autogestionado e recém ocupado Luiz Estrela.

Para além de debater assuntos relevantes para o feminismo, o encontro foi o germe de um

cenário de cooperação entre diversas frentes e coletivas feministas da cidade. A rede “Feminismo

Ocupa a Cidade” funcionava como apoio para ações feministas, atuando co mo meio de

disseminação de informações, oficinas, encontros e textos. A primeira grande iniciativa deste grupo,

bastante fluido, foi a criação de um festival de arte feminista durante as mobilizações do 8 de

março. O intuito era visibilizar a produção cultural de mulheres no cenário cultural citadino, assim

como promover uma dissidência em relação aos movimentos feministas que monopolizavam as

articulações em torno do instituído “Dia da Mulher”.

1 Doutoranda em Ciência Política, UFMG, Belo Horizonte, Brasil.

2 Bacharel em Antropologia, UFMG, Belo Horizonte, Brasil.

3 Esse encontro foi filmado pelo Pós -Tv, mídia do Fora do Eixo. Para saber mais ver :

http://foradoeixo.org.br/2014/03/13/debate-feminis mo-ocupa-a-cidade/

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A proposta, no entanto, alcançou uma proporção “inesperada” e reuniu em sua organização

mais de 50 mulheres participando ativamente da produção e mais de 130 trabalhos inscritos em sua

primeira edição, contemplando oficinas, rodas de conversa, shows, performances, artes gráficas,

artes plásticas, cinema e intervenções urbanas, ocupando mais de 6 espaços na cidade de Belo

Horizonte e em ocupações urbanas em Santa Luzia.

Em sua segunda edição o festival se tornou ainda maior reunindo cerca de 190 propostas de

atividade em mais de 8 espaços. As estratégias organizativas, discursivas e metodológicas

desenvolvidas ao longo dessa experiencia, assim como as disputas que uma produção colaborativa

desta proporção apresentam em torno dos termos da literatura feminista (autonomia, autogestão,

interseccionalidade, feminismo) serão narradas a partir do ponto de vista das participantes, autoras

do presente texto.

O caráter fluido e dinâmico dificulta uma discussão detalhada sobre os processos

organizativos visto que construções horizontais expressam as contradições do feminismo em seu

modo de fazer, não sendo facilmente apreendido por uma narrativa totalizadora. Muitos debates

relevantes acerca dos termos que seriam utilizados para denominar “a mostra a ser construída”

assim como os princípios que regeriam essa organização ilustram as contradições próprias do fazer

feminista, como um fazer situado socialmente e circunscritos por problematizações teóricas. Nos

dedicaremos aqui, portanto, às tarefas mais importantes dos feminismos decoloniais de acordo com

Mohanty (2004): fazer críticas aos feminismos hegemônicos e a criação de estratégias autônomas.

Nos articularemos entre impulsos de oposição e táticas de construção de narrativas próprias.

Como forma de confrontar as tendências hegemônicas propomos recorrer à análise proposta

por Chela Sandoval (2000) da construção de consciências oposicionais, que consiste em buscar as

tecnologias, metodologias e pedagogias de resistência desde subjetividades oprimidas e

marginalizadas. Sandoval nos instiga à noção de consciência diferencial que caracteriza

subjetividades situadas e subalternas agindo por posições táticas e autoconscientes. Encontramos

nessa ideia uma proposta de interseccionalidade4 corporificada enquanto prática política

autoconsciente de mover-se entre e através de vários tipos de ideologias oposicionais e estratégias

políticas.

As formas de resistência oposicionais feministas latinoamericanas apontam para o

desenvolvimento de tecnologias de autocuidado e saúde mental entre subjetividades desenvolvidas

4 A noção de interseccionalidade foi elaborada a partir das crít icas do femin ismo negro a uma noção unificada de

opressão sexista que se baseava nas experiências das mulheres brancas heterossexuais de classe média. O conceito foi

difundido por Kimberlée Crenshaw (2002) segundo a seguinte definição: “Ela trata especif icamente da forma pela qual

o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que

estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além d isso, a interseccionalidad e trata da

forma como ações e polít icas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos

dinâmicos ou ativos do desempoderamento.” (CRENSHAW, 2002, P. 7).

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em condições de múltiplas opressões. São práticas psicológicas e políticas que envolvem sublinhar

diferentes aspectos do self para atuar diante das organizações políticas e permitem realizar coalizões

entre diferenças. (SANDOVAL, 2000) Se há uma fluidez por entre os posicionamentos oposicionais

diferenciais feministas, esta demanda leituras sobre o poder. Por isso nos apoiamos nas construções

coletivas de discursos e estruturas teórico- interpretativas compartilhadas que permitem uma

reconceitualização permanente da atividade oposicional como um todo.

Construindo autonomias feministas

A primeira pauta especifica sobre princípios de organização do evento era sobre a

participação de homens cisgenero5 no festival. As feministas lésbicas sustentavam a alegação de que

um festival feminista, por princípio, seria um auto-organização de mulheres defendendo a não-

participação dos homens. Muitas feministas negras, especialmente as que possuíam trajetórias de

ativismo na cultura Hip-Hop, sustentavam a participação condicionada dos homens, visto que

muitos já eram parceiros nos eventos da cultura de rua citadina e que os mesmos funcionavam como

uma mão de obra especializada, tendo em vista que nessa primeira reunião não conseguiram

levantar mulheres suficientemente capacitadas para operação de som e iluminação – atribuições

tipicamente masculinas. O tema causou muita polemica nesse momento e, devido ao fato de que o

equipamento de som pertencia a um coletivo misto (esmagadoramente masculino), houve

participação de alguns homens cisgenero na parte técnica. Entretanto, na reunião de avaliação do I

Diversas foram recebidas denúncias sobre abusos cometidos pelos “parceiros” homens durante a

realização do festival, sendo o II Diversas realizado exclusivamente por mulheres, em todas as

etapas de produção.

Um “desdobramento” da necessidade de especialização das mulheres no ramo da indústria

cultural, detectado durante o festival desencadeou, mais tarde, a produção da oficina Zona Lam

(2017), uma residência artística voltada para artistas feministas que incluíam oficinas de

capacitação de produção sonora e de equipamentos de estúdio exclusivo para mulheres. Outras

5 Cissexismo foi um conceito cunhado pelo movimento trans como uma forma de descentralizar o grupo dominante,

expondo-o como apenas uma alternativa possível e não a ‘norma’ contra a qual pessoas trans são definidas. O termo cisgênero foi

utilizado pela primeira vez pelo ativista transexual Carl Buijs, e a teorização sobre cissexismo foi desenvolvida e popularizadas pelas

transfeministas Emi Koyama (2006) e Julia Serano (2007). Uma pessoa cissexual ou cisgênerx é alguém que se identifica com o

sexo/gênero que lhe foi biopoliticamente atribuído ao nascimento, desfrutando de diversos privilégios nos contextos sociais. Uma

pessoa transsexual ou transgênerx é aquelx que vive e se identifica com um sexo/gênero diferente do que lhe foi biopoliticamente atribuído ao nascimento, sendo marginalizadas e sofrendo violências e silenciamento no regime cissexista biologizante e binário. É

um conceito desessencializante pois retira do marco biológico a referência para a identificação sexo-genérica e a inscreve no plano

politico: “Quando uso os termos cis/trans na é para falar sobre diferenças reais entre corpos/identidades/gêneros/pessoas cis e trans,

mas sobre diferenças percebidas. Em outras palavras, apesar de não achar que meu gênero seja inerentemente diferente do de uma

mulher cis, estou ciente de que a maioria das pessoas tendem a ver meu gênero de forma diferente (isso é, como menos natural/válido/autêntico) da que vêem o gênero de uma mulher cis.” (tradução por Alice Gabriel retirada do blog da Julia Serano

http://juliaserano.livejournal.com, disponível em:

http://confabulando.org/kk2011/index.php/Main/WhippingGirlFAQPerguntasFrequentesSobreCissexualCisgeneroEPrivilegioCis)

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iniciativas nessa direção podem ser citadas, como o seminário “ SEMINA – Seminário Equidade de

Gênero nas Profissões da Cultura” realizado em dezembro de 2016 discutindo questões relativas a

profissionalização e formação técnica de mulheres para o mercado da indústria cultural.

Heloisa Buarque de Hollanda ressalta o papel da produção cultural de mulheres para a

formação do imaginário da sociedade, assim como, para o estabelecimento paritário de

representações sociais da mulher. Em uma palestra ministrada pela pesquisadora a produção cultural

é apontada como campo fértil de problematizações das questões feministas:

“[..] esse meu primeiro ponto é chamar atenção para a necessidade de dar visibilidade e,

especialmente, rendimento político à produção cultural das mulheres hoje. O segundo e

último ponto, que vem também de uma observação empírica na cultura produzida hoje nas

periferias urbanas, é a inserção bastante afirmativa das mulheres de baixa renda na área

cultural vista como uma luta não só pelo direito de expressão mas sobretudo como uma

perspectiva de abertura de terreno para ações que visem a melhoria das condições de vida

de suas comunidades.”(HOLLANDA, 2016)

Visando incorporar a luta popular e cultural de movimentos como esse, Gisela Espinosa

Damián (2009) propõe uma reconceituação dos enquadramentos sobre os movimentos feministas,

discordando da divisão frequente entre movimento amplo de mulheres e feminismo que exclui

organizações populares, indígenas e aquelas ligadas a grupos mistos da esquerda da delimitação do

campo feminista. Afirmando que o termo feminismo não deve abarcar demandas conservadoras e

retrógradas no que tange às relações de gênero, a autora diverge de uma caracterização do

feminismo que acaba por incluir apenas setores de classe média, branca, universitária ou

profissional.

A autora ressalta o potencial revolucionário gerado por essa troca entre mulheres dos setores

populares, operários e campesinos, com histórico de atuação em movimentos de resistência com

corte de classe, e ativistas com longa trajetória de atuação na luta por autodeterminação sobre o

corpo, a sexualidade e a reprodução. Juntas, elas debateram vivências cotidianas de opressão e

construíram análises sobre as matrizes de dominação que as perpassam enquanto mulheres

trabalhadoras, indígenas, rurais, etc. Mesmo convergindo fortemente em torno de demandas

comuns, a divergência nas estratégias de lutas políticas caracterizam uma das maiores barreiras para

a atuação comum, o que não impediu algumas articulações nas lutas.

Francesca Gargallo (2006), em sua historiografia das ideias e práticas políticas feministas

'nuestramericanas', argumenta a favor da análise das experiencias de lutas de mulheres por sua

autodeterminação como parte da história do feminismo. Mesmo que tal palavra não existisse ou não

seja mobilizada pelas atoras, não consistiria num anacronismo ou imputação de significados

inadequados. Sendo feita com o devido cuidado, essa análise permitiria o reconhecimento de

resistências de mulheres que são invisibilizadas e apagadas da história, para a construção do

feminismo latinoamericano enraizado politicamente. Muitas das estratégias de resistência das

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mulheres ao longo da história podem ser associados à perspectiva autônoma, mas foi após a

“democratização” de alguns países da América Latina e da entrada mais ampla de feministas nas

políticas estatais que esse deixou de ser um viés predominante e passou a ser uma corrente

específica.

A ruptura politico- ideológica com a institucionalização crescente dos movimentos feministas

e sua subordinação às pautas de financiadoras internacionais foi mais abertamente enunciada no

Encontro Latinoamericano em 1993, com a formação da coletiva “Las Cómplices” composta por

feministas chilenas e mexicanas, como Margarita Pisano e Ximena Bedregal. Essa corrente merece

destaque por ter sido um dos posicionamentos mais contundentes de contraposição ao processo de

institucionalização e subordinação aos partido políticos, organizações mixtas, Estado e organismos

internacionais, especialmente focando nos impactos dos financiamentos na autonomia do

movimento. (VILLAVERDE, 2014)

Entretanto, essa primeira geração tinha fortes limitações no conceito de autonomia, já que

adotou uma postura reacionária diante das reivindicações de feministas autônomas negras, lésbicas

e indígenas como Julieta Paredes, Ochy Curiel e Yuderquis Espinosa Miñoso quanto à importância

de pensar o feminismo de forma interseccional. Alegando posturas fragmentárias das companheiras,

as primeiras recusam reflexividade frente às outras dimensões das opressões sofridas por feministas.

Essa corrente foi deslocada de seu lugar intencionado de monopólio do discurso feminista

autônomo latinoamericano, dando vez a uma multiplicidade de vozes e fazeres feministas

autonomistas.

A publicação de manifestos feministas autônomos e a realização de encontros específicos do

campo ao longo dos anos permitiu a emergência de diversos discursos e grupos de feministas

autônomas. Yuderquis Epinosa Miñoso (2009) e Curiel (2007) criticam o caráter heterocentrado dos

feminismos latino-americano e ressaltam a relevância histórica da crítica do feminismo autônomo

como quebra com a criação de lógicas representativas não explicitadas nos movimentos e a

profissionalização da militância, ambos com forte caráter elitista.

En nuestra genealogía recogemos todas las formas de resistencia activa de nuestras ancestras

indígenas y afrodecendientes; el legado del feminis mo radical de los años setenta; las experiencias

tempranas de los grupos de autoconciencia; las prácticas del affidamento y de concesión de autoría

creativa entre mujeres de las feministas italianas de la diferencia; el feminis mo situado, descentrado y

antirracista del movimiento de mujeres latinas, chicanas y de color en los EEUU que ha tenido su

continuidad en Latinoamérica y el Caribe; los aportes de las lesbianas feministas en lucha contra el

régimen de la heterosexualidad obligatoria opresivo para todas las mujeres; el reconocimiento de las

mujeres como categoría política y no natural tal cual nos lo enseñaron las feministas materialistas; y,

mucho más cercanas, nos sentimos herederas de esa parte de la generación de femin istas de los

setenta que a finales de los ochenta no estuvo dispuesta a abandonar sus aspiraciones de

transformación radical de la realidad y anunció los peligros del nuevo pacto entre una parte

importante del femin ismo con la cooperación internacional, el sistema de Naciones Unidas, el Estado

y sus instituciones. (Declaración Femin ista Autônoma, 2005)

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A corrente do feminismo autônomo se funda, portanto, na crítica radical ao que considera

incoerências e armadilhas presentes no movimento, enuncia a autonomia como uma postura política

no mundo manifesta na prática micropolítica cotidiana, e propõe a construção de espaços libertários

e horizontais e que façam frente de forma integrada a todos os tipos de dominação e subordinação.

As críticas e transformações a partir do feminismo negro

A presença extensa de mulheres negras na produção do festival desencadeou uma serie de

problematizações especificas, tanto em relação as questões da divisão racial do trabalho, presentes

em estratégias organizativas mistas, quanto a atenção as questões “de classe” a alcance periférico do

festival. Na reunião de avaliação do I Diversas, as feministas negras demonstraram sua insatisfação

em relação as atribuições no festival sendo a maioria das mulheres negras engajadas em atividades

de limpeza, segurança e montagem durante a mostra, ao passo que as feministas brancas ocuparam

os GTs com atividades como comunicação, ornamentação, produção e imprensa. Particularmente

importante para uma perspectiva interseccional esse debate foi levado a cabo pelas feministas

negras, que adotaram uma postura de recusa a fim de pressionar a participação branca em atividades

de limpeza, segurança e montagem.

As estratégias organizativas de grupos feministas abarcam as contradições próprias da vida

social, o aspecto da divisão sexual e racial do trabalho, assim como, a busca de sua superação pela

organização feminista foi um dos principais pontos de debate da reunião de avaliação. Podemos

circundar essas preocupações na Relatoria da I Reunião de Organização da Mostra DiversaS 2016.6

6 Relatoria da I Reunião de Organização da Mostra DiversaS 2016:

- A sede das negras ativas foi colocada à disposição da organização da Mostra e foi pontuado que a associação passa por

dificuldades para manter o local e estão aceitando doações. Há uma caixinha para quem puder contribuir. - AVALIAÇÃO Foi ressaltada a importância do acontecimento da Mostra pra vida das mulheres que participaram e para a cidade, tendo a

mostra como um pontapé para as ações e reações feministas que aconteceram durante todo o ano. Além disso, as companheiras lembraram que as denúncias dos atos machistas durante a mostra não foram realizadas e os escrachos não aconteceram conforme

havíamos combinado na reunião de avaliação. Algumas apontaram que tal fato pode ter ocorrido devido nossa fragilidade

organizativa, pois nos organizamos em torno de um evento e não de um movimento. Houve reuniões para dar encaminhamento às

ações propostas, mas a mobilização posterior à mostra não foi suficiente para dar organicidade e criarmos um coletivo. Ficou a proposta de colocar essas denúncias realizadas pelas mulheres que vivenciaram violência e atitudes machistas na página do DiversaS para resguardar suas identidades. Foi levantada a possibilidade de vetar a presença desses caras na Mostra. Alguns princípios para o processo de trabalho da comissão organizadora: - Ter presente a mística feminista em nossos encontros; - Aproximar-se umas das outras e tentar trabalhar enquanto coletivo/fórum; - Fazer o enfrentamento aos privilégios históricos das mulheres brancas, inclusive entre a comissão organizadora. Considerar que assim como há divisão sexual do trabalho, também há divisão racial no sistema patriarcal. - Reconhecer o protagonismo das mulheres negras na organização e durante toda a Mostra; * Diretrizes propostas para o DiversaS 2016: - Descentralizar-se na cidade e no calendário ( realizar as atividades artísticas em bairros e não somente as oficinas.

Atravessar o mês de março e não só três dias). - Mobilizar as favelas como territórios do DiversaS; - Abrir inscrição também para os locais que queiram receber a programação do DiversaS e tenham mulheres na organização

local; - Construir estratégias de denuncia imediata aos machistas durante o DiversaS; - Eventos com caráter de abertura no fim de semana de 05, 06 e 07/03. Não ficou claro como lidar com o 08/03 que será numa segunda-feira;

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Uma das discussões mais acaloradas na produção do I Diversas foi em torno da identidade

visual. Qual seria a identidade visual de um festival que se propunha a ser Diverso? Várias foram as

problematizações em torno da identidade visual, perpassando questões de cisgeneridade, raça,

classe social, orientação sexual, etarismo etc.. após longas discussões foi cogitada um espécie de

mosaico (identidade adotada no II Diversas) das participantes. As feministas negras, no entanto,

reivindicavam a adoção de Cláudia Silva – mulher negra e periférica assassinada na mesma semana

pela polícia- como um rosto que reflete um problema “feminista”. Abaixo a carta encaminhada pelo

coletivo Bloco das Pretas em uma das reuniões de organização do festival:

“Cláudia Silva Ferreira, 38 anos, mulher negra, auxiliar de limpeza, e moradora do

Morro da Congonha, na zona norte do Rio de Janeiro, fo i alvejada durante uma operação da

Policia Militar na manhã de 16 de março de 2014. Foi colocado no porta-malas da viatura

policial sobre protestos dos vizinhos, onde supostamente seria levada ao hospital para receber

atendimento médico, após ser baleada no pescoço e nas costas. O Caso de Cláudia teria

passado despercebido, como o de milhares de jovens negros, mortos nas periferias todos os

anos, se não fosse o fato de os polícias esquecerem o porta-malas da viatura aberto e o corpo

de Cláudia ser arrastado a caminho do hospital por mais de 250 metros. O assassinato de Cláudia revela a face mais cruel do racis mo brasileiro, qu e se dá

através da violência do Estado, vê se as diferenças no caso da repercussão da mídia, em

relação ao menino João Hélio, este o tempo lembrado por seu nome, já Cláudia, foi

duplamente desumanizada, pela policia e imprensa que insistia em usar o termo “Mulher

arrastada”, descaracterizando completamente a vítima. A Mostra Diversas de Arte e Resistência têm por intuito lembrar todas essas

mulheres guerreiras e anônimas, que não se encontram em Best Sellers, capa de revistas ou

telenovelas. Mulheres batalhadoras, que lutam para criar seus filhos e enfrentam toda uma

série de v iolações de direitos, com a falta ou a negligência no acesso ao serviço público, a

assistência a saúde, o direito a educação, cultura e lazer! Mulheres que são obrigadas a velar

seus filhos mortos pela ação ostensiva da PM, como vemos em casos recentes como a

Chacina da Cabula na BA, ou na resistência e enfrentamentos dos moradores do Complexo

da Maré, contra o exército e a polícia pacificadora. Repudiamos à ação do Estado Repressor e

não nos silenciaremos diante da opressão sofrida por todos os moradores das FAVELAS

brasileiras. Mulheres que são diariamente vítimas da violência doméstica, sexual, do aborto

clandestino e do Estado Patriarcal, a qual Cláudia é nos relembrada não somente como

símbolo máximo da Violência do Estado, mais símbolo de força e resistência da Mulher

Negra Brasileira #SomosTodasClaúdia. E por isso, a luta das mulheres é uma luta contra

todas as formas de opressão (racismo, machismo, lesbofobia, transfobia, etc..) que nos atinge

de forma diferenciada e que nos impede de ter equidade de direitos. Não há SORORIDADE

onde existem privilégios, não há igualdade onde as diferenças são negadas. É preciso

alteridade para nos colocarmos no lugar do outro: “Eu não serei liv re, enquanto houver

mulheres que não são, mesmo que suas algemas sejam muito diferentes das minhas” (Audre

Lorde). Não vivemos em liberdade, enquanto não houver de fato uma democracia nesse

país, onde as oportunidades e as leis são dadas de forma diferenciada de acordo com a cor da

pele e classe social, onde a vio lência at inge prioritariamente determinados grupos étnicos

(negras, indígenas, ciganas), onde a carne negra continua a ser A carne mais barata do

Mercado. Para finalizar fica a reflexão na frase de Assata Shakur: “É nosso dever lutar por

nossa liberdade. É nosso dever vencer. Nós precisamos amar e proteger uns aos outros. Nós

não temos nada a perder a não ser nossas correntes”. (Bloco das Pretas)

- Melhorar a cobertura da comunicação. Canais parceiros: Canal Futura e Rede Minas; - Fazer convocatória nacional para participantes e oferecer hospedagem solidária.”

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A escolha da identidade visual pode ser compreendida tanto dentro de um espectro próprio

da organização regida majoritariamente por certos grupos de mulheres, como também em termos

das confluências interseccionais dos feminismos latino-americanos, anti-hegemonicos. Conforme

ressalta Curiel:

“Sin utilizar el concepto de colonialidad, varias feministas racializadas, afrodescendientes,

indígenas y del tercer mundo, han profundizado desde los años setenta sobre el entramado de

poder, considerando la imbricación de diversos sistemas de dominación: racismo, sexismo,

heteronormatividad, clasis mo; desde donde definieron sus proyectos políticos, todo hecho

desde una posición crítica al imperialis mo, hoy llamado en el ámbito literario y posmoderno

como postcolonial.” (CURIEL, 2007) As consequências dessa perspectiva para a epistemologia feminista nos levam a incorporar a

proposição de Crenshaw (2002) de pensar a centralidade do feminismo negro como ponto de vista

para a análise crítica feminista interseccional. Nos sentimos convidadas a refletir profundamente a

partir da elaboração de Patrícia Hill Collins (2002) sobre as contribuições especificas do

pensamento feminista negro para pensar as matrizes de dominação que agem em nós. É nesse

sentido que a pesquisa feminista deve ter como um de seus princípios a abertura à afe tação pela

dissidência e dissonância constitutivas das vivências de oprimidas, subaltenas, marginalizadas, cuja

simples existência no mundo é vista como ameaça e tratada com violência de extermínio.

A filósofa Sueli Carneiro (2005) nos chama atenção para a necessidade de enegrecer o

feminismo, colocando a luta das mulheres negras no âmago do pensamento feminista, pois do

contrário se torna apenas uma história centrada nas mobilizações de mulheres brancas de classe

média, que nem mesmo endereçam as questões vividas pelas mulheres negras. Cláudia Silva vem

reforçar o caráter interseccional do festival reforçado no release do I Diversas:

DiversaS: Mostra Feminista de Arte e Resistência visa trazer à tona a produção

artística de mulheres da cidade, as poéticas e reflexões que envolvem ser mulher e fazer arte.

Pretende ser um espaço de difusão, reflexão e promoção da arte inserida na luta e na

resistência das mulheres negras, brancas, indígenas, lésbicas, cis e trans. A proposta soma-se

às atividades já realizadas por diversos movimentos feministas em virtude do Dia

Internacional da Mulher e às reiv indicações de que este dia não seja cooptado por uma lógica

mercadológica e ‘celebrat ivista’. A Mostra também pretende enfatizar pautas feministas

historicamente invisibilizadas. Como símbolo da mostra trazemos Cláudia Silva, Também conhecida como Cacau.

Cláudia mulher negra, moradora de periferia, mãe aos 38 anos foi executada em 2014 numa

ação policial no Morro Congonha, ela foi co locada no porta-malas da viatura policial

supostamente para ser levada ao hospital. Seu corpo ro lou do porta-malas e foi arrastado pelo

asfalto por pelo menos 250 metros sem que os policiais no carro dessem atenção aos apelos

de outros motoristas e pedestres. Os policiais “plantaram” armas junto aos pertences de

Cláudia a fim de incriminá-la, os mesmos respondem em liberdade sobre o assassinato. A

sociedade patriarcal vem há séculos explorando e descartando a vida e os corpos das

mulheres negras, não é possível mais viver em um mundo onde as nossas vidas valem o

mes mo que nada. Por Cláudia e por todas, nós mulheres re-existimos ! DiversaS vem sendo construída de fo rma colaborativa, horizontal e auto -gestionada,

por meio de reuniões abertas, presenciais e virtuais. Nos dias 4 e 5 de março , serão realizados

encontros com as mulheres que propuserem at ividades para fechamento da grade de

programação. Elas serão as co-responsáveis pela produção dos trabalhos propostos.

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A mostra irá ocupar vários pontos da cidade como o Rima na Rua, que acontece no

shopping uai, a Gruta!, casa de shows no bairro Horto, baixo centro com mostra de

audiovisual, Viaduto Santa Tereza, no Centro, além de levar atividades format ivas para

ocupações urbanas da Região Metropolitana de Belo Horizonte. A programação complet a

será divulgada nas redes sociais. (Release para Imprensa. Acesso restrito a participantes) Ochy Curiel (2007), em sua crítica à ausência de perspectivas feministas na maior parte dos

trabalhos latinoamericanos sobre decolonialidade, propõe algumas experiencias políticas como

fundamento para os feminismos decoloniais: os feminismo negros e afrolatinos, feminismos

indígenas e feminismos chicanos. Em consonância com Curiel, Jurema Werneck (2005) propõe

partir da história de resistência das mulheres negras como referência para a ação política antiracista.

Ação direta7 e resistências feministas

Outra disputa interessante se deu a partir do lugar de ocupação do festival, inicialmente, a

mostra aconteceria somente em espaços do centro da cidade, onde circula a c lasse média belo

Horizontina. A incorporação da Frente de Mulheres das Brigadas Populares – organização partidária

de esquerda- juntamente a feministas periféricas, criou a necessidade de expandir o público alvo do

festival, estendendo-o às ocupações urbanas e incluindo atividades destas mulheres na programação

– como no caso do desfile de moda com mulheres de ocupações urbanas no Centro Cultural da

UFMG. Essa expansão demonstra como a participação efetiva de grupos diversos na organização,

em uma estratégia horizontal, permite uma maior articulação com outros elementos tensionados

pelo feminismo em sua reflexão teórico-pratica.

O debate sobre as formas de organização e autonomia do movimento está no centro das

discussões, conflitos e teorização feministas pelo menos desde os anos 70. Cathy Levine (1975)

argumenta que há duas tendências principais nos modelos de construção de movimento: uma que se

concentra na organização de massas com controle centralizado, com estrutura de tipo partido; e

outra que sustenta que o apoio de massa deve surgir apenas em momentos extremos de necessidade

pontual, e que se concentra em pequenos grupos e associação voluntária. Essas duas tendências

também estão presentes no movimento operário, na esquerda como um todo e dentro dos

movimentos anarquistas8.

A primeira tendência define a autonomia como a independência política, social e ideológica

do sujeito-classe, apoiando-se numa lógica histórica linear que pensa na revolução através de

7 Ação direta é uma "estratégia dupla" de simultaneamente desafiar a dominação e criar alternativas: no seu

melhor, ela pratica a anti-opressão em atos concretos de resistência. A ação direta é prat icada em diferentes formas, do

cuidado e educação infantil coletivo e casas cooperativas até bloqueios e black blocks.(LUCHIES, 2014) 8 No campo socialista isso se traduz no conflito entre espontaneísmo e vanguardismo. No campo do anarquismo

entre correntes plataformistas (na América Latina conhecidas como especifistas) e insurrecion árixs. É importante

ressaltar que as femin istas sempre fugiram a esses esquemas, sendo que Rosa Luxemburgo propõe a noção de partido -

processo. Fonte: Zine Escritos Insurreccionalistas

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estágios ou etapas e se concentra na organização crescente e na formação de movimentos de massa.

O texto “A tirania das organizações sem estruturas” de Jo Freeman (1972) é uma forte referência

feminista para essa perspectiva, tendo ganhado projeção na época e sendo muito conhecido e citado

até a atualidade.

Analisando criticamente a experiência dos grupos de consciência da década de 70, a autora

aponta como a aparente falta de estrutura disfarçava lideranças informais, sem responsividade e

prestação de contas que lha pareciam muito mais perniciosas. Defende que a estratégia dos

pequenos grupos de ação por afinidade não são suficientes para a realização de grandes campanhas

feministas no plano supra-local. A solução proposta por Freeman seria então formalizar as

hierarquias existentes e submetê-las ao controle democrático.

A segunda tendência concebe a autonomia como emancipação entendida como processo,

prefiguração e criação de realidades de autogestão 9. As perspectivas anarcafeministas influenciaram

profundamente o grupo de autoconsciência como a principal forma do movimento feminista nos

anos 70 e sustentam que esse modelo não está superado como experiência e ação política.

(TANENBAUM, 2016)

Recusando que a crescente organização de massas leve à revolução, essa tendência

argumenta que eventos aparentemente pequenos e imprevisíveis podem mobilizar os grupos

afetados e causar mais transformações que anos de organização estruturada. Com uma influência

insurrecional10 sustentam que a potencialização do conflito é a tarefa revolucionária mais frutífera e

propõem a ação como o foco, situando o grupo de afinidade 11 como a conexão necessária para

apoiar as atividades políticas e o menos provável para cristalizar hierarquias.

Conexões de rede entre esses grupos de afinidade acontecem devido à existência d e culturas

de resistência que prescindem a organização centralizada e portanto são menos legíveis em sua

potência pelo Estado e poderes conservadores. Aparentemente não se apresentam como uma

alternativa de confrontação dentro das normas do sistema, propondo linhas de fuga na intenção de

escapar ou subvertê-lo.12 Considerando a ação feminista, é impossível separar a autoconsciência do

9 Autogestão é quando um grupo gerencia, gestiona, gere horizontalmente a si mes mo. Quando as decisões são

tomadas coletivamente sem dispositivos de representação ou de assembleias em modelos engessados com mediadores.

Todas falam, todas mediam-se umas às outras. Fonte: http://blogueirasfeministas.com/2011/11/autogestao-e-feminis mo/ 10

Esta perspectiva vê com ceticis mo e crít ica as alianças com o Estado e as classes superiores e avalia a

continuidade e alternância entre ditaduras e democracias representativas elitistas liberais ao longo da história como

evidência da falta de transformações estruturais e permanência do caráter autoritário do Estado capitalista mesmo em

períodos de governo de esquerda. 11

Habitualmente son grupos que acentúan mucho en la reflexión-acción y tienen una existencia muy flexib le y

variable orgánicamente. Dentro del lesbofeminis mo también se puede presentar en la forma de grupo de afinidad

político-sexual. Fonte: http://ramalc.org/2016/03/28/grupos -de-afinidades-antimilitaristas-una-propuesta-organizativa/ 12

O potencial de difusão dessas ideias num contexto de capitalismo integrado é também seu perigo de ser

assimilado e cooptado. Muitos dos trabalhos desta cultura de resistência tomaram uma concepção exclusivamente

simbólica, o que carece de radicalidade se deixada sozinha pela transformação real da vida e da realidade material.

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trabalho cotidiano de superação da opressão material ao lidar com o aborto, a violência doméstica, a

lesbofobia, a transfobia e o racismo.

A experiência de ação feminista nos mostra que apesar dessas divergências ideológicas se

manifestarem no campo do feminismo, historicamente houve uma proximidade muito maior entre

feministas socialistas e anarcofeministas, do que entre essas e seus supostos correspondentes

ideológicos. Isso ocorreu tanto na realização de atividades políticas conjuntas, quanto na postura

crítica com relação às estruturas hierárquicas e patriarcais das organizações e grupos políticos

masculinos de esquerda. (TANENBAUM, 2016)

As trajetórias do feminismo autônomo latino-americano representam profundos desafios

nesse campo de batalha. Questionaram a relação com os movimentos mistos, os partidos políticos e

a esquerda tradicional e problematizaram o financiamento internacional dos fundos capitalistas que

estavam impondo modelos de "desenvolvimento" que apenas diminuiriam os efeitos do

aprofundamento da exploração material. Também questionaram a institucionalização do movimento

nas estruturas do Estado e a profissionalização que reconstruíram hierarquias entre as ativistas.

(VILLAVERDE, 2014)

Especialmente a partir dos anos 80, as críticas das feministas negras e chicanas criaram o

conceito de interseção ou opressão interligada que nos permitiu articular múltiplos s istemas de

dominância em cada análise local, específica ou conjetural. Desde os anos 90, as feministas anti-

racistas e autonomistas postularam que o trabalho anti-opressão é um processo permanente que

deve acontecer em nossos espaços e grupos políticos e tem ressonância. (LUCHIES, 2012)

Rompendo toda a lógica de organização e estratégia das esquerdas machistas e brancas, o

feminismo autonomista e antiracista coloca como principal necessidade para transformar

concretamente e subjetivamente a realidade o trabalho interseccional antiopressão nos grupos e

relações políticas cotidianas. Este implicaria refletir e incidir sobre nossos grilhões psíquicos em

relação com as estruturas políticas externas, travando uma batalha psicológica nos espaços de

envolvimento político. Ele deve ser realizado em todos os âmbitos e processos: tomada de decisões,

estrutura organizativa, divisão de trabalho, gerenciamento de recursos, táticas, normas subculturais

e segurança. (LUCHIES, 2012)

Partindo de uma perspectiva anarcofeminista autonomista, vemos no pequeno grupo a forma

potencialmente mais profícua de articular elementos psíquicos, sociais e políticos e de combater

opressões e hierarquias. Trabalhamos com a hipótese de que a organização fragmentada e fluida, em

grupos de afinidade e atividade política, possui maior potencial de resistência por sua capacidade de

disseminação não centralizada da informação. Entretanto, em diversas experiências conjuntas com

feministas socialistas percebemos algumas vantagens em termos de coordenação frente a situações e

demandas urgentes, assim como impressiona a amplitude de seu trabalho antiopressão

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internamente. Por outro lado vemos que muitas vezes mesmo nas coletivas autônomas

reproduzimos uma série de lógicas hierárquicas e centralizadoras.

Mesmo pressupondo que a noção de auto-organização feminista é contraditória ao princípio

leninista do centralismo democrático apregoado pela maioria das organizações de massa,

reconhecemos que feministas socialistas têm realizado trabalhos efetivamente autônomos e voltados

especificamente para a ação de resistência cotidiana feminista. Da mesma forma, vemos que o

trabalho conjunto entre feministas socialistas libertárias, autonomistas, anarquistas e independentes

tem sido muito transformador e produzido ações e mobilizações que não seriam possíveis

separadamente. Recusando-se a propor uma estratégia ou concepção única de movimento, desde

uma perspectiva anarcafeminista autonomista e antiracista, vemos na diversidade de táticas uma das

maiores potencias em um campo de resistência.

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Young autonomist feminisms in translocal connection

Abstract: The present text is based on accumulated experiences of autonomous feminisms in Belo

Horizonte, situating the activities developed by the group "Feminism Occupies the City" in a

theoretical-practical feminist body. Aiming at the dissent, disputes and scope of these initiatives, the

"DiVeRsAs Festival, feminism, art and resistance", which in its last edition (2016) brought together

more than 120 autonomous artists in a festival completely self-managed by women. We will also

present some theoretical bases of anti - racist and lesbian feminism in Latin America to think of

decolonial and intersectional perspectives in a contextualization of Latin American autonomous

feminism and its main criticisms and forms of antipatriarchal and anticapitalist resistance, includ ing

the questionings of young feminists. Finally, we will present the specific characteristics of the field

of autonomous and autonomist feminisms in their practices of resistance and critical- ideological

elaborations to the forms of organization and political action.

Keywords: feminisms, youth, autonomy, social movements, Latin America