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    Pensar os intelectuais: desde a ps-colonialidade e a partir das polticas culturais contemporneas

    Fayga Rocha Moreira

    Resumo: O ensaio discute a relao entre o conceito de intelectuais estabelecido a partir da colonialidade do saber / poder e as polticas culturais contemporneas. Busca-se pensar,

    nesse caminho, como a pluralidade de epistemes foi eclipsada ao longo do processo

    histrico da modernidade e quais as estratgias apresentadas pelo Ministrio da Cultura

    para ultrapassar esse cenrio, suas potencialidades e limitaes.

    Palavras-chave: intelectuais; eurocentrismo; polticas culturais.

    Em julho de 2010, o Ministrio da Cultura, por meio da Secretaria de Identidade e

    Diversidade Cultural lana o projeto Encontro de Saberes: a integrao dos ofcios e

    das artes tradicionais no universo acadmico. O propsito desse projeto, pioneiro no

    Brasil,

    incluir no ensino superior como docentes os mestres e mestras representantes da rica diversidade de saberes e prticas tradicionais em todas as reas do conhecimento (arte,

    tecnologia, sade, psicologia, cuidado com o meio ambiente, cosmologia, espiritualidade)

    e assim reconhecer plenamente o valor desses saberes e o protagonismo de seus mestres

    como sujeitos da arte e do pensamento humanos. (MINC, 2010, p.2. Grifo nosso)

    Doutoranda do Programa Multidisciplinar de Ps-Graduao em Cultura e Sociedade. Bolsista Capes. E-mail:

    [email protected].

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    Para tanto, foram convidados mestres de diversas regies brasileiras e que

    representam distintas formas de conhecimento / criao, so eles: Biu Alexandre,

    mestre de teatro popular de Cavalo Marinho de Pernambuco; Z Jerome, mestre do

    Congado do Vale do Paraba; Lucely Pio, mestra raizeira quilombola do estado de

    Gois; o mestre Maniwa Kamayur, representante dos povos indgenas do Alto Xingu; e

    o mestre Benki Ashaninka, representante do povo ashaninka do Acre.

    A iniciativa do MinC vai ao encontro de um longo e acidentado debate que perpassa o

    universo acadmico, mas tambm o campo artstico-cultural: quem detm o exerccio

    do pensar? Ou, ainda, quais saberes so avaliados como pertinentes para interpretar o

    mundo em vista da colonialidade do saber que funda as instituies estatais e

    socioculturais eurocntricas? Esses questionamentos nos serviro de bssola para

    pensar at que ponto o Estado, por meio das polticas culturais, consegue avanar no

    dilogo com as diferenas.

    Intelectuais e colonialidade: poder e saber Renato da Silveira (2005), ao analisar a trajetria do psiquiatra, filsofo e revolucionrio

    martinicano Frantz Fanon, cujas obras so consideradas um marco para o pensamento

    sobre a descolonizao, diz que ele era um assimilado, afro-descendente educado

    dentro dos padres ocidentais, mdico apegado aos valores da racionalidade cientfica,

    seu projeto poltico era a modernizao das sociedades terceiro-mundistas nos quadros

    de um Estado de tipo europeu (SILVEIRA, 2005, p.40). O autor no desconsidera a

    importncia fundamental de Fanon (seu pensamento e ao) para a luta contra a

    explorao dos povos colonizados e em nome da justia social, mas chama a ateno

    para o fato de que ele porta as mesmas categorias modernistas e eurocntricas que

    entende as culturas tradicionais como um estgio a ser ultrapassado (pr-capitalista)

    rumo ao progresso. Fanon pode ser, assim, considerado um intelectual orgnico desse

    conjunto maior que chamaremos, por fora didtica, de povos colonizados?

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    Se levarmos em conta a definio de Antonio Gramsci (1982) do conceito de intelectual

    orgnico (voltaremos a ele), podemos afirmar que, sim, ele pode falar em nome desses

    povos, j que filho de um pas colonizado pelos franceses. No fortuito, ento, que

    toda a sua vida tenha sido dedicada batalha contra as instituies coloniais e racistas

    do mundo moderno (GORDON, 2008), ou seja, contra a colonialidade do poder.

    Contudo, e essa a reflexo que tentaremos desenvolver, ao assimilar as categorias

    epistemolgicas forjadas no mesmo cenrio que era o alvo de seu combate, Fanon no

    conseguiu superar a colonialidade do saber (QUIJANO, 2005) no que tange

    especificamente sua concepo de culturas tradicionais, por exemplo.

    A ideia de que precisamos nos desfazer desse espelho que sempre nos distorce, o

    eurocentrismo, para conseguirmos promover uma descolonizao do pensamento,

    defendida por Anbal Quijano (2005) e uma gama de pensadores latino-americanos

    (WALSH, 2004; MIGNOLO, 2002; SCHIWY, 2002, dentre outros). As crticas desses

    intelectuais tanto propem uma reviso do mito da modernidade como fenmeno

    eminentemente europeu quanto apontam a necessidade de que estratgias

    epistemolgicas e polticas sejam criadas para que os pases colonizados consigam

    pensar / ultrapassar seus problemas a partir de um dilogo intercultural efetivo entre

    todos os grupos socioculturais que os compem. Ou seja, por meio de um intercmbio

    de conhecimentos incessante entre seus intelectuais.

    Acontece que a cultura ocidental vetorizada pela trade cincia, Estado e cristianismo

    subalternizou, ao longo de todo o projeto da modernidade, as diversas formas de

    saberes que escapavam racionalidade cientfica ou ao padro intersubjetivo moderno.

    A episteme cientfica se define justamente a partir de uma fronteira com as formas de

    conhecimentos tradicionais, mticas, mitolgicas, ou tudo aquilo que se aprende pela

    experincia, subjugando-os a um estatuto de pensamento mgico. O fabular e o delrio,

    o folclore e a arte, a cultura popular e o saber inventivo do que experincia um corpo

    so desclassificados como crendices (AMORIM; BICHUETTI; OLIVEIRA, 2004).

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    Nessa lgica, o exerccio do pensar fica restrito a certo grupo (no homogneo, claro)

    capaz de elaborar esquemas mentais a partir de categorias universalizveis e com o

    padro de rigor estabelecido pela cincia. Podemos observar que, mesmo o conceito de

    intelectual orgnico de Gramsci que um marco nas Cincias Sociais por romper com

    uma concepo elitista de intelectualidade la Julien Benda1 , formulado na esteira

    desse a priori cientfico e no seio de uma noo marxista da realidade. Da que o

    conceito gramsciano de intelectual orgnico esteja diretamente ligado ideia de grupo

    social como funo produtiva dentro de um sistema econmico. Ainda que ele

    reconhea que todos so intelectuais, h em sua definio uma instrumentalizao da

    funo do intelectual como aquele capaz de conscientizar seu grupo lembremos

    novamente de Fanon , um intelectual-militante-marxista.

    Edward Said, do mesmo modo, apresenta uma representao profundamente ocidental

    do intelectual (o que pode parecer uma heresia, j que ele o grande nome dos

    estudos sobre o orientalismo), ao defender que a funo deste agir com base em

    princpios universais, por meio de uma vocao para a arte de representar. Assim, Said

    enftico ao defender o exerccio intelectual como

    algo que mantm um estado de alerta constante, de disposio perptua para no permitir

    que meias verdades ou ideias preconcebidas norteiem as pessoas. O fato de tal postura

    envolver um realismo firme, uma energia racional quase atltica e uma luta complicada para equilibrar os dilemas pessoais, em face dos apelos para publicar e discursar na

    esfera pblica, o que faz de tudo isso um esforo permanente [...]. (SAID, 2005, p.36.

    Grifo nosso)

    importante enfatizar que a ideia aqui no desqualificar a importncia de Gramsci e

    Said para a reflexo sobre o papel do intelectual no cenrio de globalizao financeira e

    1 De acordo com a leitura de Said, Benda apresenta uma definio de intelectual restrita a um grupo minsculo

    de reis filsofos superdotados [...], que constituem a conscincia da humanidade; espcie de criaturas raras

    (SAID, 2003, p.20-21).

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    de profundas desigualdades, como o nosso. Cabe destacar, tambm, a relevncia deles

    para o entendimento da relao entre cincia e ideologia. O que se prope aqui, e isso

    parece fundamental, levar esse ensinamento em conta na sua radicalidade, no intuito

    de perceber como as noes de Gramsci e Said esto atreladas a uma leitura de

    mundo marxista / racionalista. Quijano (2005), dentre outros, vo argumentar que o

    materialismo histrico a verso mais eurocntrica das teorias crticas porque

    simplesmente no pensa sadas para um determinado sistema econmico/poltico/social

    fora dos mesmos eixos epistemolgicos que os constituem. Walter Mignolo (2002), em

    uma crtica contundente ao eurocentrismo, vai dizer, ainda, que estamos to

    acostumados a pensar por meio dessas categorias que fica difcil nos desvencilharmos

    dessa camisa de fora.

    Esses questionamentos trazem a tona a ideia de geopoltica do conhecimento, o que

    quer dizer que a histria do conhecimento est marcada geo-histricamente, geo-

    polticamente y geo-culturalmente; tiene valor, color y lugar de origen (WALSH, 2004,

    s/p). Assim, a colonialidade do poder (projeto de dominao poltica da expanso

    europia) instaura uma diferena que no apenas tnica e racial, mas tambm

    colonial e epistmica (colonialidade do saber). Dessa maneira, descartada, por

    exemplo, la nocin del indgena como intelectual, como alguien que puede intervenir

    directamente en la produccin de conocimiento (WALSH, 2004, s/p).

    A ideia de colonialidade de saber e de geopoltica do conhecimento chamam a

    ateno para o fato de nos orientarmos por um conjunto de categorias de pensamento

    forjadas em um contexto sociocultural diferente do nosso. Conhecimentos, estes, que

    no so deslocalizados, desincorporados, como querem a sua pretensa universalidade

    e abstrao, mas to particulares quanto os demais2, o que leva a uma necessidade de

    2 Daniel Mato (2009) observa que, no mesmo movimento em que o discurso cientfico busca se legitimar como

    um tipo de saber universal, os demais saberes so considerados tnicos, populares, locais; qualquer que

    seja a denominao, o que importa que esse grupo diversificado de formas de conhecimento caracterizado

    como particular em contraponto validade universal da cincia, que seria aplicvel a qualquer tempo e lugar.

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    olharmos para nossas prprias epistemes e construirmos outras a partir delas. Isto

    porque o pensamento existe em todos os lugares onde os diferentes povos e suas

    culturas se desenvolveram e, assim, so mltiplas as epistemes com seus muitos

    mundos de vida. H, assim, uma diversidade epistmica que comporta todo o

    patrimnio da humanidade acerca da vida, das guas, da terra, do fogo, do ar, dos

    homens (PORTO-GONALVES, 2005, p.10).

    Pensar o intelectual desde a colonialidade do poder e do saber significa, portanto,

    reconhecer que o exerccio do pensamento est distribudo por toda parte (como na

    assertiva de Pierre Lvy (2008), embora ele esteja atento ao contexto do ciberespao) e

    que o dilogo entre esses conhecimentos a chave para que novos horizontes de

    futuro novas maneiras de interpretar a experincia sejam possveis, afinal o ps-

    colonialismo no significa o fim do colonialismo, mas, sim, sua reconfigurao. Esse

    pensamento que surge dos entre-lugares3, Mignolo (2002) denomina de fronteirio,

    por estar nas runas e nas margens criadas pela colonialidade, de onde pode surgir u

    horizonte epistemolgico trans-moderno

    m

    4 e ps-ocidental (MIGNOLO, 2000a apud

    WALSH, 2002).

    3 A ideia de entre-lugares de Hommi Bhabha (2005) semelhante ao conceito de pensamento fronteirio, de

    Mignolo, com a distino apenas de contexto: o lugar de fala de Bhabha o dos estudos literrios e da

    subjetividade, ento, para ele, entre-lugares so aqueles momentos ou processos produzidos na articulao

    das diferenas. Nesses interstcios ou fronteiras que novos signos, sentidos e discursos so negociados. J

    Mignolo est mais voltado para as questes epistemolgicas. Os dois conceitos esto fundamentados na ideia de

    interculturalidade, que entende a relao entre culturas como um processo contnuo de negociao e troca (seja

    ela na base da explorao, como de praxe no colonialismo, ou de colaborao, aposta que se faz hoje, ao definir

    o dilogo intercultural como projeto poltico e tico).

    4 O projeto trans-moderno aquele que tenta superar a ideia da civilizao moderna como mais desenvolvida e

    superior, e tambm a viso de que o processo educativo europeu o caminho para qualquer avano e

    emancipao (DUSSEL, 2005). Assim, como defende Enrique Dussel, torna-se necessrio ultrapassar a

    modernidade, no como afirmao folclrica do passado, nem em nome do conservadorismo antimoderno dos

    projetos ditatoriais, tampouco para cair em um irracionalismo niilista. O projeto trans-moderno seria, ento,

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    Os intelectuais nas polticas culturais A interculturalidade uma das estratgias apontadas para essa descolonizao do

    pensamento que pode facilitar a compreenso sobre ns mesmos nossos problemas

    e potencialidades , permitindo a superao da deslegitimao academicista das

    prticas no acadmicas (MATO, 2009). esse o contexto de reflexo em que o

    Projeto Encontro de Saberes, idealizado pelo MinC, se insere, assim como todas as

    aes do Programa Cultura Viva5.

    Na linha do que apresenta esse texto, trata-se aqui de realizar caminhos da

    descolonizao cultural dos povos latino-americanos, buscando um equilbrio entre os

    saberes de origem europia e indgenas e africanos, com todas as suas fuses e

    hibridismos, em uma perspectiva intercultural crtica que no domestique as diferenas

    culturais e epistmicas. E mais ainda, que caminhe paralela s demandas por direito ao

    acesso e participao da sociedade civil na promoo dos conhecimentos tradicionais

    em igualdade de condies com os conhecimentos baseados na inovao cientfica e

    tecnolgica. (MINC, 2010, p. 5)

    Um cuidado necessrio deve ser tomado para que esse intercmbio no fique restrito

    aos conhecimentos tradicionais, como acontece nessa primeira edio do projeto.

    Como pondera Daniel Mato, as prticas socioeducativas e de produo de

    uma afirmao do que h de emancipatrio na modernidade, mas subsumindo a sua alteridade (todos os povos

    colonizados) negada, isto porque, as leituras correntes desse processo histrico omitem o fato da emancipao

    lado brilhante e fluido da modernidade estar intrinsecamente ligada ao seu carter mtico-sacrificial. A

    proposta trans-moderna busca, nesse sentido, incorporar esse Outro, pela via da solidariedade e do dilogo, o

    que foi impossvel para o projeto moderno.

    5 Dentre as aes do Programa Cultura Viva que podem ilustrar o que aqui estamos discutindo, podemos citar:

    Ao Gri (valorizao da tradio da oralidade), Aret Eventos em Rede (incentivar a troca de saberes em

    eventos variados), Tuxaua (fomento articulao e mobilizao de redes socioculturais). Alm dessas, muitas

    outras iniciativas do MinC tm como proposta trazer para o debate diversas formas de conhecimento e seus

    intelectuais.

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    conhecimentos de carter no acadmico no se limitam s que se inscrevem nas

    tradies e saberes de povos indgenas e afrodescendentes (MATO, 2009, p.83). E

    esse boto de alerta precisa permanecer aceso para que outras possibilidades de

    dilogo intercultural sejam agendadas e, do mesmo modo, para que os riscos de

    essencializao, reificao e fetichizao desses grupos tradicionais, como sugerido por

    Seyla Benhabib (2006), sejam afastados. Argumenta ela que um equvoco defender o

    multiculturalismo como um mosaico (tendncia que est incorreta tanto emprica quanto

    normativamente). La justicia intercultural entre grupos humanos debera defenderse en

    nombre de la justicia y la libertad y no de uma elusiva preservacin de las culturas

    (BENHABIB, 2006, p.33). Isto porque as culturas e grupos humanos no so totalidades

    bem delimitadas. Deberamos considerar las culturas humanas como constantes

    creaciones, recreaciones y negociaciones de fronteras imaginrias entre nosostros y

    el/los outro(s) (BENHABIB, 2006, p.33).

    Observao fundamental para pensar as polticas culturais na atualidade, que so

    formadas, ainda no rastro da reflexo de Benhabib, por uma estranha mescla entre a

    nfase romntica da concepo de cultura herderiana que defende as caractersticas

    irredutveis de cada forma de expresso cultural e a noo antropolgica em que se

    sobressai a ideia de igualdade democrtica entre todas essas formas6. Importante

    destacar que, embora o Ministrio da Cultura, em muitos de seus documentos e

    pronunciamentos afirme que as polticas culturais, na gesto Gilberto Gil/Juca Ferreira,

    so pensadas a partir de um conceito antropolgico de cultura, notvel em algumas

    de suas aes o eco do problema levantado nessa observao de Benhabib, que v

    nessa situao um paradoxo de difcil superao, cabe acrescentar por articular

    6 Benhabib fala da concepo de cultura (Kultur) dos romnticos alemes, representados por Johann G. Herder,

    e da perspectiva da antropologia social, na qual se destacam nomes como Bronislaw Malinowski, Evans

    Pritchard, Margaret Mead e Claude Lvi-Strauss. De forma rpida, podemos dizer que os primeiros defendem a

    cultura como a alma de um povo, que conforma sua identidade. J os segundos, contribuem para a afirmao

    de uma viso mais igualitria de todas as formas de expresso cultural, ao eliminar o conceito de crtica

    (subsumido no conceito de Kultur) oposto ao de civilizao (BENHABIB, 2006, p.24).

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    polticas de identidade com polticas para a diferena. A contradio que emerge desse

    cenrio se traduz nas tentativas de preservar la pureza de lo impuro, la inmutabilidadd

    de lo histrico y el carcter fundamental de lo contingente (BENHABIB, 2006, p.37).

    O que se sobressai como relevante dessa discusso, quando a conectamos com o

    exerccio de pensar os intelectuais em um quadro de colonialidade (do saber e do

    poder, como vimos), o cuidado para que as estratgias de descolonizao no fiquem

    presas a uma reificao de determinados grupos nem a tentativas de preservao de

    sua cultura tradicional. O fundamental, ao contrrio, criar espaos e possibilidades

    para que do dilogo entre distintas epistemes surjam tenses e convergncias.

    Isso implica considerar, inclusive, que o processo de colonizao tendo desarmado

    essas diferenas e suas resistncias, termina por absorv-las no contexto atual de

    fortalecimento do livre mercado, que se apia em um multiculturalismo esvaziado. As

    tradies, por exemplo, so absorvidas e neutralizadas pelo discurso do

    acesso/expanso/ampliao dos direitos para todos os grupos culturais (MARIACA,

    2010), o que dificulta a construo de novos horizontes de futuro. Traar polticas para a

    diferena traz como desafio ultrapassar a tendncia de integrao e neutralizao do

    Estado, em prol de iniciativas que fomentem o confronto de matrizes epistemolgicas e

    culturais distintas e qui completamente divergentes. Para isso, como provoca de

    forma brilhante Durval Muniz de Albuquerque Jnior, precisamos

    sair do excludente discurso da identidade que, em nosso pas, sempre teve a cara das

    elites brancas ou dos subalternos folclorizados e emasculados em seu potencial de

    questionamento e de contestao. Lampio, Jesuno Brilhante, Jararaca, podem se tornar

    smbolos de uma pretensa identidade cultural agora que esto mortos e no oferecem

    mais perigo; quando vivos eram apenas facnoras e monstros humanos. Capoeira e

    maracatu se tornam manifestaes tpicas, quando se transformam em danas ou rituais

    pacificados e dentro da ordem. Talvez em pouco tempo o rap e o hip hop tornem-se

    expresses da identidade nacional, quando forem finalmente domados em sua diferena e

    capacidade de questionamento. (ALBUQUERQUE JR, 2007, p.76)

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    Nesse caminho, o papel dos intelectuais subalternizados pela colonialidade, mas no

    subalternos, deve ser afirmado em sua potncia de dissenso, de perigo ameaador do

    coro dos contentes, o que implica chamar para o centro do dilogo intercultural,

    respaldado pelas polticas culturais, os intelectuais que no so to facilmente

    incorporados ao discurso multicultural, porque trazem a tona conflitos que no so

    neutralizados pela necessidade de integrao do Estado. E se estamos de acordo que o

    exerccio do pensamento tem a ver com a prtica de colocar questes e formular

    interpretaes acerca da existncia, tendo como referncia um horizonte de perguntas

    mais vasta e complexa do que aquelas colocadas pela Cincia e suas disciplinas, ento

    veremos um leque muito amplo de intelectuais que no compactuam com as categorias

    epistmicas da modernidade espalhados e eclipsados por todos os cantos, mas no

    silenciados.

    A exigncia de interculturalidade traz questes para a ordem do dia at ento

    inexploradas pelo conhecimento cientfico que, no limite de suas disciplinas, prope

    problemas apenas a partir de suas prprias categorias de interpretao do mundo. Por

    isso, indagam sobre os pilares de nosso horizonte de possibilidades para o futuro. A

    aposta no dilogo intercultural seria, desse ponto de vista, j uma alternativa para

    enfrentar as desigualdades e assimetrias de todos os grupos subjugados pelo

    pensamento ortopdico7. Boaventura de Sousa Santos defende esse potencial de

    colocar questes para alm daquelas propostas pelo campo cientfico, como estratgia

    para confrontar as teorias e polticas pblicas com o impensado que habita o

    pensamento.

    E essa infinitude de epistemes com que nos debatemos no transcendental; decorre

    da inesgotvel diversidade da experincia humana e dos limites para a conhecer

    7 Pensamento ortopdico como Santos (2008) chama a prtica de empobrecimento da vastido das questes

    existenciais ao que a cincia consegue responder. Desse modo, as disciplinas moldam as questes acerca do

    mundo e da existncia de acordo com suas categorias e suas limitaes.

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    (SANTOS, 2008, p. 26). A douta ignorncia seria, ento, um laborioso trabalho de

    reflexo e de interpretao sobre esses limites, sobre as possibilidades que eles nos

    abrem e as exigncias que nos criam (SANTOS, 2008, 26). Douta ignorncia que deve

    colocar qualquer intelectual, qualquer saber e forma de conhecimento acerca do mundo,

    diante da limitao que lhe inerente. Ao reconhecer essa finitude, as portas para o

    dilogo intercultural ainda que fundado em antagonismos e na tenso e para a

    construo de novos horizontes e possibilidades de existncia coletiva esto abertas.

    Fiquemos, ento, com a sabedoria de Manoel de Barros (2009), que assume

    poeticamente, assim, sua douta ignor:

    XXI

    Ocupo muito de mim com o meu desconhecer. Sou um sujeito letrado em dicionrios. No tenho que 100 palavras. Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais ou no Viterbo A fim de consertar a minha ignor, mas s acrescenta. Despesas para minha erudio tiro nos almanaques: - Ser ou no ser, eis a questo. Ou na porta dos cemitrios: - Lembra que s p e que ao p tu voltars. Ou no verso das folhinhas: - Conhece-te a ti mesmo. Ou na boca do povinho: - Coisa que no acaba no mundo gente besta e pau seco. Etc Etc Etc Maior que o infinito a encomenda.

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