História intelectual no Brasil: a retórica como chave de ...
FAZER - ANPUH · História Intelectual; ou então produzem uma história intelectual de algum...
Transcript of FAZER - ANPUH · História Intelectual; ou então produzem uma história intelectual de algum...
* Mestranda em História Social e graduanda em Filosofia, ambos na Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
O FAZER HISTORIOGRÁFICO DE MARTIN JAY.
CECÍLIA MAGALHÃES E RIBEIRO PENTEADO*
Apresentam-se aqui a trajetória intelectual de Martin Jay e o debate historiográfico no qual
ele se insere. Esse amplo debate será abordado com o intuito de evidenciar que o percurso intelectual
de Jay, pelo menos em sua fase madura, é marcado pela interação profissional com outros
historiadores estadunidenses; no sentido de que é essa interação que impulsiona o autor a tomar
posições teóricas e propor conceitos, modelos e metodologias para a História enquanto disciplina.
Assim, a trajetória intelectual de Jay será aqui utilizada para empreender uma reflexão sobre o caráter
biográfico e coletivo do fazer historiográfico de modo geral. Para além das posições e opiniões do
autor, importa principalmente que é do diálogo entre profissionais historiadores que emergem os
diferentes modelos de análise e explicação histórica, os quais definem, no caso, o campo da História
Intelectual estadunidense.
I. A trajetória de Martin Jay, historiador intelectual.
Martin Jay nasceu em 1944 na cidade de Nova Iorque, Estados Unidos. Ele se formou em
1965 na Union College da mesma cidade, após ter estudado durante um ano (1963-64) na London
School of Economics, em Londres. Em 1971, concluiu seu PhD sobre a história intelectual do Instituto
de Pesquisas Sociais1, na Universidade de Harvard, sob orientação de H. Stuart Hughes. Atualmente,
Martin Jay é titular da cadeira de Ehrman Professor de História da Europa no campus de Berkeley da
Universidade da Califórnia. Os cursos já ministrados por ele em tal instituição foram: Habermas:
Critical Debates (2011 e 2012); European Intellectual History from the Enlightenment to 1870 (2011
e 2013); The Third Generation of the Frankfurt School (2012); European Intellectual History from
1870 to the Present (2012); The Idea of Reason (2013 e 2015); e Critical Theory Writ Small (2014)2.
1 O título da tese era The Frankfurt School: An Intellectual History of the Institut für Sozialforschung, 1924-1950, a
thesis. Harvard University, 1971. Foi publicada como JAY, Martin. The Dialectical Imagination: The History of the
Frankfurt School and the Institute of Social Research, 1923-50. Boston, Massachusetts: Little Brown and Company, 1973. 2 Informações acessíveis em: http://history.berkeley.edu/people/martin-e-jay .
2
Cabe ressaltar ainda que sua esposa, Catherine Gallagher, fundadora da revista Representations,
associada ao novo historicismo, também é professora dessa universidade, no departamento de Crítica
Literária.
De maneira geral, os artigos e livros publicados por Jay durante as décadas de 1970 e 80
abordam a Teoria Crítica e os autores associados às suas três primeiras gerações, além de alguns
aspectos da teoria marxista. O fato de sua formação profissional ter início com o estudo da Teoria
Crítica é importante para o estudo das ideias de Jay, porque em muitas de suas concepções subjazem
influências diretas dessa tendência do pensamento alemão: sua concepção de contexto, para citar
como exemplo um conceito importante para historiadores, está assentada na dialética e no modelo de
constelações do pensamento crítico de Theodor Adorno. Ademais, ainda na década de 1980, Jay
mostra um crescente interesse pela filosofia francesa contemporânea 3 e por seu impacto na
historiografia europeia e estadunidense, uma vez que artigos sobre esses assuntos começam a ser
publicados com maior frequência. A partir de 1990, esses serão temas muito mais recorrentes em seus
livros e artigos do que assuntos ligados à Teoria Crítica, ainda que este continue sendo um tema de
seu interesse – como os títulos de seus cursos sugerem.
A respeito dos artigos publicados no período de 1990 até a atualidade, é difícil delimitar a
gama de interesses do autor, pois sua produtividade escrita é bastante constante e variada. Jay escreve
periodicamente em sua coluna Forcefields, na revista Salmagundi, onde aborda muitos temas
diferentes, como antissemitismo, nazismo, Teoria Crítica, marxismo, modernismo, fatos da
contemporaneidade (como, por exemplo, o atentado de 11 de setembro), revisões de livros, entre
outros temas. Quando escreve em periódicos que não Salmagundi – como Theory and Society,
American Historical Review, New Literary History, Comparative Studies in Society and History –,
torna-se mais evidente seu interesse em discutir métodos e modelos da História Intelectual. Em
relação aos livros publicados no mesmo período, as discussões sobre a História Intelectual, tanto
3 Com “pensamento francês contemporâneo” me refiro, como Jay, ao “o contexto discursivo do pensamento francês do
século XX, [...] desde Bergson, Sartre e Merleau-Ponty até Foucault, Barthes e Lyotard” (tradução nossa). Cf. JAY, M.
Still Waiting to Hear From Derrida. In. Salmagundi. Nº. 150/151, 2006. p. 26.
3
estadunidense como europeia, despontam também como os temas centrais 4 de sua produção
intelectual.
Para além do conteúdo específico de suas publicações, mas considerando-as enquanto
conjunto, pode-se dizer que, desde seu PhD até a atualidade, Jay dedicou sua carreira à História
Intelectual; ou ainda, ao estudo histórico dos mais diversos intelectuais – de Karl Marx, Theodor
Adorno e Max Horkheimer até Paul De Man, Jacques Derrida e Jean-François Lyotard. Os artigos e
livros de Jay que, na prática, fazem uma história intelectual de algum dos autores supracitados são
menos relevantes para a reflexão aqui proposta, pois apenas servem de exemplos de seu método de
análise histórica. Mais importantes são as publicações que discutem as questões teórico-
metodológicas da História Intelectual, sendo a maioria destas publicadas entre 1990 e 2011. Em geral,
tais publicações problematizam a associação direta e irrestrita entre os textos e os respectivos
contextos históricos dos quais emergem.
Tendo em vista que a questão acerca da autonomia ou dependência entre os significados de
um texto e o seu respectivo contexto histórico é bastante recorrente entre os historiadores da História
Intelectual estadunidense – pelo menos desde 1940 (SHAPIN, 1992: 333-335); e com bastante
evidência e novos contornos a partir de 1980-90 (VASCONCELOS, 2005: 49-50) –, o problema que
se coloca aqui é sobre a relação de Martin Jay com esse amplo debate, que consiste em diversas
discussões travadas nas páginas de periódicos como Theory and Society, Salmagundi, Comparative
Studies in Society and History, American Historical Review e New Literary History. Entre os autores
que se inserem na discussão estão Quentin Skinner, Hayden White, David Harlan, David Hollinger,
Russerl Jacoby, John G. A. Pocock, Dominick LaCapra, Fritz Ringer, o próprio Martin Jay e tantos
outros. Esse amplo debate será apresentado a seguir, com o objetivo de evidenciar que o percurso
intelectual de Jay, quando inserido em seu campo intelectual, é definido por sua interação com outros
historiadores estadunidenses. Essa interação, ao mesmo tempo, impulsiona-o a tomar posições
teóricas, propor conceitos, modelos e metodologias para sua a área de atuação, a História Intelectual.
4 De acordo com o levantamento das obras de Martin Jay, 60% dos seus livros tratam da teoria ou metodologia da
História Intelectual; ou então produzem uma história intelectual de algum autor, como Theodor Adorno, Leo Löwenthal
ou Herbert Marcuse.
4
II. A História Intelectual estadunidense pós 1980 e a inserção de Jay nesse amplo debate
historiográfico.
De acordo com Roger Chartier, o termo História Intelectual, nos Estados Unidos, designa um
campo de investigação da historiografia que se contrapõe à História Social das Ideias – representada
por historiadores como Arthur Lovejoy e Perry Miller –, a qual designa uma disciplina com objeto,
metodologia e programas próprios (CHARTIER, 1990: 29-32). Ao contrário, a História Intelectual
estadunidense não consiste em uma disciplina coesa, mas define-se por diferentes posicionamentos
em relação a alguns pressupostos teórico-metodológicos, os quais despontam no cenário
historiográfico da pós-modernidade e provocam uma espécie de crise epistemológica, marcada pela
fragmentação e superprodução da historiografia (VASCONCELOS, 2005: 51-52). Exemplos de
diferentes modelos que representam essa fragmentação da historiografia pós-1980, nos Estados
Unidos, são: a história pós-estruturalista; a história anti-narrativa; a história estrutural; o estilo dos
Annales (3ª geração); a história do cotidiano (à moda de Norbert Elias e Michel de Certeau); a
“história vista de baixo para cima”, isto é, histórias feminista, familiar, étnica, racial, etc.,
influenciadas principalmente por Edward P. Thompson; a própria história intelectual, entre outros
modelos (GALLAGHER, C.; GREENBLATT, S., 2005: 64-65). Entre os pressupostos pós-modernos
que acarretam essa fragmentação, José Antônio Vasconcelos identifica pelo menos três
(VASCONCELOS, 2005: 86-90) que repercutem com maior intensidade na historiografia.
O primeiro coloca que toda representação sobre a realidade é historicamente construída, seja
aquela encontrada na fonte ou na reconstrução histórica: não há, portanto, uma realidade primordial
a ser “objetivamente” reconstruída pelo historiador. O segundo, tendo como pressuposto o anterior,
pensa a história submergida na literatura, definindo não apenas a forma, mas o conteúdo da narrativa
histórica como uma “ficção” – se questiona aqui a relação entre literatura, retórica e discurso histórico.
O terceiro pressuposto afirma que deve haver, na análise dos significados de um texto, por exemplo,
um esmaecimento das fronteiras entre os textos e seus respectivos contextos, pois o contexto passado
só é acessível para os historiadores através de textos (fontes orais, escritas, arte, etc.); e, além disso,
contextos (inclusive do presente) são, em si, uma trama de forças a serem interpretadas da mesma
5
maneira que textos. Martin Jay se insere nesse debate ao discutir, principalmente, este último
pressuposto teórico-metodológico.
Para apresentar o amplo debate em torno desses três pressupostos pós-modernos – sendo que
aqui o foco de análise é o terceiro, a respeito da autonomia ou dependência entre os textos e seus
respectivos contextos –, é interessante recorrer à categorização elaborada por Jay. Ele identificou
quatro principais tendências explicativas entre os diferentes historiadores da História Intelectual
estadunidense (JAY, 1993: 160-163): uma vertente que ele denomina de “contextualista”,
influenciada principalmente por Skinner; e outras três vertentes “textualistas”, influenciadas pelas
ideias de i. Clifford Geertz (hermenêutica I, ou vertente “culturalista”), ii. Hans-Georg Gadamer
(hermenêutica II) e iii. Derrida (desconstrucionismo). Também o novo historicismo, associado ao
departamento de Crítica Literária do campus de Berkeley da Universidade da Califórnia, se insere
nesse debate em torno dos pressupostos teórico-metodológicos apresentados.
A vertente contextualista da História Intelectual, de maneira geral, enfatiza a relação de
dependência entre o texto, seu autor e o contexto, e busca no último a base para a explicação histórica
dos textos. Seus representantes mais conhecidos são Skinner, Pocock e Jacoby. O modelo de Skinner,
em particular, serve de influência para os demais e busca recuperar as intenções que definem um texto,
isto é, recuperar o que ele chama de forças locucionária, ilocucionária e perlocucionária. A primeira
refere-se à intenção do autor propriamente dito, isto é, ao que ele tencionou dizer, caracterizando
assim um elemento consciente e interno ao texto. A força ilocucionária, ou ainda, performativa,
remete às convenções históricas, culturais e aos modismos, por exemplo. Trata-se, portanto, de um
elemento inconsciente e externo ao texto, mas que se manifesta em seus significados de forma
intrínseca. Por último, a força perlocucionária refere-se ao que o texto de fato transmite aos seus
leitores, para além da intenção consciente do autor. Para Skinner, o objetivo do conhecimento
histórico é reconstruir esse conjunto de intenções (SKINNER, 1975-75: 218), para que então se
recupere o significado primordial que determinado texto possuía em seu contexto (seja social, cultural,
político ou econômico) original. O modelo de Skinner, portanto, propõe investigar a realidade passada
de determinado autor como um conjunto de intenções, conscientes e inconscientes, que então se
manifestam no texto produzido. O contexto do autor, dessa forma, é fundamental tanto para a
6
produção do texto desde sua origem, quanto para a reconstrução histórica de seus significados – e por
isso esse modelo é chamado de contextualista.
Ao contrário do que propõe esse paradigma, as vertentes textualistas tendem, de maneira geral,
a buscar no texto (e não no contexto) a base para a explicação histórica. Entre seus representantes
estão, por exemplo, White, LaCapra, Harlan e Allan Megill. Enquanto conjunto de “textualistas”,
esses autores compilam sete objeções ao contextualismo: o contexto passado, o qual Skinner pretende
reconstruir, só é acessível para o historiador em forma de texto; esse contexto é ainda lido com as
categorias do presente, de forma que a reconstrução, tanto dos significados do texto quanto do seu
contexto, será sempre marcada por esse “anacronismo”; contextualizações, por si só, não são neutras;
pois e além disso, coexistem múltiplos contextos em um mesmo período e local; um mesmo contexto
pode, inclusive, possuir diferentes significados e características, dependendo da escala (individual,
social, de classe, global, etc.) de análise a que é submetido pelo historiador; em cada contexto estão
implícitos uma ideologia e racionalidade específicas, difíceis de serem propriamente reconstruídas
historicamente. Por fim, o diálogo entre contextos, textos e intenções autorais para eles não é
unidirecional como propõe o modelo de Skinner5, pois interpretações, produzidas nos mais diversos
contextos, a todo momento transpassam as intenções de um autor, transformando os significados
originais de seu texto.
Portanto, as três vertentes textualistas da História Intelectual estadunidense compartilham
entre si a crítica ao contextualismo que pretende recuperar algo do passado, pois para eles a filosofia
contemporânea francesa solapou a crença na possibilidade de reconstruir um sentido primordial do
texto. A vertente desconstrucionista do textualismo, em particular, influenciada pelas ideias de
Derrida, radicaliza essa crença quando entende que não há nada fora do texto, tudo o integra. Assim,
esse paradigma historiográfico circunscreve a análise histórica exclusivamente ao texto, pois entende
que só a representação é realidade; sendo o contexto, em si, também um conjunto de representações
“textuais”. Aqui, portanto, está de fato pressuposto o esmaecimento das fronteiras entre texto e
contexto.
5 Esse compilado de objeções que historiadores textualistas empreendem a respeito do contextualismo está organizado
em JAY, M. Historical Explanation and the Event: Reflections on the Limites of Contextualization. In. New Literary
History. Vol. 42, nº. 4. 2011. pp. 559-562.
7
Na Hermenêutica II, historiadores influenciados pelas ideias de Gadamer salientam,
principalmente, o papel do leitor na construção dos significados de um texto. Assim, os contextos de
recepção de uma obra, por exemplo, tornam-se muito mais relevantes para a análise histórica do que
o contexto original do autor. Também o que este tenciona dizer (consciente ou inconscientemente)
importa menos para essa hermenêutica do que os diferentes significados e interpretações que as ideias
“originais” adquirem no contato com o leitor. Portanto, nesse caso não há exatamente o esmaecimento
das fronteiras entre texto e contexto, mas uma mudança do foco explicativo do segundo em direção
ao primeiro. Segundo Jay, quando esse paradigma é radicalizado, só o contexto de recepção importa
para a análise histórica dos significados de um texto – como acontece no modelo de Stanley Fish
(JAY, 1993: 160).
Na Hermenêutica I, ou modelo “culturalista”, os historiadores influenciados pelas ideias do
antropólogo Geertz entendem a própria cultura como um texto; isto é, como um conjunto de
significados a serem identificados, lidos e descritos. O método de análise histórica, aqui, propõe uma
“descrição densa” do objeto de investigação em suas inter-relações, sendo que quanto mais detalhada
a descrição, mais complexo o conhecimento histórico produzido. Além disso, aqui está proposto um
certo distanciamento entre o historiador e seu objeto de estudo. Assim, nessa hermenêutica também
não se pressupõe o esmaecimento das fronteiras entre texto e contexto, e sim uma nova abordagem
para o conceito de contexto, mais voltado para a ideia de cultura.
Ademais, pela extensa discussão sobre a concepção de cultura e sobre o modelo metodológico
de Geertz que Catherine Gallagher e Stephen Greenblatt empreendem em A Prática do Novo
Historicismo, conclui-se certa afinidade teórica entre tal tendência6 da Crítica Literária e o modelo
culturalista da vertente hermenêutica (I) da historiografia estadunidense. Segundo os autores, essa
afinidade não consiste em um alinhamento teórico-metodológico propriamente dito, mas na simpatia
pelo conceito de cultura como texto, o qual amplia em muito “a gama de construções imaginativas a
serem interpretadas” (Cf. GALLAGHER, GREENBLATT, 2005: 39) por historiadores e críticos
literários.
6 C. Gallagher e S. Greenblatt atentam para a pouca coesão entre os críticos literários que se denominam novo-
historicistas. Entretanto, a discussão acerca da cultura como um texto é uma constante na área e, dessa forma, pode ser
generalizada para fins de apresentação. Sobre a definição de novo historicismo, ver GALLAGHER, C.; GREENBLATT,
S. A Prática do Novo Historicismo. São Paulo: Martins Fontes, 2005. pp. 12-21.
8
Em suma, no cerne do debate estão aqueles três pressupostos pós-modernos apresentados
anteriormente. Todas as quatro vertentes de historiadores ligados à História Intelectual, além dos
críticos literários do novo historicismo, especulam sobre a relação entre os significados de um texto
e seu contexto de produção; assim como discutem as possibilidades de reconstruir historicamente tais
significados e contextos: há uma relação de dependência, de forma que só se apreende um em relação
ao outro? Reconstruir ou analisar historicamente um texto significa, necessariamente, fazer o mesmo
com seu contexto? Ou ambos possuem autonomia?
Martin Jay insere-se nesse debate, que define a História Intelectual estadunidense, ao discutir
exatamente esse ponto. O levantamento da sua produção escrita aponta que, durante o período de
1990-2011, ele escreve muitos artigos sobre essas questões que estão sendo debatidas entre
historiadores textualistas e contextualistas, sendo possível identificar ao menos três discussões claras
a esse respeito. A primeira discussão acontece entre Ringer, Lemert e Jay, em 1990, no 3º número do
volume 19 do periódico Theory and Society; e consiste em uma sequência de quatro artigos que
conversam entre si. Nas páginas 269-294, um artigo de Ringer intitulado The Intellectual Field,
Intellectual History and the Sociology of Knowledge; nas páginas seguintes, 295-310, um artigo de
Lemert, The Habits of Intellectuals: Response to Ringer; seguido de um artigo de Jay, Fieldwork and
Theorizing in Intellectual History: A Reply to Fritz Ringer, nas páginas 311-321. Como se não
bastasse, as páginas seguintes, 323-334, traziam a dupla réplica de Ringer, em um artigo intitulado
Rejoinder to Charles Lemert and Martin Jay.
Nesses artigos, os autores discutem o conceito de campos intelectuais de Pierre Bourdieu e as
implicações teórico-metodológicas desse conceito para as pesquisas em História Intelectual e
Sociologia do Conhecimento. Ali, Ringer, Lemert e Jay expõem três interpretações diferentes do
conceito de Bourdieu: o primeiro enfatiza o caráter coletivo da produção de conhecimento; o segundo,
o caráter individual e “criativo”; enquanto Jay enfatiza a necessidade dialética entre as dimensões
coletiva e individual do conhecimento. Em termos de modelo histórico, para Ringer os campos
intelectuais são objetos da História; para Lemert, podem ser objetos da História ou Sociologia, tanto
quanto podem o ser os autores ou obras em suas individualidades; e, para Martin Jay, os campos
intelectuais (pelo menos como Ringer descreve) servem mais como ferramentas que auxiliam os
9
historiadores na busca pelos diversos elementos que constituem a constelação que define cada texto,
isto é, cada objeto da História Intelectual (JAY, 1990: 312). O nível de dependência entre os textos,
seus autores e o “contexto intelectual”, portanto, é amplamente discutido por Ringer, Lemert e Jay;
cujas posições, em relação ao que seja produzir a história de um intelectual, mostram-se como
bastante diferentes.
A segunda discussão identificada acontece em torno do livro Downcast Eyes: The Denigration
of the Vision in the Twentieth-Century French Thought, publicado em 1993 por Martin Jay. A
discussão foi travada em 1996, também em uma clara sequência de artigos de Lloyd Kramer, Craig
Calhoun e Jay, no volume 38 do periódico Comparative Studies in Society and History. Os artigos
encontram-se na seção de revisões de livros e abordam questões teóricas na medida em que discutem
as repercussões históricas e historiográficas do pensamento que Jay chama de antiocularcêntrico,
uma aglutinação entre as palavras anti, ocular e centrismo. Para ele, o termo designa “o contexto
discursivo do pensamento francês do século XX, caracterizado pela penetrante crítica a hiper-
visualidade – ou ocularcentrismo –, desde Bergson, Sartre e Merleau-Ponty até Foucault, Barthes e
Lyotard” (Cf. JAY, 2006: 26). Essa sequência de artigos é interessante porque ali Jay discute muitos
dos princípios de autores chamados desconstrucionistas: sua interpretação, receptividade e críticas
ao pensamento antiocularcêntrico – de um modo bastante diferente, mas de natureza similar à
influência da Teoria Crítica – influi na maneira como ele conceitualiza contextos históricos, textos, a
própria história e o conhecimento; e levanta, assim, nuances do seu modelo de conhecimento histórico.
A última discussão identificada não consiste, como as outras, em sequências de artigos que
explicitamente conversam entre si – no sentido de que levantam questões sobre textos de autores que,
literalmente, respondem aos comentários feitos. Trata-se, sim, de um único artigo de autoria de Jay,
intitulado Historical Explanation and the Event: Reflections on the Limits of Contextualization (2011),
o qual traz um debate declarado com a vertente contextualista da História Intelectual estadunidense,
na medida em que aponta limites e lacunas no modelo de Skinner. A crítica a um modelo incide
também aos historiadores metodologicamente influenciados pelo mesmo, como no caso Jacoby e
Pocock – estes, sim, contemporâneos a Martin Jay. O texto foi então publicado no número 4 do
volume 42 do periódico New Literary History, em 2011. Ali, Jay também define o que entende por
forcefields, “campo de forças”; conceito fundamental para a sua concepção de contexto – e,
10
consequentemente, para sua proposta de análise histórica dos textos. Ao desenvolver esse conceito, o
autor deixa evidências de sua formação em Teoria Crítica, pois as ideias adornianas de constelação,
não-identidade, dialética negativa e história, estão por toda a parte nesse artigo: às vezes de maneira
indireta, como uma palavra (como constelações) seguida de uma nota de rodapé sobre as ideias de
Adorno como um modelo de pensamento teórico (JAY, 2011: 561 e nota nº 1); e às vezes de maneira
direta, citando suas próprias análises sobre Adorno como exemplos de modelo do fazer historiográfico
(JAY, 1990: 316).
III. Conclusão: O fazer historiográfico de Martin Jay.
Conforme apresentado, o amplo debate entre historiadores contextualistas e textualistas define
o campo da História Intelectual estadunidense, na medida em que delineia uma série de posições em
relação a determinados pressupostos teórico-metodológicos. Essas posições, como visto, implicam
diferentes modelos de análise histórica: a posição de historiadores skinnerianos sobre a relação entre
texto e contexto implica um modelo que pretende reconstruir os significados primordiais de um texto;
a posição de historiadores culturalistas, por sua vez, implica um modelo de descrição histórica; a dos
gadamerianos, um modelo fundamentalmente hermenêutico; a dos desconstrucionistas, uma análise
textual. Ainda que cada uma dessas “vertentes” historiográficas contenha diferenças internas, dada a
diversidade de autores que as integram, é possível falar em “modelos” de conhecimento histórico,
referentes a cada uma dessas vertentes. Esse amplo debate é formado por dezenas ou centenas de
discussões específicas, as quais são travadas por diferentes historiadores nas páginas de periódicos
especializados. Assim, é no desenvolver dessas discussões particulares que se constroem e se
delimitam as posições, os métodos e os modelos de análise, explicação ou exposição histórica – pelo
menos no que se refere à História Intelectual estadunidense.
Nesse sentido, foram apresentadas três discussões nas quais Martin Jay participa ao discutir
exatamente os pressupostos e modelos colocados por seus colegas (como Skinner, Jacoby e Ringer,
por exemplo). Os argumentos utilizados por Jay nessas discussões (assim como os de seus colegas)
implicam seu entendimento pessoal sobre conceitos como o de contexto, texto e história, além de
suas “inter-relações”. É esse entendimento pessoal que delineia um modo específico (em um sentido
11
quase biográfico) de se inserir na discussão, isto é, de pensar e realizar o fazer historiográfico. Para a
reflexão aqui proposta não cabe desenvolver o conteúdo dos argumentos de Jay propriamente dito,
mas sim evidenciar que ele se insere no seu campo profissional a partir da interação direta e explícita
com as posições de outros historiadores.
Portanto, está sendo aqui proposto que o conhecimento histórico é produzido no debate entre
profissionais da área e, ao mesmo tempo, pelas particularidades de cada participante, alguns
“excepcionais”. Perde-se algo da individualidade de um autor quando se entende que a produção do
conhecimento advém unicamente de sua dimensão coletiva. À exemplo de Jay, o entendimento sobre
conceitos fundamentais e sobre a própria discussão em si trazem implícitas as marcas de sua trajetória
pessoal, de suas influências teóricas particulares, de suas companhias e experiências individuais. O
fazer historiográfico enquanto coletivamente realizado só tem sentido se consideradas, com igual
importância, as particularidades de cada historiador: do contrário, as “vertentes” historiográficas não
seriam formadas por uma rica heterogeneidade de opiniões, mas por uma estranha unanimidade.
Esse é um problema que emerge com frequência na leitura de artigos ou livros de historiadores
intérpretes de Pierre Bourdieu. Os conceitos de campos intelectuais e de habitus, desenvolvidos por
esse autor em textos como Campo Intelectual e Projeto Criador (1966) e O Campo Científico (1976),
de fato enfatizam a dimensão coletiva do conhecimento (sociológico, no caso de Bourdieu).
Entretanto, o modelo de Bourdieu não nega a particularidade de um autor, do “criador”, no campo
intelectual no qual está inserido; mas entende ambos, particularidades e campo, em interação dialética
(BOURDIEU, 1966: 125). Esse aspecto passa muitas vezes como irrelevante em intérpretes de seus
textos, como Fritz Ringer, com quem Jay debate. Ringer tira dos conceitos de Bourdieu um modelo
de conhecimento histórico que propõe reconstruir objetivamente os campos intelectuais do passado,
compreendendo-os como unidades cujas particularidades pouco importam, pois o seu objeto de
investigação é unicamente a dimensão coletiva do conhecimento, isto é, o conhecimento enquanto
produzido no interior de um campo intelectual específico.
Aqui, entretanto, propõe-se algo bastante diferente: a dimensão coletiva do produzir
conhecimento só tem sentido se considerada também as particularidades da trajetória de cada autor.
As perguntas do coletivo são produzidas e respondidas por indivíduos, que as leem e respondem em
vistas de suas leituras prévias, seus conceitos prévios, entre outros elementos da sua trajetória
12
intelectual pessoal, enfim. Do contrário, também não se pode entender a existência de autores
excepcionais e obras canônicas. Considerar as particularidades dos “criadores” e a existência de
“obras canônicas” ou “autores excepcionais” não significa, entretanto, reduzir o conhecimento às
intenções de seus autores; pois entender dialeticamente a dimensão particular e coletiva do
conhecimento significa dar a ambos igual importância: um existe em função do outro; isto é,
constituem-se e se definem sempre reciprocamente, um em vista do outro.
Com isso, conclui-se que a trajetória profissional de Jay, desde a época da especialização até
sua real inserção na comunidade de historiadores estadunidenses, acaba delimitando uma certa
maneira de elaborar análises e explicações históricas. Se sua inserção profissional é marcada pelos
pressupostos e problemas da História Intelectual, a fase da especialização é marcada pela Teoria
Crítica. Esta influi naquela na medida em que a ideia de história, de texto e de contexto de Jay, quando
já profissionalmente maduro por assim dizer, estão fundamentadas nas concepções que estudou
intensamente durante o período de sua especialização. Em outras palavras, Jay se insere na discussão
da História Intelectual à luz do modelo crítico e da dialética de Adorno; assim como à luz dos
problemas da filosofia francesa contemporânea, da influência de sua esposa ligada ao novo-
historicismo, da sua cadeira de professor emérito no campus de Berkeley, entre outras experiências
que influem na sua leitura dos argumentos de seus colegas. Isso significa que as perguntas e respostas
que Jay direciona aos problemas da historiografia contemporânea e conterrânea a ele trazem
implícitas as marcas de seus percursos intelectuais.
Portanto, a particularidade de cada percurso intelectual só desperta em relevância quando
inserida na dimensão coletiva da produção de conhecimento: um não pode estar dissociado do outro,
pois são como que “opostos complementares”. Assim, além da trajetória individual, são também de
suma importância o diálogo e as relações que Jay estabelece com colegas historiadores da mesma
área, sejam contextualistas ou textualistas; pois, como visto, é no jogo de problematizar e responder
os artigos de colegas que se constroem as delimitações teóricas da História Intelectual estadunidense.
Em outras palavras, é no diálogo entre Skinner, Ringer, Pocock, Jacoby, LaCapra, White, Jay, entre
outros, que são propostos diferentes modelos de explicação e análise histórica: modelos
contextualistas, hermenêuticos, culturalistas, e assim por diante. Nesse sentido, estudar as ideias de
13
Jay, ou de qualquer outro autor, em sua dimensão biográfica, tanto individual (suas influências
particulares, etc.) quanto coletiva (diálogos, por exemplo), significa estudar também pressupostos,
posições teóricas, modelos, possibilidades e limites metodológicos do fazer historiográfico.
Bibliografia
BOURDIEU, Pierre. Campo Intelectual e Projeto Criador. [1966] In. POUILLON, J. [et. all.].
Problemas do Estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. pp. 105-145.
______. O Campo Científico. [1976] In. ORTIZ, R. (org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo:
Ática, 1983. pp. 122-155.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1990.
GALLAGHER, Catherine; GREENBLATT, Stephen. A Prática do Novo Historicismo. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
JAY, Martin. Fieldwork and Theorizing in Intellectual History: A Reply to Fritz Ringer. In. Theory
and Society. Vol. 19, n° 3, 1990. pp. 311-321.
______. Forcefields: Between Intellectual History and Cultural Criticism. New York: Routledge,
1993.
______. Still Waiting to Hear from Derrida. In. Salmagundi. nº 150/151, 2006. pp. 25-35.
______. Historical Explanation and the Event: Reflections on The Limits of Contextualization. In.
New Literary History. Vol. 42, nº 4, Context? 2011. pp. 557-571.
SHAPIN, Steven. Discipline and Bounding: The History and Sociology of Science as seen through
the externalism-internalism debate. In. History of Science. Vol. 30, 1992. pp. 333-369.
14
SKINNER, Quentin. Hermeneutics and the Role of History. In. New Literary History. Vol 7, nº 1,
1975-76. pp. 209-232.
VASCONCELOS, José Antônio. Quem Tem Medo de Teoria? A Ameaça do Pós-modernismo na
Historiografia Americana. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2005.