Kropotkin história intelectual de um anarquista revolucionário
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http://dx.doi.org/10.5007/1980-3532.2014n12p64
Kropotkin
história intelectual de um anarquista revolucionário
Kropotkin: intellectual history of a revolutionary anarchist
Wallace dos Santos de Moraes
Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Resumo: Piotr Kropotkin, nascido na segunda metade do século XIX, é um dos expoentes da teoria
anarco-comunista. O objetivo deste paper é resgatar a história intelectual e perceber a importância e o
alcance do pensamento do autor, preenchendo assim uma lacuna no mundo acadêmico que negligenciou
as teses de autores anarquistas.
Palavras-chave: Kropotkin; Anarquismo; Teoria Política; Pensamento Revolucionário; História
Intelectual.
Abstract: Piotr Kropotkin, born in the second half of the nineteenth century, is one of the central figures
of the anarchist-communism theory. The objective of this paper is to recover the intellectual history and
recognize the importance and scope of the author's thought, thereby filling a gap in the academic world
that neglected the theses of anarchist authors.
Keywords: Kropotkin; Anarchism; Political Theory; Revolutionary Thought; Intellectual History.
Originais recebidos em: 03/10/2015
Aceito para publicação em: 08/12/2015
Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso Não-
Comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported License.
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Introdução
Discutir ideias anarquistas e organizá-las compondo uma teoria política está
longe de ser algo comum na Academia. Diferentemente do liberalismo que teve a
difusão de suas ideias pelas classes dominantes e do marxismo - que inclusive virou
política de Estado em vários países e, portanto, teve grupos acadêmicos disseminadores
de suas propostas -, o pensamento anárquico praticamente não teve lugar nas
universidades.
O objetivo desta reflexão é ajudar a preencher e reparar essa grande lacuna nas
ciências sociais, resgatando a história intelectual de um clássico do pensamento
anarquista-revolucionário, bem como suas principais teses. Trata-se de Piotr Kropotkin
(1842-1921). Apresentamos assim, os aspectos centrais de sua teoria política,
delineando suas conjecturas, hipóteses e metodologias. Podemos adiantar que sua obra
baseia-se centralmente na crítica ao capitalismo dominado politicamente pelo Estado e
economicamente pelo sistema do salário.
Uma última ressalva é extremamente valiosa. A perspectiva anarquista e,
principalmente, a anarco-comunista, ensina-nos que as ideias propaladas por um
determinado autor nunca devem ser tratadas como uma propriedade exclusiva dele,
tampouco como produto de sua genialidade, mas como resultado da interação com
outras pessoas, como fruto de um determinado meio social e intelectual, nos quais, às
vezes, centenas de pessoas colaboraram. Esta é a maneira mais salutar de analisar as
ideias que Kropotkin teve a felicidade de materializá-las em textos e livros.
Faremos a divisão da pesquisa em subtópicos. A obra de Kropotkin é bastante
vasta e não temos a pretensão de esgotá-la nessa dissertação. Pretendemos tão-somente
delinear os principais postulados sustentadores da teoria anarco-comunista e estimular a
busca pela leitura dos originais do autor.
Militância e obra
Piotr Kropotkin é um dos expoentes do que podemos chamar de teoria
anarquista clássica. Sua vida foi marcada por intensa militância, prisões, perseguições e
por defender algumas ideias sociais que o colocam como publicista revolucionário.
Nasceu na segunda metade do século XIX, na Rússia, no seio de uma família muito rica
e poderosa. Foi um príncipe hereditário e abdicou de tudo para defender uma teoria,
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cujas principais bases constituem-se pela defesa da plena liberdade com igualdade e sem
hierarquias entre os homens, em uma palavra: o anarquismo.
Foi um excelente geógrafo. Elaborou uma teoria sobre as estruturas e as cadeias
de montanhas e platôs da Ásia oriental, que revolucionou os conceitos existentes sobre a
orografia eurasiana. Fato que ajudou a explicar as invasões bárbaras em função da fuga
do povo da Ásia Oriental da grande seca em direção ao Ocidente, provocando uma
reação em cadeia (Woodcock, 2010: 215).
Na década de 1870, Kropotkin escreveu seu primeiro ensaio anarquista
intitulado: “Devemos ocupar nosso tempo a examinar as ideias de uma sociedade
futura?” Tratava-se de um panfleto que a polícia tzarista usou para condenar seu autor e
outros anarquistas, porém hoje não se tem registros do teor desse documento.
Em fins de 1878, Kropotkin lançou o jornal “Le Révolté”, na Suíça, até ser
expulso do país. Continuou a publicação em Paris com o “La Revolté”, que se tornou o
mais influente dos jornais anarquistas desde o desaparecimento do “Le People”, de
Proudhon, em 1850 (Woodcock, 2010: 223). Alguns dos artigos desses jornais
formaram os capítulos de dois dos seus principais livros: “Palavras de um Revoltado” e
“A conquista do pão”. Nesse, Kropotkin desenvolve sua tese do comunismo-anarquista,
como veremos à frente, embora, como nos lembra Max Netlau (2008), não foi o
primeiro a fazê-lo.
Em 1902, publica, ainda, o livro intitulado: “Ajuda mútua” e, em 1903, “O
Estado”.1 Seus últimos livros, “Ideias e realidades na literatura russa”, “A grande
Revolução Francesa e Ética”, editados postumamente, são trabalhos periféricos
iluminados por um espírito libertário, mas cujo objetivo principal não era a apresentação
da causa anarquista-comunista (Woodcock, 2010: 240).
Georg Woodcock, historiador das ideias anarquistas, descreve a vida de
Kropotkin da seguinte maneira:
Na primavera de 1872 (...) era um jovem renomado geógrafo de inclinações
vagamente progressistas 2 (...). Em 1877, já como experimentado
propagandista revolucionário, havia cumprido pena na fortaleza de Pedro-e-
Paulo e fora herói de uma fuga sensacional. A essa altura Bakunin já estava
morto e Kropotkin tomou rapidamente o seu lugar como principal expoente
do anarquismo. (...) O que o atraia era o aspecto positivo e construtivo do
anarquismo, a visão cristalina de um paraíso reconquistado e contribuiu para
1 Publicado no Brasil com o título: “O Estado e seu papel histórico” pela editora Imaginário, 2000. 2 Uma nota sobre a tradução. Escolhemos o termo progressista ao invés de liberal, como estava na
tradução. Entendemos que o termo escolhido representa melhor a perspectiva do autor do que o liberal,
que nos EUA, por exemplo, tem uma conotação diferente da brasileira, onde predomina a tradição
interpretativa europeia, mais particularmente francesa.
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sua elaboração através de seu treinamento científico e do seu invencível
otimismo. (...) Pessoalmente, Kropotkin era amável a ponto de ser quase um
santo. A essa santidade leiga ele juntava uma originalidade de pensamento
que o tornou respeitado em todo o mundo ocidental como cientista e filósofo
social. (...) Na medida em que o anarquismo passou a ser considerado uma
teoria séria e idealista de transformação social, e não mais uma doutrina de
violência de classes e de destruição indiscriminada, Kropotkin foi o principal
responsável por essas mudanças. (...) Embora Bakunin e Kropotkin fossem
tão diferentes quanto ao caráter e representassem aspectos tão distintos do
anarquismo, as diferenças entre eles não eram fundamentais. A destruição de
um mundo injusto de desigualdade e governo estava implícita na atitude de
ambos, assim como a visão de um mundo novo, pacífico e fraternal,
erguendo-se, qual fênix, das cinzas do velho mundo. (Woodcock, 2010: 207-
209).
Kropotkin, como defensor do comunismo-anarquista, influenciou grandes
gerações de revolucionários no início do século XX, principalmente nos países latinos.
Através de uma escrita elegante, ao mesmo tempo, didática, objetiva e extremamente
radical, propagou a defesa da plena liberdade, da igualdade e do autogoverno. Com
efeito, podemos chamá-lo de um “revolucionário poeta da prosa.”
Asseverou que o regime capitalista baseia-se pela apropriação indébita por
alguns daquilo que é produzido na sociedade. Também criticou o socialismo autoritário
não só por não representar os interesses dos trabalhadores, negando-lhes a liberdade e o
bem-estar, mas, sobretudo, porque resultaria em ditadura. Portanto, alertou
definitivamente para o papel do Estado na sociedade que, no capitalismo, defenderia
prioritariamente os interesses dos donos de capital; no socialismo autoritário, defenderia
os desejos dos burocratas.
AJUDA MÚTUA
Para inserir o pensamento anarquista, e, particularmente o de Kropotkin, no seio
das Ciências Sociais é necessário entender como o princípio da ajuda mútua é
sustentado. Entretanto, antes é fundamental compreendermos alguns postulados que
guiam o pensamento hegemônico liberal e/ou autoritário vigente.
O código que norteia majoritariamente as interpretações políticas e sociais até
então, estavam baseados nos seguintes pilares:
1) Na perspectiva segundo a qual a “luta de todos contra todos”, constitui-se
na regra da humanidade. Esta é melhor representada pelas letras tanto de Maquiavel em
“O Príncipe”, como de Thomas Hobbes, sobretudo em “O Leviatã” (1651); como
derivação direta desta, os homens deixam-se levar por suas paixões malévolas, que
devem ser controladas (Maquiavel e Hobbes);
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2) Na justificativa da existência da propriedade privada, livre de qualquer
compromisso social, e das consequências trazidas por ela, como o individualismo, a
competição, a desigualdade social, o capitalismo, tal como defendido por John Locke
(1689);
3) Na ideia da legitimidade do Estado, representada como essência da razão
(Hegel), da garantia da longevidade e da segurança (Hobbes), cujo objetivo precípuo é
sustentar a estabilidade política (Maquiavel), através de instituições delimitadas
(Montesquieu) com papel específico de garantir a propriedade privada (Locke) e o livre
mercado (Adam Smith);
4) Na conjectura de que a “avareza, ou o desejo do ganho, como paixão
universal que age em todos os tempos, em todos os lugares e sobre todas as pessoas
(Hume).
5) Na ideia dos chamados darwinistas sociais que, a partir de uma simbiose
entre darwinismo e sociologia, fertilizaram um terreno que fortaleceu as bases centrais
tanto do pensamento liberal, quanto do autoritário, sustentados no estímulo à
competição, na defesa de sua naturalidade, bem como, na negação da possibilidade de
igualdade econômica e social e de uma vida sem a coerção do Estado.
Com efeito, os opositores do anarquismo buscavam – ou suas conclusões
ajudavam a – legitimar um mundo competitivo fundamental ao regime do capital.
Em diapasão diametralmente oposto, Kropotkin defende a tese da ajuda mútua
como fator de evolução. Sua obra sustenta-se em longa pesquisa sobre a vida de
diversas espécies3 e da história da humanidade, com largo debate com as descobertas de
Darwin e com as leituras de muitos darwinistas, segundo os quais existiria uma luta
cruel pelos meios de subsistência entre animais que pertenciam à mesma espécie.
Com vistas a melhor entendermos as opções metodológicas de Kropotkin, é
mister ressaltar a influência do iluminismo no século XIX e, portanto, a valorização da
ciência e da razão. A pesquisa empírica sobressai diante da meramente dedutiva e
lógica. Kropotkin, por sua vez, entendendo os sinais do seu tempo, optou por rebater a
ciência com ciência, a evolução com evolução, o progresso com progresso, a razão com
razão. Ele fez o que podemos chamar nas ciências sociais de crítica interna; isto é,
utilizou os mesmos instrumentos do pensamento hegemônico para chegar a conclusões
3 Com vistas a combater as teses ególatras vigentes, sustentadas tanto por liberais quanto por darwinistas
sociais, Kropotkin produz toda uma discussão sobre as mais diferentes espécies como as formigas, leões,
pardais, roedores e muitas outras.
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absolutamente opostas, mas incontestáveis metodologicamente. Além do mais, ele
ampara-se em pesquisas históricas e empíricas, e não em deduções ditas racionais como
fizeram, por exemplo, John Locke e Thomas Hobbes.
Por consequência, seu trabalho sobre as diferentes espécies é extremamente
relevante como pesquisa científica4, ademais, indubitavelmente, sua maior preocupação
estava na possibilidade de comprovação da importância da ajuda mútua entre os
homens. É por isso que a segunda parte da obra é toda dedicada às diversas formas de
organização social, desde os selvagens até a sua sociedade do século XIX, que segundo
ele parecia estar baseada “no princípio de ‘cada um por si e o Estado por todos’, mas
que nunca conseguiu e nunca conseguirá tornar-se realidade” (Kropotkin, 2009: 16).
Através dessa pesquisa, o autor percebe que o mutualismo foi o principal fator
para a sobrevivência, seja entre diversas espécies de animais, seja entre os homens. Em
outras palavras, esse postulado, importantíssimo, basilar do pensamento político anarco-
comunista, consiste no entendimento de que a ajuda mútua consubstancia-se na regra
das espécies mais bem-sucedidas. Em qualquer circunstância, a sociabilidade é a
principal arma pela vida, inclusive, da espécie humana, cuja sobrevivência foi resultado
da solidariedade recíproca. Aqui, mais uma vez, Kropotkin está meramente
reproduzindo aquilo que figura normalmente na vida das pessoas comuns que em sua
prática cotidiana estão acostumadas a dividir e a se ajudar mutuamente. Isto parece tão
óbvio, mas dada a cortina de fumaça que nos é jogada cotidianamente para amparar
privilégios, somos levados a ter dúvidas sobre a nossa realidade.
Utilizando argumentos fortes, o autor afirma: “a antropologia tem demostrado
até à saciedade que o início da humanidade não foi a família, mas sim, o clã, a tribo.”
Assim, continua, “toda a tribo caçava ou procedia em comum à contribuição voluntária;
e, uma vez, saciada a fome, entregava-se apaixonadamente às suas danças exageradas.”
Nessas condições, a acumulação da propriedade privada era impossível, visto que tudo
que tivesse pertencido a qualquer membro da comunidade era destruído no mesmo local
onde fosse enterrado o cadáver.
Ampliemos nossa análise.
Kropotkin ao fazer a defesa da ajuda mútua, amparado nos estudos
antropológicos, fica habilitado para sustentar o comunismo-anarquista, caracterizado
4 Esse foi seu maior e mais documentado trabalho. São quase 300 páginas de grande discussão
bibliográfica e de pesquisa de campo. Como debatia com o darwinismo, a perspectiva da evolução,
característica daquela obra, era sempre usada por Kropotkin.
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pela solidariedade e pelo livre entendimento das pessoas, sem a necessidade de uma
instituição que contenha seus sentidos utilitaristas. O supracitado princípio tem a mesma
importância para o pensamento do anarco-comunismo que aquele defendido pela
perspectiva lockiana, alicerce do pensamento liberal, de acordo com o qual no estado de
natureza já existia a propriedade privada.
Com essas argumentações, Kropotkin legitima a defesa do mutualismo como
parte da estratégia da melhor sobrevivência da humanidade. Desta forma, ele nega e
desqualifica a perspectiva liberal, baseada na concorrência, no individualismo, no
utilitarismo, em última instância, no princípio hobbesiano, de guerra de todos contra
todos no estado de natureza. Ao mesmo tempo, combate o darwinismo social, baseado
na perspectiva, segundo a qual os mais fortes sempre vencem, imbuídos da primazia da
competição.
A partir dessas teses, ele pode justificar a ideia da prevalência da solidariedade,
do amor a si e ao próximo, do trabalho em comum, do coletivo, em um conceito: o
comunismo-anarquista.
A conquista do pão e o comunismo-anarquista
Entendido como se sustenta a defesa da ajuda mútua como um instrumento
fundamental para a boa vida na sociedade, amparado na história da humanidade, agora
já temos melhores condições de compreender a defesa do bem-estar para todos tão
propalada pelo autor.5
Kropotkin elucida que toda riqueza produzida nas sociedades, cada descoberta,
cada progresso, cada aumento do patrimônio humano constituem-se, em seu conjunto,
como resultado do acúmulo do trabalho intelectual e físico feito no passado e no
presente.
Até aqui ele parte do pressuposto de Proudhon, segundo o qual a herança da
humanidade é coletiva. Porém ressalta: é impossível mensurar a contribuição de cada
um no processo. A partir dessa premissa simples, defende uma tese absolutamente
idiossincrática, a saber: tudo que é produzido na sociedade deve pertencer a todos, sem
distinção, basta contribuir com a cota de trabalho para ter direito a receber parte da
produção e isto deve acontecer de acordo com a necessidade do indivíduo, não com
fórmulas que julgam mensurar a contribuição de cada um.
5 O melhor desenvolvimento dessa tese aparece no livro a “Conquista do pão” [1888] (1975).
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Diz Kropotkin (1953:14): “basta dessas formulas ambíguas, tais como: ‘direito
ao trabalho’ ou ‘a cada um o direito integral de seu trabalho’. O que nós proclamamos é:
o direito ao bem-estar – o bem-estar para todos”.
No entanto, como o autor nos convence dessa questão? Com suas palavras.
Nas sociedades civilizadas somos ricos. Como se explica tanta miséria ao
nosso redor? (...) Gerações inteiras, nascidas e mortas na miséria, legaram
esta imensa herança ao séc. XIX. Em milhares de anos, milhões de homens
trabalharam em desbastar os matos, dissecar os pântanos, abrir estradas, a
margear os rios. Cada hectare do solo que se cultiva na Europa foi regado
pelo suor de diversas raças; cada estrada tem uma história das fadigas do
trabalho humano, dos sofrimentos do povo. (...) Todas as máquinas têm a
mesma história de noites em claro e de miséria, de desilusões e de alegrias;
melhoramentos parciais achados por diversas legiões de obreiros
desconhecidos que vinham acrescentar ao inverno primitivo esses pequenos
nadas, sem os quais a ideia mais fecunda fica estéril. (...) se os filhos dos que
morreram aos milhares, abrindo as vias e os túneis dos caminhos de ferro, se
apresentassem esfarrapados e famintos a reclamar pão aos acionistas,
encontrariam as baionetas e a metralha para os dispersar e por a salvo os
direitos adquiridos. (...) Nestas condições, com que direito poderá alguém
apropriar-se da mais insignificante parcela deste todo imenso e dizer: Isto é
meu, não vos pertence. (Kropotkin, 1975:26)
A partir desses introitos, façamos um exercício de atualização de suas críticas,
com apoio em algumas inferências simples.
Primeiro, é importante resgatar um ensinamento muito antigo. Devemos
relembrar que uma pessoa, a mais inteligente possível, vivendo sozinha em uma ilha,
mesmo com toda a estrutura, como comida, segurança etc., não saberia falar uma única
palavra. Simplesmente, porque o conhecimento que a humanidade produz, inclusive da
língua, é resultado da interação com outras pessoas, da interação coletiva na sociedade.
Ela aprende a falar ouvindo os outros. Essa simples advertência popular ratifica um
princípio de que nosso conhecimento é fruto da vida em sociedade, da interação social.
Dito isso, podemos ampliar nosso exercício de reflexão.
Imaginemos que algum cientista tenha alcançado o conhecimento da cura do
câncer. O pensamento anarco-comunista entenderia que isso seria maravilhoso para
todos. Nesse sentido, o avanço científico e tecnológico é entendido como um benfazejo
para a humanidade. Não obstante, sob o regime capitalista essa descoberta rapidamente
seria transformada em mercadoria. Kropotkin criticava veementemente essa perspectiva
do regime do capital, marcado pela alienação social, cuja apropriação individual
privada, com fins de obtenção de lucro se sobrepõe à custa do trabalho da sociedade.
Continuemos a utilizar os princípios do anarco-comunismo para entender a
nossa realidade.
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Para que chegasse a esse extraordinário feito (a descoberta da cura do câncer), o
cientista se valeu de todo o conhecimento acumulado do passado e do presente. Do
passado, foi necessário que diversas descobertas tivessem sido feitas, como, por
exemplo, a lâmpada, a eletricidade, a internet, o ar condicionado ou aquecedor, outras
pesquisas na saúde etc. A lista é imensa. Tudo isso foi necessário para que sua pesquisa
não partisse do zero e tivesse condições objetivas de trabalho que lhe proporcionassem
conforto e meios para realizá-la. Do presente, enquanto ele ficava estudando para chegar
ao resultado da pesquisa, outras pessoas aravam a terra, plantavam, colhiam e faziam
chegar o alimento a sua casa. Muito provavelmente, ele não precisava dispor de tempo
para fazer sua comida, pois alguns outros empregados se encarregavam dessa tarefa.
Como consequência dessas condições foi possível que um determinado indivíduo, ou
um conjunto deles, chegasse à descoberta tão necessária para toda a coletividade. Esse
indivíduo ou esse grupo têm mérito, é claro, mas sem o trabalho de um incontável
número de pessoas acumulado do passado e do presente, não seria possível que se
chegasse a esse avanço científico.
Os principais aprendizados da ponderação supracitada são: 1) todos dependemos
uns dos outros para melhor viver; 2) tudo que é produzido na sociedade não pode ser
apropriado como propriedade privada por ninguém. Essas são as principais regras da
sociedade. Nenhuma pessoa pode dizer que é autossuficiente. Todos dependem da ajuda
de outros para sobreviver desde o nascimento. Um ensinamento óbvio que muitos
arrogantes teimam em não querer enxergar e que o pensamento liberal busca combater
com toda força. Além disso, todo o conhecimento da humanidade é produzido de forma
coletiva.
A partir desses comentários, chegamos a uma simples conclusão: se
concordamos com o fato de que tudo que é produzido na sociedade é resultado do
acúmulo do conhecimento do passado e do presente, incluindo um número infinito de
pessoas responsáveis, sendo impossível mensurar a contribuição de cada uma no
processo, logo é inviável e injusta a apropriação individual de qualquer descoberta
científica, tecnológica. A descoberta da cura do câncer sob a ótica anarco-comunista
deveria ser considerada como resultado do trabalho coletivo da sociedade e não ser
apropriada como propriedade privada de uma única pessoa ou grupo de pessoas. Sendo
assim, buscar lucro sobre essa e qualquer outra descoberta constitui em uma apropriação
indébita do esforço conjunto de diferentes trabalhadores anônimos do presente e do
passado.
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Por consequência, já temos dados importantes para podermos entender como se
justifica a defesa de várias teses do pensamento anarco-comunista de Kropotkin.
Partindo da premissa, segunda a qual tudo que é produzido na sociedade é
resultado do trabalho de um número incontável de pessoas; a propriedade privada, não
tem como se justificar. Daí a necessidade da expropriação. Como derivação dessa, tudo
que é produzido deve ser apropriado por todos os trabalhadores sem distinção. Logo, os
produtos da sociedade devem ser distribuídos para todos através de uma única
preocupação: o direito ao bem-estar.
Mas como? Teremos produção suficiente para todos? Pergunta com razão o
leitor. Kropotkin usa vários argumentos para legitimar suas teses. Vejamos.
Hoje, o homem ao nascer encontra um capital imenso, acumulado pelos seus
antepassados. (...) Falta o sol? O homem cria o calor artificial. (...) Cem
homens com boas máquinas produzem em poucos meses o alimento
necessário para dez mil pessoas. (Kropotkin, 1953:06).
Assim, diferente de outros autores que inclusive reivindicam o anarquismo,
Kropotkin defende que o avanço científico e tecnológico deve estar a serviço de todos,
não de alguns, ou como mercadoria, como vemos hoje sob o regime capitalista. Ele não
vê um mal em si no industrialismo, mas na forma como o seu produto é apropriado. Por
isso o progresso é muito bem-vindo e deve inclusive ser almejado, entretanto sempre
deve estar a serviço de todos, simplesmente por ser produto do trabalho social, desde
que o trabalho não seja meramente embrutecedor, como ressaltaremos adiante.
Nesse sentido, advoga o anarquista: se todos trabalharem na produção de
alimentos e utensílios de reais necessidades da população, aumentaremos
substantivamente a produção social. Se o que estiver definido for o bem-estar como
objetivo e não os lucros, como é hoje, não precisaremos parar a produção ou destruir
mercadorias para manter os preços dos produtos altos. Além do mais, com a destruição
do Estado e o fim de todos os seus funcionários, esse enorme contingente de militares e
burocratas, que nada produzem, passarem a trabalhar de maneira produtiva, teremos um
aumento muito significativo da produção. Com efeito, de imediato podemos garantir o
fim da fome e da miséria no mundo. Depois vamos atender as necessidades das pessoas.
Tudo isso com uma jornada de trabalho bastante baixa para garantir amplo tempo de
lazer. Esse é o caminho apontado por Kropotkin para chegarmos ao bem-estar para
todos.
Atualmente, continua o autor:
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Tudo o que foi produzido pela humanidade foi usurpado por alguns. (...) Em
virtude dessa organização monstruosa, quando o filho do trabalhador, ao
entrar na vida, não encontra nem um campo que possa cultivar, nem uma
máquina que possa manejar, nem uma mina que possa explorar, sem ceder a
um senhor uma boa parte do que produzir. (Kropotkin, 1975: 27).
Esse aspecto, que podemos chamar de coação capitalista, associado à divisão
social do trabalho, amplamente combatida por Kropotkin, sustentam o regime
capitalista. Cabe destacar que no modelo socialista de Estado isso não foi alterado. O
principal proprietário deixou de ser o indivíduo privado para ser o Estado onipotente. A
divisão social do trabalho tão ruim para o trabalhador permaneceu intacta.
O grande objetivo do autor é convencer sobre a vida melhor para todos no
anarquismo. Para tanto, argumentava que se o homem: 1) agisse de maneira racional,
apropriando-se das descobertas cientificas do passado e criando outras em benefício da
humanidade; 2) cumprisse suas atividades no trabalho socialmente útil, eliminando
todas as atividades não produtivas; 3) distribuísse a produção de acordo com a
necessidade de cada um; 4) chegaríamos ao bem-estar para todos!
Em função dessa análise, Kropotkin defende:
É tempo do trabalhador proclamar o seu direito à herança comum e dela
tomar posse definitivamente. (...) ‘Tudo é de todos!’ E desde que o homem e
a mulher contribuam para a comunidade com a sua quota parte de trabalho,
adquirem o direito à quota parte de tudo o que se produzir sobre a terra. E
esta participação do todo dar-lhes-á o bem-estar. (Kropotkin, 1975: 31).
Destarte, ele justifica a expropriação. Para atingir o bem-estar para todos é
necessário atacar o sustentáculo central do capitalismo: a propriedade privada. Vejamos
a forma leve com que ele justifica a expropriação.
Para que o bem-estar seja uma realidade é necessário que esse imenso capital:
cidades, casas, campos, oficinas, vias de comunicação etc. deixe de ser
considerado propriedade privada de que o usurpador dispõe a seu bel-prazer.
É preciso que tudo isso, construído, aperfeiçoado pelos nossos antepassados
obtido com tanto trabalho, se torne propriedade comum, a fim de que o
espírito coletivo tire dela o máximo proveito para todos. É preciso a
expropriação. (Kropotkin, 1975: 31).
Karl Marx, principalmente no capítulo vinte e quatro de “O Capital”, demonstra
como a expropriação do campesinato do campo serviu de mola-mestra para o
funcionamento do capitalismo. Kropotkin, relativamente junto com Marx, defende que a
fonte de toda riqueza constitui-se na existência de miseráveis.
Temos afirmado mais de uma vez que a miséria foi a origem primária das
riquezas. Foi ela que criou o primeiro capitalista, porque antes de acumular
os lucros de que tanto gostam de conservar, ainda era preciso que houvesse
miseráveis que consentissem em vender a sua força de trabalho para não
morrerem de fome. É a miséria que faz os ricos. E se os seus progressos
foram rápidos no curso da Idade Média, é porque as invasões e as guerras que
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seguiram a criação dos Estados e o enriquecimento pela exploração no
Oriente quebraram os laços que outrora uniam as comunidades agrárias e
urbanas e as levaram a proclamar, em lugar da solidariedade que praticavam
antes, esse princípio de salariado, tão caro aos exploradores. (Kropotkin,
1953: 162).
Crítica à divisão social do trabalho e ao sistema do salariado 6
Ao analisar o pensamento de Kropotkin, podemos perceber uma crítica bastante
contundente tanto ao regime assalariado quanto ao seu corolário, a divisão social do
trabalho, segundo o qual não se justificam, pois é impossível mensurar a contribuição
do trabalho de cada um para receber sua parte na divisão do produto. Todo trabalho
assalariado significa exploração do tempo de produção alheio em favor do patrão.
Todavia, vamos por parte. Comecemos com a descrição da crítica à divisão social do
trabalho.
Kropotkin, ao se colocar veementemente contra a divisão social do trabalho, cita
Adam Smith, seu principal proponente, descrevendo o seu apelo pela especialização:
“dividamos o trabalho, especializemos sempre, tenhamos ferreiros que só saibam fazer
cabeças ou bicos de pregos, e desta maneira produziremos mais e enriqueceremos”.
Kropotkin retruca:
Quanto a saber se o ferreiro que tiver sido condenado a fazer cabeças de
prego toda a vida não perderá o interesse pelo trabalho; se com esta tarefa
limitada não ficará completamente à mercê do patrão, e se o seu salário não
baixará quando puder ser substituído por um aprendiz, nisso não pensava
Smith quando exclamava: ‘viva a divisão do trabalho!’. (Kropotkin, 1975:
226-227).
Aqui estão contrapostas duas posições antagônicas que expressam diferentes
metodologias: a do liberalismo representada por Adam Smith e a de Piotr Kropotkin,
simbolizando o anarquismo. Aquela está preocupada com a produção e com a sua
velocidade, independente do resultado dela para a vida e o bem-estar do produtor. Daí a
defesa incondicional da especialização. O foco está na produção e, consequentemente,
no lucro que se deve almejar com ela. Este se constitui em mais um princípio
metodológico do pensamento liberal. Já a interpretação anarquista joga luz sobre o
resultado dessa especialização para os vendedores de força de trabalho. Sem negar
algumas poucas vantagens que a divisão social do trabalho possa trazer, os prejuízos são
imensamente maiores, pois não é possível que um ser humano seja feliz fazendo cabeça
6 Aqui vale destacar que Kropotkin não é o primeiro a fazer a crítica à divisão social do trabalho, nem ao
sistema do salariado. Proudhon (1846) já havia realizado reprovações a estes princípios do capitalismo de
modo contundente e por uma perspectiva anarquista.
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de prego a vida toda! Com toda a razão, ele não gostará de trabalhar. Além disso, a
tendência é que ele se embruteça como consequência desse processo. De acordo com o
pensamento do autor:
O capitalismo divide os homens em duas classes: dum lado, os produtores
que consomem muito pouco e são dispensados de pensar porque precisam
trabalhar, - e trabalham mal porque o seu cérebro permanece inativo; de
outro, estão os que consomem, produzindo pouco ou quase nada, com o
privilégio de pensar pelos outros, - e pensam mal porque desconhecem um
mundo enorme, o dos trabalhadores braçais. (Kropotkin, 1975: 228).
Em contraposição à especialização proposta pelos liberais e mantida pelos
socialistas governamentais, diversas pessoas formam um contingente enorme e são
plenamente descartáveis para o sistema. Elas não possuem ideia alguma do conjunto da
máquina, nem da indústria. Em comum, todas tendem a perder o gosto pelo trabalho,
mas sobretudo as capacidades de invenção e criação tão necessárias para uma sociedade
igualitária. Em síntese: a especialização gera um enorme lucro para o capitalista,
todavia, não beneficia a sociedade, tampouco, o trabalhador, ao contrário, o embrutece.
Ademais o preceito de salariado caracteriza-se como princípio sustentador do
capitalismo e é outro alvo de críticas contundentes de Kropotkin. Suas reflexões são
bastante peculiares e importantes. Vejamos:
Eis o sistema do salariado. Para salvá-lo os atuais detentores do capital
estariam dispostos a fazer certas concessões como, por exemplo, dividir uma
parte dos lucros com os trabalhadores ou estabelecer uma tabela de salários
que obrigasse a elevá-los quando o lucro subisse; em suma, conformar-se-iam
com um certo número de sacrifícios contanto que lhes deixassem o direito de
gerir a indústria e arrecadar os dividendos. (Kropotkin, 1975: 80).
Nesse momento, o autor estava prevendo aquilo que aconteceria somente
décadas depois de seus escritos, trata-se da criação de direitos sociais e até um pouco de
participação nos lucros existente em algumas empresas pelo mundo. Direitos sociais
sem emancipação social e, portanto, com a exploração dos proprietários garantida sobre
os governados.
Assim, na visão do autor, a principal característica do capitalismo constitui-se no
sistema de salariado. Situação que legaliza e legitima o regime, garantindo a exploração,
devendo ser, portanto, amplamente combatida, junto com o direito de propriedade
privada.
Sobre a postura dos socialistas autoritários, o “visionário” Kropotkin previa
aquilo que se concretizou anos depois: “como se sabe, (os socialistas autoritários)
propõem modificações importantes no regime capitalista, mas não tocam no salariado. A
diferença está apenas em ser o patrão substituído pelo Estado, isto é, pelo governo
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representativo nacional” (Kropotkin, [1888]1975: 80). É mister lembrar que o
socialismo de Estado não só não fazia crítica ao trabalho assalariado, como o manteve
depois de suas revoluções. 7
Podemos concluir que na interpretação kropotkiana tanto a divisão social do
trabalho, quanto o sistema do assalariamento, são amplamente desfavoráveis aos
trabalhadores e favoráveis aos governantes da economia e da política que se apropriam
da produção. Com efeito, inevitavelmente surge a crítica ao fordismo industrialista por
meio da valorização de alguns postulados da Idade Média.
Cabe uma importante ressalva, diferente de alguns outros libertários, como
Simone Weil, por exemplo, o autor não é contra o industrialismo em si e por si, todavia
critica sua forma de organização que embrutece o trabalhador e está totalmente a
serviço dos interesses de lucro capitalista. Ademais, aparecem algumas teses
desenvolvidas principalmente no texto o “Estado e seu papel histórico” (2000), a saber:
a liberdade do povo é o principal combustível para a livre criação e portanto para o
progresso, proporcionando um avanço científico e tecnológico muito maior.
A Defesa incondicional da liberdade e a crítica ao Estado
De acordo com o pensamento anarco-comunista, existem dois princípios em
disputa ao longo da história da humanidade: o da liberdade e o da coerção. O da
liberdade é amplamente defendido pelos anarquistas, únicos que podem fazer isso sem
entrar em contradição com suas teses. A defesa do princípio da coerção é representada
pelos defensores do Estado que significa a ordem e o governo de uns sobre outros.
Vejamos a passagem abaixo que exemplifica muito bem a questão, destacando uma
crítica peculiar kropotkiana à percepção de que o capitalismo seria um progresso para a
humanidade.
Só nós ousamos afirmar que punição, polícia, juiz, fome e salário nunca
foram, e jamais serão, um elemento de progresso; e se há progresso sob um
regime que reconhece esses instrumentos de coerção, esse progresso é
conquistado contra esses instrumentos, e não por eles. (Kropotkin: 2007:36)
Na citação acima estão algumas críticas clássicas do pensamento anarquista às
outras ideologias, que não apenas veem o capitalismo como progresso, como também
7 Aqui é importante citar que um setor bastante minoritário dentro do marxismo, chamado por
conselhistas, tendo as reflexões de Anton Pannekoek e outros como referência, também produziu severas
críticas ao socialismo de estado defendido e implementado pelos principais teóricos da Revolução Russa.
Assim, ao longo desse trabalho quando estivermos falando do marxismo estaremos nos referindo as suas
correntes majoritárias.
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todos os elementos autoritários sustentadores de hierarquias e desigualdades. Por certo,
elas não recriminam a existência de punição, polícia, e juiz, presentes nas democracias
liberais e nos socialismos autoritários. Esses approaches estão imbuídos da perspectiva
da “Estadolatria”, idolatria do Estado, enquanto instituição necessária para a sociedade;
ou nos termos de Bakunin: estatismo. Quando não pregam veementemente a
necessidade de coerção estatal para melhor garantir a vida em sociedade, ou mesmo
implantar a igualdade, preconizam em última instância seus dotes de razão, seja para
defesa de toda sociedade, seja para garantir os interesses de uma classe social. Em todos
esses casos, a liberdade é sacrificada em nome da coerção estatal.
Com efeito, Kropotkin critica as escolas alemã e francesa que teimam em
confundir o Estado com a sociedade.
E é esta a razão porque, contínua e habilmente, esses pensadores censuram os
anarquistas por ‘quererem destruir’ a sociedade, por ‘pregarem o retorno à
guerra perpétua de cada um contra todos’. (...) O Estado não é senão uma das
formas revestidas pela sociedade no decorrer da história. Como, pois, se pode
confundir a Sociedade, que é permanente, com o Estado, que é acidental?
(Kropotkin, 2000: 09).
O pensamento anarco-comunista se coloca num polo veementemente oposto às
perspectivas de Hegel, baseadas na valorização extremada do papel do Estado na
sociedade, funcionando como a base do pensamento moderno. Todas as diferenças entre
as doutrinas iluministas de pensamento se encerram diante da concordância com o
Estado, mesmo depois de revoluções, como no caso dos setores amplamente
majoritários do marxismo. Como consequência dessa perspectiva, a instituição estatal é
normalmente confundida com a sociedade, como se se constituísse em um mecanismo
de salvação da mesma.
Na contramão das análises liberal e marxista, iluministas, em particular, o autor
pratica uma exaltação da Idade Média como um período histórico de grande
desenvolvimento científico e tecnológico, além de político.8 A organização em comunas
livres, em federações, a seu ver, foi exatamente o motor desse desenvolvimento que
durou até a criação do Estado, cujo papel precípuo foi de acabar com toda a autonomia
8 Os momentos mais ricos e abundantes de instituições de ajuda mútua, bem como de progresso nas artes,
na indústria e na ciência foram encontrados por Kropotkin nas cidades gregas antigas e nas cidades-
repúblicas livres da Idade Média, que violentamente foram destruídas pelo Estado, seguindo um padrão
referencial do Império Romano. É, portanto, a partir da Idade Média que Kropotkin desenvolve suas teses
acerca da formação da nossa civilização. O Estado representa, então, uma instituição exterior à sociedade
servindo para coibir e controlar o pleno desenvolvimento das liberdades da maioria em favor de uma
minoria. Ele materializa-se em coerção.
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das comunidades, seguindo o principal princípio estatal: não permitir um Estado dentro
do outro.
O Estado não pode reconhecer no seu seio uma união livremente consentida,
por esta simples razão: é que o Estado só quer súditos. Unicamente ele e a
sua irmã, a Igreja, é que se arrogam o direito de servir de laço de vínculo de
união entre os homens (...) o Estado devia, forçosamente, aniquilar as cidades
baseadas na união direta entre os cidadãos. Devia abolir toda a união dentro
da cidade, abolir mesmo a própria cidade, assim como toda a união direta
entre as cidades. O princípio federativo devia substituí-lo pelo princípio de
submissão e disciplina. Porque é esta substância o princípio puro do Estado.
(Kropotkin, 2000: 61).
A descrição de Kropotkin nos chama a atenção para a luta incessante do Estado
nascente contra as comunas, as cidades livres e suas federações. A vitória do modelo
moderno estatal ocorre no século XVI, contudo até então se produziu um imenso
movimento popular – religioso, quanto a sua forma e expressões; porém eminentemente
igualitário e comunista quanto às aspirações gerais. São exemplos, as sublevações da
Jacquerie, em 1358 na França, e a de Wat Tyler, em 1381 na Inglaterra. No século XVI,
houve um movimento análogo no centro da Europa. Na Boemia teve o nome de hussita;
e de anabatista, na Alemanha, Suíça e nos Países Baixos. Pode-se afirmar que além de
constituírem uma revolta contra os senhores, portavam outras características que os
colocavam como extremamente críticos do Estado, da Igreja, do direito romano, do
direito canônico, em nome de uma espécie de cristianismo primitivo (Kropotkin, 2000:
56-57).
Na passagem da Idade Média para a Moderna, o Estado proibiu todas as
alianças, todos os conluios, todas as associações entre os camponeses. Kropotkin cita
alguns decretos dos reis da França e da Inglaterra sobre o assunto.
E a glorificação do Estado e da disciplina, na qual estão empenhadas a
Universidade e a Igreja, a imprensa e os partidos políticos, é tão bem feita
que, até os chamados revolucionários não ousam olhar de frente para este
fetiche. Assim, o radical moderno é centralizador, estatal, jacobino ferrenho.
(...) E como o florentino dos fins do século XV, que não sabia senão invocar a
ditadura e o Estado para se salvar das arremetidas dos patrícios, o socialista
dos nossos dias não sabe, como ele, senão invocar, em todos os sentidos, os
mesmos deuses: o Estado e a ditadura para se salvar das abominações e
ignomínias do regime (...) criadas pelo mesmo Estado e pela mesma ditadura!
(Kropotkin, 2000: 85-86).
Por fim, depois de ampla descrição sobre como o Estado moderno surgiu,
Kropotkin resume o seu pensamento sobre o mesmo:
Nós vemos no Estado uma instituição desenvolvida através da história das
sociedades humanas para impedir a união direta entre os homens, para
entravar o desenvolvimento da iniciativa local e individual, para aniquilar as
liberdades que existiam, para impedir a sua nova eclosão e para submeter as
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massas aos interesses, egoísmos e ambições das minorias ociosas e
autoritárias. (Kropotkin, 2000: 86).
Ainda no sentido de combater a tese da quase naturalidade do Estado, Kropotkin
recorre aos estudos antropológicos sobre as sociedades primitivas, pré-estatais. Com
efeito, conclui que a acumulação da propriedade privada era impossível no meio dos
clãs. Além disso, a ausência do Estado garantia a liberdade de seus membros não sendo
considerado uma falta, ou ausência,9 como décadas depois elucidaram as pesquisas de
Pierre Clastres (2003) e David Graeber (2011), sobre a vida pré-estatal ameríndia.
Em epítome, podemos destacar, a partir das teses de Kropotkin, um importante
contraponto com o pensamento moderno e iluminista, em particular, com os ideais
liberais e marxistas, que entendem a Idade Média como tempos das trevas. É claro que
liberalismo e o marxismo estão embebidos da perspectiva de progresso, sendo para este
um momento histórico que cumpriu seu papel, conquanto para o bem da humanidade
deveria ser superado pelo capitalismo. Este significa para o liberalismo o ápice do
desenvolvimento para a humanidade, sendo para o marxismo apenas um estágio
superior com relação ao feudalismo medieval e inferior com relação ao socialismo
governamentalista do futuro.
Como a perspectiva anarco-comunista não é apenas defensora do progresso por
ele mesmo, como muito equivocadamente alegam, mas sobretudo da garantia da
liberdade e da igualdade para a humanidade, ela não vê grandes vantagens no
capitalismo com relação ao regime da Idade Média, como liberais e marxistas,
inclusive, porque os trabalhadores passaram a ter que produzir mais em menos tempo e
sob condições piores. Com efeito, esta constatação abala os argumentos que buscam
enquadrar o pensamento de Kropotkin como meramente evolucionista.
Vejamos agora como a educação cumpre o papel de legitimar a instituição
estatal.
Papel da educação e da grande mídia
Kropotkin ainda trata de um tema caro ao pensamento anarquista, sobretudo para
sua corrente, o anarco-comunismo: a educação. Suas palavras soam muito atuais e
9 Kropotkin preocupa-se em combater a tese atribuída aos filósofos do século XVIII, segundo a qual a
família teria sido a origem das sociedades e que num período inicial da humanidade as famílias viviam
distantes e em constante guerra, sendo a criação do Estado por meio de um contrato o responsável por
acabar com a permanente guerra.
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embora não elabore uma discussão muito aprofundada, toca no seu aspecto central e
ligado à política. Vejamos.
A instrução que recebemos desde o ensino das tradições romanas e do código
de Bisâncio que se estuda sob o nome de direito romano, até às diversas
ciências professadas nas universidades, habitua-nos a crer nos governos e nas
virtudes do Estado providência. (...) Conhecemos as menores particularidades
de um rei ou de um Parlamento; tem-se arquivado todos os discursos bons e
maus pronunciados nas assembleias que não causaram absolutamente
influência alguma sobre o voto de um só membro. (...) As visitas dos reis, o
bom ou mau humor dos políticos, as intrigas, tudo isso é cuidadosamente
guardado para a posteridade. (...) Para manter este preconceito inventaram-se
sistemas filosóficos que se ensinam nas escolas, e votaram-se leis que se
impõem aos povos. (...) E todo político, qualquer que seja a sua feição, vem
sempre dizer ao povo: ‘Dai-me o poder, eu quero e posso libertar-vos das
misérias que vos oprimem’. (Kropotkin, 1975: 53).
A educação de um modo geral faz-nos crer no Estado, na democracia
representativa, no nacionalismo e no sistema capitalista como um todo. Por isso se
ensina o hino nacional nas escolas e a participar feliz, de tempo em tempo, votando nas
eleições.
Em outro aspecto, embora no mesmo diapasão, podemos discutir o papel da
grande mídia pelo viés de Kropotkin. Ela exerce a função de informar a partir de seus
interesses econômicos e políticos. Isso todos sabem, nada mais é que resultado da
parcialidade de todos os atores na sociedade. Destarte, reafirmamos a impossibilidade
de existência da neutralidade axiológica defendida por Max Weber. Para além disso,
Kropotkin traz uma crítica pouco realizada sobre a grande imprensa, compondo um
processo pedagógico que nos direciona a pensar pela perspectiva da institucionalidade.
A mesma lição [da educação] repete-a a imprensa em todos os tons.
Consagram-se colunas inteiras aos debates parlamentares e às intrigas dos
políticos, e não é sem dificuldade que a vida quotidiana e imensa duma nação
ali se nos depara reduzida em algumas linhas, tratando dum assunto
econômico a propósito duma lei, ou nas ocorrências, por intermédio da
polícia. Da leitura desses jornais, não se reflete no incalculável número de
seres – toda a humanidade por assim dizer – que crescem e morrem, que
sofrem, que trabalham e consomem, para além do limitado círculo duns
tantos indivíduos de quem glorificamos a tal ponto que as suas sombras,
engrandecidas pela nossa ignorância, lhe ocultam a humanidade [...]
Observem um jornal. As suas páginas ocupam-se exclusivamente dos atos
dos governos e das intrigas políticas. Um chinês que o lesse haverá de supor
que na Europa coisa alguma se faz sem que um mandarim o determine. Veem
ele o que quer que seja sobre as instituições que nascem, crescem e se
desenvolvem sem prescrições ministeriais? Nada ou quase nada! Se ainda há
uma rubrica de casos de rua é porque se relacionam com a polícia. Um drama
de família ou um ato de revolta só serão mencionados se neles entrar a
polícia. (Kropotkin, 1975: 54 e 158).
É deveras impressionante como podemos constatar que as reportagens sobre
política ainda hoje estão embebidas pela perspectiva supracitada. Além do mais, o povo
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e suas ações populares aparecem na grande mídia normalmente como caso de polícia.
Tal como o Estado, os grandes oligopólios de comunicação de massa se colocam como
portadores da razão, ou daquilo que John Rawls chamou de razoável, que evidentemente
para eles significa respeitar as leis de toda natureza que sustentam o capitalismo.
A ideia de revolução
Feitas as críticas ao regime do capital, cuja riqueza é produzida pela exploração
de trabalho alheio, riqueza essa que só acontece em função da miséria da população que
é totalmente dependente da venda da força de trabalho, Kropotkin discursara sobre a
necessidade da revolução. Ela vem associada à perspectiva da expropriação imediata e
do fim do Estado, formando o conceito clássico do anarquismo de revolução social,
diferente do de revolução política, defendido pelo marxismo, caracterizado pela tomada
estatal.
Advoga Kropotkin, “o primeiro ato da revolução deve ser garantir o pão para
todos” por meio da necessidade da expropriação. Assim, discutia as atitudes que os
revolucionários deveriam tomar. A primeira delas era acabar com a fome, distribuindo
alimentos à população, ganhando o apoio imediato da mesma. Para tanto, ele combate
veementemente a proposta dos socialistas autoritários, centralizadores, afirmando que
tal como ocorreu com os jacobinos na Revolução Francesa, aqueles guilhotinariam os
que atentassem contra os armazéns em busca de comida. Seus escritos eram de antes da
Revolução Russa de 1917 e da tomada do poder pelos bolcheviques, contudo sua crítica
é tão certeira que parece realizada depois desses acontecimentos.
Leiamos a desaprovação que Kropotkin faz aos seguidores de K. Marx e a sua
ideia de revolução política.
Os socialistas governamentais, os radicais, os gênios ignorantes do
jornalismo, os oradores de efeito burgueses e ex-trabalhadores – correrão à
casa municipal e aos ministérios para ocuparem suas poltronas devolutas.
Admirar-se-ão nos espelhos ministeriais, ensaiar-se-ão para dar ordens com
um ar de gravidade à altura das circunstâncias. Precisam de um cinto
vermelho, um quepe agaloado e um gesto magistral para se imporem ao ex-
camarada. (...) Redigirão leis, lançarão decretos com palavras bombásticas,
que ninguém pensará em executar, justamente por estar em revolução.
(Kropotkin, 2005: 228).
Como alertou Castoriadis (1982), não se pode discutir o marxismo sem
considerar a sua aplicação na história. Castoriadis se refere ao fato inconteste de que o
marxismo se tornou:
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Ideologia, enquanto dogma oficial dos poderes instituídos nos países ditos
por antífrase ‘socialistas’. Invocado por governos que visivelmente não
encarnam o poder do proletariado e não são também mais ‘controlados’ por
este do que qualquer governo burguês. (Castoriadis, 1982: 21).
Pelo exposto, percebemos que o alerta de Kropotkin sobre a atuação que teriam
os socialistas governamentais no momento da revolução estava correta e se concretizou
com a tomada do Estado pelos bolcheviques na Rússia e em outros lugares sob o manto
do marxismo.
Assim, Kropotkin propõe um conceito de revolução absolutamente
idiossincrático e com práticas igualmente distintas daquelas apresentadas pelo
marxismo-leninismo.
Desde o primeiro dia da revolução o trabalhador deve saber que se abre uma
nova era. Ninguém mais será obrigado a dormir debaixo das pontes, ao lado
dos suntuosos castelos; que não haverá fome enquanto houver comida; que
ninguém tremerá de frio ao lado de armazéns de casacos (...) que tudo seja de
todos na realidade, como em princípio e que enfim na história se produza
uma revolução que cuide das necessidades do povo antes de lhe ensinar a
lição dos seus deveres. (Kropotkin, 1975: 42).
Direito ao bem-estar para todos
Essa revolução social deve trazer prioritariamente o direito ao bem-estar. Ele
deve ser concretizado sem pudor com uma expropriação generalizada, cujo primeiro ato
é garantir o pão para todos, buscando atender as necessidades básicas da população.
Simultaneamente, deve-se deixar a criatividade popular fluir para que possa surgir o
novo, o revolucionário. Não se deve preocupar em estabelecer novas leis, decretos e
enfim novos governantes. Com efeito, o geógrafo russo faz uma boa distinção entre
direito ao bem-estar defendido por ele e o direito ao trabalho defendido pelos socialistas
governamentais.
O direito ao bem-estar é a possibilidade de viver como ser humano e de
educar os filhos para fazer deles membros iguais duma sociedade superior à
nossa, enquanto que o ‘direito ao trabalho’ é o direito de ficar sempre escravo
assalariado, burro de carga, governado e explorado pelos burgueses de
amanhã. O direito ao bem-estar é a revolução social; o direito ao trabalho é,
quanto muito, um degredo industrial. (Kropotkin, 1975: 44).
É importante frisar que esse direito ao bem-estar deve ser criado pelo próprio
trabalhador, o direito de resolver ele próprio o que deve ser este bem-estar, o que é
necessário para produzi-lo e o que deve considerar sem valor para o futuro.
Aqui identificamos mais um grande diferencial entre anarquismo e aquilo que
unifica marxismo e liberalismo. Para os libertários, o povo é dotado de um grande saber
e é capaz de auto-governar-se. Para os liberais e socialistas governamentais, o povo
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deve ser guiado para o que é bom para ele. O povo deve ser dirigido pela intelligentsia
do partido ou do governo. A população deve ser educada a gostar, para os marxistas, da
igualdade, e, para os liberais, da liberdade de mercado. Em síntese, o povo deve
continuar a ser governado, sob argumentação de que isso será para o seu próprio bem.
Esse é um dos principais princípios que justificam os governos, plenamente combatido
pelos anarquistas.
Sobre esse aspecto, Kropotkin reflete da seguinte maneira:
A parte do povo na revolução deve ser positiva, ao mesmo tempo que
destrutiva, pois somente ele pode reorganizar a sociedade em bases de
igualdade e liberdade para todos. Entregar essa tarefa a outros seria trair a
própria causa da revolução.(...) Um povo que souber organizar, por si, o
consumo das riquezas e sua reprodução no interesse de toda a sociedade, não
poderá mais ser governado. Um povo que organizar suas ferrovias, suas
escolas, não poderá mais ser administrado.(...) A verdadeira razão de ser de
uma revolução popular é demolir o Estado, necessariamente hierárquico, para
buscar em seu lugar o livre entendimento entre indivíduos e grupos, a
federação livre e temporária. O povo tentou várias vezes entrar nas esferas do
Estado, apoderar-se dele, servir-se dele. Jamais conseguiu. (Kropotkin,
2007:102).
E continua:
[...] Enquanto a lei permanecer sagrada aos olhos dos povos, enquanto as
revoluções futuras trabalharem pela manutenção e pela ampliação das
funções do Estado e da lei, os burgueses conservarão o poder e dominarão as
massas. (Kropotkin, 2007:100).
Como vimos, trata-se de uma crítica anterior ao advento da Revolução Russa e
que efetivamente se concretizou. O proletariado russo continuou sendo governado, a
divisão social do trabalho permaneceu intacta junto com a existência do capital. Houve
mudança do caráter da propriedade, que passou de privada para estatal, mas em ambos
os casos não pertenceu propriamente ao produtor direto e ao seu coletivo, em extrato,
continuou-se subordinado aos ditames dos governantes e por consequência não ocorreu
a emancipação social.
Conclusão
À guisa de conclusão, o pensamento de Kropotkin pode ser sintetizado na defesa
dos seguintes aspectos: comunismo anarquista; propriedade comum; gestão direta dos
trabalhadores; ajuda mútua, acordo, horizontalidade e solidariedade; coletivismo –
associação voluntária dos indivíduos; distribuição dos produtos da sociedade de acordo
com as necessidades; direito ao bem-estar para todos; internacionalismo, revolução
social. Esse pensamento também pode ser lido por aquilo que se contrapõe:
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anticapitalismo; contra a propriedade privada, a divisão social do trabalho e o regime de
salariado; contra o Estado, as hierarquias, os autoritarismos e a democracia burguesa;
contra o individualismo, o nacionalismo e toda forma de preconceito com o outro. Nos
termos do autor: “contra a ordem”.
Em compendio, sua teoria política ao criticar radical e irredutivelmente o
capitalismo e o Estado, sem qualquer concessão, diferencia-se do marxismo que admite
tanto a existência deste sob o comando dos pseudos representantes dos trabalhadores,
quanto o próprio regime assalariado, portanto a divisão social do trabalho, cerne do
regime do capital. Além dessas críticas, o pensamento do geógrafo russo, combate
veementemente toda forma de autoridade e hierarquia na sociedade. Por esses aspectos,
apenas ratifica seu pensamento como anarquista. Sua grande diferença para Bakunin e
Proudhon, por exemplo, é a forma de distribuição da produção social. Ele defende o
direito ao bem-estar para todos através da distribuição de tudo aquilo que as pessoas
necessitam e não por aquilo que elas produzem, sendo o critério de distribuição pós-
revolução a necessidade e não o retorno do trabalho empregado. Por isso é contra o
sistema de salário - entendido como coerção -, em qualquer de suas formas, mesmo
quando administrados por banco do povo, ou associações de trabalhadores. Essa é a
principal questão que singulariza o seu pensamento no seio do anarquismo.
Por fim, Kropotkin é um filho legítimo do iluminismo. Ciência, progresso, razão
guiam suas reflexões. Não obstante, diferenciando-se de todos os iluministas,
poderíamos enquadrá-lo como um primitivista por defender alguns princípios da vida
aldeã e medieval, recusando-se peremptoriamente a conceber o capitalismo como
evolução. Igualmente poderia ser considerado como um franciscano, pois, sobretudo,
enquanto príncipe hereditário, fez voto de pobreza, abrindo mão de toda sua riqueza.
Todavia, Kropotkin é mais que tudo isso - e não é nada disso. Ele é um profundo amante
dos pobres, dos trabalhadores e explorados em geral. Ele é um enamorado da liberdade
e da igualdade e, por uma maneira bastante original, buscou por toda a vida justificar
uma forma racional de organização social sem alienações e sem Estado. Em resumo, ele
é um legítimo anarquista. Utilizamos o verbo no presente para nos referirmos ao autor
como forma de ratificar que suas ideias ainda estão muito vivas!
Em tempos de barbárie quando a produção social está voltada diretamente para o
lucro em detrimento de bilhões de pessoas que não conseguem ter condições mínimas
de existência como acesso à saúde, educação, moradia e vivem governadas em todos os
sentidos da vida, o pensamento de Kropotkin mostra-se extremamente atual e relevante.
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Em Debat: Rev. Dig., ISSNe 1980-3532, Florianópolis, n. 12, p. 64-86, jul-dez, 2014.
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