farsa de Inês Pereira [texto e linhas de análise]

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5/12/2018 farsadeInsPereira[textoelinhasdeanlise]-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/farsa-de-ines-pereira-texto-e-linhas-de-analise 1/22 1 A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. A figuras são as seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando. Finge-se que Inê Pereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta esta cantiga: Canta Inês: Quien con veros pena y muere Que hará quando no os viere? (Falando) INÊS Renego deste lavrar E do primeiro que o usou; Ó diabo que o eu dou, Que tão mau é d'aturar.Oh Jesu! que enfadamento, E que aiva, e que tormento, Que cegueira, e que canseira! Eu hei de buscar maneira D'algum outro aviamento.Coitada, assi hei de estar Encerrada nesta casa Como panela sem asa,Que sempre está num lugar? E assi hão de ser logrados Dous dias amargurados, Que eu possa durar viva? E assim hei de estar cativa Em poder de desfiados?Antes o darei ao Diabo Que lavrar mais nem pontada. Já tenho a vida cansada De fazer sempre dum cabo. Toda folgam, e eu não, Todas vêm e todas vão A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. As figuras são as seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando. Finge-se que Inês Pereira, filha de hüa molhe de baixa sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta esta cantiga: Canta Inês: Quien con veros pena y muere Que hará quando no os viere? (Falando) INÊS Renego deste lavrar E do primeiro que o usou; Ó diabo que o eu dou, Que tão mau é d'aturar.Oh Jesu! que enfadamento, E que aiva, e que tormento, Que cegueira, e que canseira! Eu hei de buscar maneira D'algum outro aviamento.Coitada, assi hei de estar Encerrada nesta casa Como panela sem asa,Que sempre está num lugar? E assi hão de ser logrados Dous dias amargurados, Que eu possa durar viva? E assim hei de estar cativa Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente Literatura Portuguesa 10.ºC e D EBS do Cerco Paula Cruz | cercarte.blogspot.com

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A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderosorei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar,era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que porquanto duvidavamcertos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras,ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse:segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leveque cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. A

figuras são as seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; PêroMarques; dous Judeus (um chamado Latão, outro Vidal); um Escudeirocom um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando. Finge-se que InêPereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muito fantesiosa, estálavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta esta cantiga:Canta Inês: Quien con veros pena y muere Que hará quando no os viere?(Falando) INÊS Renego deste lavrar E do primeiro que o usou; Ó diaboque o eu dou,

Que tão mau é d'aturar.Oh Jesu! que enfadamento, E que aiva, e quetormento,Que cegueira, e que canseira! Eu hei de buscar maneira D'algum outroaviamento.Coitada, assi hei de estar Encerrada nesta casa Como panelasem asa,Que sempre está num lugar? E assi hão de ser logrados Dousdias amargurados, Que eu possa durar viva? E assim hei de estar cativaEm poder de desfiados?Antes o darei ao Diabo Que lavrar mais nempontada. Já tenho a vida cansada De fazer sempre dum cabo. Toda

folgam, e eu não, Todas vêm e todas vão A seguinte farsa de folgar foirepresentada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro donome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor deMDXXIII. O seu argumento é que porquanto duvidavam certos homens debom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava deoutros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo umexemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavaloque me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. As figuras são as

seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus(um chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; umErmitão; Luzia e Fernando. Finge-se que Inês Pereira, filha de hüa molhede baixa sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa, e sua mãe é aouvir missa, e ela canta esta cantiga: Canta Inês: Quien con veros pena ymuere Que hará quando no os viere?(Falando) INÊS Renego deste lavrar E do primeiro que o usou; Ó diaboque o eu dou,

Que tão mau é d'aturar.Oh Jesu! que enfadamento, E que aiva, e quetormento,Que cegueira, e que canseira! Eu hei de buscar maneira D'algum outroaviamento.Coitada, assi hei de estar Encerrada nesta casa Como panelasem asa,Que sempre está num lugar? E assi hão de ser logrados Dousdias amargurados, Que eu possa durar viva? E assim hei de estar cativa

Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente

Literatura Portuguesa

10.ºC e D

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Farsa de Gil Vicente que foi representada pela primeira vez em 1523. As farsas,

diametralmente opostas às «moralidades», baseiam-se em temas da vida quotidiana, tendo umenredo cómico e profano. A Farsa de Inês Pereira  parte da glosa de um mote: «mais queroasno que me leve, que cavalo que me derrube». Esta circunstância é explicada na didascália deabertura do texto: «que por quanto duvidavam certos homens de bom saber se o autor fazia desi mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre quefizesse».

Todo este enquadramento recorda a inserção do teatro vicentino no contexto da Corte.A ideia de glosa de um mote é claramente cancioneiril, e a menção dos «homens de bomsaber» constitui uma referência direta ao público cortês, devidamente familiarizado com asconvenções de elaboração e receção do texto literário. Este era dotado de uma incontornável

vertente não só dramática mas acentuadamente teatral, facto que o ligava intimamente à suareceção, como é óbvio neste caso.Entre o «asno» e o «cavalo» do mote inicial oscilará Inês Pereira, a personagem

  principal, jovem casadoira mas exigente. O «asno» é Pêro Marques, o seu primeiro pretendente, que lhe é trazido por Lianor da Vaz, alcoviteira típica do tempo. Pêro Marques,lavrador inculto que nunca viu sequer uma cadeira, personifica a rusticitas, que porque seopõe diametralmente à urbanitas cortês, à referida cultura assente em convençõescomportamentais, não deixa de provocar o riso, assim funcionando como mecanismosubliminar do autoelogio da Corte. Inês Pereira recusa-o, pois pretende antes alguém quedemonstre alguma urbanidade, alguém que, à boa maneira da Corte, saiba combater, fazer 

versos, cantar e dançar, alguém como Brás da Mata, o segundo pretendente, que lhe é trazido pelos Judeus Casamenteiros, um pouco menos sinceros e bem-intencionados do que Lianor Vaz. Mas Brás da Mata representa apenas o triunfo das aparências, um simulacro deelegância, boa-educação e bem-estar social, que acredita no casamento como solução para assuas dificuldades financeiras. Incapaz de ver para além das aparências, Inês escolhê-lo-á comomarido, assim definindo o seu carácter ao longo das diversas situações da peça: solteiraingénua mas cheia de ambições de ascensão social, casada com o escudeiro e desencantada,viúva, depois de o marido morrer na guerra fugindo de uma batalha (violação de um doselementos fulcrais do código cortês), e, finalmente, esposa leviana e adúltera de PêroMarques, o «asno» que literalmente a leva às costas para o encontro com o seu amante.

Trata-se, portanto, de uma sátira aos costumes da vida doméstica, jogando com o temamedieval da mulher como personificação da ignorância e da malícia.

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FARSA OU AUTO DE INÊS PEREIRA,Gil Vicente

 A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro donome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que

 porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum quedizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. 

As figuras são as seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (umchamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando.Finge-se que Inês Pereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa,e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta esta cantiga:

Canta Inês: Quien con veros pena y muereQue hará quando no os viere? 1

(E diz:)

INÊSRenego deste lavrar 2 E do primeiro que o usou;Ó diabo que o eu dou,Que tão mau é d'aturar.Oh Jesu! que enfadamento,E que raiva, e que tormento,Que cegueira, e que canseira!Eu hei de buscar maneiraD'algum outro aviamento3.

Coitada, assi hei de estar Encerrada nesta casaComo panela sem asa,Que sempre está num lugar?E assi hão de ser logrados4 Dous dias amargurados,Que eu possa durar viva?E assim hei de estar cativaEm poder de desfiados5?

Antes o darei ao DiaboQue lavrar mais nem pontada.Já tenho a vida cansadaDe fazer sempre dum cabo6.Todas folgam, e eu não,Todas vêm e todas vãoOnde querem, senão eu.Hui! e que pecado é o meu,

1 Quem com ver-vos pena e morre, que fará quandovos não vir?2 costura3 ocupação4 aproveitados5 Travesseiros de franja6 De estar sempre no mesmo sítio

Ou que dor de coração?Esta vida he mais que morta.Sam eu coruja ou corujo,Ou sam algum caramujoQue não sai senão à porta?E quando me dão algum diaLicença, como a bugia7,Que possa estar à janela,É já mais que a MadanelaQuando achou a aleluía.

Vem a Mãe, e não na achando lavrando, diz:

MÃE Logo eu adivinheiLá na missa onde eu estava,Como a minha Inês lavravaA tarefa que lhe eu dei...Acaba esse travesseiro!Hui! Nasceu-te algum unheiro?Ou cuidas que é dia santo?

INÊS Praza a Deos que algum quebranto8

Me tire do cativeiro.

MÃE Toda tu estás aquela!Choram-te os filhos por pão?

INÊS Prouvesse a Deus!Que já é razão de eu não estar tão singela.

MÃE Olhade ali o mau pesar 9...Como queres tu casar Com fama de preguiçosa?

INÊSMas eu, mãe, sam aguçosa10

E vós dais-vos de vagar.

7 macaca8 feitiço9 Que desgraça!10 ativa

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MÃE Ora espera assi, vejamos.

INÊS Quem já visse esse prazer!

MÃECal'-te, que poderá ser 

Que «ame a Páscoa vêm os Ramos». Não te apresses tu, Inês. «Maior é o ano que omês»:Quando te não precatares,Virão maridos a pares,E filhos de três em três.

INÊSQuero-m'ora alevantar.Folgo mais de falar nisso,Assi me dê Deos o paraíso,Mil vezes que não lavrar Isto não sei que me faz

MÃE Aqui vem Lianor Vaz.

INÊS E ela vem-se benzendo...

(Entra Lianor Vaz)

LIANOR Jesu a que me eu encomendo!Quanta cousa que se faz!

MÃE Lianor Vaz, que é isso?

LIANOR Venho eu, mana, amarela?

MÃE Mais ruiva que uma panela.

LIANOR  Não sei como tenho siso!Jesu! Jesu! que farei?

 Não sei se me vá a el-Rei,Se me vá ao Cardeal.

MÃE Como? e tamanho é o mal?

LIANOR Tamanho? eu to direi:

Vinha agora pereliÓ redor da minha vinha,E hum clérigo, mana minha,Pardeos, lançou mão de mi; Não me podia valer Diz que havia de saber S'era eu fêmea, se macho.

MÃE Hui! seria algum muchacho,Que brincava por prazer?

LIANOR Si, muchacho sobejavaEra hum zote11 tamanhouço!

11 idiota

Eu andava no retouço12,Tão rouca que não falava.Quando o vi pegar comigo,Que m'achei naquele p'rigo: – Assolverei! - não assolverás! –Tomarei! - não tomarás!

 – Jesu! homem, qu'has contigo? – Irmã, eu te assolvereiCo breviairo de Braga. – Que breviairo, ou que praga!Que não quero: aqui d'el-Rei!– Quando viu revolta a voda,Foi e esfarrapou-me todaO cabeção da camisa.

MÃEAssi me fez dessa guisaOutro, no tempo da poda.Eu cuidei que era jogo,E ele... dai-o vós ao fogo!Tomou-me tamanho riso,Riso em todo meu siso,E ele leixou-me logo.

LIANOR Si, agora, eramá,Também eu me ria cáDas cousas que me dizia:Chamava-me «luz do dia».– «Nunca teu olho verá!»– Se estivera de maneiraSem ser rouca, bradar'eu;Mas logo m'o demo deu

Catarrão e peitogueira,Cócegas e cor de rir,E coxa pera fugir,E fraca pera vencer:Porém pude-me valer Sem me ninguém acudir...O demo (e não pode al ser)Se chantou13 no corpo dele.

MÃE Mana, conhecia-te ele?

LIANOR Mas queria-me conhecer!

MÃE Vistes vós tamanho mal?

LIANOR Eu mirei ao Cardeal,E far-lhe-ei assi mesura,E contar lhe-ei a aventuraQue achei no meu olival.

MÃE Não estás tu arranhada,De te carpir, nas queixadas?

LIANOR Eu tenho as unhas cortadas,E mais estou tosquiada:

E mais pera que era isso?12 brincadeira13 meteu

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E mais pera que é o siso?E mais no meio da requesta14 Veio hum homem de hüa besta,Que em vê-lo vi o p'raíso,E soltou-me, porque vinhaBem contra sua vontade.

Porém, a falar a verdade,Já eu andava cansadinha: Não me valia rogar  Nem me valia chamar: – «Aque de Vasco de Fois,Acudi-me, como sois!»E ele... senão pegar: – Mais mansa, Lianor Vaz,Assi Deus te faça santa. – Trama15 te dê na garganta!Como! isto assi se faz? – Isto não revela nada... – Tu não vês que são casada?

MÃE Deras-lhe, má hora, boa,E mordera-lo na coroa.

LIANOR Assi! fora excomungada. Não lhe dera um empuxão,Porque sou tão maviosa16,Que é cousa maravilhosa.E esta é a concrusão.Leixemos isto.Eu venhoCom grande amor que vos tenho,Porque diz o exemplo antigoQue a amiga e bom amigoMais aquenta que o bom lenho.Inês está concertadaPera casar com alguém?

MÃEAté `gora com ninguém Não é ela embaraçada.

LIANOR Eu vos trago um casamentoEm nome do anjo bento.Filha, não sei se vos praz.

INÊS E quando, Lianor Vaz?

LIANOR Eu vos trago aviamento.

INÊSPorém, não hei de casar Senão com homem avisadoAinda que pobre e pelado,Seja discreto em falar 

LIANOR Eu vos trago um bom marido,

14 luta15 Doença16 Terna, meiga

Rico, honrado, conhecido.Diz que em camisa17 vos quer 

INÊS Primeiro eu hei de saber Se é parvo, se sabido.

LIANOR  Nesta carta que aqui vemPera vós,filha, d'amores,Veredes vós, minhas flores,A discrição que ele tem.

INÊS Mostrai-ma cá, quero ver 

LIANOR Tomai. E sabedes vós ler?

MÃE Hui! e ela sabe latim

E gramática e alfaqui

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E tudo quanto ela quer!

INÊS (lê a carta)«Senhora amiga Inês Pereira,Pêro Marquez, vosso amigo,Que ora estou na nossa aldea,Mesmo na vossa merceaM'encomendo.E mais digo,Digo que benza-vos Deos,Que vos fez de tão bom jeito.Bom prazer e bom proveitoVeja vossa mãe de vós.Ainda que eu vos viEst'outro dia folgar E não quisestes bailar,Nem cantar presente mi...»

INÊS Na voda de seu avô,Ou onde me viu ora ele?Lianor Vaz, este é ele?

LIANOR Lede a carta sem dó,Que inda eu são contente dele.

Prossegue Inês Pereira a carta:«Nem cantar presente mi.Pois Deos sabe a rebentinha19

Que me fizestes então.Ora, Inês, que hajais bênçãoDe vosso pai e a minha,Que venha isto a concrusão.E rogo-vos como amiga,Que samicas vós sereis,Que de parte me faleisAntes que outrem vo-lo diga.E, se não fiais de mi,Esteja vossa mãe aí,

17 Mesmo pobre (sem dote)18 Ciência teológica jurídica muçulmana19 Desejo e ciúme

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E Lianor Vaz de presente.Veremos se sois contenteQue casemos na boa hora.»

INÊSDes que nasci até agora

Não vi tal vilão com'este,Nem tanto fora de mão!

LIANOR Não queirais ser tão senhora.Casa, filha, que te preste, Não percas a ocasião.Queres casar a prazer  No tempo d'agora, Inês?Antes casa, em que te pês20,Que não é tempo d'escolher.Sempre eu ouvi dizer:«Ou seja sapo ou sapinho,Ou marido ou maridinho,Tenha o que houver mister.»Este é o certo caminho.

MÃEPardeus, amiga, essa é ela!«Mata o cavalo de selaE bom é o asno que me leva».Filha, «no Chão de CouceQuem não puder andar choute21.»E: «mais quero eu quem m'adoreQue quem faça com que chore».Chamá-lo-ei, Inês?

INÊS Si. Venha e veja-me a mi.Quero ver quando me vir Se perderá o presumir Logo em chegando aqui,Pera me fartar de rir.

MÃE Touca-te, se cá vier Pois que pera casar anda.INÊS Essa é boa demanda!Cerimónias há mister Homem que tal carta manda?Eu o estou cá pintando:Sabeis, mãe, que eu adivinho?

Deve ser um vilãozinhoEi-lo, se vem penteando:Será com algum ancinho?Aqui vem Pêro Marques, vestido como filho delavrador rico,com um gabão azul deitado ao ombro,com o capelo por diante, e vem dizendo:

PÊROHomem que vai aonde eu vou

 Não se deve de correr Ria embora quem quiser Que eu em meu siso estou.

 Não sei onde mora aqui...20 Ainda que te custe21 trote

Olhai que m'esquece a mi!Eu creo que nesta rua...E esta parreira é sua.Já conheço que é aqui.Chega Pêro Marques aonde elas estão, e diz:Digo que esteis muito embora.

Folguei ora de vir cá...Eu vos escrevi de láÜa cartinha, senhora...E assi que de maneira...

MÃE Tomai aquela cadeira.

PÊRO E que val aqui uma destas?

INÊS(Ó Jesu! que João das bestas!Olhai aquela canseira!)Assentou-se com as costas pera elas, e diz:

PÊRO Eu cuido que não estou bem...

MÃE Como vos chamais, amigo?

PÊROEu Pêro Marques me digo,Como meu pai que Deos tem.Faleceu, perdoe-lhe Deos,Que fora bem escusado,E ficamos dous eréos22.Porém meu é o mor gado.

MÃE De morgado é vosso estado?

Isso viria dos céus.

PÊRO Mais gado tenho eu já quanto,E o mor de todo o gado,Digo maior algum tanto.E desejo ser casado,Prouguesse ao Espírito Santo,Com Inês, que eu me espantoQuem me fez seu namorado.Parece moça de bem,E eu de bem, er também.Ora vós er ide vendoSe lhe vem milhor ninguém,

A segundo o que eu entendo.Cuido que lhe trago aquiPêras da minha pereira...Hão de estar na derradeira.Tende ora, Inês, per i.

INÊS E isso hei de ter na mão?

PÊRO Deitae as peas23 no chão.

INÊSAs perlas pera enfiar..Três chocalhos e um novelo...

E as peias no capelo...22 herdeiaros23 cordas

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E as pêras? Onde estão?

PÊRO Nunca tal me aconteceu!Algum rapaz m'as comeu...Que as meti no capelo,

E ficou aqui o novelo,E o pente não se perdeu.Pois trazia-as de boa mente...

INÊSFresco vinha aí o presenteCom folhinhas borrifadas!

PÊRO Não, que elas vinham chentadas24

Cá em fundo no mais quente.Vossa mãe foi-se? Ora bem...Sós nos leixou ela assi?...Cant'eu quero-me ir daqui,Não diga algum demo alguém...

INÊSVós que me havíeis de fazer?Nem ninguém que há de dizer?(O galante despejado!).

PÊROSe eu fora já casado,D'outra arte havia de ser Como homem de bom recado.

INÊS

(Quão desviado este está!Todos andam por caçar Suas damas sem casar E este... tomade-o lá!).

PÊRO Vossa mãe é lá no muro?

INÊSMinha mãe eu vos seguroQue ela venha cá dormir 

PÊRO Pois, senhora, eu quero-me ir Antes que venha o escuro.

INÊS E não cureis mais de vir.

PÊRO Virá cá Lianor Vaz,Veremos que lhe dizeis...

INÊS Homem, não aporfieis,Que não quero, nem me apraz.Ide casar a Cascais.

PÊRO Não vos anojarei mais,Ainda que saiba estalar;E prometo não casar Até que vós não queirais.

24 metidas

(Pêro vai-se, dizendo:) Estas vos são elas a vós:

Anda homem a gastar calçado,E quando cuida que é aviado,Escarnefucham25 de vós!Creo que lá fica a pea... Pardeus! Bô ia eu à aldeia!

(Voltando atrás)

Senhora, cá fica o fato?

INÊS Olhai se o levou o gato...

PÊROInda não tendes candea?Ponho per cajo que alguémVem como eu vim agora,E vos acha só a tal hora:Parece-vos que será bem?Ficai-vos ora com Deos:Çarrai a porta sobre vósCom vossa candeazinha.E sicais26 sereis vós minha,Entonces veremos nós...

(Vai-se Pêro Marques e diz Inês Pereira:)

INÊSPessoa conheço euQue levara outro caminho...Casai lá com um vilãozinho,Mais covarde que um judeu!Se fora outro homem agora,E me topara a tal hora,Estando assi às escuras,Dissera-me mil doçuras,Ainda que mais não fora...

(Vem a Mãe e diz:)

MÃE Pêro Marques foi-se já?

INÊS E pera que era ele aqui?

MÃE E não t'agrada ele a ti?

INÊS Vá-se muitieramá27!Que sempre disse e direi:Mãe, eu me não casareiSenão com homem discreto,E assi vo-lo prometoOu antes o leixarei.Que seja homem mal feito,Feio, pobre, sem feição,Como tiver discrição, Não lhe quero mais proveito.E saiba tanger viola,E coma eu pão e cebola.Siquer uma cantiguinha!

25 escarnecem26 Se porventura27 Em má hora

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Discreto, feito em farinha28, 

Porque isto me degola29.

MÃE Sempre tu hás de bailar E sempre ele há de tanger?Se não tiveres que comer O tanger te há de fartar?

INÊS Cada louco com sua teima.

Com uma borda de boleima30 E uma vez d'água fria, Não quero mais cada dia.

MÃE Como às vezes isso queima!E que é desses escudeiros?

INÊSEu falei ontem aliQue passaram por aquiOs judeos casamenteirosE hão de vir agora aqui.

A q ui e nt r am o s J ud e us c as am e nt ei r os ,um, Latão, e outro, Vidal e diz

Lat ão: Ou de cá!

INÊS Quem está lá?

VIDAL Nome del Deus, aqui somos!

LATÃO Não sabeis quão longe fomos!

VIDAL Corremos a iramá31.Este e eu.

LATÃO Eu, e este...

VIDALPola lama e polo pó,Que era pera haver dó,Com chuva, sol e Nordeste.Foi a coisa de maneira,Tal friúra e tal canseira,Que trago as tripas maçadas.

Assi me fadem boas fadasQue me saltou caganeira!Pera vossa mercê ver O que nos encomendou.

LATÃO O que nos encomendouSerá o que hoiver de ser Todo este mundo é fadigaVós dixestes, fiiha amiga,Que vos buscássemos logo...

VIDAL E logo pujemos fogo...

28 meigo29 agrada30 bolo31 Em má hora

LATÃO Cala-te!

VIDAL Não queres que diga? Não fui eu também contigo?Tu e eu não somos eu?

Tu judeu e eu judeu, Não somos massa dum trigo?

LATÃO Leixa-me falar.

VIDALJá calo.Senhora, fomos... agora falo,Ou falas tu?

LATÃODize, que dizias?Que foste, que fomos, que iasBuscá-lo, esgravatá-lo...

VIDALVós, amor, quereis maridoMui discreto, e de viola?

LATÃOEsta moça não é tola,Que quer casar per sentido...

VIDAL Judeu, queres-me leixar?

LATÃO Leixo, não quero falar 

VIDAL Buscámo-lo...

LATÃODemo foi logo!Crede que o vosso rogo

Vencerá o Tejo e o mar 32

Eu cuido que falo e calo...Calo eu agora ou não?Ou falo se vem à mão? Não digas que não te falo.

INÊS Jesu! Guarde-me ora Deus! Não falará um de vós?

Já queria saber isso...

MÃE Que siso, Inês, que sisoTens debaixo desses véus...

INÊS Diz o exemplo da velha:«O que não haveis de comer Leixai-o a outrem mexer».

MÃE Eu não sei quem t'aconselha...

INÊS Enfim, que novas trazeis?

VIDAL O marido que quereis,De viola e dessa sorte,

32 Iremos até ao fim do mundo para vos servir 

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9

 Não no há senão na corteQue cá não no achareis.Falámos a Badajoz,Músico, discreto, solteiro.Este fora o verdadeiro,Mas soltou-se-nos da noz.

Fomos a VilhacastimE falou-nos em latim: - «Vinde cá daqui a umahora,E trazei-me essa senhora».

INÊS Assi que é tudo nada enfim!

VIDAL Esperai, aguardai ora!Soubemos dum escudeiro

De feição d'atafoneiro33 Que virá logo essora,Que fala... e com' ora fala!

Estrugirá34 esta sala.

E tange... e com' ora tange!E alcança quanto abrange,E se preza bem da gala.Vem o Escudeiro,com seu Moço,que lhe traz uma viola,e diz, falando só:

ESCUDEIROSe esta senhora é talComo os Judeus ma gabaram,Certo os anjos a pintaram,E não pode ser i al.

Diz que os olhos com que viaForam de Santa Luzia,Cabelos, da Madanela...Se fosse moça tão bela,Como donzela seria?Moça de vila será elaCom sinalzinho postiço,E sarnosa no toutiço,Como burra de Castela.Eu, assi como chegar Cumpre-me bem atentar Se é garrida, se honesta,Porque o milhor da festaÉ achar siso e calar.

(Falando para Inês:)MÃE Se este escudeiro há de vir E é homem de discrição,Hás-te de pôr em feição,De falar pouco e não rir E mais, Inês, não muito olhar E muito chão o menear Por que te julguem por muda,Porque a moça sesudaÉ uma perla pera amar.

(Falando para o criado:)

33 Muito ocupado34 atroará

ESCUDEIRO Olha cá, Fernando, eu vouVer a com que hei de casar.Avisa-te, que hás de estar Sem barrete onde eu estou.

MOÇO (Como a rei! Corpo de mi!

Mui bem vai isso assi...)ESCUDEIRO E, se cuspir, pola ventura,Põe-lhe o pé e faz mesura.

MOÇO (Ainda eu isso não vi!)

ESCUDEIROE se me vires mentir Gabando-me de privado,Está tu dissimulado,Ou sai-te pera fora a rir Isto te aviso daqui,Faze-o por amor de mi.

MOÇO Porém, senhor digo euQue mau calçado é o meuPera estas vistas assi.

ESCUDEIRO Que farei, que o sapateiro Não tem solas nem tem pele?

MOÇO Sapatos me daria ele,Se me vós désseis dinheiro...

ESCUDEIRO Eu o haverei agora.E mais calças te prometo.

MOÇO (Homem que não tem nem preto,Casa muito na má hora.)

Chega o Escudeiro onde está Inês Pereira, elevantam-se todos, e fazem suas mesuras, e diz oEscudeiro:

ESCUDEIROAntes que mais diga agora,Deus vos salve, fresca rosa,E vos dê por minha esposa,Por mulher e por senhora;

Que bem vejo Nesse ar, nesse despejo,Mui graciosa donzela,Que vós sois, minha alma, aquelaQue eu busco e que desejo.Obrou bem a NaturezaEm vos dar tal condiçãoQue amais a discriçãoMuito mais que a riqueza.Bem pareceQue a discrição mereceGozar vossa fermosura,Que é tal que, de ventura,Outra tal não se acontece.

Senhora, eu me contentoReceber vos como estais:Se vós vos não contentais,

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O vosso contentamentoPode falecer no mais.

LATÃO (Como fala!

VIDAL

E ela como se cala!Tem atento o ouvido...Este há de ser seu marido,Segundo a coisa s'abala.)

ESCUDEIROEu não tenho mais de meu,Somente ser comprador Do Marichal meu senhor E são escudeiro seu.Sei bem ler E muito bem escrever E bom jogador de bola,E quanto a tanger viola,

Logo me vereis tanger Moço, que estais lá olhando?

MOÇO Que mandaVossa Mercê?

ESCUDEIRO Que venhais cá.

MOÇO Pera quê?

ESCUDEIRO Por que faças o que eu mando!

MOÇO

Logo vou.(O Diabo me tomou:Sair me de João Montês

Por servir um tavanês35 Mor doudo que Deus criou!)

ESCUDEIRO Fui despedir um rapaz

Que valia Perpinhão36,Por tomar este ladrão. Moço!

MOÇO Que vos praz?

ESCUDEIRO A viola.

MOÇO(Oh! como ficará tolaSe não fosse casar ante

Co mais cafeo37 bargante38 Que coma pão e cebola!).Ei-la aqui bem temperada, Não tendes que temperar 

ESCUDEIROFaria bem de ta quebrar 

35 estouvado36 Raro, precioso37 reles38 Homem sem vergonha

 Na cabeça bem migada39!

MOÇOE se ela é emprestada,Quem na havia de pagar?Meu amo, eu quero m'ir….

ESCUDEIROE quando queres partir?

MOÇOAnte que venha o inverno,Porque vós não dais governoPera vos ninguém servir 

ESCUDEIRO Não dormes tu que te farte?

MOÇO No chão, e o telhado por manta...

E çarra-se m'a gargantaCom fome.

ESCUDEIRO Isso tem arte40...

MOÇO Vós sempre zombais assi.

ESCUDEIROOh que boas vozes temEsta viola aquiLeixa-me casar a mi,Depois eu te farei bem.

MÃEAgora vos digo euQue Inês está no Paraíso!

INÊSQue tendes de ver co isso?Todo o mal há de ser meu.

MÃEQuanta doudice!

INÊSOh! como é seca a velhice!Leixai-me ouvir e folgar,

Que não me hei de contentar De casar com parvoíce.Pode ser maior riqueza

Que um homem avisado41?

MÃE Muitas vezes, mal pecado42, 

é milhor boa simpreza43.

LATÃOOra oivi, e oivireis.

39 Feita em pedaços40 Essa está boa!41 sabido42 Infelizmente43 simplicidade

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Escudeiro, cantareisAlguma boa cantadela. Namorai esta donzelaE esta cantiga direis:

Canta o Judeu

«Canas do amor, canas,canas do amor Polo longo dum rioCanaval está florido,Canas do amo.»

Canta o Escudeiro o romance «Mal me quieren enCastilla» e diz Vidal:

VIDALLatão, já o sono é comigo

Como oivo cantar guaiado44,

Que não vai esfandegado45...

LATÃOEsse é o Demo que eu digo!Viste cantar Dona Sol:Pelo mar voy a vela,Vela vay pelo mar?

VIDALFilha Inês, assi vivaisQue tomeis esse senhor Escudeiro cantador E caçador de pardais,Sabedor revolvedor 

Falador gracejador Afoitado 46 pela mão,

E sabe de gavião47...Tomai-o por meu amor.Podeis topar um rabugento,Desmazelado, baboso,

Descancarado48, brigoso,

Medroso, carapatento49. 

Este escudeiro, aosadas50,Onde se derem pancadas,Ele as há de levar Boas, senão apanhar..

 Nele tendes boas fadas.

MÃEQuero rir com toda a mágoaDestes teus casamenteiros! Nunca vi Judeus ferreiros

Aturar tão bem a fragoa51.  Não te é milhor mal por mal,

44 lamentoso45 desafinado46 atrevido47 Sabido na conquista de mulheres48 descarado49 hipócrita50 certamente51 forja

Inês, um bom oficial,Que te ganhe nessa praça,Que é um escravo de graça,E mais casas com teu igual?

LATÃO

Senhora, perdei cuidado:O que há de ser há de ser;E ninguém pode tolher O que está determinado.

VIDALAssi diz Rabi Zarão.

MÃE

Inês, guar'-te de rascão52!Escudeiro queres tu?

INÊS

Jesu, nome de Jesu!Quão fora sois de feição!Já minha mãe adivinha...Folgastes vós na verdadeCasar à vossa vontade?Eu quero casar à minha.

MÃECasa, filha, muit'embora.

ESCUDEIRODai-me essa mão, senhora.

INÊS

Senhor de mui boa mente.

ESCUDEIROPer palavras de presenteVos recebo desd'agora. Nome de Deus, assi seja!Eu, Brás da Mata, Escudeiro,Recebo a vós, Inês PereiraPor mulher e por parceiraComo manda a Santa Igreja.

INÊSEu, aqui diante Deus,

Inês Pereira, recebo a vós,Sem mais preço nem demandaComo sancta Igreja mandaA Brás da Mata,

Ahi somos nós53. VIDAL

Alça manim, ó dona, ha54!

Arreia espeçulá55. Bento o Deu de Jacob,

52 Vadio, desordeiro53 Está o assunto arrumado54 Levanta as mãos e agradece55 Arranja o cabelo

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Bento o Deu que a Faraó

MÃEEspantou e espantará.Bento o Deu de Abraão,

Benta a terra de Canã56.

Para bem sejais casados!Dai-nos cá senhos57 ducados.

MÃEAmanhã vo-los darão.Pois assi é, bem seráQue não passe isto assi.Eu quero chegar aliChamar meus amigos cá,E cantarão de terreiro.

ESCUDEIRO Oh! quem me fora solteiro!

INÊS Já vós vos arrependeis?

ESCUDEIROÓ esposa, não faleis,Que casar é cativeiro.

A qu i v em a M ãe c om c er ta s m oç as emancebos pera fazerem a fes ta , e d iz umadelas, per nome Luzia:

Luz. Inês, por teu bem te seja!Oh! que esposo e que alegria!

INÊS Venhas embora, Luzia,E cedo t'eu assi veja.

MÃE Ora vae tu ali, Inês,E bailareis três por três.

FERNANDO Tu connosco, Luzia, aqui,E a desposada ali,Ora vede qual direis.

Cantam todos a cantiga que se segue:

«Mal herida va la garça Enamorada,Sola va y gritos dava.

A las orillas de um rioLa garça tenia el nido;Ballestero la ha heridoEn el alma;Sola va y gritos dava.»

E, acabando de cantar e bailar diz Fernando:

FERNANDOOra, senhores honrados,Ficai com vossa mercê,E nosso Senhor vos dêCom que vivais descansados.

56 Manifestação de alegria segundo uma fórmulahebraica57 distribuídos

Isto foi assi agora,Mas melhor será outr'hora.Perdoai pelo presente:Foi pouco e de boa mente.Com vossa mercê, Senhora...

Luz.Ficai com Deus, desposados,Com prazer e com saúde,E sempre Ele vos ajudeCom que sejais bem logrados.

MÃEFicai com Deus, filha minha,

 Não virei cá tão asinha58.A minha bênção hajais.Esta casa em que ficaisVos dou, e vou-me à casinha.Senhor filho e senhor meu,

Pois que já Inês é vossa,Vossa mulher e esposa,Encomendo-vo-la eu.E, pois que des que naceuA outrem não conheceu,Senão a vós, por senhor Que lhe tenhais muito amor Que amado sejais no céu.

Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro. E senta-se Inês Pereira a lavrar e canta esta cantiga:

INÊS Si no os huviera mirado No pe

nara,Pêro tampoco os mirara. O Escudeiro, vendo cantar Inês Pereira, muiagastado lhe diz:

ESCUDEIROVós cantais, Inês Pereira?Em vodas m'andáveis vós?Juro ao corpo de DeusQue esta seja a derradeira!Se vos eu vejo cantar Eu vos farei assoviar..

INÊSBofé, senhor meu marido,Se vós disso sois servido,Bem o posso eu escusar.

ESCUDEIROMas é bem que o escuseis,E outras cousas que não digo!

INÊS Porque bradais vós comigo?

ESCUDEIRO

Será bem que vos caleis.E mais, sereis avisada

58 depressa

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Que não me respondais nada,

Em que ponha fogo a tudo59,Porque o homem sesudo

Traz a mulher sopeada60.Vós não haveis de falar Com homem nem mulher que seja; Nem somente ir à igreja Não vos quero eu leixar Já vos preguei as janelas,Por que não vos ponhais nelas.Estareis aqui encerrada Nesta casa, tão fechadaComo freira d'Oudivelas.

INÊSQue pecado foi o meu?Porque me dais tal prisão?

ESCUDEIRO

Vós buscastes discrição…Que culpa vos tenho eu?Pode ser maior aviso,Maior discrição e sisoQue guardar o meu tisouro? Não sois vós, mulher meu ouro?Que mal faço em guardar isso?

Vós não haveis de mandar Em casa somente um pelo.Se eu disser:- isto é novelo- Havei-lo de confirmar 

E mais quando eu vier De fora, haveis de tremer;E cousa que vós digais Não vos há de valer maisQue aquilo que eu quiser.(para o criado)

Moço, às Partes d'Além61 Me vou fazer cavaleiro.

MOÇO (Se vós tivésseis dinheiro Não seria senão bem...)

ESCUDEIROTu hás de ficar aqui.Olha, por amor de mi,O que faz tua senhora:Fechá-la-ás sempre de fora.

(para Inês)

Vós lavrai, ficai per i.

MOÇOCo dinheiro que leixais Não comerei eu galinhas...

59 Ainda que faça maiores disparates60 Humilhada, dominada61 Marrocos

ESCUDEIROVae-te tu por essas vinhas,Que diabo queres mais?

MOÇOOlhai, olhai, como rima!

E depois de ida a vindima?ESCUDEIRO

Apanha desse rabisco62.

MOÇOPesar ora de São Pisco!Convidarei minha prima...E o rabisco acabado,Ir me-ei espojar às eiras?ESCUDEIRO Vai-te per essas figueiras,E farta-te, desmazelado!

MOÇO Assi?ESCUDEIROPois que cuidavas?E depois virão as favas.Conheces túbaras da terra?

MOÇOI-vos vós, embora, à guerra,

Que eu vos guardarei oitavas63...

Ido o Escudeiro, diz o Moço:

MOÇOSenhora, o que ele mandou Não posso menos fazer.

INÊSPois que te dá de comer Faze o que t'encomendou.

MOÇOVós fartai-vos de lavrar Eu me vou desenfadar Com essas moças lá fora:Vós perdoai-me, senhora,Porque vos hei de fechar.

Aqui fica Inês Pereira só, fechada, lavrando ecantando esta cantiga:

INÊS«Quem bem tem e mal escolhePor mal que lhe venha não s'anoje.»Renego da discriçãoComendo ò demo o aviso,Que sempre cuidei que nissoEstava a boa condição.Cuidei que fossem cavaleirosFidalgos e escudeiros,

 Não cheios de desvarios,62 rebusco63 rendimentos

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E em suas casas macios,

E na guerra lastimeiros64.

Vede que cavalaria,Vede que já mouros mataQuem sua mulher maltrata!

Sem lhe dar de paz um dia!Sempre eu ouvi dizer Que o homem que isto fizer 

 Nunca mata drago65 em vale

 Nem mouro que chamem Ale66:E assi deve de ser.Juro em todo meu sentidoQue se solteira me vejo,Assi como eu desejo,Que eu saiba escolher marido,À boa fé, sem mau engano,Pacífico todo o ano,E que ande a meu mandar Havia m'eu de vingar Deste mal e deste dano!

Entra o Moço como uma carta de Arzila, e diz:

MOÇOEsta carta vem d'AlémCreio que é de meu senhor.

INÊSMostrai cá, meu guarda-mor E veremos o que i vem.

 Lê o sobrescrito:«À mui prezada senhora Inês Pereira da Grã,À senhora minha irmã.»De meu irmão...Venha embora!

MOÇOVosso irmão está em Arzila?Eu apostarei que i vem Nova de meu senhor também.

INÊS Já ele partiu de Tavila?

MOÇO Há três meses que é passado.

INÊSAqui virá logo recadoSe lhe vai bem, ou que faz.

MOÇO Bem pequena é a carta assaz!

INÊS Carta de homem avisado. Lê Inês Pereira a carta, a qual diz:

«Muito honrada irmã,Esforçai o coraçãoE tomai por devação

64 cruéis65 Dragão66 Nunca praticas feitos de valor 

De querer o que Deus quiser.»E isto que quer dizer?«E não vos maravilheisDe cousa que o mundo faça,Que sempre nos embaraçaCom cousas. Sabei que indo

Vosso marido fugindoDa batalha pera a vila,A meia légua de Arzila,O matou um mouro pastor.»

MOÇO Ó meu amo e meu senhor!

INÊSDai-me vós cá essa chaveE i buscar vossa vida.

MOÇOOh que triste despedida!INÊS

Mas que nova tão suave!Desatado é o nó.Se eu por ele ponho dó,O Diabo me arrebente!Pera mim era valente,E matou-o um mouro só!Guardar de cavaleirão,

Barbudo, repetenado67, Que em figura de avisado

É malino e sotrancão68. Agora quero tomar Pera boa vida gozar,

Um muito manso marido. Não no quero já sabido,Pois tão caro há de custar.

Aq ui vem Li anor Vaz, e fi nge In êsPereira estar chorando, e diz Lianor:

LIANOR Como estais, Inês Pereira?

INÊS Muito triste, Lianor Vaz.

LIANOR Que fareis ao que Deus faz?

INÊS Casei por minha canseira.

LIANOR Se ficaste prenhe basta.

INÊS Bem quisera eu dele casta69, Mas não quis minha ventura.

LIANOR Filha, não tomeis tristura,Que a morte a todos gasta.O que havedes de fazer?Casade-vos, filha minha.

INÊS

67 insolente68 hipócrita69 descendência

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Jesu! Jesu!Tão asinha!Isso me haveis de dizer?Quem perdeu um tal marido,Tão discreto e tão sabido,E tão amigo de minha vida?

LIANOR Dai isso por esquecido,E buscai outra guarida.Pêro Marques tem, que herdou,Fazenda de mil cruzados.Mas vós quereis avisados...

INÊS Não! já esse tempo passou.Sobre quantos mestres sãoExperiência dá lição.

LIANOR 

Pois tendes esse saber Querei ora a quem vos quer Dai ò demo a opinião.

Vai Lianor Vaz por Pêro Marques, e fica Inês Pereira só, dizendo:

INÊS Andar! Pêro Marques seja.Quero tomar por esposoQuem se tenha por ditosoDe cada vez que me veja.Por usar de siso mero,Asno que me leve quero,

E não cavalo folão.Antes lebre que leão,Antes lavrador que Nero.

Vem Lionor Vaz com Pêro Marquez e diz Lianor Vaz:

LIANOR Nô mais cerimónias agora;Abraçai Inês PereiraPor mulher e por parceira.

PÊRO Há homem empacho70,má-hora, Cant'a dizer abraçar..

Depois que a eu usar Entonces poderá ser:

INÊS (Não lhe quero mais saber Já me quero contentar..).

LIANOR Ora dai-me essa mão cá.Sabeis as palavras, si?

PÊRO Ensinaram-mas a mi,Porém esquecem-me já...

LIANOR Ora dizei como digo.

PÊRO E tendes vós aqui trigo

70 atrapalhado

Pera nos jeitar por riba?

LIANOR Inda é cedo... Como rima!

PÊROSoma, vós casais comigo,

E eu com vosco, pardelhas71

! Não cumpre aqui mais falar E quando vos eu negar Que me cortem as orelhas.

LIANOR Vou-me, ficai-vos embora.

INÊS Marido, sairei eu agora,Que há muito que não saí?

PÊRO Si, mulher saí-vos i,Qu'eu me irei pera fora.

INÊS Marido, não digo isso.PÊRO Pois que dizeis vós, mulher?

INÊSIr folgar onde eu quiser 

PÊROI onde quiserdes ir,Vinde quando quiserdes vir Estai onde quiserdes estar.Com que podeis vós folgar Qu'eu não deva consentir?

Vem um Ermitão a pedir esmola , que emmoço lhe quis bem, e diz:

Soledad. Pues su siervo soy nacido.Por ejemplo, Me meti en su santo temploErmitaño en pobre ermita,Fabricada de infinita Tristeza en que contemplo,Adonde rezo mis horasY mis dias y mis años,Mis servicios y mis daños,Donde tu, mi alma, IlorasEl fin de tantos engaños.Y acabando Las horas, todas llorando,

Tomo las cuentas una y una,Con que tomo a la fortunaCuenta del mal en que ando,Sin esperar paga alguna.Y ansi sin esperanzaDe cobrar lo merecido,Sirvo alli mis diasCupidoCon tanto amor sin mudanza,Que soy su santo escogido.Ó señores, Los que bien os va d'amores,Dad limosna al sin holgura,Que habita en sierra oscura,

Uno de los amadoresQue tuvo menos ventura.

71 Par Deus (por Deus)

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16

Y rogaré al Dios de mi,En quien mis sentìdos traigo,Que recibais mejor pagoDe lo que yo recebiEn esta vida que hago.Y rezaré Com gran devocion y fé,

Que Dios os libre d'engaño,Que esso me hizo ermitaño,Y pera siempre seré,Pues pera siempre es mi daño.

INÊS Olhai cá, marido amigo,Eu tenho por devaçãoDar esmola a um ermitão.\E não vades vós comigo

PÊRO I-vos embora, mulher  Não tenho lá que fazer (Inês fala a sós com o Ermitão):

INÊS Tomai a esmola, padre, lá,Pois que Deus vos trouxe aqui.

ERMITÃO Sea por amor de miVuesa buena caridad.Deo gratias, mi señora!La limosna mata el pecado,Pêro vos teneis cuidadoDe matar-me cada hora.Deveis saber Para merced me hacer Que por vos soy ermitaño.Y aun más os desengaño:Que esperanças de os ver 

Me hizieron vestir tal paño.

INÊS Jesu, Jesu! manas minhas!Sois vós aquele que um diaEm casa de minha tiaMe mandastes camarinhas,E quando aprendia a lavrar Mandáveis-me tanta cousinha?Eu era ainda Inesinha, Não vos queria falar.

ERMITÃO Señora, tengo-os servidoY vos a mi despreciado;

Haced que el tiempo pasado No se cuente por perdido.

INÊS Padre, mui bem vos entendoÓ demo vos encomendo,Que bem sabeis vós pedir!Eu determino lá d'ir À ermida, Deus querendo.

ERMITÃO E quando?

INÊS I-vos, meu santo,Que eu irei um dia destesMuito cedo, muito prestes.

ERMITÃO Señora, yo me voy en tanto.

(Inês torna para Pêro Marques):

INÊS Em tudo é boa a concrusão.Marido, aquele ermitãoÉ um anjinho de Deus...

PÊRO Corregê vós esses véusE ponde-vos em feição.

INÊS Sabeis vós o que eu queria?

PÊRO Que quereis, minha mulher?

INÊS Que houvésseis por prazer De irmos lá em romaria.

PÊRO Seja logo, sem deter 

INÊS Este caminho é comprido...Contai uma história, marido.

PÊRO Bofá que me praz, mulher 

INÊS Passemos primeiro o rio.Descalçai-vos.

PÊRO E pois como?

INÊS E levar me-eis no ombro, Não me corte a madre o frio.

Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e diz:

INÊS Marido, assi me levade.

PÊRO Ides à vossa vontade?

INÊS Como estar no Paraíso!

PÊRO Muito folgo eu com isso.

INÊSEsperade ora, esperade!Olhai que lousas aquelas,Pera poer as talhas nelas!

PÊROQuereis que as leve?

INÊS Si. Uma aqui e outra aqui.Oh como folgo com elas!Cantemos, marido, quereis?

PÊROEu não saberei entoar..

INÊS Pois eu hei só de cantar E vós me respondereisCada vez que eu acabar:«Pois assi se fazem as cousas».

Canta Inês Pereira:

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INÊS «Marido cuco me levadesE mais duas lousas.»

PÊRO «Pois assi se fazem as cousas.»

INÊS

«Bem sabedes vós, marido,Quanto vos amo.

Sempre fostes percebido72 Pera gamo.Carregado ides, noss'amo,Com duas lousas.»

PÊRO«Pois assi se fazem as cousas»

INÊS«Bem sabedes vós, marido,Quanto vos quero.

Sempre fostes percebidoPera cervo73. Agora vos tomou o demoCom duas lousas.»

PÊRO«Pois assi se fazem as cousas.»E assi se vão, e se acaba o dito Auto.

72 Sempre tivestes predisposição, destinado.73 Cuco, gama, cervo são símbolos tradicionais domarido enganado.

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18

A Estrutura

FARSA DE INÊS PEREIRA

QUESTIONÁRIO – Compreensão global

1. Delimite as várias partes deste auto, fazendo um breve resumo de cada uma delas.

2. De que se queixa Inês Pereira? Justifique.

3. Há um conflito de gerações entre Inês e a Mãe. Explicite-o.

4. Explique o conflito no primeiro diálogo de Inês Pereira com a Mãe.

5. Caracterize a personagem Inês Pereira tendo em conta as três fases diferentes da sua vida amorosa.

6. Que papel desempenha a Lianor Vaz?

7. Lianor Vaz conta um caso que teve com um clérigo. Resuma-o.

8. Que dizia a carta remetida por Pêro Marques?

9. Comente os conselhos que a Mãe dá à Inês.

10. Explique o significado da seguinte fala da Mãe: «toucar-te, se cá vier».

11. Compare o discurso de apresentação de Pêro Marques com o do Escudeiro.

12. Que pensou Inês Pereira de Pêro Marques?

13. Dê exemplos de cómico de situação nas cenas em que entra o Pêro Marques.

14. Que tipos sociais são criticados no Escudeiro, na Lianor Vaz e nos Judeus casamenteiros?Justifique.

15. Por que razão é que Inês Pereira preferiu inicialmente o Escudeiro a Pêro Marques?

16. Há uma antinomia entre o comportamento inicial do Escudeiro e o comportamento posterior aocasamento. Refira-a.

17. Comente a situação económica do Escudeiro.

18. Que função desempenha o Moço no auto?

19. Que acontecimento leva Inês Pereira a libertar-se do compromisso assumido com o Escudeiro?

20. Explicite as concessões de Pêro Marques da cena final face às exigências de Inês Pereira.

21. Explique o significado das seguintes expressões: «panela sem asa» e «sam coruja ou corujo».

22. Explique o significado da seguinte expressão: «A Madanela quando achou a aleluía».

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19

23. Explique as seguintes palavras da Mãe, tendo em conta as razões que estão na génese desta farsa:«Mata o cavalo de sela e bom é o asno que me leva».

24. Que relação tinha o Ermitão com Inês Pereira?

25. Como reage Inês às palavras do Ermitão?

26. O que é que se prevê que suceda depois que Inês Pereira aceitou Pêro Marques?

27. Será Inês Pereira fiel ao novo marido? Justifique a sua resposta com expressões do texto.

28. Desenvolva, numa composição cuidada, o tema da mulher e do casamento na época dosDescobrimentos, tendo em conta a dicotomia idealismo / realidade.

 1. Apesar do título, esta peça foi motivada pela frase "Mais quero asno que me leve que cavalo queme derrube". Explica a relação entre ambos.

2. Caracteriza a personagem principal da peça.

3. Compara o papel de Lianor Vaz com o dos Judeus.

4. Explica a simbologia contida na boda do primeiro casamento de Inês.

5. Quais os temas que o autor pretende fazer refletir através desta peça.

Ridendo, castigat mores

1. Que objetivo ou objetivos terá Gil Vicente desejado alcançar com esta obra?a. Realizou-os incondicionalmente?

MINHA SENHORA DE QUÊ

dona de quêse na paisagem onde se projetam pequenas asas deslumbrantes folhasnem eu me projeteise os versos apressadosme nascem sempre urgentes:trabalhos de permeio refeições

doendo a consciência inusitadadona de mim nem souse sintaxes trocadaso mais das vezes nem minha intençãose sentidos diversos ocultadosnem do oculto nascem(poética do Hades quem me dera!)Dona de nada senhora nemde mim: imitações de medoos meus infernos (Ana Luísa Amaral)

O poema de Ana Luísa Amaral questiona o papelda mulher na atualidade – aquela a quem dói aconsciência – por não se conseguir dar resposta às váriassolicitações (tarefas domésticas, profissão e o seu

 próprio prazer). Este poema dista cerca de 500 anos da

Farsa de Inês Pereira, contudo, o desejo de ser “dona desi” e do seu tempo mantém-se.A partir dos dados fornecidos, elabora, um

comentário ao poema. (extensão entre cento e cinquentaa duzentas palavras).

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 SINOPSE

Inês Pereira, moça simples e casadoira mas com grande ambição procura marido queseja astuto, sedutor, “que saiba tanger viola, e eu coma cebola.” A mãe de Inês, preocupadacom a sua filha, sua educação e casamento, incita-a a casar com Pêro Marques, pretendentearranjado pela alcoviteira

Leonor Vaz, no entanto Inês Pereira não se apraz do filho do lavrador, por este ser ignorante e inculto. Entretanto entram em peça dois “casamenteiros judeus” que tambémcuidavam de arranjar marido para Inês, e se bem procuraram melhor acharam e Inês casa comum escudeiro, de sua graça Brás da Mata.

Este casamento depressa se revela desastroso para Inês, que por tanto procurar ummarido astuto acaba por casar com um que antes de sair em missão para África, dá ordens aoseu moço que fique a vigiar Inês e que a tranque em casa de cada vez que sair à rua. Brás daMata, era um escudeiro falido que casou com Inês de forma a poder aproveitar-se do seu dote.

Três meses após a sua partida, Inês recebe a agradável notícia de que o seu marido foimorto por um mouro. Não tarda em querer casar de novo, e é nesse mesmo dia que Leonor Vaz lhe traz a notícia que Pêro Marques, continua casadoiro, de resto como este tinha

 prometido a Inês aquando do primeiro encontro destes. Inês casa com ele logo ali, e já no fimda história aparece um falso monge que se torna amante da protagonista.

O ditado “mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube”, não podia ser melhor representado do que na última cena da obra quando o marido a carrega em ombros atéao amante, e ainda canta com ela “assim são as coisas”.

Caracterizacão das personagens

• Inês: moça do povo ambiciosa que deseja ascender socialmente○ solteira: alegre, preguiçosa, leviana, só pensa em casar, teimosa, ambiciosa, insensata,

fantasiosa, sabida, resmungona○ casada com o Escudeiro: engaiolada, não ri, não pode falar, nem ir à janela, aceita a situação

 pois reconhece a culpa, desencantada, arrependida○ casada com Pêro Marques: vingativa, infiel, fingida

• Mãe: mulher do povo○ confidente, conselheira, amiga, compreensiva, sincera, realista, conformista, resmungona

○ Lianor Vaz: alcoviteira (casamenteira)honesta, amiga, conselheira, desinteressada, persistente, sincera

○ Judeus: alcoviteiros (casamenteiros)○ desonestos, interesseiros, falsos/mentirosos, materialistas, aldrabões

• Pêro Marques: lavrador ○ estúpido/parvo/ignorante, honesto, rico, bom marido, respeitador, rude/deselegante, generoso,

ingénuo, obediente

• Escudeiro: baixa nobreza (fidalgo)○ antes de casar: gentil, interessado, bem falante, sabe tocar viola, vaidoso, esperto○ depois de casar: pelintra, desleal, mentiroso, autoritário, cruel, cobarde, egoísta

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Personagens tipo:• Inês: moça do povo ambiciosa• Pêro Marques: pouca educação do homem do campo, o asno, o inadaptado à sociedade•

Escudeiro: a baixa nobreza em degradação: faminta e pelintra• Lianor Vaz: alcoviteira• Mãe: materialista, quer ver a filha bem arrumada, com estabilidade económica• Judeus: mundo da aldrabice e do interesse monetário• Ermitão: clero leviano que esquece os seus deveres e a sua moral• Moço: classe servente (povo)

Cómicos

• Cómico de Carácter

○ Ex.: concretiza-se nas figuras de Pêro Marques (provinciano e bronco nitidamente deslocado junto de Inês e da Mãe) e do Escudeiro pobre e cobarde mas dissimulando na elegância do seudiscurso, na variedade das suas prendas (canta e toca) e na fanfarronice solene todas as suasfraquezas e misérias.

• Cómico de Situação○ Ex.: quando Pêro Marques se senta na cadeira ao contrário e de costas para Inês e para a Mãe

(vv.288-91);○ na fala dos Judeus casamenteiros, que, na sua sofreguidão e calculismo para conseguirem

casar Inês com o Escudeiro, se interrompem, repetem e atropelam constantemente (vv.423-64);

○ no episódio final quando Pêro Marques, descalço, transporta Inês às costas, mais duas lousasque lhe agradam e para cúmulo, aceita cantar uma cantiga que o apelida de "marido cuco"(vv.1105-41).

• Cómico de Linguagem○ Ex.: quando Pêro Marques entra com a sua linguagem recheada de termos e expressões

 provincianas e sobretudo a sua pronúncia (vv.293-316);○ quando os Judeus produzem o seu discurso repetitivo e arrastado (vv.423-64);○ quando Inês se refere a Pêro Marques dizendo "Ei-lo se vem penteando/será com algum

ancinho?" (vv.271-2);○ na ironia cáustica do Moço desmascarando a pelintrice do Escudeiro (vv.528-49).

• Ironia○ Ex.: no diálogo inicial entre Inês e a Mãe especialmente quando esta se refere à preguiça da

filha (vv.39-42);○ no diálogo entre a Mãe e Lianor Vaz sobre um clérigo que queria ver se ela era macho ou

fêmea (vv.73-90);○ na reação de Inês à carta de Pêro Marques trazida por Lianor (vv.258-62);○ na maneira como Inês imagina Pêro Marques antes da sua apresentação (vv.265-72);○ em algumas falas dos Judeus (vv.454-5);○ nas respostas e apartes do Moço quando o Escudeiro o prepara para o encontro com Inês e

durante este (vv.524-606);○ na reação da Mãe à apresentação do Escudeiro (vv.627-8);

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○ nas respostas do Moço quando o Escudeiro o encarrega de tomar conta de Inês durante a suaausência (vv.824-32);

○ na fala de Inês, fechada, tecendo considerações sobre a sua situação e o comportamento domarido (vv.858-66);

○ quando Inês recebe a carta de Arzila (vv.899-927);

○ no diálogo com Lianor Vaz logo após a sua viuvez, fingindo ter sentido a morte do marido(vv.950-2).

 A temática da peça está profundamente ligada à realidade vivida pela sociedade

 portuguesa da época de Gil Vicente: o desejo de ascensão social da pequena burguesia,que vê no casamento numa forma de consegui-la, o oportunismo, o desprezo pela vidacamponesa e o prestígio das maneiras cortesãs, a ignorância do rústico, embora ricocamponês e sua ingenuidade, a falta de escrúpulos (núcleo da peça). O desenvolvimento docapitalismo reforçou o poder do monarca e provocou a decadência da nobreza feudal. Ariqueza vinda do comércio ultramarino tendia a ser grande base do prestígio social. A

aristocracia dependia dessa riqueza e procurou diminuir sua importância desprezando-a evalorizando a origem de sangue, a educação, a fineza, as boas maneiras, a honra e a coragem,enfim os ideais cavaleirescos. E como a nobreza mesmo decadente, ainda conservava grande

 prestígio social, acabou por impor o estereótipo do cavaleiro como modelo a que deviamaspirar todos aqueles que queriam pertencer à classe superior. A burguesia (comércio efinanças) procurou imitar esse figurino com desejo de ascensão social. Passaram então aimitar os nobres sonhando subir na escala social, mas isso tornou-se cómico e ridículo.

Objetivo da crítica vicentinaGil Vicente critica:•

A mentalidade das jovens raparigas;• Os escudeiros fanfarrões, galantes e pelintras;• A selvajaria e ingenuidade de Pêro Marques;• As alcoviteiras e os judeus casamenteiros;• Os casamentos por conveniência;• Os clérigos e os Ermitões.

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