Familia como sistema - Prof. Saulo Almeida · PDF file1 FAMÍLIA COMO SISTEMA, SISTEMA...

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    FAMLIA COMO SISTEMA, SISTEMA MAIS AMPLO QUE A FAMLIA,

    SISTEMA DETERMINADO PELO PROBLEMA1 Juliana Gontijo Aun Maria Jos Esteves de Vasconcellos Snia Vieira Coelho

    A famlia no existe: vemos a famlia porque somos especialistas em v-la.

    Pode parecer muito estranho iniciar com essa afirmao um captulo cujo ttulo anuncia uma proposta em que se comearia apresentando ou definindo a famlia como um sistema. Como definir como um sistema algo que no existe?

    Trata-se de uma afirmao que faz sentido, tendo-se assumido a viso sistmica novo-paradigmtica2, ou uma viso sistmica de 2 ordem. Essa a proposta deste captulo: refletir sobre nossa concepo de famlia e de outros sistemas a partir dessa nova postura epistemolgica.

    Coerentes com essa viso, assumimos posturas que parecem muito radicais para quem ainda no fez a ultrapassagem do paradigma tradicional. No se trata apenas de admitir que a famlia pode ser vista ou concebida de diferentes modos, com diferentes lentes ou teorias, o que seria apenas repetir uma postura relativista. Trata-se de ir alm do relativismo e admitir que a famlia no pr-existe ao olhar de um observador e que este que a faz emergir.

    Consistente com essa postura de 2 ordem e chamando-a de tese construtivista, Sluzki afirma que

    vemos e tratamos a famlia nuclear, e em certas ocasies, a famlia extensa, porque somos especialistas em v-la e no porque exista assim, como uma forma claramente delineada. Estudamos a famlia porque a vemos, e a vemos porque a evocamos com nossos modelos e nosso interrogatrio. (...) Vivemos imersos em redes mltiplas, complexas e em evoluo, dentre as quais extramos a famlia quando perguntamos, por exemplo, Quem faz parte de sua famlia? (Sluzki, 1997 a/1997, p. 28).

    Podemos ainda ir alm dessa afirmao de Sluzki e dizer que essas redes, em que ele diz que vivemos imersos, tambm no existem:

    Constitumos a rede, quando perguntamos: quem so as pessoas significativas para voc, na famlia nuclear, na famlia extensa, no trabalho, na escola, na vizinhana, na comunidade? Se focalizamos a rede, ns o fazemos s custas de focalizar menos o indivduo ou a famlia. (...) A escolha da unidade em foco ser sempre do observador e depender de seu paradigma (Esteves de Vasconcellos, 1998).

    Vemos as redes porque nossa viso sistmica nos permite v-las ou porque nos tornamos especialistas em v-las. Se continuarmos especialistas em ver indivduos, continuaremos vendo e tratando de indivduos.

    Concebemos a famlia como um sistema porque desenvolvemos um olhar sistmico e ento, para ns, a famlia emerge como um sistema, para o qual orientamos nossas prticas e nossas intervenes, ao propor e realizar o atendimento sistmico de famlias e redes sociais.

    1 Este texto um dos captulos da obra em 3 volumes, de Aun, Esteves de Vasconcellos e Coelho, Atendimento Sistmico de Famlias e Redes Sociais: Vol. I Fundamentos tericos e epistemolgicos, 2005, 3 edio 2012; Vol. II O processo de atendimento, 2007; Vol. III Desenvolvendo prticas com a Metodologia de Atendimento Sistmico, 2010; Belo Horizonte, Ophicina de Arte & Prosa. Encontra-se no Volume II, p. 13-37. 2 Ver o texto Pensamento sistmico novo-paradigmtico: novo-paradigmtico, por qu?, no Vol. I desta obra.

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    Acreditamos que, sem esse olhar sistmico, o profissional, mesmo pretendendo trabalhar com a famlia como acontece, por exemplo, com os profissionais do Programa de Sade da Famlia e, de resto, com muitos outros profissionais e outros programas sociais acaba tratando do indivduo na famlia, sem conseguir deslocar seu olhar do indivduo para a teia de relaes entre os elementos do grupo familiar, as quais constituem o sistema familiar.

    S com esse foco nas relaes, o grupo familiar emergiria como um sistema para esses profissionais, possibilitando ento planejar e dirigir sua atuao s relaes familiares, desenvolvendo prticas sistmicas, mesmo que ainda sistmicas de 1 ordem. Seria j um primeiro passo, para ento avanarem para a viso sistmica de 2 ordem, que temos procurado assumir e que embasa as prticas sistmicas que temos procurado desenvolver.

    Antes mesmo de se desenvolver a concepo da famlia como sistema o que aconteceu por volta dos anos 50 do sculo passado muitas disciplinas, tais como sociologia, antropologia, demografia, direito, psicanlise, histria, psicologia, j tinham se interessado pelo estudo da famlia, propondo diferentes definies para o grupo familiar, embasadas em diferentes critrios (Coelho, 2005).3

    Apesar de evidenciarem aspectos importantes do funcionamento de uma famlia, esses estudos no oferecem, entretanto, fundamento terico para se trabalhar com a famlia como uma unidade, uma vez que ainda no a concebem como um sistema.

    Com o surgimento da terapia familiar sistmica, os terapeutas de famlia conceberam a famlia como um sistema e, colocando o foco nas interaes, puderam trabalhar com ela como uma unidade.

    Surgem ento as definies sistmicas da famlia, ou definies da famlia como um sistema, quando se estendem para o sistema familiar os conceitos tericos desenvolvidos para os sistemas em geral seja pela Teoria Geral dos Sistemas, seja pela Teoria Ciberntica.4 Essas teorias com uma pretenso transdisciplinar se propuseram desenvolver princpios tericos aplicveis a todo e qualquer sistema, independentemente da natureza de seus componentes. Surgem ento definies de famlia focalizando as relaes entre os elementos constituintes do sistema familiar.

    Acontece que a maior parte do que j se tem escrito sobre a famlia como um sistema est conforme uma viso sistmica de 1 ordem, de acordo com diversos modelos tericos desenvolvidos, no s para se compreender o funcionamento do sistema familiar, como tambm para fundamentar as intervenes em terapia familiar sistmica. O que as caracteriza como concepes de 1 ordem exatamente o fato de no partirem do pressuposto ou pelo menos de no o explicitarem de que o sistema familiar emerge das distines de observadores e de consensos construdos na linguagem sobre o que o constitui como tal.

    Nesse caso, essas definies sistmicas de 1 ordem, adotadas por profissionais que, sendo sistmicos, j assumiram apenas o pressuposto da complexidade, tendem a ser definies reificadas 5 do sistema familiar. 3 Ver o texto Introduo aos estudos da famlia, no Vol. I desta obra. 4 Ver o captulo 6 Rastreando as origens das abordagens tericas dos sistemas do livro Pensamento sistmico. O novo paradigma da cincia (Esteves de Vasconcellos, 2002). 5 Reificado, usado como equivalente de coisificado, vem do latim res/rei, que quer dizer coisa. Esse termo costuma ser usado para se referir considerao, como coisa, de algo que poderia ser pensado como um processo, ou tambm considerao, como realidade objetiva, de algo que se reconhece como uma distino do observador.

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    Entretanto essas definies foram importantes, por colocarem o foco nos padres de interao do sistema familiar e por terem introduzido a concepo sistmica da famlia. Alm disso, quando o profissional se tornar novo-paradigmtico, poder resgatar essas definies, considerando-as como distines do observador. Por isso antes de apresentarmos nossa concepo de famlia na perspectiva novo-paradigmtica destacamos duas das definies de 1. Ordem, a ttulo de exemplos, para constituir a seo que se segue.

    Faremos o mesmo, mais adiante, quando apresentarmos as definies de sistema mais amplo que a famlia. Abordaremos primeiro as concepes de sistema amplo desenvolvidas ainda na perspectiva sistmica de 1 ordem e depois a concepo de sistema determinado pelo problema, que consideramos coerente com a viso sistmica novo-paradigmtica.

    1. Famlia como sistema, na perspectiva sistmica de 1 Ordem Tomamos algumas definies de famlia como um sistema, elaboradas no primeiro

    momento do desenvolvimento da terapia familiar sistmica tendo como epistemologia a ciberntica de 1 ordem por dois dentre os primeiros terapeutas de famlia sistmicos, Jackson e Minuchin, representando respectivamente a abordagem comunicacional e a abordagem estrutural da famlia. Ambos enfatizam a viso da unidade do sistema familiar (pressuposto da complexidade).

    Para Jackson (1976/1968), a famlia um sistema governado por regras: (...) seus membros se conduzem entre si de maneira organizada e repetitiva e (...) esta estruturao das condutas pode ser considerada como um princpio que preside a vida familiar (p. 139). Jackson focaliza o carter organizado da interao familiar, a mudana na forma de pensar a famlia a partir das relaes entre seus membros e no focalizando os indivduos ou a soma dos indivduos para entender a organizao do sistema. O sentido dado forma de ver a organizao o de deduo das normas familiares, entendidas ento como regras abstratas, conceito esse desenvolvido na teoria da comunicao humana. Assim, a idia de regra a de padres de relao que se repetem, inferidos da observao das relaes e suas redundncias, uma metfora usada pelo observador para descrever e explicar as relaes que observa, no se atendo exclusivamente s condutas individuais.

    Esse autor defende seu argumento sistmico, mostrando a diferena entre essa concepo e uma outra concepo de famlia que predefine papis diferenciados na estrutura familiar (pai, me, filho). Para ele, a teoria de papis se refere descrio de condutas do indivduo, institudas pela cultura, ficando as relaes como secundrias e obscurecidos os processos de interao. O papel predefinido socialmente, de acordo com a posio do indivduo no modelo da estrutura social, estabelecendo o que adequado ou no adequado no exerccio das funes dos membros da famlia.

    Alm de mudar o foco para as relaes, fazendo abstrao do modelo cultural, sua viso sistmica