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FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS JOSÉ ANTONIO PEREIRA POTENCIALIDADES E RISCOS DA PARADIPLOMACIA: UM ESTUDO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DOS MUNICIPIOS POUSO ALEGRE 2016

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FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

JOS ANTONIO PEREIRA

POTENCIALIDADES E RISCOS DA PARADIPLOMACIA: UM ESTUDO DA

LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DOS MUNICIPIOS

POUSO ALEGRE

2016

FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

JOS ANTONIO PEREIRA

POTECIALIDADES E RISCOS DA PARADIPLOMACIA: UM ESTUDO DA

LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DOS MUNICPIOS

Dissertao apresentada como

exigncia parcial para a aprovao no

Curso de Mestrado em

Constitucionalismo e Democracia, ano

letivo 2014/2015, ao Programa de Ps-

Graduao em Direito da Faculdade de

Direito do Sul de Minas.

Orientador: Prof. Dr. Ccero

Krupp da Luz

POUSO ALEGRE - MG

2016

P436p Pereira, Jos Antnio

Potencialidades e riscos da paradiplomacia: um estudo da

legitimidade constitucional dos municpios/ Jos Antnio

Pereira. Pouso Alegre MG: FDSM, 2016.

159f.

Orientador: Ccero Krupp da Luz.

Dissertao (Mestrado) Faculdade de Direito do Sul de

Minas. Mestrado em Direito.

1. Diplomacia. 2. Ente subnacional. 3. Governo. I. Krupp da Luz,

Ccero. II. Faculdade de Direito do Sul de Minas. Mestrado em Direiro. III.

Ttulo.

CDU 340

JOS ANTONIO PEREIRA

POTENCIALIDADES E RISCOS DA PARADIPLOMACIA: UM ESTUDO

DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DOS MUNICPIOS

FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

Data da Aprovao ___/___/___

Banca Examinadora,

____________________

Prof. Dr. Ccero Krupp da Luz

Orientador

FDSM

_______________________

Prof. Dr. ...............................................

Nome da Faculdade/Universidade

________________________

Prof. Dr. ..............................................

FDSM

POUSO ALEGRE - MG

2016

RESUMO

PEREIRA, Jos Antonio. Potencialidades e riscos: um estudo da legitimidade

constitucional dos municpios. 2016. 159f. Dissertao (Mestrado em

Constitucionalismo e Democracia) Faculdade de Direito do Sul de Minas. Programa

de Ps-Graduao, Pouso Alegre, 2014/2015.

O cenrio internacional atual estimula o surgimento de novos atores. Nesse processo, as

fronteiras dos Estados soberanos se enfraquecem, pressionadas pela globalizao e pela

abertura dos mercados, pelos processos regionais de integrao econmica, aliados

descentralizao e regionalizao do prprio poder pblico, acabando por abrir um

espao nas relaes internacionais. A proposta desta dissertao mostrar a afirmao

das entidades supranacionais e a ampliao da participao externa dos governos locais,

que, como se procurar sustentar, passaram a prospectar matrias importantes, entre as

quais algumas vinculadas s polticas social, cultural, ambiental e econmica. Nesse

movimento de insero internacional, foi ampliada, contudo, a agenda internacional

destes novos atores polticos internacionais. No percurso desta dissertao e avaliando a

realidade dos atuais dias, tem-se constatado que os governos centrais de Estados

Soberanos encontram-se s vezes pouco confortveis com a crescente participao

destes atores subnacionais em reas reservadas a seus domnios. No tocante ao

ordenamento jurdico brasileiro, destaca-se o aspecto constitucional do debate acerca da

para diplomacia, assinalando que ela , no caso, desprestigiada. Mas tambm se destaca

que existem possibilidades de aprimoramento destas relaes, como poder ser

observado no corpo do estudo com a evoluo legislativa do tema. A dissertao tem,

enfim, o propsito de discutir mecanismos que possibilitariam a institucionalizao da

para diplomacia, podendo os municpios negociar e celebrar convnios com

subunidades polticas administrativas estrangeiras, desde que sob o acompanhamento do

ente central por intermdio do Ministrio das Relaes Exteriores. A contribuio desta

dissertao para o conhecimento no mbito local constitui importante passo para

efetivar a regulamentao da atuao dos entes locais nas relaes internacionais.

Palavras-chaves: Diplomacia; Ente subnacional; Governo; Soberania.

ABSTRACT

PEREIRA, Jos Antonio. Potentialities and risks: A study of the constitutional

legitimacy of municipalities. 2016. 159f. Dissertation (Masters in Constitutionalism and

Democracy) - Faculty of Southern Minas School of Law. Graduate Program, Pouso

Alegre, 2014/2015.

The current international scenario generates stimulus to the emergence of new actors. In

this process, there is a weakening of the borders of sovereign states, under the pressure

of globalization, the opening of markets, and regional economic integration processes,

coupled with the decentralization and regionalization of public administration itself,

ending up to eventually open a space in international relations. The aim of this

dissertation is to bring the statement of supranational entities and the expansion of the

international politics of local governments, which began to prospect important issues,

inter alia, some related to social, cultural, environmental, and economic policies. In this

movement of international insertion, these new actors international agenda have been

expanded. In the path of this dissertation and assessing current circumstances and

events, it has been observed that central governments of sovereign States happen to be

uncomfortable with the growing participation of these sub-national actors in areas

traditionally under their domain. Regarding the Brazilian legal system, the

constitutional aspect of the debate about paradiplomacy deserves special attention, and

it is to be highlighted that it is discredited. But it is also to be emphasized that there are

possibilities of improving these relationships, as can be observed in the study, that

brings the legislative developments about the subject. Finally, the dissertation aims to

discuss the mechanisms that would allow the institutionalization of paradiplomacy,

authorizing the municipalities to negotiate and celebrate agreements with foreign sub-

administrative political units, under the central entity's Ministry of Foreign Affairs

monitoring. The contribution of this dissertation to the knowledge at the local level is an

important step to enforce the regulation of the activities of local entities in international

relations.

Keywords: Diplomacy; Sub-national entities; Government; Sovereignty.

Sumrio

INTRODUO .............................................................................................................. 8

Captulo 1 - Estrutura do Federalismo ....................................................................... 13 1.1. O nascimento do federalismo .................................................................................. 16 1.2 Sistemas federativos no mundo contemporneo ...................................................... 21

1.3 O impacto da globalizao para o federalismo nas relaes exteriores ................... 27 1.4 Entrelaamento de ordens jurdicas: locais e internacionais .................................... 39 1.5 Autonomia legal e administrativa do municpio no plano nacional ......................... 43

Captulo 2 - Governos subnacionais e as relaes internacionais ............................ 63 2.1 O estado subnacional ................................................................................................ 65 2.2 A diplomacia pblica do municpio ......................................................................... 67

2.3 A ao externa das cidades brasileiras ..................................................................... 70 2.4 Cidades brasileiras e suas experincias em atividades internacionais ...................... 74 2.5 O internacionalismo municipal ................................................................................. 76 2.6 Aspectos jurdicos da paradiplomacia: legitimidade constitucional dos municpios 84

Captulo 3 - Potencialidades e riscos da paradiplomacia .......................................... 97

3.1 Potencialidades ......................................................................................................... 97 3.2 Riscos ..................................................................................................................... 107 3.3 Experincias dos municpios na paradiplomacia .................................................... 112

3.3.1 Experincias pioneiras ......................................................................................... 112

3.3.2 Experincias locais da paradiplomacia ................................................................ 114

Consideraes finais ................................................................................................... 118

Referncias bibliogrficas .......................................................................................... 122

ANEXO I ...................................................................................................................... 130

ANEXO II .................................................................................................................... 133

I RELATRIO .......................................................................................................... 134

II ANLISE .............................................................................................................. 134

ANEXO III ................................................................................................................... 145

ANEXO IV ................................................................................................................... 161

8

INTRODUO

A Constituio Federal edifica a organizao poltico-administrativa da

Repblica Federativa do Brasil, enfatizando que todos os entes so autnomos nos

termos desta. A pretenso desta pesquisa identificar e explorar a potencialidade dos

Municpios como entes federados. O constituinte poca rendeu-se tese municipalista,

encabeada por Hely Lopes Meirelles1, sendo enftico na sustentao de que o

municpio era como detentor das mesmas caractersticas do Estado Membro na

organizao federativa brasileira.

Como se pode extrair da interpretao do artigo 68 da Constituio Federal, a

tradio da autonomia poltica administrativa dos Municpios obteve reconhecimento

constitucional em 1891. Assim, a Federao Brasileira, desde os primrdios, no se

identificou exclusivamente com a tradicional diviso entre a ordem central e as ordens

estaduais, mas, sim, contemplou uma ordem federal, ordens estaduais e municipais.

Ainda trazendo mostra da composio do fundamento da autonomia do municpio,

dispe sobre o assunto o artigo 52, VII, da Constituio Federal.

Este inciso VII trata de tema conexo e determina que uma resoluo do Senado

Federal deve dispor sobre os limites globais e as condies de realizao de operaes

de crdito internas e externas de todos os entes federados. Portanto, segundo o comando

constitucional, juridicamente possvel que o ente municipal estabelea relaes

comerciais com o exterior, inclusive buscando recursos financeiros mais oportunos. A

rigor, qualquer municpio, por menor que seja, poderia exercer e desenvolver uma

agenda internacional. um exerccio de escolha, prioridade e criatividade. Abrir uma

janela para o mundo pode significar mais recursos para o municpio e ampliar sua

capacidade de crdito e de recepo de investimentos. uma oportunidade para projetar

a identidade e a marca municipal no exterior.

A pesquisa pretende colaborar com a compreenso desse tema realizando

estudos constitucionais de municpios que formalizaram ou pretendem formalizar

contrataes com o exterior, fazendo valer a sua autonomia. Alm disso, pretende

1 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 4 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1981,

p. 15.

9

avaliar as condies, riscos e potencialidades desses casos, observando o comando

constitucional vigente em relao ao poder central.

Para tanto, no necessria uma emenda Constitucional que tivesse objetivo de

descentralizar prerrogativas do Estado Nacional, uma vez que uma previso nessa linha

iria contra os princpios sobre os quais se apoia o Estado brasileiro. No teria, portanto,

viabilidade jurdica.

Observa-se que, nas ltimas dcadas, h uma ao internacional dos governos

subnacionais se efetivando de maneira crescente. O que se poderia propor seria uma

possvel evoluo da legislao constitucional vigente, esclarecendo a legitimidade do

ente municipal no cenrio internacional.

A pesquisa proposta circundar esses desafios, propondo reflexes sobre esta

nova forma de visualizar o federalismo. Trata-se de descobrir eventuais alternativas que

permitam as unidades federativas municipais expandir suas fronteiras no exterior. Estes

entes federados podero criar novas alternativas, inclusive propondo alteraes tocantes

ao cenrio poltico por intermdio de emenda a Constituio, assim como ocorreu na

Argentina, na Sua e no Canad2.

Nesta dimenso no pareceria impensvel formular uma nova regulamentao

destas atividades no pacto federativo, considerando-se que os limites constitucionais

autuao externa dos estados federados poderiam ser revistos atravs de um mecanismo

que, mesmo guardando a competncia exclusiva da Unio no mbito externo, atribusse

certas prerrogativas aos entes municipais.3.

O que tambm ser objeto de estudo nesta pesquisa o mecanismo do Pacto

Federativo, que se relaciona com os mecanismos de controle e equilbrio na vida

poltica nacional. Ele vem limitando a capacidade de ao dos governos, nacional,

regional e local, no que se refere insero internacional. Nessa anlise, busca-se

identificar a problematizao da compreenso do mundo em mudana, em que o nvel

de relaes internacionais no s passa pelo Estado nacional, mais vai alm dele. Por

serem emaranhadas, estas relaes apresentam alta complexidade. Trata-se de trazer

2 Gesto pblica e insero internacional das cidades. So Paulo: CEDEC/UNESP/FGV, projeto temtico

FAPESP. 3 BOGA FILHO, Antenor Amrico Mouro. A diplomacia federativa. Braslia: Ministrio das Relaes

exteriores, 2002.

10

para a poltica nacional a capacidade desenvolvida por outras instncias, considerando

que sua ao pode fortalecer o Estado.

No processo dinmico da globalizao, os municpios tm contribudo

efetivamente na construo do Estado. Ocorre, todavia, que, para consubstanciar suas

pretenses, ele deve necessariamente responder as seguintes perguntas: 1) Os

municpios tm legitimidade jurdica para construir uma agenda internacional? 2) Os

municpios menores tm condies jurdicas de estabelecer formalmente contatos e

intercmbios internacionais? 3) Quais os instrumentos jurdicos que formalizam sua

obrigao internacional? E as garantias necessrias segurana jurdica das relaes?

Como seria equacionada a assimetria de poder entre os entes municipais e a Unio? 4)

Em quais polticas pblicas so aplicados os resultados destes contatos internacionais?

5) possvel uma unio regional entre os entes municipais do sul de minas visando

otimizar os contatos externos e procurando ratear ou otimizar estas contrataes no

exterior?

A pesquisa abordar os aspectos necessrios e suficientes para responder os

questionamentos acima. Tambm abordar quais condies poderiam ser aplicadas no

dia-dia das pequenas cidades, possibilitando a elas buscar alternativas de entrada de

recursos e projetos no exterior, o que seria um ganho para elas quando se pensa nas

possibilidades que seriam abertas aos municpios, que atualmente contam simplesmente

com repasses do ente federal e estadual, no vislumbrando outras possibilidades de

ampliar o financiamento de suas polticas pblicas.

A pesquisa tentar contemplar as possibilidades e as dificuldades que os

municpios tm para operarem no exterior, sendo o prprio Itamarati e alguns setores da

academia enfticos em salientar que apenas uma pequena parcela desse universo de

entes dispe de condies ou mesmo ambio para ingressar e se manter no

internacionalismo municipal.

Nos contornos cientficos desta pesquisa se entrelaam a participao

internacional e regional dos governos subnacionais destacados em vrios pases. No

aspecto internacional, sua evoluo visvel h algum tempo e a literatura apresenta

estudos de casos que comprovam esta afirmao. Um dos desafios desta pesquisa ser

trazer elementos que demonstrem esta tendncia crescente.

11

A nova ordem globalizada traz oportunidades no Brasil. Ela ainda est distante

de uma realidade; todavia, vem ganhando espao tanto no mundo acadmico quanto nas

polticas estratgicas dos municpios. Essa sua crescente importncia abre perspectivas

para o aprofundamento do debate sobre a possibilidade de descentralizao da insero

internacional. Nota-se que os estudos nesta rea sugerem que um fator importante para a

paradiplomacia a existncia de governos democrticos e, de preferncia, com sistemas

federativos. Dentre os diferentes conceitos de paradiplomacia, destaca-se o de No

Cornado Prieto, para o qual

A paradiplomacia pode ser definida como o envolvimento de governo

subnacional nas relaes internacionais, por meio do estabelecimento de

contatos, formais, informais, permanentes e provisrios com entidades

estrangeiras pblicas ou privadas, objetivando promover resultados

socioeconmicos ou polticos, bem como qualquer outra dimenso externa de

sua competncia constitucional. Embora bastante contestado, o conceito de

paradiplomacia no impossibilita a existncia de outras formas de

participao do subnacional no processo de poltica externa, mais diretamente

ligado ao departamento de relaes exteriores de governo central, como

assim chamada diplomacia federativa, tampouco impede o papel cada vez

maior dos governos subnacionais nas estruturas de multimarcas para a

governana regional ou mundial4.

Nesse sentido, o Brasil no seria exceo, pois a retomada da vida democrtica

entre 1985 e 1990 acabou projetando o tema no debate poltico, ainda que de modo

limitado.

As Constituies estaduais, assim como as leis orgnicas dos municpios no

absorveram o debate especfico na construo desta temtica. Porm, constata-se uma

busca por parte do governo nacional e por algumas instncias subnacionais de buscar

adaptaes, muitas vezes estimuladas pelos prprios acontecimentos.

necessrio enfatizar, contudo, o lugar Brasil nessa ascenso da

paradiplomacia, considerando o papel dos municpios no tocante ao desenvolvimento e

ao planejamento. Nele se observa o problema da insero internacional global ou

regional dos entes ou governos subnacionais.

4 PRIETO, No Cornago. O outro lado do novo regionalismo ps-sovitico e da sia pacfico. In:

VIGEVANI, Tullo (org.). A dimenso subnacional e as relaes internacionais. So Paulo: UNESP,

2004, p.252.

12

Pode-se ainda supor que uma das razes pelas quais as cidades no Brasil

aumentaram sua preocupao com o mundo o fato de terem passado a ser vistas como

agentes de desenvolvimento econmico. Este entrelaamento da capacidade de afirmar

uma poltica local de desenvolvimento, a ao coordenada em nvel nacional e a sua

interveno em um mundo cada vez mais independente, com uma consequente

flexibilidade na capacidade de adaptao s mudanas das sociedades, dos mercados, da

tecnologia e da cultura, parece gerar um incentivo para se aproveitar o benefcio da

globalizao ou, ao menos, para evitar as perdas que podem advir do alheamento a esse

fenmeno.

A abordagem acadmica do tema da paradiplomacia se ampliou na dcada de

1990, principalmente com a abertura dos mercados internacionais, refletindo de forma

geral a participao de outros atores no cenrio internacional que no o Estado nacional.

A origem deste conceito implica debates acerca de conceitos de soberania nacional e

federalismo. Esta percepo deve estar fundamentada na formalizao jurdico-

constitucional, por isso, a dificuldade conceitual que se apresenta no Brasil aos crculos

restritos que discutem o tema da participao dos governos subnacionais na poltica

internacional refere-se a como mudar as regras jurdicas sem ferir os limites

constitucionais, tendo em conta que os Constituintes de 1988 inseriram o federalismo

entre os princpios imutveis, ou seja, os disps entre as clusulas ptreas.

Nesta perspectiva, ainda necessrio discorrer sobre a representao externa,

que talvez seja o ponto mais conflituoso desta viso federativa entre os entes. Observa-

se que, num Estado Federal, a representao externa atributo do governo nacional.

Portanto, a princpio o caminho da alterao da Constituio para a descentralizao da

poltica internacional no seria vivel, principalmente porque a gide desta nova

plataforma federativa vinculada a eventuais contratos de operaes financeiras,

intercmbios culturais, ambientais e sociais.

Para fundamentar legalmente esta pretenso cientfica, busca-se na Constituio

da Repblica o embasamento legal para os propsitos da elaborao desta pesquisa, ou

mesmo que, guisa das suas concluses, admite de forma expressa e implcita o

aprimoramento do ente municipal como sujeito de direito, apto a contratar no exterior.

Em resumo, o internacionalismo municipal um processo legtimo, que desafia no

apenas a diplomacia federal, mas tambm a academia brasileira, por demandar um novo

13

olhar cientfico em relao s correntes hegemnicas de pensamento das relaes

internacionais e do direito internacional.

CAPTULO 1 - ESTRUTURA DO FEDERALISMO

No h como trazer o tema proposto para discusso acadmica sem analisar

alguns aspectos da histria do Federalismo e, consequentemente, suas formas de

existncia. Tambm preciso pontuar algumas razes que explicam a efetivao da

estrutura vigente. indiscutvel que a maneira pela qual o Estado organiza o seu

territrio poltico depende da sua natureza e da sua histria. A forma de organizao do

Estado unitrio, federado ou confederado, reflete a repartio de competncias que leva

em considerao a composio geral do pas, a estrutura do poder, sua unidade,

distribuio e competncias no respectivo territrio.

De acordo com Joaquim de Castro Aguiar5, pode-se identificar dois tipos bsicos

de federalismo. O primeiro o federalismo por agregao, que tem por caracterstica a

maior descentralizao do Estado. Nele, os entes regionais possuem competncias mais

amplas, como ocorre com os Estado Unidos da Amrica. O segundo o federalismo por

desagregao, em que a centralizao maior. Nesse caso, o ente central recebe a maior

parcela de poderes. essa a configurao da federao brasileira.

O Estado Federal conceituado como uma aliana ou unio de unidades

federadas. Montesquieu, em seu clssico O Esprito das Leis, escreveu que a Repblica

federativa uma forma de constituio da sociedade poltica que possui as vrias

vantagens do governo republicano no plano interno e a fora da monarquia nas relaes

exteriores. Segundo o filsofo, essa forma de governo uma conveno segundo a qual

vrios corpos polticos consentem em se tornar cidados de um Estado maior que

5 AGUIAR, Joaquim Castro. Competncia e autonomia dos municpios na nova Constituio. Rio de

Janeiro: Forense, 1995.

14

pretendem formar. uma sociedade de sociedades, que forma uma nova sociedade, que

pode crescer como novos associados que unirem a ela6.

Filiando-se a essa mesma tradio, Hans Kelsen7 escreve que apenas o grau de

descentralizao diferencia um Estado Unitrio dividido em provncias autnomas de

um Estado Federal. Ainda segundo seu pensamento, o Estado Federal se caracteriza

pelo fato de o Estado componente possuir certa medida de autonomia constitucional. O

rgo legislativo de cada Estado unitrio tem competncias em matrias referentes

Constituio dessa comunidade, de modo que modificaes nas constituies dos

Estados unitrios podem ser efetuadas por estatutos dos prprios Estados componentes.

Na mesma linha, Kelsen ainda destaca que as unidades possuem apenas competncia

para a legislao provincial, dentro do que a Constituio do Estado prescreve. A

legislao em matrias constitucionais totalmente centralizada, ao passo que, no

Estado Federal, ela centralizada apenas de modo incompleto, ou seja, ela at certo

ponto descentralizada.

Nota-se que, dentro desta estrutura federalista, existem Estados soberanos, que

contribuem com suas experincias. Destaca-se, nesse sentido, o artigo 225 da

Constituio Portuguesa, que estabelece que devido s suas caractersticas geogrficas,

econmicas, sociais e culturais, essas unidades possuem autonomia poltico-

administrativa para gesto dos seus interesses. Essa autonomia circunscrita pelos

limites postos pela Constituio portuguesa e no pode afetar a integridade da soberania

do Estado Portugus8.

Ao analisar o sistema federativo da Espanha, pode-se verificar que ele mais

flexvel. O artigo 137 da Constituio da Espanha estabelece que o Estado se organiza

em municpios, provncias e comunidades autnomas. Todos esses entes possuem

autonomia para gesto dos seus interesses. Especificamente em relao s comunidades

6 MONTESQUIEU. O Esprito das Leis. Traduo de Cristina Murachco. So Paulo: Martins Fontes,

2000, p. 141. 7 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado.Traduo de Luiz Carlos Borges. So Paulo:

Martins Fontes, 2000, p. 453. 8 Artigo 225 (Regime poltico-administrativo dos Aores e Madeira): O regime poltico-administrativo

prprio dos arquiplagos dos Aores e da Madeira fundamentam-se nas suas caractersticas geogrficas,

econmicas, sociais e culturais e nas histrias e aspiraes autonomistas das populares insulares.

A autonomia das regies visa a participao democrtica dos cidados, o desenvolvimento econmico

social e a promoo e defesa dos interesses regionais,bem como o reforo da unidade nacional e dos laos

de solidariedade de todos os portugueses.

A autonomia poltico-administrativa regional no afeta a integridade da soberania do Estado e exerce-se

no quadro da Constituio.

15

autnomas, o artigo 147 prev que a norma institucional bsica delas ser elaborada

dentro dos limites da Constituio Espanhola e far parte do ordenamento jurdico do

Estado espanhol. No artigo 148, a Carta espanhola enumera as matrias sujeitas

competncia das comunidades autnomas9.

Ainda no domnio das experincias, Dallari10

argumenta que, em qualquer poca

da histria, encontram-se referncias a alianas entre territrios. O primeiro exemplo da

unio total e permanente de territrios foi a Sua. Em 1291 trs cantes celebram um

pacto de amizade e aliana, formando a confederao Helvtica. Em que pese a

recorrncia das alianas territoriais, o Estado Federal nasceu com a Constituio dos

Estados Unidos, em 1787, quando as ento treze colnias britnicas se uniram para

fazer frente s metrpoles da poca. Muito embora a Confederao Helvtica tenha sido

formada em 1291, ela permaneceu restrita aos objetivos e ao relacionamento entre os

participantes at o ano de 1948, quando a Sua se organizou como Estado Federal.

Com efeito, o Estado Federal aquele que permite um maior grau de

descentralizao de poder, pois se organiza mediante a coexistncia de mais de um

centro de poder detentor de autonomia poltica, administrativa e legislativa. O

pressuposto do federalismo a repartio de responsabilidades governamentais, de

modo a assegurar a integridade do Estado nacional face s disputas e desigualdades

regionais.

No que diz respeito anlise do papel internacional dos entes federativos nos

outros Estados nacionais, so utilizadas referncias extradas da literatura estrangeira,

em que a questo tem sido objeto de debate h mais tempo. Para a discusso da matria

no mbito do Estado brasileiro, recorreu-se, principalmente, ao acervo documental da

Chancelaria, que se constitui em ponto de referncia mais atualizado para o estudo dos

distintos aspectos da ao externa dos entes federativos nos ltimos da diplomacia dos

governadores, das cidades e para o exame da atuao internacional de outros agentes

locais no convencionais brasileiros, como entidades de classe, universidades, cmaras

municipais.

9 Artigo 137 da Constituio Espanhola:: El Estado se organiza territorialmente en municipios, en

provincias y en las Comunidades Autnomas que se constituyan. Todas estas entidades gozan de

autonoma para la gestin de sus respectivos interesses. 10

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 2 ed. So Paulo: Saraiva, 1998, p..

141.

16

1.1. O nascimento do federalismo

O Federalismo no nasce da mesma forma em todos os pases. Ele depende da

construo de cada Estado, da sua forma de criao e manuteno. Kelsen11

entende que

s possvel reconhecer um Estado Federal pelo contedo de sua Constituio positiva

concreta, no caso de a essncia dele ser concebida com um grau particular e uma forma

especfica de descentralizao. Desse ponto de vista, Kelsen pontua que o modo de

criao do Estado irrelevante. No importa se ele passou a existir por meio de um

tratado internacional, que estabelecesse uma Constituio Federal entre Estados at

ento soberanos, que estariam, contudo, subordinados a um Estado Federal atravs do

aumento do grau de descentralizao.

Observando ainda o contexto histrico de pases que adotaram o federalismo,

destaca-se que:

Identificam-se trs matrizes segundo o nvel das relaes

intergovernamentais entre os entes federados. A) O federalismo dual, modelo

original dessa forma de organizao elaborada e implementada nos EUA. B)

O federalismo centralizado, transformao do modelo dual em que as

unidades subnacionais se tornam, praticamente, agentes administrativos do

governo central, como no perodo das medidas de interveno do New Deal

e; c) O federalismo cooperativo, em que as unidades subnacionais e o

governo nacional tem ao conjunta e capacidade de autogoverno, como na

Alemanha12

.

Jos Afonso da Silva13

dispe que o grau de descentralizao do poder fixado

na Constituio de cada Estado. O autor denomina de federalismo centrpeto aquele em

que o constituinte se inclina ao fortalecimento do poder central; de federalismo

centrifugo aquele em que a Constituio prefere preservar os Poderes Estadual e

Municipal; finalmente, de federalismo de cooperao aquele forjado pela opo do

equilbrio de foras entre os poderes central e local.

Nas resolues de Kentucky de 1798 e 1799, Thomas Jefferson estabelece a

importncia da descentralizao do poder, desenhando um federalismo centrfugo como

11

KELSEN, Hans. Op. cit., p. 461. 12

MAGALHAES, Jos Luiz Quadros de (coord.). Pacto Federativo. Belo Horizonte: Mandamentos,

2000, p. 186. 13

SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. So Paulo:. Malheiros, 2006, p. 99-

102.

17

instrumento de reconhecimento e valorizao da formao supostamente natural de

comunidades. Essa valorizao pode estar relacionada com a possibilidade de o ente

municipal assumir responsabilidades, principalmente no tocante integrao com

unidades federadas de outros pases, o que lhe possibilita incrementar sua capacidade de

ingresso de novas formas de recursos financeiros, sociais e tecnolgicos.

Paulo Bonavides, ao tratar do Estado e do regionalismo, traz importantes

consideraes sobre o imenso desafio de conceituar o Estado como elemento histrico,

real e emprico.

Compreende a teoria do Estado dois problemas diferentes e, portanto requer

duas disciplinas distintas. Um ngulo toma em considerao o Estado-

fenmeno da realidade social: o Estado como efetivamente o , o Estado-

histrico; o outro estuda o Estado objeto de valorao: o estado como deveria

ser: o estado justo e injusto. Do ponto de vista da distino mencionada no

primeiro termo, podemos perguntar: Que Estado? Qual sua essncia, a sua

origem, a sua estrutura e quais funes essenciais? Pode-se responder a estas

perguntas com base num estudo comparativo dos fenmenos sociais que

designamos Estado, se bem que os Estados sejam muito diferentes em

perodos histricos diversos e em distintas reas geogrficas14

.

J Manoel Gonalves Ferreira Filho15

considera que o Estado uma ordem

jurdica relativamente centralizada, limitada ao seu domnio espacial e temporal de

vigncia, dotada de soberania e globalmente eficaz. Percebe-se que a construo dos

conceitos de Estado, nao e soberania no historicamente linear ou consensual entre

os tericos. A doutrina tambm costuma distinguir as designaes de simetria e

assimetria, a serem empregadas no estudo do sistema federal. Na viso de Dirco

Torrecillas Ramos16

que aborda que a simetria como o grau de conformidade possui de

comum cada unidade poltica separada do sistema em relao a outras unidades, porm

nunca perdem sua harmonizao, sobremodo, porque dentro da estrutura so

interligadas, e, em alguns casos, as bases Constitucionais so os limitadores para

definio de qualquer tipo de distanciamento jurdico-constitucional.

No Brasil, a cronologia constitucional demonstra que, na vigncia das

Constituies de 1891, 1937, 1946, 1967 e 1988, sempre ocorreram discusses sobre a

14

BONAVIDES, Paulo. Reflexes: poltica e direito. 3. ed. So Paulo: Malheiros, 1998, p. 84 15

FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. Curso de direito constitucional. 22. ed. So Paulo: Saraiva,

1995, p. 40. 16

RAMOS, Dirco Torrecillas. O federalismo assimtrico. So Paulo: Pliade, 1998, p. 93-94.

18

forma republicana do Estado. No entanto, o desenvolvimento da estrutura poltica do

Estado brasileiro revela um processo cclico de centralizao do poder. A forma unitria

do Estado monrquico a gnese de uma tradio poltica centralizadora, que mitigou

todas as iniciativas de descentralizao.

Com o advento da Proclamao da Repblica, o federalismo foi institudo pelo

decreto 1.15/11.1889. As antigas provncias foram transformadas em estados. A Carta

Magna brasileira de 1891, sob forte influncia norte-americana, apropria-se do

federalismo, construindo um modelo altamente descentralizado, mas artificial, que no

constitua uma Unio de Estados soberanos, mas institua uma diviso para poder criar

uma unio que no era espontnea.

A federao descentralizada de 1891 recua no grau de descentralizao em 1934

e 1946, sendo que, na Constituio de inspirao social-fascista de 1937, a federao

simplesmente extinta. A conexo entre autoritarismo e centralizao muito estreita

na histria do constitucionalismo brasileiro. Nas Constituies de 1967 e,

principalmente, na de 1969 (a chamada emenda 1), temos uma federao nominal.

Nesse perodo, o Brasil de fato retorna a um Estado unitrio descentralizado, sendo esta

descentralizao autoritria. Lembremos que os requisitos bsicos de um Estado

Unitrio descentralizado no estavam presentes em 1969: personalidade jurdica prpria

e eleio dos administradores regionais. No Brasil da ditadura que se instalou ps-64 e

com a Constituio de 1969, os governadores no foram eleitos, assim como no o

foram os senadores. Em muitos aspectos, a ditadura brasileira se mostrou mais

sofisticada do que outras ditaduras latino-americanas, pois se dava o trabalho de eleger

um s general de quatro em quatro anos, em um sistema de eleio indireta e

bipartidrio, replicando o modelo presidencial norte americano17

.

J a Constituio de 1988, seguindo a tradio republicana, determina, logo em

seu art. 1, que a forma do Estado brasileiro a federal. Trata-se de um federalismo

centrfugo e inovador, que se estabelece em trs nveis, incluindo o municpio como

ente federado e, portanto, possuidor de um poder constituinte derivado. Paulo

Bonavides18

ainda ressalta a respeito que no reconhecemos uma nica forma de unio

federativa contempornea onde o princpio da autonomia municipal tenha alcanado

17

ROBERT, Cinthia; MAGALHAES, Jos Quadros de. Teoria do Estado, democracia e poder local. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p.33. 18

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 6. ed. So Paulo: Malheiros, 1996, p. 314.

19

grau de caracterizao poltica e jurdica to alta e expressiva quanto aquele que

consta na definio constitucional do novo modelo implantado no pas com a carta de

1988.

No que se refere s relaes internacionais, interessante notar, como j se

ressaltou, que a Constituio de 1988 determina que a conduo das relaes externas

do Brasil atribuio exclusiva da Unio e de competncia privativa do presidente da

Repblica, auxiliado pelos ministros de Estado. Os controles legislativos devem ser

efetuados pelo Congresso Nacional na forma expressamente indicada.

Pode-se depreender que a prpria Constituio da Repblica deixa consignado,

em seu artigo 18, que a organizao poltico administrativa da Repblica Federativa do

Brasil compreende a Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios, todos

autnomos. Portanto, erroneamente que em vrios discursos polticos tem-se se falado

que a Unio, na condio de pessoa jurdica de direito pblico interno, soberana

exclusiva. Este entendimento est condicionado a uma interpretao limitada dos artigos

constitucionais, que atribuem ao ente central a competncia internacional.

Neste ponto, pode-se sustentar que a capacidade para conduzir as relaes

internacionais no ordenamento jurdico seria da Repblica Federativa do Brasil,

composta pela Unio, Estados-membros, municpios e Distrito Federal nos termos do

artigo 1 da Constituio da Repblica. O vnculo que associa estes entes em uma

federao de natureza jurdico-poltica. Ele se encontra embasado no verdadeiro Pacto

Federativo. A compreenso dos modelos no institucionalizados de relaes

internacionais entre os entes subnacionais uma realidade presente no Estado

Democrtico de Direito.

O modelo assimtrico, com concentrao de poderes, competncias e

prerrogativas no ente central, pode significar um enorme entrave no desenvolvimento

das relaes internacionais em um mundo globalizado. Dinor Adelaide Musetti Grotti19

destaca a descoberta do federalismo como instrumento de preservao democrtica, de

racionalizao e, sobretudo, da integrao das polticas de desenvolvimentos regionais,

que devem ser elaboradas e implementadas visando coordenao e cooperao da

Unio e de todos os entes federados.

19

GROTTI, Dinor Adelaide Musetti. Perspectivas para o federalismo. In: BASTOS, Celso (coord.). Por

uma nova federao. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 148.

20

Esther Bueno Soares20

, ao tratar de poltica de integrao regional no mbito do

Mercado Comum do Sul MERCOSUL, alerta que a comunidade est desinformada

sobre a integrao latino-americana e sobre o que esta poder lhe ofertar. A autora

defende que no s os Estados membros devem participar, mas os municpios,

conscientizando a comunidade para o lado econmico e social.

Os critrios de seleo dos atores internacionais e sua classificao pressupem

no apenas uma opo terica, mas tambm uma perspectiva ou modelo de

compreenso das relaes internacionais. Nesse aspecto, decisivo o modelo ou

paradigma empregado na anlise dos fenmenos internacionais para a avaliao de seus

desdobramentos tericos, a dar luz diferentes concepes, como nos exemplos de

incluso da sociedade civil na estrutura poltica do Estado:

Ao remeter o carter dualista de Estado e sociedade civil, observa que, ao

contrrio da sociedade civil, que se forma naturalmente, os Estados so

feitos, isto , constituem criaes artificiais, posteriores aquela. O Estado

uma realidade construda, uma criao artificial e moderna quando

comparada a sociedade civil. vlido descrever que a personalidade do

Estado s desaparece ou diminuda em funo da sua soberania, ainda que o

Estado soberano deva ser compreendido com sendo aquele que se encontra

subordinado direta e indiretamente a ordem jurdica internacional21

.

A ideia de descentralizao de poder da unidade central ainda inexplorada na

prtica e na literatura jurdicas. Os estudos sobre o tema ainda so escassos e enfocam

problemas relacionados com indicadores econmicos e sociais dos Estados e das regies

brasileiras, tendendo a evidenciar o grau das desigualdades regionais. Segundo Celina

Souza22

, a experincia brasileira ajuda na viso de que o federalismo como mecanismo

de diviso territorial de poder uma forma de acomodar conflitos, em vez de promover

harmonias.

Mesmo assim, as tenses existentes nos diversos nveis de governo em uma

federao tm contribudo para favorecer as unidades subnacionais. cada vez mais

comum a adoo de medidas visando a maior descentralizao do governo central e

20

SOARES, Esther Bueno. Unio, estados e municpios. In: BASTOS, Celso (coord.). Por uma nova

federao. So Paulo: Revista dos tribunais, 1995, p.92. 21

SANTOS, Boaventura de Sousa. O Estado e o direito na transio ps-moderna: para um novo censo

comum. Revista Humanidades, Braslia, v.3, p. 270, 1991 22

SOUZA, Celina. Intermediao de interesses regionais no Brasil: o impacto do federalismo e da

descentralizao. Dados, Rio de Janeiro, v. 41, n. 3., p. 12, 1998.

21

buscando uma maior participao dos municpios. Logo, pode-se entender que o

fenmeno da globalizao se apresenta como uma das referncias internacionais em

relao projeo subestatal.

1.2 Sistemas federativos no mundo contemporneo

Uma vez que no h uma concepo nica e exclusiva de Estado Federal, a

fisionomia da estrutura federativa delineada pelo Estado que a adota23

. Por isso

considera-se que a histria dos sistemas polticos aponta a existncia de formas

diversificadas de organizao federativa dos Estados. Nesse sentido, Jos Luiz Fiori24

assinala que, embora as discusses jurdico-constitucionais demonstrem clara

dificuldade para formular uma definio universalmente vlida do que seja o

federalismo, no impossvel distinguir duas tendncias bsicas na sua definio

enquanto fenmeno histrico e como proposta poltica e constitucional.

Como fenmeno histrico, o federalismo despontaria como uma condicionante

que favorece uma associao poltica calcada na livre vontade das partes de constituir

uma federao. Esse seria, no caso, um federalismo contratual, um modelo em que

poderiam ser enquadradas federaes como a helvtica, a norte-americana, a argentina

e, mais recentemente, a russa, todas resultantes de uma unio concertada.

No que diz respeito ao federalismo como proposta poltica institucional, a

formao da federao advm de uma lei ou de uma constituio que estabelece a unio

poltica das unidades, a exemplo do que ocorreu no Brasil em 1889, na ustria em 1920

e, mais recentemente, na Espanha. Ele advm, assim, sem uma experincia federalista.

No caso da Espanha, por exemplo, ela considerada um dos pases europeus mais

descentralizados, pois todos os seus territrios administram de forma local seus sistemas

de sade e educao, assim como alguns aspetos do oramento pblico. Alguns desses

territrios, como o Pas Basco administram seu oramento praticamente sem contar

com a superviso do governo central espanhol. A Catalunha, Navarra e o Pas Basco

possuem suas polcias prprias totalmente operativas e completamente autnomas, em

23

FERRERI, Jos Lus. A Federao. In: BASTOS, Celso Ribeiro (coord). Por uma nova federao. So

Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 17. 24

FIORI, Jos Lus. O federalismo diante do desafio da globalizao. In: AFONSO, Rui de Brito Alvares;

SILVA, Pedro Lus Barros (org). A federao em perspectiva: ensaios selecionados. So Paulo: Fundap,

1995, p. 23

https://pt.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%ADcias

22

que as provncias, apesar de estarem politicamente unidas, no gozam de autonomia

poltica e, sim, de uma relativa autonomia administrativa25

.

Nessa linha, considerando o federalismo contratual como uma forma pura de

federalismo, ele no poderia ser aplicado ao federalismo institucional, pois as

federaes dessa categoria s justificariam tal denominao se o tratado que as fundou

tivesse sido submetido ao consentimento das diversas unidades da federao e se tivesse

sido aceito por eles. Ou seja, o sufrgio do cidado seria equivalente ao consentimento

do contratante26

. Como se sabe, tanto no Brasil de 1889 quanto na Espanha de 1978,

nem as provncias, nem os cidados foram consultados.

Em sua essncia, o federalismo reflete o compromisso do sistema com uma

diviso de poderes. H um poder central, com jurisdio sobre a totalidade do territrio

nacional, e outro, regional ou local, com jurisdio sobre partes geogrficas delimitadas

dentro da totalidade do territrio da federao. Assim, enquanto conserva uma

diversidade jurisdicional no plano interno, o Estado Federal tem, no plano externo, o

poder de afirmar uma unidade soberana diante de outros Estados igualmente soberanos.

Esse conceito de unidade baseia-se, naturalmente, na eliminao, implcita ou explcita,

do direito de secesso territorial por parte de qualquer dos componentes que formam a

unidade territorial. Esse o caso da indissolubilidade da federao prevista nas

constituies.

Autores como Lucio Levi e Ivo D. Duchacek, associando o sistema federalista

prtica da democracia, ensinam que o federalismo deve ser entendido como uma

democracia pluralstica, que inclui formas majoritrias e consensuais de se tomar

decises. Nesse sentido, o federalismo seria "irmo gmeo territorial" da democracia.

Para Levi, uma democracia que somente se manifesta em nvel nacional, sem a base de

um autogoverno local, uma democracia nominal, porque controla do alto, sufocando

as comunidades, isto , a vida dos homens.

Nessa perspectiva, os sistemas fascistas e comunistas que se dizem federais nada

mais so do que pseudofederaes, pois, sob o jugo de um nico partido, nenhum

segmento da nao, territorial ou no, poderia usufruir de qualquer grau de autonomia

de deciso. As elites dirigentes, empenhadas no planejamento central e no controle

25

FIORI, Jos Lus. Op. cit., p.23.Lus 26

Levi, Lucio. O federalismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco.

Dicionrio de Poltica. v. I.,4 ed. Braslia: UNB, 1998, p. 482

23

autoritrio da economia, do emprego e da educao, no levariam sequer em

considerao qualquer diviso de seu poder monoltico27

.

Nos pases em que o federalismo mais nominal do que material, com

caractersticas mais centralizadoras ou com grau considervel de instabilidade poltica,

como seria ocaso da ndia, Iugoslvia, Paquisto, Nigria, Venezuela ou dos Emirados

rabes Unidos, na viso de Hidelbrando Accioly28

,no haveria muito espao para

iniciativas externas de entes federativos. Por outro lado, deve-se ter cautela na

associao direta e incondicional entre democracia e federalismo. Segundo Ronald

Watts, h que se levar em conta a lio histrica da maioria dos pases europeus do

sculo XX, que no so estruturados nem na descentralizao, nem muito menos no

federalismo, mas conhecem a concepo democrtica mais profundamente que muitas

federaes.

Assim, ao mesmo tempo, as federaes no Brasil, na Argentina ou na Alemanha

no impediram o surgimento de regimes autoritrios. Itlia e Espanha, que no so

Estados federais, mas so bastante descentralizados, tambm experimentaram longos

perodos antidemocrticos. Enfim, quer-se dizer com isso que a associao entre as

categorias nem sempre perfeita e que a estrutura federal, per se, no assegura a

manuteno do regime democrtico, embora implique maiores dificuldades para a

ascenso de modelos autoritrios.

Nesse sentido, Watts29

argumenta que, ao se examinar as condies particulares

que levam um Estado a instituir um sistema federativo, deve-se levar em conta fatores

que compreendam a natureza e a solidez das razes de uma ao comum e de um

governo compartilhado, bem como a intensidade e a repartio das presses e dos

27

ACCIOLY, Hidelbrando; NASCIMENTO e SILVA, Gerardo Eullio. Manual de Direito Internacional

Pblico. 13 ed. So Paulo: Saraiva, 1998. 28

A dissoluo de algumas federaes como as das: ndias ocidentais, Rodsia e Niassalndia,

Paquisto, Unio Sovitica, Tchecoslovquia e Iugoslvia, levou alguns crticos a argumentar que as

federaes tm a tendncia de instabilidade na sucesso. Valeria enfatizar, no entanto, que todos esses

casos de fracassos federativos ocorrero onde as instituies democrticas eram fracas ou praticamente

inexistiam. Tal fracasso poder ser muito mais atribudo ao carter antidemocrtico desses Estados do que

a seu carter federal. No se conhece ainda o caso de federaes genuinamente democrticas, por mais

diversas que sejam que se tenham desintegrado. Em conseqncia, pode-se afirmar que processos

democrticos so pr-requisito fundamental para existncia de uma federao. ACCIOLY, Hidelbrando;

NASCIMENTO e SILVA, Gerardo Eulalaio. Manual de Direito Internacional Pblico. 13 ed. So Paulo:

Saraiva, 1998. 29

WATTS, Ronald L. Modles de partage des pouvoirs fdraux. In: Forum of federations. Ottawa,

1999.(traduo livre do autor)

24

motivos que estimulam as unidades federadas a formular polticas autnomas, e que as

compelem autogesto.

Na Amrica do Norte, poucos anos depois da Revoluo de 1776, da qual

resultou a independncia das treze colnias inglesas, surgiu a Confederao dos Estados

Unidos da Amrica (1781), uma unio que teve por princpio a autonomia legislativa,

executiva e judiciria daquelas suas unidades. Elas seriam, ento, independentes entre

si, mas, ao adotarem uma Constituio em 1787, transformaram-se na primeira

Repblica Federativa dos tempos modernos30

.

Em 1848, aps uma curta guerra civil, a Sua tambm converteu em federao a

confederao instituda em 1291. J em 1867, o Canad se tornou o terceiro Estado

Federal do mundo moderno. Em 1871, a federao germnica do Norte expandiu-se

para incluir estados alemes do Sul. Em 1901, foi a vez de a Austrlia adotar o

federalismo. Ainda na segunda metade do sculo XIX e incio do sculo XX, vrias

repblicas latino-americanas, alm do Brasil, adotaram, enfim, a estrutura federa sob

inspirao do modelo norte-americano31

.

Nos decnios imediatamente posteriores Segunda Grande Guerra, o mundo

assistiu uma proliferao de federaes e de outros gneros semelhantes de organizao

poltica, que vieram a reunir coletividades multirraciais na Europa e nas antigas regies

coloniais. Novas federaes ou quase federaes, das quais poucas sobreviveram, foram

institudas na sia Indochina (1945), Birmnia (1948), Indonsia (1949), ndia

(1950), Paquisto (1956), Malaia (1948 e 1957) e depois Malsia (1963) no Oriente

Mdio Emirados rabes Unidos (1971) , na frica Lbia (1951), Etipia (1952),

Rodsia e Niassalndia (1953), Nigria (1954), Mali (1959), Congo (1960), Camares

(1961) e Comoros (1978) e no Caribe Federao das ndias Ocidentais (1958) 32

.

Dentre as federaes surgidas ou restauradas na Europa Central e do Leste no perodo

em questo, figuravam a ustria (1945), a Iugoslvia (1946), a Alemanha (1949) e a

Tchecoslovquia (1948). Na Amrica do Sul, novas constituies federais foram

adotadas por Estados j federativos, como o Brasil (1946), a Venezuela (1947) e a

Argentina (1949)33

.

30

WATTS, Ronald. Op. cit.,. 31

ABRUCIO, Fernando; COSTA, Valeriano. Reforma do Estado e o contexto federativo brasileiro. So

Paulo: Fundao Konrad Adenauer, 1998. 32

Cf. ABRUCIO, Fernando. Obra citada. 33

Cf. ABRUCIO, Fernando. Obra citada.

25

Nas dcadas de 70 e 80, no entanto, tornou-se evidente que os sistemas federais

no eram a panaceia que muitos imaginavam. Diante de inmeras dificuldades, muitas

tentativas federativas do ps-Segunda Guerra acabaram por suspender temporariamente

a experincia ou abandon-la de vez, ficando, assim, demonstrada a limitao para se

adequar solues federais ou formas particulares de federalismo em determinadas

circunstncias34

. A inesperada abertura poltica iniciada no imprio sovitico por

Mikhail Gorbachov nos anos 80, enfim, no s acabou por favorecer o

desmantelamento da prpria Unio Sovitica no incio dos anos 90, como tambm veio

a concorrer para o processo de desfederalizao no mundo eslavo.

Sobre o fenmeno da desfederalizao, cabe ressaltar as consequncias da

artificialidade da construo de determinadas estruturas federativas, que, forjadas pelo

poderio militar, por conquistas e anexaes, historicamente acabaram por ruir. a

questo do federalismo defensivo e perverso, predicado nesses termos por constituir o

recurso ltimo na tentativa de manter unido o territrio de pases em processo de

desintegrao35

. De certa forma, este foi o caso das Federaes Sovitica e Iugoslava.

No presente, tambm parece ser o caso da Federao da Rssia em relao Chechnia,

que constitui um caso emblemtico.

Esses so Estados de formao poltica variada, uns com enorme multiplicidade

tnica, lingustica e cultural, outros com particularidades que incluem at mesmo a

questo do separatismo. Alguns so democrticos, outros autoritrios, uns mais e outros

menos centralizadores. Trata-se, enfim, de Estados em que a prtica federativa reflete

uma evoluo histrica, socioeconmica e poltica particular.

Em sentido mais amplo, o debate em torno do federalismo se encontra

estreitamente ligado aplicao da ideia federal considerando essa sua variedade de

formas. Os graus de centralizao e descentralizao diferem de federao para

federao, da mesma forma que diferem seus planos financeiros, o carter de suas

instituies federais legislativas e executivas, os procedimentos institucionais para

facilitar relaes intergovernamentais, os processos de emendas constitucionais ou as

arbitragens de conflitos internos.

34

Exemplos de dissoluo dos Estados Federais. A antiga Repblica Socialista Federativa da Iugoslvia

se dissolveu em 6 novos Estados, a saber, Bsnia, Crocia, Eslovnia, Macednia, Srvia e Montenegro. 35

FIORI, Jos Lus. O federalismo diante do desafio da globalizao. In: AFONSO, Rui de Brito Alvares;

SILVA, Pedro Lus Barros (org). A Federao em perspectiva: ensaios selecionados. So Paulo:

FUNDAP, 1995, p. 21.

26

Em sua evoluo, os sistemas federalistas tm produzido inovaes

considerveis, como a aceitao de graus de assimetria na relao das unidades

federadas ou das organizaes supranacionais em um nmero de instncias cada vez

mais crescente. Exemplos prticos dessa aceitao incluem a Blgica, a Malsia, a

Rssia e a Espanha.

Outra inovao interessante na matria est na tendncia das prprias federaes

de se tornarem membros constituintes de confederaes ou de organizaes

supranacionais ainda mais amplas, como o caso da Alemanha, Espanha, ustria e

Blgica, como membros da Unio Europeia, ou o dos trs Estados membros do Tratado

Norte-Americano de Livre Comrcio (NAFTA), Canad, Estados Unidos e Mxico.

Conforme se apontou, os acontecimentos histricos marcam a construo e a

circulao da noo de federalismo. No continente europeu, o federalismo surge e

ressurge com a consolidao de espaos polticos autnomos, sem uma unidade do tipo

universal, e procura estabelecer regras para o emergente direito internacional, que era

operacionalizado pelas ento recentes representaes diplomticas permanentes36

a fim

de equilibrar os poderes de cada unidade, criando uma balana que preservasse a

estabilidade de sistemas e a independncia de cada Estado37

.

Os Estados dessa Europa moderna se expandiram, atravessaram oceanos e

conquistaram outros povos. Esse modelo de organizao poltica foi to poderoso que

americanos, no final do sculo XVIII e ao longo do sculo XX, e depois africanos e

asiticos, aps a conquista da sua independncia, adotaram a mesma forma de Estado de

seus colonizadores. O sistema de Estados, j redimensionado como Estados- nao,

recobriu o globo na segunda metade do sculo XX, e essa configurao que vemos

impressa nos mapas atualmente.38

No atual modelo de relaes internacionais, tendncias e dinmicas importantes

com os projetos de federalizao. Os processos de integrao econmica e as

associaes continentais ou mundiais para gerenciamento de regimes internacionais

apontam para um Estado que no nega, mas o redimensiona, o federalismo. Neste

contexto, pode-se concluir, ento, que a prpria distino entre os termos "poltica

36

SOARES, Guido. A diplomacia e suas formas. In: Mathias, Meire; Rodrigues, Thiago (orgs). Poltica e

conflitos internacionais: interrogaes sobre o presente. Rio de Janeiro/So Paulo: Revan/Fasm, 2004, p.

13-58. 37

FOUCAULT, Michel. Seguridad, territrio, poblacin. Buenos Aires: Fundo de Cultura Econmica,

2006. 38

SOARES, G. Op. cit.,.

27

externa" e "ao externa" pode ser colocada diferentemente dependendo do ngulo da

anlise, do mesmo modo que parte da literatura adota a nomenclatura subnacional,

enquanto outra prefere "subestatal 39

, para no mencionar o debate sobre a pertinncia

do conceito de paradiplomacia. Esse debate coloca a questo de saber se a ao externa

de estados e municpios consiste em uma diplomacia paralela do Estado, um novo tipo

de iniciativa, que no poderia ser enquadrada nas noes tradicionais de diplomacia, ou

se se trata de uma forma complementar diplomacia estatal forjada na nova

configurao das relaes internacionais.

Trata-se de um processo e de um debate em andamento, cuja anlise tem o

potencial de servir como laboratrio para compreenso de aspectos fundamentais das

relaes internacionais contemporneas. Pelo estudo da ao externa de entes

subnacionais possvel estudar como a noo de soberania se transforma a partir da

segunda metade do sculo XX; como a prtica diplomtica e a formulao de poltica

externa dos Estados se alteram; como crescem em importncia as iniciativas de

integrao regional; como se refora a relao entre democracia formal e federalismo;

como as prticas de governo e a dinmica econmico-social so conciliadas no

capitalismo globalizado; por fim, como se manifesta este despontar dos entes

subnacionais na Amrica Latina. Todos estes questionamentos atravessam a construo

desta modalidade de relao internacional.40

.

1.3 O impacto da globalizao para o federalismo nas relaes exteriores

O direito internacional estabelece que a soberania do Estado nacional se afirma

pela independncia que se expressa na sua personalidade jurdica, constituindo ele o

poder supremo sobre determinado territrio. Nas relaes internacionais, o Estado

soberano sujeito do direito internacional com respeito a outros Estados soberanos que,

reciprocamente com ele, se reconhecem como sujeitos desse direito.

Com o propsito de analisar a questo das relaes externas dos estados federais

sob a perspectiva do direito internacional, na presente seo se discutir em que medida

39

VIGEVANI, Tullo; WANDERLEY, Luiz Eduardo et al. (orgs). A dimenso subnacional e as relaes

internacionais. So Paulo: EDUC/UNESP/EDUSC, 2004. 40

RODRIGUES, Tiago. Prefcio. In: RODRIGUES, Gilberto; XAVIER, Marcos. Cidades em relaes

internacionais: anlises e experincias brasileiras. So Paulo: Desatino, 2009.

28

o direito admite a atuao direta de unidades componentes de um Estado nacional no

plano externo.

O panorama das relaes externas dos Estados federais na atualidade indica a

existncia de um quadro bastante complexo e, por vezes, confuso, um cenrio em que as

possibilidades de atuao das unidades infranacionais no se mostram equivalentes em

um e outro pas. Na verdade, em cada federao os entes federativos gozam de um grau

diferente de autonomia.

Em que pese a tentativa de distino operada pela teoria poltica entre federao

e confederao, pode-se verificar, na prtica, que muitos Estados que se denominam

federais, e no confederaes, permitem que suas unidades federativas tenham voz

direta no plano externo internacional.

manifesta a dificuldade de enquadrar as experincias polticas dos Estados

nacionais que se apresentam sob a frmula da federao nos modelos tericos

propostos. Assim, por exemplo, tem-se a experincia da Confederao Sua, cuja

constituio permite, ainda que sob certas condies, a atuao direta dos entes

subnacionais na cena internacional, como se ver adiante com maiores detalhes.

De acordo com a teoria poltica clssica, a Sua seria um exemplo de

confederao, j que seus membros detm tais prerrogativas. Entretanto, este no o

posicionamento dos estudiosos na matria. Hildebrando Accioly41

explica que o Estado

Federal, ou federao, uma unio permanente de dois ou mais estados, na qual cada

um deste conserva apenas a autonomia interna e transfere a soberania externa a um

organismo central. E acrescenta que: o que caracteriza a federao que todos os seus

membros se subordinam a um governo central, plenamente soberano, na esfera de suas

atribuies, entre as quais se compreende, principalmente, a de representar o conjunto,

nas relaes internacionais. E conclui que a personalidade externa de cada um de seus

membros desaparece inteiramente na pessoa do Estado Federal. S a este compete

fazer a guerra ou a paz, celebrar tratados internacionais, acreditar e receber agentes

diplomticos.

Sobre a questo de federaes em que a atuao externa das unidades

subnacionais (ou foi) admitida, o estatuto constitucional da Confederao Sua as

41

ACCIOLY, Hidelbrando. Tratado de Direito Internacional Pblico. 2 ed. Rio de Janeiro: MRE, 1956,

p. 124

29

autoriza a celebrar entre si acordos no polticos e, com Estados estrangeiros, acordos

sobre polcia, comrcio local e finanas. Tambm h o caso da Alemanha (Ex-

Alemanha Ocidental), onde, segundo o artigo 32 da Constituio de 1949, os estados da

federao os Lander podem, com a aprovao do governo federal, concluir tratados

com Estados estrangeiros. Na Unio Sovitica, em consequncia de emenda

Constituio federal em 1944, a Ucrnia e a Bielo-Rssia passaram a gozar do mesmo

direito. Muito embora tais experincias paream contrariar a definio de Estado

Federal apresentada anteriormente, Accioly no contesta o carter federal da Sua, da

Repblica Federal da Alemanha ou da Unio Sovitica.

A personalidade externa existe somente no superestado, isto , no Estado

Federal. Os seus membros, ou seja, os estados federados possuem a autonomia interna,

sendo esta sujeita, entretanto, s restries que forem impostas pela Constituio

Federal. Nesse tipo de Estado h uma partilha de atribuies do poder soberano,

cabendo, porm, sempre ao Estado resultante da unio o exerccio, como se disse, da

soberania externa".

Em seu Direito internacional pblico, Jos Francisco Rezek42

destaca, por sua

vez, que estados federados, exatamente porque federados, no tm personalidade

jurdica de direito internacional pblico, falecendo-lhes, assim, a capacidade para

exprimir voz e vontade prprias na cena internacional. Ademais, Rezek afirma no

haver justificativa para que o direito internacional se oponha atitude do Estado

soberano que, na conformidade de sua ordem jurdica, decide vestir seus componentes

federados de alguma competncia para atuar no plano internacional, na medida em que

outras ordens soberanas tolerem esse procedimento, conscientes de que, na realidade,

quem responde pela provncia a Unio federal. De fato, ao admitir esta possibilidade,

a Constituio Federal deveria faz-lo deforma clara, pois isto implicaria a

responsabilizao de quem no parte no acordo.

O direito interno, por meio do estatuto constitucional do Estado Federal, pode

atribuir tal prerrogativa aos estados federados, sustentando ainda que a personalidade

internacional e, em consequncia, a capacidade para celebrar tratados no decorrem da

soberania, mas da possibilidade de contrair obrigaes, de se atriburem a eles direitos e

de eles deterem poderes perante o direito internacional.

42

REZEK, Jos Francisco. Direito internacional pblico: curso elementar. 7 ed. So Paulo: Saraiva,

1998, p. 236.

30

Tais caractersticas podem ser encontradas em estados membros de uma

federao, fazendo com que eles possam ser considerados sujeitos de direito

internacional, a depender das caractersticas de cada pas que tenha adotado o

federalismo internacional. Defende-se que, muito embora esses estados no sejam

sujeitos plenos de direito internacional, eles detm personalidade jurdica para

determinados fins. Sublinha-se ainda que eles terem ou no personalidade jurdica vai

depender das caractersticas da Constituio Federal a que se sujeitem.

Um dos propsitos desta seo na pesquisa pavimentar a estrutura do

federalismo e possibilitar a compreenso da aplicao do tema do estudo. Ele ser

abordado a partir da perspectiva da capacidade dos entes no centrais, os municpios, de

celebrar negcios internacionais, utilizando todas as formas disponveis de formalizao

jurdica, a comear por capacidade de celebrar tratados.

necessrio, antes de buscar identificar esta capacidade jurdica, debruar-se em

algumas questes relevantes, dentre as quais a origem dos tratados. Paul Reuters afirma

que o primeiro tratado celebrado no mundo foi o tratado de paz entre o Reis Hititasm

Hattusil III e o Fara egpcio da XIX Dinastia Ramss II, concludo por volta de 1280 a

1272 A.C., pondo fim guerra nas terras srias.43

Nota-se que, na poca, este tipo de contrato ainda era geral e tinha vrias

finalidades, tais como o comrcio, a aliana ofensiva e defensiva, a delimitao

territorial. No existia regra ou formalidade para a sua celebrao, sendo eles sempre

concludos com base na igualdade entre as parte, garantida por juramentos muito

prximos de atos religiosos, prestados pelas partes contratantes. Na Idade Mdia, os

governantes eram considerados pessoas de direito internacional, consequentemente,

capazes de celebrar tratados. Antnio Paulo Cachapuz de Medeiros esclarece que

A ordem internacional europeia entre o final de sculo XV e as ltimas

dcadas do sculo XVIII, foi essencialmente um sistema de poderes

monrquicos absolutos, tendo o Direito Internacional por sujeitos dos reis e

no Estados. Portanto, era o monarca que dirigia, com poderes absolutos,

toda poltica externa. No compartilhava sua competncia com nenhuma

outra pessoa. O entendimento segundo o qual a conduo poltica externa

exercida pelo monarca era unnime e incontestvel poca. Com o

desenvolvimento das relaes internacionais, alguns colegiados que existiam

em torno do soberano e que tinham funes meramente opinativas, passaram

43

REUTER, Paul. Introduccin al derecho de los tratados. Ciudad de Mxico: Fondo de Cultura

Econmica, 1998, p. 13.

31

a exercer maior influncia na poltica externa exercida pelo monarca,

passaram a exercer maior influncia embora no existisse ningum que se

opusesse ao direito do rei. No entanto, pode-se afirmar que a grande ruptura

em sistemtica da conduo da poltica externa monrquica foi levada a cabo

com a Revoluo Francesa44

.

O modelo da moderna capacidade de celebrar contratos a Constituio dos

Estados Unidos da Amrica e a sua diviso de competncia entre os poderes

constitudos para a celebrao de tratados. Nesta esteira, Antnio Paulo Cachapuz de

Medeiros ainda salienta que:

Aps intensos debates, sobretudo quanto a aprovao parlamentar dos

tratados, chegou-se concluso de que deveria distribuir a competncia para

celebrao de tratados entre o chefe do executivo e o senado norte

Americano. Segundo a influncia norte-americana, vrios outros Estados

passaram a dispensar maiores atenes ao papel do Poder Legislativo,

principalmente o senado federal., na elaborao de acordos internacionais. A

Constituio da Blgica de 1831 conferiu ao Poder Legislativo, competncia

para aprovar tratados expressamente mencionados no texto constitucional, e

passou a ser tida por alguns juristas como paradigma de um sistema de

diviso de competncias, conhecida como franco-belga. J na Gr-Bretanha,

assim como na Blgica, a necessidade de aprovao do parlamento a

determinados acordos internacionais decorrncia da aplicao da separao

dos poderes, no obstante o sistema Commom Law adotado pelos britnicos.

De fato, fica reservado ao Parlamento do Reino Unido um controle poltico e

legislativo sobre a celebrao de atos internacionais. O sistema de controle

poltico e legislativo sobre a celebrao de atos internacionais. O sistema de

controle poltico e legislativo das Cmaras foi tambm adotado pelas

Constituies da Itlia (1848) do Egito (1923) e da Romnia (1938).41

Embora de acordo com o direito internacional consuetudinrio os tratados

tenham fora vinculante, obrigatoriedade e regras institudas, em 23 de maio de 1969 foi

concluda a Conveno de Viena sobre o Direito dos Tratados, que tem por finalidade

regular o ato fundamental da celebrao do ato jurdico pelo qual os Estados se obrigam

expressamente em suas relaes internacionais. Sua negociao envolveu cento e dez

Estados soberanos, mas, poca, apenas trinta e dois a assinaram. Em 27 de janeiro de

1980, ela entrou em vigor internacional, regulando a aplicao dos tratados

internacionais. Na viso de Jean Touscoz:

44

MEDEIROS, Antnio Paulo Cachapuz de. O poder de celebrar tratados. Porto Alegre: Fabris, 1995,

p.27.

32

Grande parte dos dispositivos da Conveno de Viena, principalmente os que

tratam da concluso, aplicao, interpretao, modificao e nulidades, no

tiveram a influncia que seus autores haviam imaginado. Com efeito, que

muitas das disposies foram de fato adotadas pelos Estados signatrios, mas

os Estados da minoria no aceitaram e recusaram ratificar o tratado,

sobretudo, por causa das disposies relativas aos vcios de vontade e

nulidade dos tratados. A maioria dos autores prefere o conceito de tratado

positivado na Conveno de Viena, e, ainda assim aqueles que procuram

conceituao diversa, no se distanciam muito da definio dada pela

conveno45

.

Dentro desta capacidade, este estudo disps que a celebrao dos tratados

pressupe uma distino cuidadosa entre capacidade de celebrar contratos e

competncia dos poderes constitudos do Estado para formar e declarar a vontade de

assumir compromissos internacionais, o que leva a problematizar a possibilidade de

entes no centrais celebrarem tratados e atos internacionais, em particular, para este

estudo, os municpios. A doutrina mais tradicional sustenta que apenas os Estados

soberanos, em razo de sua qualidade de sujeito do direito internacional, possuem

capacidade para celebrar acordos, uma manifestao de vontade tpica de sua

personalidade jurdica internacional. Ainda da perspectiva do direito internacional e

suas relaes com os entes federados, interessante trazer para a pesquisa alguns

contornos sobre o sistema cooperao internacional federativa vinculada como poltica

de Estado, visando atrelar a cooperao formalizao jurdico-legal dos entes no

centrais. Alberto Kleiman defende uma posio proativa em relao a estas

cooperaes, destacando:

Nos ltimos anos, o governo brasileiro tem realizado novos movimentos em

sua poltica externa. De um lado, a prioridade dada a integrao sul-

americana, com nfase ao MERCOSUL e na promoo de uma estratgia de

aprofundamento das relaes com pases vizinhos, a criao da Unio de

Naes da Amrica do sul (Unasul). De outro lado e, simultaneamente, a

construo de alianas estratgicas e iniciativas conjuntas com pases em

desenvolvimento, como a constituio do G20, no mbito da Organizao

Mundial do Comrcio (OMC), donde, os benefcios gerados por essa

articulao, ainda que atualmente ocorram em uma escala mnima, j incidem

concretamente no fortalecimento da integrao regional no mbito do

MERCOSUL e da Unasul e poderia ser ampliados em outros pases e blocos

regionais. A melhor preparao e capacitao dos agentes e funcionrios das

administraes locais para desenvolver essas atividades trariam benefcios

diretos e indiretos em suas aes internacionais, levando os temas da agenda

45

TOUSCOZ, Jean. Direito Internacional. Men Martins: Europa- Amrica, 1963, p. 206.

33

internacional e da integrao regional realidade local, ao territrio e,

consequentemente aproximando-se da cidadania46

.

A ao internacional dos governos subnacionais deixou de ser vista como um

fenmeno extico, menor ou marginal, para se transformar em um tema com interesses

prticos e cientficos. Alm disso, tambm interessa a especialidades ligadas a polticas

pblicas e a relaes internacionais, a agentes dos governos nacionais e organizaes

internacionais.

Para se observar o potencial dos entes subnacionais no cenrio internacional e,

em particular, no sul-americano, deve-se articular este movimento s prioridades da

poltica externa do pas, no esforo de consolidar o MERCOSUL. Neste sentido, o

estabelecimento de parcerias, redes e instncia de cooperao regional por parte de

municpios e estados no curso da ltima dcada constitui um arcabouo institucional e

poltico valioso, que, se fortalecido, amplia a participao dos governos subnacionais

nas diversas escalas de internacionalizao, inclusive a integrao47

regional.

Uma vez descrita e delineada a conformao federal de uma perspectiva terica

e histrica, externa e interna, prudente iniciar uma reflexo sobre a internacionalizao

dos entes subnacionais, tendo em vista a crescente globalizao como um estmulo a sua

ao. Sem alongar a discusso, mas apenas para situar o debate acadmico sobre a

temtica, importante descrever algumas questes de ordem terminolgica.

Em relao terminologia utilizada cumpre arrazoar, preliminarmente que

existe a ao externa, atuao internacional, cooperao internacional

subnacional entre outros termos semelhantes, para determinar as mltiplas

prticas poltico-jurdicas de cooperao internacional que podem ser

desenvolvidas por estes entes subnacionais. Destaca-se portanto o termo

paradiplomacia porque a diplomacia subnacional um elemento da poltica

externa estatal. Assim, por ser sinnimo de uma diplomacia paralela ou um

instituto que no seja diplomacia, mas, que exerce a funo, o termo,

paradiplomacia no corresponde ao carter pblico estatal da diplomacia

exercida pelos entes subnacionais48

.

46

KLEIMAN, Alberto. A cooperao internacional federativa como poltica de Estado. In:

RODRIGUES, Gilberto; XAVIER, Marcos. Cidades em relaes internacionais: anlises e experincias

brasileiras. So Paulo: Desatino, 2009. 47

TOUSCOZ, Jean. Op. cit.,. 48

FONSECA, Marcela Garcia. A atuao internacional dos entes subnacionais: breve anlise da condio

de atores das relaes internacionais e sujeitos do direito internacional. Encontro Nacional da ABRI, PUC

MG, 2014.

34

Desse prisma, pode-se, ento, compreender que os entes no centrais, sobretudo

os municpios, conquistaram sua autonomia nas Constituies federalistas, como no

caso da brasileira, que, no entanto, pode levar a crer que se trata de um fenmeno

recente e estritamente vinculado contemporaneidade. Contudo, trata-se de um

fenmeno escorado no papel histrico desempenhado principalmente pelas cidades. A

histria da cidade no tocante autonomia congrega todo o poder em sua regio de

domnio.

Na cidade primitiva, o Estado mantivera-se dentro dos limites da cidade,

jamais, podendo transpor a linha traada pelos seus deuses nacionais quanto a

fundao. Cada cidade tinha no apenas independncia poltica, como

tambm o culto e seu cdigo. A religio, o direito, o governo, tudo era

municipal. A cidade era a nica fora viva, nada lhe era superior ou inferior:

nem unidade nacional, nem liberdade individual49

.

Essa discusso tambm seria necessria como contraponto afirmao da tenso

que existia no mesmo perodo entre as cidades-estados e os imprios, com um contraste

em escala entre estas duas organizaes polticas. Conforme salienta Michel Cook50

: em

longo prazo, nenhuma delas provou vivel. Este fato que pode se assemelhar ao

embates atuais sobre a condio dos entes subnacionais como atores das relaes

internacionais e como sujeitos de direito, como contraponto atuao do Estado.

O aspecto cooperativo parte importante deste processo de integrao entre os

entes no centrais, uma caracterstica comum no mundo globalizado, e permite que se

consiga estabelecer eventuais contatos para a concluso oportuna de acordos

comerciais.

A cooperao internacional vertical se caracteriza pelo contedo financeiro da

operao. Trata-se de cooperao com Estados, com organizaes internacionais (OIs),

com organizaes no governamentais de alcance transnacional e com empresas

transnacionais quando se trata de captao de investimentos e recursos para o ente

subnacional51

. Na grande maioria das vezes em que um ente se relaciona

internacionalmente com um Estado ou com uma organizao internacional, seu objetivo

49

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. 7ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. 50

COOK, Michel. Uma breve histria do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 51

FONSECA, Marcela Garcia. A atuao internacional dos entes subnacionais, idem.

35

obter divisas para a consecuo de um projeto que ele no conseguiria implementar

sozinho, arcando com todos os custos.

Captao de recursos (vertente pblica) e captao de investimentos (vertente

privada). Neste caso, aplica-se a mesma classificao cooperao tcnica

entre os Estados. Assim, seriam os recursos do setor pblico as doaes

bilaterais, os emprstimos pblicos bilaterais, as contribuies ou com uma

OI ou regionais para fins constantes em programas de desenvolvimento.

Como modalidades de captao de investimentos no setor privado, destacam-

se os investimentos diretos ou os investimentos constitudos de valores em

carteira, os emprstimos concedidos pelo setor bancrio privado, os crditos

privados e as doaes de organismos privados filantrpicos, confessionais ou

leigos.52

No contexto constitucional brasileiro, verifica-se a inexistncia expressa de

previso constitucional que projete a atuao dos municpios nas relaes

internacionais, ou, mais especificamente, a concluir convnios internacionais. Esta

situao no tem constitudo, entretanto, um obstculo para a realizao de relaes

internacionais com os entes no centrais.

Muito pelo contrrio. Tomando por base os municpios, o internacionalismo

municipal vicejou em 1990, com as conferncias globais da ONU, o processo

de integrao do MERCOSUL (Rede Mercocidades) e a cooperao

interamericana. Alm disso, o bilateralismo municipal produzido uma

mirade de convnios, tudo isto sem nenhum impedimento ou restrio do

governo federal. Atente-se que a Constituio Brasileira no absolutamente

silenciosa sobre o tema. O artigo 52, tratando de competncia privativa do

senado federal, estatui no inciso v, competir a cmara alta autorizar

operaes externas de natureza financeira, de interesse da Unio, dos

Estados, do Distrito Federal, dos territrios e dos municpios. O efeito prtico

desse inciso se revela nas negociaes diretas que vrios municpios

brasileiros vm mantendo com organismos econmicos internacionais, tais

como o Bird, e o prprio PNUD, e so parte de sua agenda internacional. A

constitucionalizao da paradiplomacia existe em outros pases federados,

tais como: Alemanha, ustria e Blgica. Na Argentina, a reforma

constitucional de 1994 introduziu o artigo 124, que autoriza as provncias

argentinas a celebrar convnios, com o conhecimento do congresso da nao.

Inspirado nesta realidade vizinha, o ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro,

Andr Costa, apresentou na Cmara Federal em 2005, um projeto de emenda

constitucional (PEC) para autorizar os estados e municpios a firmar

convnios internacionais. Embora a inteno inicial tenha sido ampliar o

escopo da ao internacional federativa dos entes federados, o texto

apresentado gerou o risco de restringir o processo, retirando sua fora e

52

Soares, Guido. A cooperao tcnica internacional. In: MARCOVITCH, Jacques (org.). Cooperao

internacional: estratgia de gesto. So Paulo: EDUSP, 1994, p. 171-172.

36

espontaneidade. Destaco ainda que a paradiplomacia e sua regulamentao

no pacfico em nenhum pas federado53

.

Um exemplo claro da importncia do internacionalismo municipal encontra-se

diretamente ligado s aes do Ministrio das Relaes Exteriores. Em excerto do

discurso proferido pelo chancelar Celso Amorim por ocasio do 61 aniversrio da

ONU, celebrado em Braslia, ele afirma:

Quando penso na ONU e penso nos municpios, lembro da frase do

Themistocles Cavalcanti, ilustre jurista brasileiro politicamente nem

sempre concordei com o que dizia: O homem vive na Unio, o homem vive

no municpio. Ele poderia dizer que o homem no vive nas Naes Unidas,

o homem vive no municpio, mas essa interao entre o local e o global que

nos faz verdadeiramente avanar54

.

A possibilidade do financiamento externo de redes e acordos bilaterais s se

abriu ao fim do regime militar. Com a redemocratizao e a promulgao da

Constituio de 1988, concedeu-se aos municpios o status de ente federativo. Esse

status no se restringe apenas autonomia administrativa, mas tambm inclui

responsabilidades com a implantao da educao bsica fundamental. Com isso, vrios

prefeitos passam a enxergar como relevante e at mesmo indispensvel a busca de

alternativas de gesto e aprimoramento de suas estratgias de captao de recursos

provenientes de outras fontes.

Estas mudanas ocorreram no mesmo perodo em que agncias como o Banco

Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) passaram a considerar

os municpios como parceiros privilegiados para execuo de projetos, sob o apelo da

chamada boa governana urbana. O argumento que, em contraposio aos Estados

nacionais, as quantias enviadas aos municpios correm menos riscos de se perder em

atividades ou desvios motivados por corrupo. Nos municpios, a sociedade civil

poderia participar e acompanhar a execuo de obras aferindo a boa aplicao do

53

RODRIGUES, Gilberto; XAVIER, Marcos. Cidades em relaes internacionais: anlises e

experincias brasileiras. So Paulo: Desatino, 2009. 54

Celso Amorim. Palavras do Ministro da Relaes Exteriores no seminrio As naes unidas: paz,

direitos humanos e desenvolvimento em um novo cenrio internacional Braslia, MRE, 24 de outubro de

2006.

37

recurso recebido. Essa nova situao ofereceu aos prefeitos a alternativa de ampliarem

sua capacidade de investimentos em obras pblicas.

Com isso as cidades brasileiras tratam de aumentar o envio de projetos de

emprstimo ao exterior, em contratos estabelecidos sempre com a anuncia

de rgos como a secretaria de assuntos internacionais (Seain) do Ministrio

do Planejamento e a comisso de Assuntos Econmicos do Senado Federal.

Trata-se, portanto, de um tipo de ao externa que relaciona os municpios e

estados co