EYBEN, Piero - Anarquia Do Ensaio (Entre Experiência e Desastre)

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PIERO EYBEN | AnArquia do Ensaio 283 ANARQUIA DO ENSAIO (ENTRE EXPERIÊNCIA E DESASTRE) Piero Eyben Todo ato de escrita deixa habitar um ato de pensar. E, assim, deixa passar avante; como que em guerra – pólemos. O ato de es- crever, assim, vale-se como desdobramento, como pensar que se desdobra na linguagem, como linguagem. Em última instância, há o caminho afeiçoado da língua que se estranha e hospeda o sujei- to, sem permissão, entre o querer-dizer e o permitir-dizer. Eis que a tendência do discurso da verdade pode conduzir o caminho do pensar. Mas isso não no ato de escrever, não na marca do escrever como disseminação; pois vigoram aqui as divisas de uma impossí- vel perda; reúnem-se, por dissimulação, a experiência e o inespe- rado. Ou, de um lado, certa saúde no pensar, no escrever pensan- do; e, por outro, o deslinde de se apagar, como propõe Blanchot: Penser, s’effacer: le désastre de la douceur”.* Aparecimento do despercebido, o ensaio dialoga com as for- mas de habitar que, deixadas, podem ganhar reino no fragmentá- rio, na promessa desarranjada do comentário associado à experiên- cia plural e limítrofe do saber. Assim, começar é sempre uma al- ternativa já iniciada, um ato dentro da escritura, no lugar em que é já a linguagem, o pensamento. Ao questionar a natureza do en- saio, está-se sempre questionando a razão de escrever e, com isso, remontando o pensamento a seu estatuto oficioso, no excesso que é o próprio ato de escrita. Deixo, então, os atos para mais tarde. Na origem do ensaio está a anarquia da archi-écriture, “mouvement de la différance, archi-synthèse irréductible”,* e, nesse sentido, carrega- se, extremo, a dissimulação e a ilação que se pode conduzir entre a experiência da gama de significados adquiridos/prescritos e a inex- periência do instável e fragmentário que advém com a escritura. Assim, este ensaio pensará em dois momentos do ensaio: Essais, de Michel de Montaigne – propriamente analisado –, e L’Écriture du désastre, de Maurice Blanchot –, que se deslocará entre o texto de Montaigne e este meu, anarquizando a noção de ensaio. Assim, para começar: o ensaio é uma forma de fazer vigília, uma violenta forma de velar o sentido que não se presencia. Ou, melhor, com um aforismo de Blanchot: “Veiller sur le sens absent”.* * (BLANCHOT, Maurice. L’Écriture du désastre. Paris: Gallimard,1980: 16.) * (DERRIDA, Jacques. De la grammatologie. Paris: Mi- nuit, 1974: 88.) * (BLANCHOT, Maurice. L’Écriture du désastre. Paris: Gallimard, 1980: 72.)

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  • PIERO EYBEN | AnArquia do Ensaio 283

    anarquia do Ensaio (EntrE ExpErincia E dEsastrE)

    Piero Eyben

    Todo ato de escrita deixa habitar um ato de pensar. E, assim, deixa passar avante; como que em guerra plemos. O ato de es-crever, assim, vale-se como desdobramento, como pensar que se desdobra na linguagem, como linguagem. Em ltima instncia, h o caminho afeioado da lngua que se estranha e hospeda o sujei-to, sem permisso, entre o querer-dizer e o permitir-dizer. Eis que a tendncia do discurso da verdade pode conduzir o caminho do pensar. Mas isso no no ato de escrever, no na marca do escrever como disseminao; pois vigoram aqui as divisas de uma imposs-vel perda; renem-se, por dissimulao, a experincia e o inespe-rado. Ou, de um lado, certa sade no pensar, no escrever pensan-do; e, por outro, o deslinde de se apagar, como prope Blanchot: Penser, seffacer: le dsastre de la douceur.*

    Aparecimento do despercebido, o ensaio dialoga com as for-mas de habitar que, deixadas, podem ganhar reino no fragment-rio, na promessa desarranjada do comentrio associado experin-cia plural e limtrofe do saber. Assim, comear sempre uma al-ternativa j iniciada, um ato dentro da escritura, no lugar em que j a linguagem, o pensamento. Ao questionar a natureza do en-saio, est-se sempre questionando a razo de escrever e, com isso, remontando o pensamento a seu estatuto oficioso, no excesso que o prprio ato de escrita. Deixo, ento, os atos para mais tarde. Na origem do ensaio est a anarquia da archi-criture, mouvement de la diffrance, archi-synthse irrductible,* e, nesse sentido, carrega-se, extremo, a dissimulao e a ilao que se pode conduzir entre a experincia da gama de significados adquiridos/prescritos e a inex-perincia do instvel e fragmentrio que advm com a escritura. Assim, este ensaio pensar em dois momentos do ensaio: Essais, de Michel de Montaigne propriamente analisado , e Lcriture du dsastre, de Maurice Blanchot , que se deslocar entre o texto de Montaigne e este meu, anarquizando a noo de ensaio.

    Assim, para comear: o ensaio uma forma de fazer viglia, uma violenta forma de velar o sentido que no se presencia. Ou, melhor, com um aforismo de Blanchot: Veiller sur le sens absent.*

    * (BLANCHOT, Maurice. Lcriture du dsastre. Paris: Gallimard,1980: 16.)

    * (DERRIDA, Jacques. De la grammatologie. Paris: Mi-nuit, 1974: 88.)

    * (BLANCHOT, Maurice. Lcriture du dsastre. Paris: Gallimard, 1980: 72.)

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    O sentido do cuidado que faz resistncia no sujeito, talvez esse seja o lugar incerto do ensaio, certo perigo noturno da escritura, certa incerteza na experincia. O engendramento da escritura se d pela violncia contrria violncia dogmtica da verdade, do ideal de totalidade, em que se faz uso dos prazeres, da poeticidade do saber. A palavra do ensaio, portanto, sempre uma palavra que est para alm da imposio metodolgica, ela cessa toda dominao da ver-dade e coloca-se como inscrio por vir, um saber que se direciona experincia e a coloca no caminho de seu abismamento.

    Vale, neste ponto, perguntar-se qual o sentido da escritura, sendo ela prpria um velar, um cuidar de (como prope a pre-posio sur na sentena de Blanchot)? Aquele que vela aquele que se mantm acordado, toda a noite, frente ao outro. Assim, retm-se o sono e guarda-se o rosto do outro em si, para si, nessa violn-cia de estar vigiando a possvel violncia exterior ao outro, inde-feso. Logo, velar vale por um sentido sempre tico. Esto correla-tos o terico e o prtico, a marca de um sobre o outro estabelece o engajamento do idntico na alteridade e, de certa forma, a relao atributiva da prtica do si se imiscui na prtica da diferena. O ou-tro ali, detido, est face a face, mas de olhos fechados. Essa situa-o , sem dvida, infensa. A singularidade de quem se mantm em viglia somente pode ser definida na hostilidade e na hospita-lidade que este mantm com a singularidade de quem permanece no sono; por isso, velar uma tica. A espera pelo outro no cons-titui uma experincia pura, mas supe um impedimento do peri-go e uma pressuposio desse perigo. Alm disso, esperar pressu-pe um futuro com o objeto da viglia, um acordar; o que se colo-ca como um porvir secreto, guardado no quarto, mantido em se-gredo, mas pronto ao pblico. Dessa forma, o ato violento da pre-posio (do sur algum) marca uma responsabilidade que se cons-titui como fora a tornar-se justia frente ao outro, como funda-mento autoral sobre o outro e para o outro. Geoffrey Bennington aponta, na esteira de Derrida, o lugar da tica comeando com essa arquitraio ou arquiperjrio, que funciona como sua condi-o de possibilidade e (portanto) de impossibilidade.* A tica de toda viglia , portanto, correr o risco de ser honesto e trado, de dizer a verdade e faltar com ela.

    Ainda, veiller est no lugar, opta pelo espao da escritura, do escrever. Velar, nesse sentido, pode equiparar-se a uma esttica. Na irrupo do ensaio como viglia, poderia ser lido um espao que

    * (BENNINGTON, Geoffrey. Desconstruo e tica. In: DUQUE-ESTRADA, Pau-lo Cesar (org.). Descons-truo e tica: ecos de Jac-ques Derrida. Rio de Janeiro/So Paulo: PUC-Rio/ Loyola, 2004: 23.)

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    desestabiliza a clausura da representao. Cercando o estatuto da mmesis, o velar opera modulando o estado do sono desse outro que se mantm como objeto figural, espectro que se desloca como uma ausncia sentida, como uma presena disseminada. Assim, ve-lar leva o discurso a uma tropia na linguagem, ao estatuto outro da representao que questiona o prprio objeto observado e sua na-tureza autntica. Velar, por isso, somente se faz como o enuncia-do tornado enunciao infinita, como metfora que experimenta o limite de sua prpria reverberao. Escrever fazer voltar sobre si um sujeito outro que observa e observado, ou seja, h sempre um rastro daquilo que se fez propriedade e diferena da escritura. Esse ente se movimenta em ocultamentos e dissimulaes do si e a se constitui a esttica dessa viglia. Pensar o escrever (o velar) co-mo rastro pode conduzir a compreenso de um mtodo de som-bras e espectralidade no qual o sujeito se desfaz na enunciao de sua afeco/afetao. Ou melhor, com Derrida:

    La trace, o se marque le rapport lautre, articule sa possibilit sur tout le champ de ltant, que la mtaphysique a dtermin comme tant-prsent partir du mouvement occult de la trace. Il faut penser la trace avant ltant. Mais le mouvement de la trace est ncessairement occult, il se produit comme occultation de soi. Quand lautre sannonce comme tel, il se prsente dans la dissimulation de soi.*

    A escrita, como necessariamente essa relao outra, lida com a movncia da linguagem frente histria do sujeito, prestando, por isso, testemunho do anncio do si que se dissimula. Quando Derrida prope pensar o rastro antes do ente, est condicionan-do a escritura a uma antideterminao metafsica, a um mbito ou-tro no qual possvel pensar na ausncia e na espectralidade dis-cursiva que envolve a relao do vigilante e do dormente. A possi-bilidade de complacncia subjetiva entre esses dois sujeitos se faz, pela escritura, no sentido de uma diferena que se manifeste na-quilo que ser guardado, preservado, protegido, mas tambm na-quilo que permanecer guardado, mantido em segredo, experien-ciado apenas na singularidade de quem dorme. A diferena, logo, se d na dualidade desse ato de guardar (vigiar e ocultar). A escri-tura, como rastro, se move (se dissimula) entre o que se vigia e se oculta, entre dois rostos.

    A cena est montada: escritura como velamento, como ti-ca. No entanto, a sentena de Blanchot felizmente continua: Veil-ler sur le sens absent. Velar sobre o sentido ausente seria uma pos-

    * (DERRIDA, Jacques. De la grammatologie. Paris: Mi-nuit, 1974: 69.)

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    svel traduo; velar o sentido ausente, outra. O perodo, apa-rentemente simples, traz uma difcil necessidade de intraduo. Se optarmos por quaisquer das duas, estaremos sendo infiis, velan-do pela palavra letra de Blanchot. A indecidibilidade entre o ve-lar preposicionado ou no constitui a prpria natureza da escritura que se mantm como que sulcando suas diferenas e estabelecen-do a impossibilidade de desvencilhar pensamento de linguagem es-crita. Pode-se, contudo, optar por uma traduo com um francs mais cho, usual, uma vez que veiller sur na forma transitiva in-direta quer dizer cuidar de, supervisionar atentivamente algo ou algum. No entanto, essa submisso ao formato analtico da frase cuidar do sentido ausente no responde de forma res-ponsvel nem esttica de Lcriture du dsastre, nem constru-o de Blanchot que seguir as prximas pginas acerca da re-lao entre escritura e aspecto noturno. A aporia da traduo re-vela, nesse sentido, o lugar da palavra no ensaio, no qual o saber no s rivaliza com a verdade, mas insiste em sua prpria poetici-dade. Qual ato de velar diz respeito escritura, ao ensaio? Ambos, na promessa de (in)fidelidade.

    Esse papel vigilante compartilhado por quem vela e vela-do, por quem se mantm acordado olhando e por impossvel sono foi ainda pensado por Derrida quando prefaciou o emblemtico livro de Jacques Trilling, James Joyce ou lcriture matricide, com o ensaio La Veilleuse (... au livre de lui-mme). Brincando inclu-sive com o sentido transitivo indireto do verbo, Derrida aponta o lugar da escritura, a partir de Trilling e Joyce, como estado de lu-to e vigilncia: donc au deuil impossible. Et dy provoquer lcriture. Dy veiller et de la surveiller tel un spectre qui ne dort jamais.* As-sim, a vigilncia, da escritura, se impe como ato explorador, como abertura de caminhos le frayage inventif dune trace sur la trace dune autre trace* na qual todo segredo compartilhado se cons-titui como exceo figurao, como um processo prprio des-figurao de si pela escritura. H, portanto, um luto impossvel na escritura, um vestgio daquilo que se preserva, para alm da per-da. Eis um sentido do velar, do en prendre soin. No fundo, o modo dessa vigia se escreve como dilema e desejo de desfigurar o pensa-mento das imagens e coloc-lo em ato de escrever. Ou ainda, fazer vigorar o pensamento no apenas como prope Heidegger (2007) em O que quer dizer pensar?, como presena, despertamento, mas como possibilidade nessa viglia que reflete sempre uma rela-

    * (DERRIDA, Jacques. La Veilleuse (... au livre de lui-mme). In: TRILLING, Jacques. James Joyce ou Lcriture matricide. Belfort: Circ, 2001: 8.)

    * (Ibidem: 11.)

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    o com o espectro, com o outro desfigurado, no totalmente re-velado, mantido em segredo.

    Desse lado, podemos ainda ler o convite interpretao que o complemento do ato (de vigiar e escrever que est em veiller sur): sens absent. A palavra da escritura o lugar privilegiado do ensaio se d como ato sobre um sentido ausente. O apartamen-to do esse latino conduz a um estado de no presena de avant tant ou ainda de ps-ente , e o sentido justamente o que a tra-dio logocntrica props como presena absoluta, como lugar pri-vilegiado da verdade, da origem. O sentido proposto por Blanchot, portanto, questiona justamente essa imposio no trpica frente linguagem. Tomar sade o sentido , no ensaio, manter-se frente ausncia que constitui o prprio sentido se fazendo, ou seja, es-tabelecer uma relao tica no ato (de escrever) sem, no entanto, moralizar o complemento dessa ao, o recebimento pragmtico da escritura. A verdade do sentido, nesse caso, est muito alm da noo dbil de significado e manifesta-se mais claramente no des-dobramento paronomstico entre sens e absent, entre o sentido e o dessentido. A ausncia no mera falta, mas converte-se em sentido retirado, em modulao do sentido em uma negativa que neutraliza e dispersa a experincia com a faculdade do senso e da significao. O pensar na escritura, por isso, converte-se em uma atitude dene-gativa que se posiciona sempre ao lado da palavra presente, que furtada, esquivada de sua conformao figurativa. A realidade do ensaio, indecidvel por natureza, se converte em uma ao purloi-ned (para usar o preciosismo de Poe), que desvia o caminho, posi-tivo, da verdade em prol de uma verdade trpica.

    Jean-Luc Nancy, em loquentes rayures, debate o proble-ma do sentido, em uma possvel esttica em Derrida, em termos da evasiva dessa palavra na impossibilidade de falar fora de um en-tendimento que no seja dual: entre o sentimento e o sentido. E, com isso, aponta:

    Davance, il a soumis le(s) sens dissmination. Cela veut dire: dis-junction dans lorigine et donc, de lorigine et destination infinie. La dissmination naffecte pas seulement le sens dit intelligible (ou intelectuel): elle affecte le sens de tout sens possible. Cest--dire trs prcisment la porte et lenjeu de tout ce qui releve dun rapport dehors et/ou quelque autre.*

    Essa disseminao insiste em colocar em circulao a signifi-cao como problema para o prprio sistema de significao. Em

    * (NANCY, Jean-Luc. Ou-verture: loquentes rayu-res. In: JDEY, Adnen (dir.). Derrida et la question de lart: dconstructions de lesthtique. Nantes: Cci-le Defaut, 2011: 18.)

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    outras palavras, a disseminao anula e dispersa a origem de uma esttica da escritura e, portanto, do ensaio, o que de certa forma intenta conduzir a discusso ao nvel daquilo que permanece co-mo descartado, como resto ao sistema filosfico que se constitui a partir da noo de objetivao do mundo e da verdade. A reifica-o do sentido deve ser repensada justamente por seu grau de es-vaziamento, de contranomeao, que pode ser refletido pela no-o de sens absent. Nesse sentido, o ensaio, como j mostrou Ador-no,* pode ser um lugar de reconciliao entre a cincia e a arte. O sentido, ao sofrer uma disjuno, afetado em seu sentido singu-lar e presente; j, quando tomado por disseminao, os sentidos convertem-se em pluralidade enunciativa. A lngua francesa guar-da a invariabilidade de nmero na palavra sentido que se faz sens nos dois sentidos e, com isso, reflete diretamente sobre o es-tatuto rasurado entre produo de significao e mera adequao verdade estipulada.

    Pensar a natureza do ensaio tendo em vista a superfcie da es-critura implica conduzir-se pelas rasuras de um sujeito incerto. Em um sentido mais preciso, na medida em que Montaigne props a si mesmo a matria de seu livro je veus quon my voie en ma fa-on simple, naturelle et ordinaire, sans contention et artifice: car cest moy que je peins* , o sentido, ironicamente natural e sem artif-cios, se desdobrou em um processo de mascaramento que visa so-bretudo oferecer apenas um rastro do prprio ato de retratar-se. A criao dessa sombra, que sempre advm com a escritura, de fato refora uma reviso veja que as palavras escolhidas por Montaig-ne dizem respeito viso e forma como esse sentido ser agua-do no leitor do enunciador, e no do tema a ser enunciado. Esse sujeito no marcado pela certeza de seu conhecimento, mas na incerteza de suas experincias, de sua modulao da realidade, a partir da atividade mesma de escrever. O que quer dizer, em amplo aspecto, que a maneira de enunciao do sujeito, no ensaio, equi-vale viglia sobre o sentido ausente justamente quando se pensa na inevitvel neutralizao do prprio, do idntico, do mesmo na escritura. Escrever se define, assim, no sendo seno a prpria di-ferena que se constitui na possibilidade de reivindicar uma forma extensiva de si, que se construa no processo de dissimulao e re-metimento, prprio da linguagem.

    O sujeito no ensaio aparece, se faz aparecer, como matria, como tema de si mesmo. No entanto, ele tambm desaparece na

    * (ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: Notas de literatura I. Trad. e apres. de Jorge M. B. de Al-meida. So Paulo: Duas Ci-dades; Ed. 34, 2003: 20.)

    * (MONTAIGNE, Michel de. Essais Livre 1. Paris: Garnier-Flammarion, 1969: 35.)

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    dinmica do material, da maneira a ser empregado pela lingua-gem, a ser assujeitado pelo discurso, na escritura. Vejamos a o pr-prio acontecimento do sentido, o mbito formal da legitimao do sentido que se converte em processo modalizante, em tropos, para o sujeito e sua representao. A expresso da escrita sempre um questionamento esttica, se compreendida como disciplina limi-tada impetrao do sujeito unitrio e consciente, e, contudo, a prpria esttica da tica, ou seja, na expresso da escrita que o sujeito se d ao outro, em vigia e cuidado. Com isso, o ensaio nas-ce como um gnero moderno de legitimao do desaparecimento da verdade e da totalidade, do apagamento radical que autoriza a testemunha e a ausncia frente histria. Ora, diz Roland Barthes sobre o ensaio, na lio inaugural do Collge de France: genre am-bigu o lcriture le dispute lanalyse.* A rivalidade entre escritura e anlise pode ser compreendida como uma sublevao da verdade do testemunho (daquele que escreve) frente verdade emprico-de-dutiva (daquele que pesquisa). No ensaio, o que desaparece como matria mantm-se como maneira, ou seja, a importncia recai no processo desidentificador do sujeito tratado para adensar o estilo do sujeito que escreve, mesmo em sua temeridade.

    Evelyne Grossman prope que a escritura moderna sinven-te dans cet cart entre narcissisme et mlancolie, entre lamour de la forme-langue et la fascination dune hmorragie sans fin du sens et des mots.* Essa inveno a partir da distncia, do desvio cart , proporciona a compreenso do ensaio como um conjunto de ras-tros trace no qual a representao do autntico natural posto em runa por um grau de perda na prpria forma da linguagem. O polo apresentado por Grossman claro: narcisismo e melancolia, de um lado; forma-lngua e hemorragia do sentido e das palavras, de outro. A marca do sujeito, do esprito (Geist) ao lado daquele, e disperso e perda da figura totalizante, deste. Assim, a suspenso retrica da produo ensastica configura uma mobilidade do infor-me que faz resistir ao saber, o saber. Em equivalncia, poderia dizer que o desvio operado no ensaio, frente ao saber (da verdade), se d por uma exterioridade ntima no sujeito que se inventa ao escre-ver, a partir de sua angstia de pensar, dont langoissante tranget frappe dabord les sens: ce que je vois dans l il y a, ce que jentends dans la rumeur parlante...* Apenas h rumor, que desvencilha e marca o lugar da escritura como um esmaecimento do sentido, uma desti-tuio da fala, da verdade. O sentido em estado de viglia, ausente

    * (BARTHES, Roland. Le-on. In: Oeuvres compltes tome V: 1977-1980. Paris: Seuil, 2002: 429.)

    * (GROSSMAN, Evelyne. La Dfiguration: Artaud Be-ckett Michaux. Paris: Mi-nuit, 2004: 114.)

    * (GROSSMAN, Evelyne. LAngoisse de penser. Paris: Minuit, 2008: 31.)

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    do sono, propicia, por isso, a ausncia de si, na interpretao im-possvel de si. O que tambm quer dizer, desviando-se, que o sen-tido, fora da interpretao, um falar de si que se diz para fora de si, frente ao outro que agencia um estado de escritura. Velar um corpo, velar noite. O ensaio , nesse sentido, o limite mais atual da experincia, do interior da experincia, que apaga, que desvela o sono. Portanto, sendo uma pintura de si, antes um mascaramen-to em perjrio sobre a norma antidogma do discurso cientfi-co, do saber constitudo a partir de todo um fora.

    Em uma das adies que Montaigne fez mo ao exemplar de Bordeaux, equivalente pgina 73 do Livre Premier na edio fac-similada, est inscrito, a propsito da amizade: Le secret que jay jur ne deceller nul autre, je le puis, sans parjure, communiquer celuy qui nest pas autre: cest moy.* Trata-se assim de um amor confiado, de uma relao entre o si mesmo e o outro, que guar-dam suas juras, seu desejo de fixar o justo sobre a alteridade. Por se ter jurado, pelo juramento, melhor se dobrar a revelar um segre-do, eis o sentido que Montaigne v na amizade na philia seria ainda melhor. Essa tambm a mesma lgica que opera no ensaio. H sempre uma jura, posta em segredo, que no se vai comunicar a nenhum outro a no ser a si mesmo. Posta margem da folha de Bordeaux, essa sentena revela um artifcio da prpria escritura nunca cessar de se inscrever que permite o sujeito dobrar-se so-bre si, como que sobre uma mscara de si, para perjurar, para poder perjurar e pedir perdo. Aqui talvez no precise lembrar que Mon-taigne inicia seus Ensaios pedindo perdo. O seu Au Lecteur no apresenta, no mobiliza a leitura para um sentido. Ao contrrio, faz apenas um alerta lgica da exceo, ao sentido excepcional de um livro (de filosofia) que no tratar de nada seno da maneira como o sujeito capaz de experimentar o saber, pela escritura. Po-demos, com isso, nos ater a esse verbo deceller, que traz presena algo que no ser manifesto. Ora, como proposto pelo texto, no haveria perjrio se a comunicao, a descoberta, fosse realizada para si mesmo, nunca para um Outro outro. Ter jurado no re-velar a nenhum outro seguido de uma possibilidade, ofertada ao eu, de, desviando-se do perjrio, comunicar a si mesmo (a esse mim que trata do eu como terceira pessoa, como impessoalidade sempre neutra) o segredo compartilhado. O artifcio de Montaig-ne , parece, simplesmente estabelecer uma suplementao entre o celuy e o cest moy. Como prope Jean Starobinski: Montaigne

    * (MONTAIGNE, Michel de. Essais Livre 1. Paris: Garnier-Flammarion, 1969: 239, grifo meu.)

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    aime, dans lcriture, le combat des contraires, les nergies qui se d-chargent joyeusement dans le conflit des mots antagonistes.* A tica da escritura sempre desse nvel, e inventada por Montaigne, no sentido em que outrem inscrito como palavra antagnica que mantm sempre o gon frente ao suplemento, comunicao do mim, guardado obliquamente por trs da escrita. Assim, o que se vai revelar se desdobra a si mesmo, permanecendo como experin-cia impossvel, como experincia de exceo, que o prprio per-do, previamente solicitado, previamente almejado.

    Desse modo, a experincia humana individual colocada em xeque pelo ensaio, uma vez que este parte daquele exerccio de ser-se, colocar-se na presena, mas sempre frente a um outro que precisa deste j conviver com o impossvel: dar e conceder perdo. Derrida, em Pardonner: limpardonnable et limprescriptible, compreende essa logique de lexception, du pardon comme exception absolue,* a partir da experincia contraoriginal do ato de pedir perdo frente ao ato de fazer justia, de estar sujeito a uma justia. Para aquele (celuy) que se pe em face o leitor, clamado de outra face (moy), a escritura intenta se desfigurar por meio do excesso do sentido, do rastro material e imaterial do sujeito que se assujeita ao texto e recepo da pluralidade. Nesse sentido, fazer justia aqui libera a possibilidade de descumprir a violncia inscrita na prpria noo de justia, no (des)respeito lei. De certa forma, isso equivale a dizer que o sentido justo da escritura est em uma relao tica que po-de desmoronar e ao mesmo tempo habitar o pensamento de sem-pre dois, uma vez que h aqui um mascaramento da face, um fa-ce a face que se poderia conduzir por um mscara a mscara. Essa articulao do nvel do perdo na realidade da impossibilidade tradutria da palavra em francs pardon, que se faz pelo dom, um presente que no foi ainda dado, mas que j se pede e se espe-ra pelo recebimento, como troca , pois apresenta-se como poder entre o imperdovel (de revelar o segredo de autrui) e o perdovel (de escrever-se, dobrando o autrui em um moi-mme na escritura). Derrida aponta um caminho que permanece aportico:

    Donc le pardon, sil y en a, nest pas possible, il nexiste pas comme possible, il nexiste quen sexceptant de la loi du possible, quen sim-possibilitant, si je puis dire, et dans lendurance infinite de lim-possible comme impos-sible; et cest l ce quil aurait en commun avec le don. Mais outre que cela nous enjoint de tenter de penser autrement le possible et lim-possible, lhistoire mme de ce quon appelle le possible et le pouvoir dans notre culture et dans la culture comme philosophie ou comme savoir, on doit

    * (STAROBINSKI, Jean. Mon-taigne en mouvement. Paris: Gallimard, 2006: 174.)

    * (DERRIDA, Jacques. Par-donner: limpardonnable et limprescriptible. In: MALLET, Marie-Louise; MICHAUD, Ginette (dir.). Cahier de lHerne Derrida. Paris: Herne, 2004: 548.)

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    se demander, rompant la symtrie ou lanalogie entre don et pardon, si lurgence de lim-possible pardon nest pas dabord ce que lexprience endurante, et non consciente, de lim-possible donne se faire pardonner, comme si le pardon, loin dtre une modification ou une complication secondaire ou survenue du don, en tait en vrit la vrit premire et finale. Le pardon comme limpossible vrit de limpossible don. Avant le don, le pardon. Avant cet im-possible, et comme limpossible de cet im-possible-ci, lautre. Lautre im-possible.*

    Dessa forma, o rastro deixado pelo im- do possvel pode ser lido como suplementao necessria na relao entre eu e outro, na compreenso do dom e do per-doar. De fato, h uma resistn-cia do perdo, em ser perdoado. A entrega da ddiva se faz ne-cessria a partir da solicitao da ddiva, mas no se solicita per-do a no ser para ser justo, tendo sido antes sempre um traidor e injusto. Fazer justia a ter cometido uma injustia. Ter perju-rado uma necessidade no perdo, ou seja, somente na imposs-vel relao entre o doar e o demandar doao que se estabelece, de fato, um caminho de ruptura que se converte ao outro, comu-nicando-se naquilo que se tem de mais impossvel, doar antes de se ter pedido a doao; ser justo antes da propriedade da justia que pressupe o erro.

    Ora, o ensaio um lugar dessa justia que sempre se pede perdo, por se estar velando, mascaradamente, o outro a partir de si mesmo. Montaigne apenas inverte o polo do poder je le puis, sans parjure de comunicar justamente por seguir um juramento, uma legislao, a da escritura. O que o eu esse do ensasta po-de fazer revelar o segredo a outrem que ele mesmo. Dessa for-ma, a demanda de perdo ao se escrever um ensaio uma forma de estar em perjrio frente ao outro, mas por isso mesmo j per-doado, uma vez que se entregam os presentes e as juras, por meio desse pelo, que se imiscui s aes prtica colocadas na d-diva e no juramento/na lei.

    Bem mais frente nos Essais, em De lutile et de lhonnes-te, Montaigne inscreve essa intrigante mscara: jay curieusement evit quils se mesprinssent en moy et senferrassent en mon masque.* Atitude moral, parece apenas estar sendo honesto (com as nego-ciaes entre prncipes). De fato, aqui, Montaigne condena aquilo que no prprio do homem honesto, aquilo que viciosamen-te malicioso. No entanto, ao manter-se frente escritura, perde-se no interior desse mascaramento, que o prprio rastro da lingua-gem. O que o ensasta evita justamente o ele faz, uma vez que,

    * (Ibidem: 558.)

    * (MONTAIGNE, Michel de. Essais Livre 3. Pa-ris: Garnier-Flammarion, 1979b: 6.)

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    ao desviar o equvoco e a imprudncia de si mesmo ao outro, afir-ma sua prpria mscara. Escreve que evitou, sagazmente, equivo-carem-se comigo e estorvarem-se em minha mscara e, com isso, sua forma mais ntima guardada atrs da mscara da identida-de, do obscurecimento do discurso que lana as disputas entre os prncipes, os caminhos de leitura dos ensaios o outro crena de saber que, na realidade, fruto da prpria artimanha sinttica do gnero ensaio. Pouco mais frente, Montaigne afirma: Moy, je moffre par mes opinions les plus vives et par la forme plus mienne.* A forma mais prpria, a opinio mais viva, aquela que escolheu escrever e no necessariamente a obrigao de dizer a verdade. O que ele oferece, ao contrrio do que pensa estar dizendo, justa-mente ocultamento e fingimento; ao evitar o dilaceramento da ver-dade, na realidade, os Essais deslancham uma outra suspeita: a de poder falar a partir de si mesmo, mas em uma cena da escritura. Por isso pedir perdo?

    A escritura do ensaio em si mesma um desastre, uma vez que intenta ser um retrato da privacidade, mas liberado esfera pblica. Na auto-oferta de Montaigne, esto o mim, o eu, as minhas opinies, a forma mais minha. Atitude mais reflexiva seria im-possvel. Entretanto, essa mesmidade do eu, esse autocentramen-to, no revela uma figurao da verdade, do dizer a verdade como que sendo honesto. O mais prximo que Montaigne conseguir do eu mais vivo ser a minha mscara na qual os leitores (no) se enganaro ou no se atrapalharo. Interessa, no mbito factual, o que aponta Erich Auerbach acerca da inexistncia de um pblico, de uma coletividade que pudesse ler os ensaios: a partir de seu livro que ela [a coletividade] cobra a existncia.* Nesse sentido, os Essais direcionam-se a uma figura vazia, como se Montaigne fa-lasse sozinho, de si mesmo, para si pergunto-me se ainda no assim, mesmo com a coletividade culta que almeja Auerbach. O mascaramento de Montaigne faz inclusive que haja certa suspen-sion of disbelief, como afirmava Coleridge, que conduz o leitor a acreditar em sua honestidade, em sua til prestao de servios ao comunicar o segredo dos outros. Assim, ele pede perdo, recebe-o e perjura escrevendo. A mscara que engana e lana no caminho imprudente , nesse sentido, um desvio para a runa, para relatar a runa em que se configura o prprio ensaio como viso fragmen-tada, subjetiva e trpica de verdade.

    * (Ibidem: 6-7.)

    * (AUERBACH, Erich. O es-critor Montaigne. In: MON-TAIGNE, Michel de. Os En-saios. org. M. A. Screech; trad. Rosa F. dAguiar. So Paulo: Companhia das Le-tras, 2010: 13.)

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    Em princpio, a teoria d forma ao ensaio; o que quer dizer que, ao abrir um ensaio, tem-se, para comear, a forma em linhas de uma objetivao, de um mundo em que a cincia e arte se se-pararam, como contrape Adorno* ao ensaio. A linguagem, no entanto, problematiza o legtimo do artigo cientfico, do anncio da verdade filosfica em prol do mutvel e [d]o efmero* que vio-lentariam as noes bsicas de conceito e doutrina pela rememo-rao e experincia, subjetiva, com a palavra escrita. Iniciar pela teoria, portanto, impe um indecidvel importante: a resistncia teoria. O ato de resistir implica em um no ceder e o outro ceder. Quando se impe uma abstrao conceitual como teoria, impor-ta compreender quem no est cedendo. H portanto a uma im-postura, ou melhor, uma resistncia da teoria em ser compreendi-da e uma resistncia daqueles que no querem mais ler a teoria. Se a noo de exame, de pensamento pela viso, conforme prope a etimologia da palavra, est no cerne da teoria, ento sua legitimao somente deveria se dar por um ponto de vista, por uma especula-o modulada da verdade que imporia, por si mesma, uma neces-sidade lingustica particular, a que todos tendem a resistir. Paul de Man sintetizou esse problema de forma bastante arguta:

    A resistncia teoria uma resistncia dimenso retrica ou tropolgica da linguagem, uma dimenso que existe talvez mais explicitamente no primeiro plano na literatura (concebida em termos gerais) do que noutras manifestaes verbais ou [...] que pode ser revelada em qualquer acontecimento verbal quando lido textualmente.*

    nesse sentido que o ensaio, como acontecimento verbal, se manifesta a partir da resistncia. No se furta teoria ao mesmo tempo em que se desloca ao plano do literrio, do retoricamente textual. Assim, a escritura do ensaio desenvolve-se no mbito do esclarecimento da Aufklrung , mas somente na medida em que concebe desde dentro, a partir da resposta igualmente literria, o problema escritural a que se impe. Resistir aqui quer dizer tambm prostrar-se frente a uma linguagem que faz o saber poetizar-se. O lugar terico, o nome institucionalizado da academia, colocado sombra da discusso metodolgica a partir da prpria linguagem que se apropria da matria (debatida) para expropriar o sentido do discurso terico. Pura viso, o ensaio converte-se em forma (des)apropriadora do pensamento, que se desembaraa da ideia tradi-cional de verdade.* Enquanto crtica ao mtodo de chegar ver-

    * (ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: Notas de literatura I. Trad. e apres. de Jorge M. B. de Al-meida. So Paulo: Duas Ci-dades; Ed. 34, 2003: 20.)

    * (Ibidem: 25.)

    * (DE MAN, Paul. A resistn-cia teoria. Lisboa: Edies 70, 1989: 38.)

    * (ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: Notas de literatura I. Trad. e apres. de Jorge M. B. de Al-meida. So Paulo: Duas Ci-dades; Ed. 34, 2003: 27.)

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    dade, o ensaio silencia sobretudo pela tcnica da pokh a ilu-so de verdade e impe o sujeito, assujeitado sua linguagem, em estado de inacabamento.

    Poder-se-ia dizer que o ensaio aproxima o pensamento teri-co do artesanato, como faz Adorno; no entanto, a experincia re-memorante dada por meio da escritura (enquanto suporte hipom-nmico que questiona o necessrio falseamento dessa palavra pla-tnica) assemelha-se mais impostura do gozo, destituio da tradio (do sentido) que se converte em ruptura contnua na ti-ca do escrever. De certa forma, o ensaio um dos primeiros tex-tes de jouissance muito embora Barthes no estabelea essa rela-o , visto que se constri sempre na expropriao do seu corpo. Alis, o ensaio talvez seja o lugar mais evidente da im-propriedade de qualquer texto e, por isso, o lugar da pluralidade no qual o es-crito torna-se escritura. No havendo uma natureza segura nem ao mundo representado pela escritura, nem ao ensaio enquanto g-nero , o texto apenas capaz de recuar e eis uma forma de re-sistir, prostrando-se no apenas frente ao dogma, frente ao con-ceito, mas no processo de mascaramento que elimina a proprieda-de do sujeito que fala, daquele que inicia seu texto pedindo per-do pelo perjrio porvir.

    Desde logo, o texto do ensaio se coloca na posio pulsio-nal da violncia que caracteriza a escritura. Blanchot prope ain-da: lcriture est dj (encore) violence: ce quil y a de rupture, bri-sure, morcellement, le dchirement du dchir dans chaque fragment, singularit aigu, pointe acre.* Nesse dilaceramento, a noo de sistema colocada em questionamento e a imagem aguda faz en-gendrar-se pela linguagem, no mbito do pensamento. Assim, h apenas fraturas no prolongamento do texto que experiencia a des-continuidade, o mascaramento, o mim-mesmo como si-mesmo. O limite do ensaio o limite da escritura, ou seja, uma experin-cia com os limites, justamente no ponto em que o escrever inci-tado pela quebra do livro (da civilizao livresca, como vo criti-car Derrida e Blanchot). O livro , de certa forma, uma busca pe-lo sentido da origem, um apelo noo acabada pela necessidade de uma teleologia. A escritura produz-se justamente no espao em que esse depsito no mais pode ser um centro, em que o desdo-bramento no se contenta em estar preso origem (do saber), mas apenas ao rastro infinitamente deixado pela ausncia e pelo apelo ausncia. A, talvez, esteja a importncia do exemplar de Bordeaux

    * (BLANCHOT, Maurice. Lcriture du dsastre. Paris: Gallimard, 1980: 78.)

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    para a arquia do ensaio. Ao inscrever-se sobre sua ao j escrita, Montaigne preenche o vazio da pgina com o vazio de seu pr-prio rosto, ou seja, exterioriza-se na lei da escritura como infini-tude almejada, como necessrio ordenamento que no se conten-ta ao mero pertencimento tradio sejam dos versos de Virg-lio, sejam dos escritos de Bocio , mas se colocando na experin-cia ausente do sentido conferida pela escritura, pelo perjrio desse sentido silence limit , como prope Blanchot* que se incli-na vers lasmique.* Escrever margem de sua edio, no ape-nas para corrigir, mas sobretudo para expandir, reflete o lugar em que o sentido vale mais como disseminao, como ausncia que se expe, do que como busca preciosista pela mot-juste, uma vez que afinal no se pode ser justo.

    Em uma retrica aberta, a palavra trabalha no ensaio como que dormente. A experincia interior transtornada pela assemia e por uma busca esvaziada frente a relao entre nome e coisa nome-ada. Montaigne inicia o ensaio De la Gloire com este instigante pargrafo: Il y a le nom et la chose: le nom, cest une voix qui remer-que et signifie la chose; le nom, ce nest pas une partie de la chose ny de la substance, cest une piece estrangere joincte la chose, et hors del-le.* A conscincia da natureza de sua linguagem me parece muito bem delimitada nessa compreenso acerca do fora e da nomeao.7 Sua tarefa, na condio de escritor, resguardada justamente no assujeitamento que faz da coisa ao nome, do processo de nomeao que faz significar a coisa para fora de sua substancialidade (pura), colocando-a como que intrusa a si mesma, seguindo-se como es-trangeira e apartada de sua voz. Nesse aspecto, Montaigne faz re-verberar o sentido a partir do nome, do simples ato de nomear de impor uma retrica matria, ou melhor, coloca no debate frente a

    7 Auerbach, no entanto, apontava que o critrio esttico de Montaigne no ti-nha qualquer seleo para alm de uma verbalizao simples. Diz ele: No h eufemismos, raras metforas desviam a fantasia, os perodos pouco trabalhados. [...] O sentido cria as conexes muito mais que os conectivos sintticos criam o sentido. certo que h frases longas, mas no um burilamento consciente dos perodos (AUERBACH, Erich. O escritor Montaigne. In: MONTAIG-NE, Michel de. Os Ensaios. org. M. A. Screech; trad. Rosa F. dAguiar. So Pau-lo: Companhia das Letras, 2010: 18). Diferentemente de Auerbach, penso que Montaigne tinha conscincia das conexes estabelecidas pela linguagem e, at mesmo, joga o tempo todo com isso. H muito mais uma questo frente escri-ta do que a construo de um mtodo leigo, para leigos, ou seja, que Montaigne tenha repensado sintaticamente seu texto no me resta dvidas, desde dentro de sua aventura, de si mesmo.

    * (Ibidem: 87.)

    * (Ibidem.)

    * (MONTAIGNE, Michel de. Essais Livre 2. Paris: Gar-nier-Flammarion, 1979a: 282.)

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    alteridade coisa-nome a noo de escritura como economia. des-pesa da coisa, o nome, no ensaio, segue sua lei domiciliar. Em cer-to sentido, a coisa hospedada pelo nome e assim j invertemos a ordem natural de uma arquia representativa sob a legislao dessa casa. O que equivale dizer que a nomeao impe sua eco-nomia de sentido coisa, furtando-a de guardar segredo, evitando seu pedido de perdo, eterno. Assim, a tica da escritura, que cons-titui o ensaio, da ordem de uma economia que poetiza o outro, dando a ele apenas possibilidade de estar incoerentemente dentro e fora daquela voz que escreve (essa impossvel aporia).

    Essa linguagem, portanto, suspenso e conservao talvez a um sentido da glria que no se possui; ou como expe Staro-binski: un langage qui ne poserait rien, qui se nierait lui-mme sans formuler mme sa ngation: Que say-je? Le doute dans sa forme in-terrogative est fait de la rencontre dune affirmation impossible et dune ngation impossible.* O ensaio interroga-se, como leitura e como escritura, e, com isso, proporciona uma experincia de moderao e conhecimento de si, pela dissimulao (an)rquica da hipomn-me, da escritura. O eu do ensaio rivaliza com o saber na medida em que ele deixa sem dormir, mantm em viglia o distanciamento da-quilo que imprimo e me imprime seja como ato sobre a edio, sobre o livro; seja na ausncia do livro, como ato de escrever.8 To-da impresso proporciona j dois momentos: o distanciar-se de si e o exergo a entrar em si. No propor nada pela linguagem, como afirma Starobinski, colocar-se em um encontro (hspede e hospe-deiro) que introjeta no ensaio uma tcnica arquivstica e uma pul-so arquivioltica, como ir descrever Derrida, em Mal darchive, a doena da memria pela noo mesma do rastro. Assim, quan-to mais o ensaio recolhe arquivos, quanto mais cultas so suas re-ferncias, mais passvel de destruio est esse arquivamento, mais propenso a um questionamento est esse poder de origem que se guarda na arkh. O ensaio acaba sendo o lugar do arquivo, mas de

    8 Vale, nesse sentido, pensar certa potica de Montaigne a partir de Jeanne De-mers: Le va-et-vient est constant chez Montaigne, de la lecture lcriture, de lcri-ture la lecture, et ce va-et-vient constitue lun des lments les plus importants de sa potique, ne serait ce que parce quil contribue crer le je polyvalent des Essais. Un je qui spie crivant et qui paradoxalement doit sa raison dtre la forme ma-tresse en constant devenir la distance prise avec lhomme (DEMERS, Jeanne. La potique selon Montaigne. tudes franaises, v. 29, n. 2, 1993:32). Esse eter-no jogo do eu entre a leitura e a escritura conduz o devir caracterstico do funda-mento sem origem que compe o ensaio enquanto gnero.

    * (STAROBINSKI, Jean. Mon-taigne en mouvement. Paris: Gallimard, 2006: 163.)

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    um arquivo que se controverte violentamente, pois coloca-se na aporia de uma impossvel justia frente ao objeto.

    Como xodo, proporia a leitura de um excerto da Apologie de Raimond Sebond, em que a viglia remontada e, logo, re-pensada pela escritura:

    Il semble que lame retire au dedans et amuse les puissances des sens. Par ainsin, et le dedans et le dehors de lhomme est plein de foiblesse et de mensonge.

    Ceux qui ont appari nostre vie un songe, ont eu de la raison, lavanture plus quils ne pensoyent. Quand nous songeons, nostre ame vit, agit, exerce toutes ses facultez, ne plus ne moins que quand elle veille; mais si plus mollement et obscurement, non de tant certes que la differance y soit comme de la nuit une clart vifve; ouy, comme de la nuit lombre: l elle dort, icy elle sommeille, plus et moins. Ce sont tousjours tenebres, et tenebres Cymmerienes.

    Nous veillons dormans, et veillans dormons. Je ne vois pas si clair dans le sommeil; mais, quand au veiller, je ne le trouve jamais assez pur et sans nuage. Encores le sommeil en sa profondeur endort par fois les songes. Mais nostre veiller nest jamais si esveill quil purge et dissipe bien point les resveries, qui sont les songes des veillans, et pires que songes.

    Nostre raison et nostre ame, recevant les fantasies et opinions qui luy naissent en dormant, et authorisant les actions de nos songes de pareille approbation quelle faict celles du jour, pourquoy ne mettons nous en doubte si nostre penser, nostre agir, nest pas un autre songer, et nostre veiller quelque espece de dormir?*

    Assim, o opaco que se v como sempre ausente reflete a no-o de sentido que pode ser criada pelo ensaio. H sempre uma dis-tncia no dormir e na viglia, mas que produz uma verdade acerca do observvel e isso est exposto desde a citao de Lucrcio que antecede o fragmento retirado de acima. De certa forma, o ensaio, enquanto ato de escritura, implica uma recomposio da lingua-gem do sonho a partir justamente do sentido estrangeiro que se pode ter dessa inquietude opaca e, ao mesmo tempo, lmpida que se tem na publicizao do lugar terico-subjetivo. Nesse sentido, a verdade histrica perpassada por uma dependncia do sujeito, por uma intromisso do sujeito na medida em que ele se concebe apa-gando-se da primeira pessoa. Blanchot prope perguntar-se sobre quem vela: la question est carte par la neutralit de veille: person-ne ne veille. Veiller nest pas le pouvoir de veiller en premire personne, ce nest pas un pouvoir, mas latteinte de linfini sans pouvoir, lexpo-sition lautre de la nuit.* Desse modo, h na escritura do ensaio

    * (MONTAIGNE, Michel de. Essais Livre 2. Paris: Gar-nier-Flammarion, 1979a: 261.)

    * (BLANCHOT, Maurice. Lcriture du dsastre. Paris: Gallimard, 1980: 82.)

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    como viglia a neutralizao desse eu que escreve frente a um ou-tro, que demanda perdo pelo perjrio, que convive na aporia da justia do nome frente ao objeto. O que em Montaigne se faz no quiasma entre dormir e velar, entre clareza e opacidade da manei-ra onrica que se escreve revelando o lugar, o espao que se ocupa o terceiro gnero, a terceira pessoa. Esse khi, grego, que compe o nome do lugar, to conforme e desconforme ao Timeu platnico quanto ao texto derridiano: khra. , o quiasma, do sonho e do velar, antes de tudo um lugar indeterminado que conduz a frag-mentao. Khra, com , coloca o ensaio em seu ponto cego, coloca o objeto nesse ponto cego que o prprio do desastre. Do-ce, o desastre de pensar, apagar-se na escritura. Ponto cego, blind-ness, mscara retrica.

    Piero (Luis Zanetti) Eyben doutor em Literatura e Professor Adjunto de Teoria da Literatu-ra no Departamento de Teoria Literria e Literaturas da Universi-dade de Braslia. Lder do Grupo de Pesquisa Escritura: Linguagem e Pensamento. ltimas publicaes: Joy, cest Freud(e)!, na Revis-ta da Anpoll; Abismo e autorias: alm de si, na Aletria (UFMG); Btulas e sombras: o problema do cone na poesia e no cinema, na Cerrados; Ocos, livro de poemas, pela Lumme Editor. ([email protected])

    ResumoEste texto discute a problemtica imposta pela relao entre expe-rincia e escritura na formao do gnero ensaio. Tomando como ponto de partida a anlise das marcas semnticas presentes nos Es-sais de Montaigne, so trazidas tona questes como a relao en-tre sentido e ausncia; clareza argumentativa e mobilidade de uma linguagem sensorial, caracterstica de uma tica da escritura.

    Palavras-chave: ensaio; es-critura; experincia.

    AbstractThis paper d i scusses the problematic imposed by the relationship between writing and experience in the constitution of the essay form. From a semantic analysis of the remarks present in Montaignes Essais, issues

    Keywords: essay; writing; experience.

    Mots-cls: essai; criture; exprience.

    RsumCet article discute la problma-tique impose par les rapports entre lexprience et lcriture dans la formation de lessai en tant que genre. Prenant comme point de dpart lanalyse des re-pres smantiques prsents dans

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    like the relationship between sense and absence, clarity of argument and mobility of a sensory language, characteristics of an ethics of writing, are brought up.

    les Essais de Montaigne, on rfl-chira sur des questions telles que celles des rapports entre le sens et labsence, la clart argumen-tative et la mobilit dun langage sensoriel caractristique dune thique de lcriture.

    Recebido em 15/07/2011

    Aprovado em 10/09/2011