Existência e Filosofia - O ensaísmo de Eduardo Lourenço

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EXISTNCIA E FILOSOFIA. O ENSASMO DE EDUARDO LOURENO

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Volume 12 Coleco Iberografias Ttulo: Existncia e Filosofia. O ensasmo de Eduardo Loureno Autor: Joo Tiago Pedroso de Lima Direco grfica e capa: Antnio Modesto CAMPO DAS LETRAS Editores, S.A., 2008 Edifcio Mota Galiza Rua Jlio Dinis, 247 - 6 E1 4050-325 Porto Telef.: 226 080 870 Fax: 226 080 880 E-mail: [email protected] Site: www.campo-letras.pt Centro de Estudos Ibricos Cmara Municipal da Guarda Praa do Municpio 6300-854 Guarda www.cei.pt e-mail: [email protected] Impresso: ????????? 1. edio: Maio de 2008 Depsito legal n.: ???????????? ISBN: 978-989-625-299-1 Coleco: Iberografias 12 Cdigo do livro: 1.61.012

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ndice

As ilhas e o arquiplago ou a nostalgia hegeliana Antnio Pedro Pita Introduo 1. A Existncia e a Tentao do Absoluto. Liberdade e Temporalidade num pensamento ensastico 2. Experincia Religiosa e Limites do Discurso Teolgico. A leitura de Sren Kierkegaard por um mstico sem f 3. A Ontologia Negativa em Fernando Pessoa 4. O Espelho Impossvel ou reflexes entre Ensaio, Dirio e Crtica 5. O caso Antero de Quental 6. Socialismo e tica 7. Portugal: Mitos, Imagens e Destinos

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As ilhas e o arquiplago ou a nostalgia hegeliana

Em cada ilha, em cada momento do meu discurso, est sempre presente essa totalidade impossvel. EDUARDO LOURENO

A bibliografia sobre Eduardo Loureno enriquece-se, agora, com a publicao de Existncia e Filosofia. O ensasmo de Eduardo Loureno de Joo Tiago Pedroso de Lima. , como se sabe, uma bibliografia j considervel. Seria mesmo oportuno tentar uma arqueologia desse interesse, que fosse alm da imediata conscincia de si em que as efectivas razes do fascnio lourenceano ficaro sem dvida soterradas. Tudo se passa como se o filsofo de ns-mesmos-como-fico se houvesse tornado a mediao essencial para uma autognose inscrita no crculo da anlise (por isso, ainda, fico) mas, simultaneamente, exterior a esse crculo (por isso, conhecimento real da fico). Seja como for, o que antes de mais verdadeiramente importa no trabalho de Eduardo Loureno o qual, recordmo-lo, apesar do fulgor da sua interveno posterior ao 25 de Abril, remonta a meados dos anos 40 a sondagem de uma singularidade, quero dizer, o propsito de pensar Portugal fora de todo o cnone que o convertesse simplesmente em caso concreto de uma teoria geral ou em indivduo de um gnero. Por outras palavras: o primeiro momento do seu labor consistiu em dissolver o optimismo imanente s grandes construes sistemticas (ortodoxias) no tanto na historicidade mas na dramaticidade delas prprias como

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circunstncias histricas. Por isso, este gesto de exteriorizao global do Sistema no rasto de Kierkegaard impe a Eduardo Loureno a definio de um ngulo de leitura mas tambm, e principalmente, de um dispositivo de escrita e de transmisso. Em vrias oportunidades, Eduardo Loureno tem regressado ao que , a meu ver, o prprio tema do livro que ora se apresenta: no tanto as condies de uma belssima escrita frequentemente encantatria mas sobretudo o privilgio ou a inevitabilidade ou a condenao do fragmento. O fragmento a nica expresso possvel para a conscincia ou o sentimento da suspeita das possibilidades de globalizao da experincia. A intotalizao de princpio da experincia abandona tudo o que ocorre na histria a uma tenso essencial entre a facticidade da insularidade e a nostalgia do arquiplago. E dramatiza de modos vrios essa tenso. Esta situao, sem sntese e sem exterior, funda a conscincia dos eventos como singularidade e a modalidade da expresso como fragmento ao mesmo tempo que inscreve a fico como elemento insupervel daquela tenso constituinte. O fragmento/o ensaio a nica expresso possvel dessa intotalizao de princpio: aquele ensaio que deveio infeliz depois de Montaigne e no recuperou a felicidade, a no ser enquanto mito, com Antnio Srgio e aquele fragmento (qual Roland Barthes do Discurso Amoroso) que transporta, no puzzle infinito que o seu ordenamento, o princpio ou a nostalgia da fico. Por isso, esta obra de Joo Tiago Pedroso de Lima, que se ocupa da caracterizao do ensasmo de Eduardo Loureno, ao arrancar da sua relao com a dialctica hegeliana, pressupe que a dissoluo da sistematizao hegeliana a partir de Kierkegaard a operao decisiva do percurso terico de Eduardo Loureno. A descoberta de Pessoa ou a intranquila capacidade de se deixar descobrir pela imensa novidade da constelao heteronmica , por outro lado, verdadeiramente fundamental para a determinao da novidade conceptual do discurso lourenciano: Pessoa um acontecimento que obriga a uma transformao da filosofia, uma aventura ontolgica que s se deixa acompanhar por uma filosofia que, nas palavras de Badiou, pense altura de Pessoa. Mas a intrnseca articulao entre reconstruo do espao filosfico sob a direco do primado kierkegaardiano da singularidade e a modelao da filosofia sob o impacto da aventura ontolgica

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pessoana que estabelece a configurao prpria do seu ensasmo. Configurao prpria, quero dizer: o que o caracteriza como tenso entre a ilha e o arquiplago, o conhecimento e a nostalgia, o que nele se apresenta como filosofia desconfiada ou melanclica de si mesma ou como saber instalado beira-mar de Deus sempre na iminncia de grandes tempestades. Poeta perdido na filosofia ou filsofo perdido na poesia como, dessa maneira ainda inscrita nas malhas de um persistente sculo XIX, Fernando Pessoa j no foi Antero de Quental no encarna s a infelicidade de a poesia no ser filosofia e de a filosofia no ser mstica mas tambm a suspeita de a ordem do discurso estar internamente modelada pela fascinao do silncio. No possvel ler Existncia e Filosofia. O ensasmo de Eduardo Loureno sem recordar a cada passo a instncia do tempo no pensamento de Eduardo Loureno. Ou melhor: o Tempo e o Ser. No o Ser e o Tempo, porque o que me parece mais difcil de conceptualizar essa nossa relao com o tempo. Primeiro, porque a relao entre existncia e filosofia uma concretizao particular do diferido projecto de Loureno. De facto, sendo a existncia essa relao com o tempo e a filosofia o discurso dessa relao, releva da especificidade deste pensamento do tempo que seja o ensaio (e no propriamente a filosofia) o discurso adequado. Depois, porque pensar o Tempo , de certa maneira, pensar os acontecimentos como diferenas do Tempo: e neste sentido tudo o que ocorre implica do mesmo modo (a mesma intensidade, a mesma urgncia, a mesma legitimidade) o trabalho do pensar. O ensasmo de Eduardo Loureno um desvio da filosofia: no a filosofia mas o ensaio, porque singular e fragmentrio, que pode escrever como fomos excedidos1. Joo Tiago Pedroso de Lima no se limita a acompanhar um itinerrio, navegando nas guas tranquilas da doxografia: constri o percurso de Eduardo Loureno. Isto : mostra onde e como foi excedido. Onde e como o excesso, a fico e a melancolia imaginam para ns, acima de tudo, aquilo que somos. Antnio Pedro PitaQuem se olhou a fundo sabe que coisa alguma da sua vida, o pior e o melhor, dependeu totalmente da sua vontade. Colabormos, bem ou mal, mas fomos excedidos.1

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Introduo

Em 1820, Hegel escreve as palavras que se seguem: a filosofia, porque o indagar do racional, , precisamente por isso, o apreender do presente e do real efectivo, no o estabelecer de um alm, sabe Deus onde deveria ser1. Numa poca e em circunstncias radicalmente diversas, o filsofo italiano Mario Perniola fala do ambiente que caracteriza a investigao filosfica nos finais do sculo XX em termos que, aos nossos olhos, so igualmente relevantes: ao longo dos ltimos vinte anos [desde 1968, aproximadamente] abriu-se para o saber uma possibilidade nica e extraordinria: a de se colocar finalmente em ligao directa (presa diretta) com a experincia quotidiana2. Julgamos ser possvel partir destas concepes, que vinculam, com um vigor indesmentvel, a reflexo filosfica experincia concreta (sendo certo que estes dois filsofos no fazem, como bvio, uma idntica interpretao acerca do que significa essa experincia concreta) para procurar aceder especificidade que caracteriza o ensasmo filosfico de Eduardo Loureno. Uma questo deve, em nosso entender, ser abordada neste momento introdutrio: em que nos baseamos para situar no domnio da filosofia o ensasmo de Eduardo Loureno? Ao lanarmos esta questo nos moldes em que o fazemos, estamos evidentemente a interrogarmo-nos sobre a pertinncia e a valia filosfica do trabalho intelectual desenvolvido por Eduardo Loureno. Esta apenas uma forma de colocar o problema para ns, aG. W. F. HEGEL, Prefcios, Col. Estudos Gerais Srie Universitria Clssicos da Filosofia, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, trad. do alemo por Manuel J. Carmo Ferreira, p. 196. 2 MARIO PERNIOLA, Esttica e Poltica (Nietzsche e Heidegger), Almada, Edies Sagres Promontrio, 1991, trad. do italiano por Antnio Guerreiro, p. 80.1

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mais frutfera. No desconhecemos, todavia, que muitas vezes basta a um autor que se intitule filsofo e que designe o que faz como sendo da ordem do filosfico para que, a partir da, o problema, pelo menos na aparncia, se dissipe. No caso de Eduardo Loureno, o que no deixa de ser sintomtico que, pese embora ter concludo os seus estudos superiores em Cincias Histrico-Filosficas, corria o ano de 1945, com uma dissertao de Licenciatura precisamente sobre a filosofia hegeliana, o nosso ensasta prefira assim ser chamado do que propriamente ser visto como filsofo. Porventura, por excesso de escrpulos ou talvez, como uma vez nos confessou, por fidelidade ao pathos mesmo da dita Filosofia. Dito isto, h pelo menos algo que podemos fazer, neste momento inicial do nosso trabalho, a partir da exegese de um texto que, a um primeiro olhar, poderia parecer menos filosfico. Referimo-nos a um artigo que, vamos diz-lo desde j, se encontra claramente marcado pelo contexto em que foi escrito trata-se de um apelo redigido quase em forma de manifesto e publicado no semanrio Expresso em Dezembro de 1974 e que foi tambm subscrito por outros autores. A podemos ler estas palavras: A liberdade, sendo um direito, antes de mais um acto. A liberdade do escritor, enquanto escritor, pois antes de mais a de escrever: acto intransitivo, irredutvel, que em nenhum caso pode ser rebaixado natureza de simples meio ou instrumento, objecto de imposio ou de coaco exterior, sob pena de deixar inexoravelmente de ser o que na sua essncia . Mas, sendo a escrita um acto, ele -o to-s na medida em que se objectiva como trao impresso, quaisquer que sejam a matria e a forma de expresso eleitas, actualizveis com o tempo, supondo necessariamente o apelo a uma leitura: no existe liberdade de escrever sem liberdade de ler3. Para nos abalanarmos numa hermenutica minimamente fundamentada deste excerto, com certeza necessrio que regressemos ao seu contexto pois este, como j o adiantmos, possui aqui, como, ao fim e ao cabo, possui quase sempre, contornos verdadeiramente decisivos. Vive-se em Portugal, nesse incio de Inverno de 1974, um perodo intensamente revolucionrio. Essa intensidade, sendo alis natural, at porqueLiberdade de escrita. Apelo com resposta, Suplemento Literrio de Expresso, Lisboa, 7/XII/1974, p. I.3

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se trata de um perodo que marca o fim de uma poca extraordinariamente importante na Histria do nosso Sculo XX, o Estado Novo, arrasta, ainda assim, no entender de Eduardo Loureno, um conjunto de efeitos de certa forma perversos a que imprescindvel prestar a devida ateno. Por isso, possvel ler ainda nesse Apelo o que agora desejamos recuperar: Em resumo: a conscincia cultural portuguesa foi obrigada durante vrias dezenas de anos a viver-se negativamente, como negativamente vive o prisioneiro dentro dos muros da priso, mesmo se passa o tempo a sonhar com a evaso ou a insultar os carcereiros (...). A conquista da liberdade de imprensa e de edio, com a abolio da censura prvia oficial, foi uma grande vitria do Movimento de Abril, de que, sem tardar um s dia, os portugueses puderam comear a usufruir pondo-a imediatamente em acto, nos limites do seu acesso aos agora chamados meios de comunicao social. Esses limites no desapareceram, na verdade, por um mero passe mgico; extinto o rgo institucional, no cessaram as funes censrias de obliquamente exercer-se. luta contra a tutela poltica do Estado fascista, substituiu-se a corrida ocupao de um espao de poder deixado, seno vago, pelo menos fracturado e propcio s penetraes intersticiais. Corrida que, a pretexto da liberdade e da democratizao, nem sempre foi, importa diz-lo, orientada no sentido de favorecer a restituio da palavra aos que escrevem e aos que lem numa pluralidade e contraditoriedade intransigentes. No de admirar que os monolitismos ideolgicos a encontrassem um campo privilegiado de ancoragem, com as suas obsesses de exclusivismo monolgico e monologante4. Dir-se- porventura que estas palavras apenas vm acentuar a suspeita de que este um texto irremediavelmente datado, desde logo em virtude do seu carcter polemizante e interventivo. No seremos ns, como evidente, a contestar a pertinncia desta possivelmente justa observao. De resto, Verglio Ferreira, amigo pessoal de Eduardo Loureno e tambm ele subscritor de Liberdade de Escrita, escreve, a 29 de Outubro desse mesmo ano de 1974, numa das pginas do seu Dirio: Vivemos em liberdade. Mas comea-se a respirar mal. Imprensa nas mos dos comunistas. Extino das Pginas Literrias. Livrarias, s com livros polticos. Era tal a fome deles4

Ibidem.

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que deu diarreia. TV poltica e de inspirao comunista. Um certo receio j de se comentar a coisa. Editoras a fecharem. A arte comea a ser suspeita ou menosprezada. Ascenso dos medocres. Solido5. Mesmo assim, no pensamos que seja foroso ou que, pelo menos, seja legtimo inferir que a especificidade que caracteriza este contexto interdite um possvel caminho de acesso a algumas das problemticas mais importantes e permanentes no que queremos chamar ensasmo filosfico de Eduardo Loureno. Interessa-nos em especial recensear a ideia de que a liberdade , antes de mais, um acto. Ou seja, a ideia de que s nos realizamos e descobrimos como seres livres quando assumimos, numa aco concreta, a nossa natureza de seres capazes de efectuar escolhas. Ora, escrever um apelo liberdade de escrita num tempo de euforia e de excessos revolucionrios , em si mesmo, um acto livre: apelar liberdade, num tempo que se proclamava como sendo finalmente livre, constitua uma redundncia no mnimo suspeita, para no dizer mesmo arriscada. Da que, ao escrever e sobretudo ao publicar esse apelo no se esteja apenas a defender em abstracto a liberdade e essa defesa possvel encontr-la nos escritos mais antigos de Eduardo Loureno, basta que nos lembremos, por exemplo, do Prlogo sobre o Esprito da Heterodoxia, pese embora as sucessivas releituras que o prprio autor fez desse mesmo conceito de heterodoxia. O que agora est em jogo releva, parece-nos, de uma ordem distinta. Trata-se de exercer a liberdade. Numa linguagem em que pretendemos tambm evocar o filsofo ingls John L. Austin, diramos que se trata de conferir liberdade o valor de um acto lingustico performativo (performative speech act)6. Ou seja, no se trata apenas de descrever uma realidade ou uma inteno, mas, sim, de realizar uma aco isto , um acto performativo com uma intencionalidade determinada; em suma, de procurar produzir um efeito que tem, entre outras possveis, uma dimenso poltica.VERGLIO FERREIRA, Conta Corrente 1 (1969-1976), Col. Obras de Verglio Ferreira, Amadora, Livraria Bertrand, s/d, [1980?], p. 215. 6 JOHN L. AUSTIN, Cmo hacer cosas com palabras, Col. Paids Studio, n. 22, Barcelona, Editorial Paids, 1971, trad. do ingls por Genaro R. Carri e Eduardo Rabassi.5

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Este aspecto afigura-se-nos particularmente relevante porque a leitura que aqui pretendemos apresentar do ensasmo filosfico de Eduardo Loureno poderia muito bem ser sintetizada na frmula seguinte: trata-se, segundo o nosso ponto de vista, de uma obra que se caracteriza por ser um pensamento como acto. Na verdade, se, como escreve Eduardo Loureno, a liberdade do escritor, enquanto escritor, pois antes de mais a de escrever: acto intransitivo, irredutvel, a liberdade do pensador ou do filsofo , por sua vez, e antes de tudo, a liberdade de pensar, acto, tambm ele, intransitivo e irredutvel. Por outro lado, qualquer acto de escrever supe necessariamente o apelo a uma leitura: no existe liberdade de escrever sem liberdade de ler. Assim sendo, perguntamos: no se passar algo de semelhante no que diz respeito ao pensar como acto? No implica qualquer aco de pensamento um apelo a um destinatrio, por mais indeterminado que este possa ser? verdade que Eduardo Loureno chega a confessar as suas dvidas em relao a este ltimo ponto, quando manifesta a impresso de que a sua obra porventura mais conhecida do que lida ou estudada. Todavia, essas dvidas no desmentem propriamente a condio do pensamento como apelo. De algum modo, vo at tornar esse apelo mais premente. A nossa leitura amos a escrever a nossa resposta ao apelo do trabalho filosfico de Eduardo Loureno ancora-se, por seu turno, num ponto prvio que consideramos essencial. Antes de mais, possvel descortinar nesse pensamento que, tal como a escrita s o na medida em que se objectiva como trao impresso, quaisquer que sejam a matria e a forma de expresso eleitas e no caso de Eduardo Loureno essa expresso , no mnimo, multiforme sinais, ao mesmo tempo dispersos e permanentes, da sempre inacabada tarefa (que talvez encontre as suas razes na fenomenologia de matriz husserliana, estudada por Eduardo Loureno nos seus tempos de Coimbra) do desvelamento do enigma no modo como somos no mundo e, portanto, tambm do modo como somos para ns mesmos. Sendo tal mistrio inextricvel, a questo no reside tanto em encontrar a forma de o resolver, mas, sim, de saber como express-lo, linguisticamente ou no. Refira-se, desde j, que para desempenhar essa sempre inconclusa misso, a pretensa univocidade do discurso filosfico tradicional no parece dispor das melhores armas.

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Claro que daqui decorre uma implicao que, pelo menos para alguns, pode ser extremamente importante. Como em tempos assinalou Diogo Pires Aurlio, [quanto] ao Eduardo Loureno, h literatos que o consideram um metafsico e sei de metafsicos que o rotulam de literato7. Por outras palavras, ser sempre possvel lanar a imprecao de que o ensasmo de Eduardo Loureno se no rege por uma determinada retrica acadmica que, para os tais metafsicos, seria uma espcie de conditio sine qua non para aceder ao territrio do estritamente filosfico. Mesmo admitindo que esta acusao seja irrefutvel, e isso para ns est bastante longe de ser pacfico, seria sempre possvel recordar as palavras que mile Brhier dirigiu a Maurice Merleau-Ponty, na sequncia de uma conferncia que este filsofo proferiu em 1946: Vejo as suas ideias [de Merleau-Ponty] a exprimirem-se atravs do romance, atravs da pintura, mais do que atravs da filosofia. A sua filosofia desemboca no romance. No se trata de um defeito, mas estou realmente persuadido que ela desemboca nesta sugesto imediata das realidades, que uma caracterstica dos romancistas8. Ora, no ser hoje despiciendo discutir a filosoficidade dos textos de Merleau-Ponty? Julgamos que sim. A questo define-se, aos nossos olhos, em termos diversos. Se repararmos, com a ateno merecida, no que se procurou nomear com a designao de filosofia, encontramos uma multiplicidade to ampla e at to conflitual de experincias discursivas que se torna francamente problemtico delimitar o que pudesse ser uma linguagem puramente filosfica. Claro que confessar esta perplexidade poder ser visto, por uma certa franja das vrias comunidades filosficas, como uma falta grave e sobretudo arriscada. De algum modo, seria a prpria filosofia, na sua identidade, que passaria a estar (mas, afinal, no foi sempre assim?), ameaada. No devemos, apesar de tudo, iludir a dificuldade, ao mesmo tempo que achamos por bem subscrever as palavras de Jacques Derrida, quando afirma De cada vez que algum seAs confisses de um mstico sem f, entrevista por Diogo Pires Aurlio, Prelo. Revista da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, n. especial, Lisboa, Maio de 1984, p. 11. 8 MAURICE MERLEAU-PONTY, Le primat de la Perception et ses consquences philosophiques, Grenoble, ditions Cynara, 1989, p. 78.7

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ops a uma filosofia isso teve a ver no apenas mas tambm com a contestao do carcter propriamente, autenticamente filosfico do discurso do outro9. Ou seja, um dos gestos mais clssicos da histria da filosofia parece ter consistido precisamente em desejar redefinir as sempre mveis fronteiras do seu prprio territrio. Dir-se-ia que fazer filosofia sempre foi tentar deslocar os limites do at a determinado como filosfico. Neste quadro, como traar os contornos filosficos do ensasmo de Eduardo Loureno? Pensamos que um caminho possvel e, mais do que isso, legtimo ser repescar uma expresso que encontramos em Mikel Dufrenne, e com ela caracterizar a obra de Eduardo Loureno como sendo uma filosofia no-teolgica10, o que no significa, evidentemente, que estejamos face a um pensamento que no leve a srio a experincia do religioso. Muito pelo contrrio: a ateno dedicada a um pensador como Sren Kierkegaard apenas um entre vrios iniludveis sintomas disso mesmo. O que na adjectivao negativa do no teolgico merecer reservas ser, sobretudo, a segunda metade do termo teolgico, isto , a pretenso de aprisionar numa discursividade lgica a natureza profunda e inefvel da relao da existncia humana com a transcendncia divina. Dito isto, importar referir que a diviso por captulos do trabalho que aqui se apresenta procura marcar, grosso modo, o que pensamos serem os interlocutores privilegiados (Sren Kierkegaard, Fernando Pessoa, Heidegger, Nietzsche, Antnio Srgio, Montaigne, Miguel Torga e Antero de Quental) e as questes preferenciais (Existncia e Absoluto, Temporalidade, Experincia Religiosa, Escrita, Ensasmo e Diarismo, Cultura e Filosofia Portuguesa, Socialismo, Marxismo e tica) com que vai dialogando Eduardo Loureno no decurso do seu caminho intelectual, embora seja necessrio conferir ao adjectivo intelectual um sentido mais amplo do que costume, pois estamos perante um caso em que existncia e pensamento no so, em definitivo, duas dimenses irredutveis.

JACQUES DERRIDA, Points de suspension. Entretiens, Col. Philosophie en effet, Paris, Galile, 1992, p. 232. 10 MIKEL DUFRENNE, Pour une philosophie non-thologique, Le potique, Col. Bibliothque de Philosophie Contemporaine, 3. ed., Paris, P.U.F., 1973, pp. 7-57.9

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Estas caractersticas do que consideramos ser o ensasmo filosfico de Eduardo Loureno constituem, por assim dizer, o ponto de partida para a leitura solicitada pelos seus quase inumerveis textos. Para tal, decidimos recolher todos os escritos publicados de e sobre Eduardo Loureno a que conseguimos ter acesso. No se tratou, como natural, de uma pesquisa exaustiva (temos mesmo srias dvidas que tal propsito seja exequvel em termos absolutos), mas ainda assim atravessmos uma parte que consideramos essencial deste quase oceano que a obra do nosso ensasta. Dessa travessia constitui este trabalho uma espcie de dirio de bordo, no qual procurmos responder ao apelo de um pensamento e de uma escrita, certos como estamos de uma coisa apenas: a nossa somente uma nossa leitura. Se quisermos, uma nossa resposta, tambm ela marcada pelo seu prprio contexto, a um pensamento que, desde o momento em que escrevemos as pginas que se seguem, no cessou nunca de nos apelar e de nos interpelar. A investigao que agora se apresenta corresponde em grande parte ao texto de Dissertao de Doutoramento em Filosofia apresentada Universidade de vora e a defendida em Provas Pblicas realizadas a 30 de Junho de 2003. Para alm de termos retirado o ltimo captulo desse texto, com o ttulo Imaginar a Europa: de Sujeito a enjeu da Histria, por considerarmos que grande parte do seu contedo est agora algo datado (tencionamos retomar muitas das questes a tratadas em estudo a publicar posteriormente), limitmo-nos a retirar do volume da Dissertao a lista bibliogrfica completa, pelo que apenas referimos em rodap os livros e artigos, bem como as respectivas edies, citados ao longo do texto. Fizemo-lo sobretudo porque, entre o momento da redaco deste texto e o da sua publicao como livro, a bibliografia de e sobre Eduardo Loureno aumentou consideravelmente, o que tornaria desactualizado, de modo irremedivel, esse repertrio. Procedemos, ainda, a uma ou outra correco de pormenor, sem todavia alterar nenhuma tese fundamental que defendemos no momento em que elabormos a Dissertao. Com isso vismos apenas tornar menos incmoda a tarefa do leitor.

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1. A Existncia e a Tentao do Absoluto. Liberdade e Temporalidade num pensamento ensastico

Basta que haja um s homem que transcenda a classe para que todos os homens sejam susceptveis de a transcender tambm. E l se vai o absoluto da teoria. EDUARDO LOURENO, Heterodoxia I Cada um de ns a multiplicidade de projectos criados por obstculos, mas esses obstculos no existem seno como correlativos desses projectos. EDUARDO LOURENO, A liberdade como realidade situada Sempre se escreve excessivamente de si. E nunca o que bastasse. EDUARDO LOURENO, As confisses de um mstico sem f

1.1. O equvoco absoluto do pensamento dialctico Vive a Cultura Europeia um ambiente marcadamente existencialista quando, nos finais da dcada de Quarenta, ensaia os primeiros passos o pensamento originrio de Eduardo Loureno. Por essa altura, o jovem assistente do Instituto de Estudos Filosficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra experiencia sobretudo a fascinao da primeira leitura dos textos de Sren Kierkegaard, cuja importncia, para o desenvolvimento do seu percurso intelectual, no deixar de comparar da obra de Fernando Pessoa. Ora, o movimento existencialista, por mais ambiguidades que encerre em si mesmo (facto a que, desde cedo, Eduardo Loureno

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prestou a ateno devida1), comea quase sempre por se afirmar como um grito de alerta face s explicaes de natureza absolutizante que, apesar de terem nas construes sistemticas da histria da filosofia os seus mais acabados exemplos (destacando-se a inevitavelmente o Idealismo Absoluto de Hegel), nem por isso deixam de responder quilo que o prprio Eduardo Loureno comea por nomear como a mais incoercvel tentao humana2. No pode espantar, assim, que Hegel e o seu sistema filosfico se tenham convertido, desde logo a partir do prprio Kierkegaard, em interlocutores declaradamente privilegiados do chamado pensamento da existncia (expresso que todos os autores habitualmente identificados com esta corrente parecem preferir ao termo existencialismo), mesmo que o dilogo a estabelecer com o hegelianismo e, num certo sentido, j no seu apogeu parisiense dos anos Quarenta, tambm com o prprio materialismo dialctico, adquirisse, muitas vezes, contornos vincadamente crticos e at adversos. Como se pode ler num nmero especial da revista Magazine Littraire dedicado ao existencialismo, foi nos fins de 1944, ano da Libration, que o marxista Henri Lefevbre caracterizou a filosofia de Sartre, cujo Ltre et le Nant tinha surgido em 1943, como existencialista para a denunciar como filosofia da diverso. O existencialismo posicionava-se, diante o marxismo e o comunismo, como grande movimento intelectual da Libration3. Neste contexto, no realmente possvel afirmar-se que Eduardo Loureno tenha, por assim dizer, fugido ao seu destino, na medida em que, tambm ele, dedicou grande parte das suas primeiras investigaes ao filsofo de A Fenomenologia do Esprito, cujo pensamento ser objecto de estudo da suaAmbiguidade do Existencialismo, Estudos. Revista de Cultura e Formao Catlica, n. especial, Coimbra, C.A.D.C, Junho 1951, pp. 277-279. Neste estudo, Eduardo Loureno reala que a ambiguidade constitutiva do prprio movimento existencialista que insiste como nunca se tinha insistido anteriormente sobre a ambiguidade da existncia humana (p. 277) radica na circunstncia de ser atravessado por duas intenes contraditrias e insanveis. Tal como surge em Heidegger, Jaspers ou Sartre o existencialismo resulta da confluncia de dois movimentos espirituais: a fenomenologia de Husserl e a filosofia da existncia, ou antes, a reflexo teolgica de Sren Kierkegaard, Ibidem. 2 Heterodoxia 1 (H1), Coimbra, p. 90. 3 FRANOIS EWALD, Lexistentialisme de Kierkegaard Saint-Germain-des-Prs, Magazine Littraire, n. 320, Paris, Abril 1994, p. 16.1

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dissertao de licenciatura4. Claro que, de um certo ponto de vista existencialista, dimenso gigantesca do ambicioso projecto hegeliano ir corresponder, por outro lado, o seu iniludvel e clamoroso falhano. Todavia, pode vislumbrar-se nesse projecto sobretudo a preocupao de impedir que o quer que seja permanea por explicar e a reside, porventura, o equvoco da dialctica, quer seja ela a de Hegel, quer seja a do seu sucedneo materialista. Esse precisamente o equvoco da dialctica no sentido convocado por Eduardo Loureno. Com efeito, embora opostas, a concepo hegeliana do mundo e a concepo marxista, em obedincia inelutvel lei dialctica que elas prprias foram as primeiras a explicar, reservam situao humana o mesmo modo de existncia. Esse modo de existncia depende numa e noutra duma nica relao: a da realidade absoluta com uma das suas manifestaes, o ser humano. Ao mesmo tempo participante do absoluto e aparncia dele, momento do devir e conscincia do mesmo devir, o homem tem na dialctica a imagem adequada de ser necessrio e ser aparente5. Ora, a questo levantada pelo pensamento da existncia desenvolve-se precisamente a partir da: qual o papel destinado aos (a cada um dos) homens no mbito de um Sistema Absoluto? Num Sistema que, no caso da filosofia de Hegel, no constitui, recorde-se, uma entre outras especulaes abstractas, no sentido que, de um certo modo, lhe conferido pelas crticas que o pensamento marxista lhe dirige. Pelo contrrio, a filosofia hegeliana responde, e f-lo exibindo um acabamento nunca antes conseguido, porque nunca antes to verdadeiramente consciencializado, quilo a que Eduardo Loureno chama a mais incoercvel tentao humana: a tentao do Absoluto. No , de resto, por acaso que a dialctica esboada por Hegel constitui um dos primeiros e sobretudo incontornveis passos para compreender, numa racionalidade mais ampla que a do mero Entendimento (Verstand) no sentido que Kant atribui a este conceito , a totalidade orgnica queCf. O Sentido da Dialctica no Idealismo Absoluto. Primeira Parte, dissertao de licenciatura em Cincias Histrico-Filosficas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1946, texto policopiado. Este trabalho foi republicado com bastantes alteraes, das quais a menos importante no foi certamente a extrapolao de certas consideraes sobre a dialctica hegeliana para o materialismo dialctico, sob o ttulo de O Segredo de Hegel ou o Equvoco da Dialctica, H1, pp. 77-192. 5 H1, pp. 89-90.4

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a realidade (da qual faz parte, enquanto manifestao necessariamente decisiva, o prprio homem) na sua natureza essencialmente histrica ou, se se quiser, temporal. Muitos anos transcorridos desde das suas precoces investigaes sobre o pensamento dialctico de Hegel, espcie de sombra inextinguvel que acompanha, com uma permanncia quase sem falhas, o seu trajecto intelectual, poder-se- encontrar num texto de uma conferncia de Eduardo Loureno uma certeira sntese da grande edificao histrico-filosfica do filsofo de Jena. Com efeito, ao delimitar o modo como o sculo XX e o chamado sculo da Histria experienciam diversamente a relao com o Tempo, afirma o nosso ensasta: hoje e aqui, o que nos interessa acentuar no apenas o facto de que o nosso sculo se vive como sculo do Tempo na angstia e na euforia. Isto j de certo modo podia ser dito em relao ao sculo passado [sculo XIX], se ele no tivesse sido o do ltimo combate metafsico e religioso entre uma viso do destino centrada na ideia da Eternidade e uma outra j sobredeterminada pela referncia primordial ao Tempo. O discurso sublime e inultrapassvel desta convergncia foi precisamente o do Sistema Hegeliano6. Sublime discurso, registamos, porque ao mesmo tempo grandioso e crepuscular. Inultrapassvel, porque, mais ningum, antes ou depois, almejou e conseguiu conduzir to longe porventura, demasiado longe a milenar aspirao filosfica de esgotar em si mesma a dizibilidade do real. Ou, por outras palavras, imobilizar numa palavra simultaneamente eterna e terrena a inexorabilidade do Tempo.

1.2. A Temporalidade como meta-problema Compreender o homem na sua temporalidade, ou melhor, enquanto temporalidade, constituiu, desde as reflexes mais jovens, preocupao fulcral no percurso filosfico de Eduardo Loureno. Ele prprio o reconhece numa entrevista:Os tempos do sculo, conferncia integrada no colquio Balano do Sculo, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 17/II/1989. Texto reimpresso in A Europa Desencantada. Para uma mitologia europeia (ED), Lisboa, Edies Viso, 1994, p. 202.6

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Todos os meus textos tm como centro implcito ou explcito o objecto da tese universitria que nunca fiz, e que seria o Tempo. Porque que nunca fez essa tese? Por ter escolhido um assunto que no seria capaz de levar a cabo. Quando Heidegger no foi capaz, eu, um aprendiz de filsofo portugus, nunca me senti com capacidade de tratar desse mesmo tema com a ambio infinita que ele requer7. Para l do que possa haver de irnico nesta confisso, vislumbra-se a, pelo menos para um olhar menos distrado, qualquer coisa que joga um papel bastante importante, dado que nos permite que nos acerquemos um pouco mais do que poder constituir a matriz essencial do labor filosfico num sentido amplo do que tal possa significar de Eduardo Loureno. Com efeito, o Tempo ou, talvez de um modo mais preciso, a temporalidade, conserva ao longo do caminho deste pensador uma relevncia sempre viva, embora isso nem sempre se manifeste por completo. E se, de facto, o projecto acadmico de Eduardo Loureno foi sendo sucessivamente adiado, a sua obra (termo cujo sentido no tem de, nem deve, ser lido nos moldes mais habituais) fez-se e continua a fazer-se. Decididamente, no sob a forma de uma dissertao acadmica. Mas os efeitos do seu trabalho ensastico merecem, julgamos, uma autntica leitura filosfica, para a qual a nossa investigao pretende dar o contributo possvel. Ser essa uma forma provavelmente, a nica realmente estimulante de sermos dignos do pensamento de algum a quem a cultura portuguesa tem feito e continua a fazer somente o injusto favor de tornar conhecido apenas por ser conhecido8. De resto, esta sensao de fracasso experienciada pelo prprio Eduardo Loureno em relao ao seu projecto inicial de trabalho volta a ser expressa num outro momento em que procura partilhar as suas preocupaes com os seus leitores, por muitas reservas que v manifestando quanto existncia destes: (continuo a ter a sensao de que sou um autor pouco lido9):

Tudo me pretexto para falar de mim, (TPFM), entrevista por Ins Pedrosa, Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 6/XII/1986, p. 6. 8 EUGNIO LISBOA, Eduardo Loureno: os Cornos do Dilema, Letras & Letras, Porto, Maro 1990, p. 9. 9 O pensador, entrevista por Jos Mrio Silva, Revista Dna de Dirio de Notcias, Lisboa, 21/III/1998, p. 17.7

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(...) Cada um dos assuntos por que me interesso daria para ocupar vrias pessoas durante toda a vida. Por isso, como no possuo vocao heteronmica, tenho procurado encontrar um nexo entre as minhas diversas abordagens da realidade. No fundo a procura de um s tema. E de facto, se virmos bem, o fio condutor do que venho fazendo, e procuro ainda fazer, uma reflexo constante sobre o Tempo. Ou melhor, a temporalidade. Um tema que o acompanha desde a juventude. Sim, sim. Quando era muito jovem cheguei a sonhar com um trabalho sobre O Tempo e o Ser, sendo sensvel ao facto de que no possvel fazer nenhum discurso sobre o Ser de um objecto, ou mesmo sobre o Ser enquanto objecto, se no houver conscincia de que esse discurso supe uma compreenso prvia da prpria temporalidade, uma vez que s o ser ideal dos objectos cientficos que pode prescindir dessa pr-compreenso da temporalidade. Um tal projecto filosfico sobre o Tempo revelava, claro, uma ambio desmedida. Ambio que s poderia conduzir ao fracasso, pelo menos no que me diz respeito. Apesar desse fracasso, como lhe chama, continuou o projecto pela vida fora. verdade. Esse projecto est subjacente a toda a minha apreenso do fenmeno potico, no sentido geral, bem como minha maneira de tentar compreender a Histria. E ainda mais genericamente, leitura que fao daquilo que se entende por cultura10. De acordo: o projecto continuou pela vida fora. Ou talvez seja melhor dizer assim: a vida foi sendo o que esse projecto quis que ela fosse, segundo um mecanismo do qual o prprio Eduardo Loureno no tem uma chave que desvende os segredos: Na minha vida h poucas escolhas. Deixei-me escolher. No tenho a pretenso de ter sido escolhido11. De uma tentao importa desde j que nos afastemos: no possvel explicar o projecto de Eduardo Loureno a partir da sua vida, segundo um modelo, por assim dizer, biografista ou psicologista. Preferimos tomar como bssola a advertncia realizada por Merleau-Ponty, a pretexto dos estudos que escreveu sobre10 11

Ibidem, p. 14. Ibidem, p. 17.

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a vida e a obra de Paul Czanne: Claro que a vida no explica a obra, mas tambm bvio que ambas comunicam entre si. A verdade que esta obra, no seu fazer-se, exigia esta vida12. Poderamos, ento, arriscar a hiptese de que o projecto intelectual de Eduardo Loureno (aceitemos esta designao, por agora) se foi deixando escolher por uma vida, por uma existncia, pessoal e colectiva, que, embora mantenha com ele um vnculo inextricvel, no o pode compreender em absoluto. Mas voltemos ao Tempo. Ou melhor: temporalidade, porque h todo um programa que se joga na distino entre os dois conceitos. Com efeito, a nuance entre os dois conceitos ser explicitada num artigo sobre o Tempo portugus: A saudade, a nostalgia ou a melancolia so modalidades da nossa relao de seres de memria e sensibilidade com o tempo. Ou, antes, com a temporalidade, aquilo que, a exemplo de Georges Poulet, designarei como tempo humano. Isso significa que essa temporalidade diversa daquela outra, abstractamente universal, que atribumos ao tempo como sucesso irreversvel. S esse tempo humano, jogo da memria e constitutivo dela, permite a inverso, a suspenso ficcional do tempo irreversvel, fonte de uma emoo a nenhuma outra comparvel. Nela e atravs dela sentimos ao mesmo tempo a nossa fugacidade e a nossa eternidade13. O Tempo que interessa a Eduardo Loureno no , portanto, a categoria, ontologicamente neutra, de que se ocupou a tradio filosfica de raiz aristotlica. Dir-se-ia que, tambm aqui, existe uma ntida marca do modo heideggeriano de considerar a temporalidade, nomeadamente na dependncia que essa reflexo mantm do seu enraizamento antropolgico. Como observa pertinentemente Franoise Dastur, no h (...) que procurar a origem do tempo seno em ns prprios, na temporalidade que somos, e por isso que Heidegger (...) sublinha que no se trata de definir o tempo como sendo isto ou aquilo mas sim de transformar a questo: o que o tempo? na seguinte quem o tempo?, isto , perguntar se no somos ns mesmos o tempo. Este o nicoMAURICE MERLEAU-PONTY, Le Doute de Czanne, Sens et Non-Sens, Col. Penses, Paris, ditions Nagel, pp. 15-16. 13 Tempo Portugus, Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade (PCD), Lisboa, Gradiva, 1999, p. 91.12

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meio de falar temporalmente do tempo em vez de o hipostasiar como um ser diferente de ns ao qual seria ento conferida uma identidade que negaria precisamente o seu carcter temporal14. So manifestas, aqui, evidentes afinidades com a interpretao sobre a temporalidade, tal como Eduardo Loureno a enuncia. Recordemos: no possvel fazer nenhum discurso sobre o Ser de um objecto, ou mesmo sobre o Ser enquanto objecto, se no houver conscincia de que esse discurso supe uma compreenso prvia da prpria temporalidade. Ou seja, o Tempo, mais do que objecto de reflexo, condio de possibilidade de qualquer agir humano, a incluindo, obviamente, o prprio gesto do pensamento. De resto, a radical novidade que Eduardo Loureno desvela na potica de Fernando Pessoa vai o nosso ensasta vincul-la a uma concepo de Tempo no mnimo muito semelhante a esta. Seno repare-se: Sempre a lrica se alimentou da nossa temporalidade, das folhas mortas e dos amores mais mortos do que elas. Mas na lrica clssica e ainda na romntica, o eu, o poeta e quem o lia iam na barca do Tempo para alguma espcie de porto. Deus, ou algum por ele, esperavam-nos no fim para conferir sentido viagem. A viagem de Pessoa, a nossa viagem em Pessoa, , desde o comeo, a de algum definitivamente perdido. Nem o princpio nem o fim nos so conhecidos mais que nos smbolos que de princpio e fim podemos conceber. No estamos no Tempo, somos Tempo. Mas se o Tempo , ns no somos ou somos como Pessoa se esforou por imaginar que seria, se fosse Caeiro, Reis ou Campos. Nenhum poeta da Modernidade exprimiu como Pessoa esta absoluta perdio do sentido do nosso destino enquanto mundo moderno e isto bastaria para que o autor da Tabacaria se tivesse convertido no apenas no mito que para ns, mas numa das referncias-chave da Cultura contempornea15. Toda a dificuldade passa, ento, a residir no modo de aceder discursivamente quilo que mantm uma relao de incontornvel anterioridade (no,FRANOISE DASTUR, Heidegger e a questo do tempo, Col. Pensamento e Filosofia, n. 15, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, trad. do francs por Joo Paz, p. 29. 15 Fernando, Rei da nossa Baviera (FRB), Col. Temas Portugueses, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, p. 12.14

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como poderamos ser conduzidos a supor, num sentido ostensivamente passadista) face a qualquer discurso. A nica maneira de resolver este dilema concentrar a ateno no que h de especificamente humano na nossa relao com o Tempo, na nossa irredutvel temporalidade. Ainda aqui seguimos Franoise Dastur na sua leitura da reflexo heideggeriana sobre o Tempo: no basta, como Aristteles e, depois dele, Santo Agostinho bem viram, observar que a medio do tempo s possvel por intermdio da alma ou do esprito. preciso, para alm disso, reconhecer que o ser humano tem uma relao muito particular com o tempo pois a partir dele que pode ser decifrado o que o tempo. Ele no existe ento no tempo, tal como acontece com as coisas da natureza, ele no fundo temporal, ele tempo16. Como compreender, ento, a viagem iniciada ou tornada consciente (e tal no ser a mesma coisa?) na j longnqua e coimbr dcada de Quarenta pelo jovem pensador existencialista e que vai desaguar aos mais diversificados e surpreendentes oceanos da actividade humana? A Literatura e a (Histria da) Cultura num sentido genrico, evidentemente. Mas tambm as Artes Plsticas e at o Cinema. E, num registo sempre mais alm da mera anlise de um quotidiano por vezes entediante, tambm a Poltica. Parece-nos ajustada, neste contexto, a leitura avanada por Manuel Maria Carrilho quando adverte, a propsito de um texto inserto em Heterodoxia I17, que a preocupao de pensar Portugal , em Eduardo Loureno, uma preocupao antiga. Se ela s do conhecimento pblico de 1974 para c, isso deve-se fundamentalmente a duas razes: por um lado Portugal no era objecto de interesse (pelo menos no grau em que se tornou) para a maioria dos intelectuais nem para a generalidade dos portugueses; por outro, e decisivamente, os textos de E. Loureno no eram at ento publicveis em Portugal18.

FRANOISE DASTUR, Heidegger e a questo do tempo, op. cit., p. 29. O mundo da cultura portuguesa arrasta h quatro sculos uma existncia crepuscular. (...) De ento para c, tm-na salvo da morte absoluta os raros que teimaram em acreditar ser possvel ascender de novo ao esprito da Europa., H1, p. 21. Pese embora um certo pendor racionalista deste estudo e em relao ao qual o prprio Eduardo Loureno se ir posteriormente distanciar devemos reconhecer nele mais do que um ensaio sobre as relaes luso-europeias um retrato, sergianamente impiedoso, da prpria cultura portuguesa. 18 MANUEL MARIA CARRILHO, O fio de Ariana de E. Loureno, Elogio da Modernidade. Ideias. Figuras. Trajectos, Col. Biblioteca de Textos Universitrios, n. 108, Lisboa, Editorial Presena, 1989, p. 87.16 17

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Referindo-se a livros como Os Militares e o Poder19 ou Situao Africana e Conscincia Nacional20, Manuel Maria Carrilho reala que o nosso ensasta desde logo comeou a impor-se entre ns como um caso singular de comentarismo poltico e cultural. Extremamente atento, solidamente fundamentado num conhecimento seguro da nossa histria e cultura, E. Loureno no hesita em cair sobre os acontecimentos, apesar dos riscos de um imediatismo inevitvel21. Pensamos poder ser particularmente fecunda, para a leitura do pensamento de Eduardo Loureno que aqui queremos esboar, esta ideia de um certo cair sobre os acontecimentos, visto que pode ser essa uma forma rigorosa de percepcionar um vastssimo conjunto de intervenes protagonizadas por Eduardo Loureno neste mais de meio sculo de actividade intelectual. Um pequeno texto de 1959, cujo ttulo, Tempo e Poesia22, ser mais tarde seleccionado para encabear uma ampla recolha de estudos e artigos maioritariamente sobre temas literrios, constitui, supomos, um bom exemplo deste modo to especfico em Eduardo Loureno de considerar a temporalidade. A pode ler-se o que se segue: O paradoxo do Instante no o de acabar quando surge. Esse dever o impomos ns ao banal instante, talhado na pea imaginariamente substancial do Tempo. O paradoxo do Instante o de nunca ter principiado e no poder ter fim. Ningum ver a cabea nem a cauda de tal monstro23. Sem pretendermos invocar, de um modo tentador decerto, mas provavelmente incauto, a sinonmia dos conceitos de Acontecimento e de Instante, importante, em nosso entender, sublinhar que esse monstro, de cauda e cabea inescrutveis, no se reveste de nenhuma outra transcendncia que no aquela que secretamente nos assedia: o Instante toca-nos (ou somo-lo) a um tempo com uma leveza de sonho e um excesso que nos desfaz.

Os Militares e o Poder, Col. Temas Portugueses, Lisboa, Arcdia, 1975. Situao Africana e Conscincia Nacional, Lisboa, Cadernos Critrio 2, 1976. 21 MANUEL MARIA CARRILHO, Elogio da Modernidade. Ideias. Figuras. Trajectos, op. cit., p. 87. 22 Tempo e Poesia, Tempo e Poesia (TP), 2. edio, Col. Volta da Literatura, Lisboa, Relgio dgua Editores, 1987, pp. 35-41. 23 Ibidem, p. 35.19 20

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Quem cair na tentao de figurar o infigurvel24? E mais frente, refaz a pergunta: Como nomear a fabulosa rvore sem morte sobre a qual, pssaros sonmbulos, acordamos perpetuamente em atraso e adormecemos apressadamente em avano25? Emerge, nesta constelao de metforas, a catacrese de uma humana e invisvel embarcao: Nascemos a bordo e a caminho, como Pascal, seu primeiro grande viajante sem bagagem, claramente o soube. A forma do barco onde vamos sem a ver o mesmo Instante. Nele deslizamos, estranhamente parados, no para a Eternidade, mas na Eternidade. Atrs deixamos a espuma do tempo. Contudo, o Instante nem eternidade nem tempo, miragens da travessia quando ela um deserto ou mar absoluto. Do porto onde no chegaremos formamos a Eternidade, do que no deixmos, o Tempo26. Ser especialmente arriscado avanar com a hiptese de que todo o projecto de Eduardo Loureno se vai escrevendo nessa tentao de figurar o infigurvel ou, se se preferir, por entre o desejo de desenhar as formas dessa inextricvel embarcao que nos faz e desfaz como Instante? Pelo menos, parece-nos legtimo admitir que o seu trabalho ensastico, enquanto testemunho de um percurso inelutavelmente pessoal e, portanto, biogrfico, no consegue (nem o procura, de resto, conseguir) iludir esta irredutvel contradio que des-estrutura a existncia humana na sua infatigvel e trgica ambiguidade. E, se considerarmos o problema no mbito do que acabmos de dizer, parece indiscutvel que podemos encontrar no ensasmo de Eduardo Loureno uma matriz, por assim dizer, existencial (mesmo que no exactamente existencialista), em que o que est em jogo se escreve sempre demasiadamente perto e, no mesmo lance, demasiadamente longe da existncia de quem vai produzindo uma obra e vivendo uma vida que parecem exigir-se uma outra.

Ibidem, p. 36. Ibidem, p. 37. 26 Ibidem, pp. 35-36.24 25

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1.3. Da liberdade como realidade situada despedida da Filosofia Na realidade, se repararmos bem, desde os seus tempos de Coimbra que, em Eduardo Loureno, a tal ambiguidade do existir, longe de constituir um entrave para a reflexo sobre a humanidade do homem, marca a irredutvel especificidade da nossa situao no mundo. Sendo assim, talvez convenha revisitar um estudo, hoje poucas vezes citado, que se dedica precisamente s relaes que a existncia humana mantm ou pode manter com o conceito de Liberdade27. O contexto aqui, uma vez mais, bastante importante. Por um lado, os incios da dcada de Cinquenta vivem ainda o trauma recente da II Guerra Mundial, de que neste artigo testemunho nada acessrio o recurso afirmao, sada da pena de Jean-Paul Sartre, e para muitos entendida como um escndalo em virtude do seu aparente paradoxo, segundo a qual os franceses nunca teriam sido to livres como durante a ocupao28. No possvel, evidentemente, esquecer a influncia que a Cultura francesa, nesta como noutras fases do seu percurso biogrfico, exerce sobre o nosso autor. Por outro lado, importa manter presente a situao particularmente hostil em relao s liberdades fundamentais no Portugal desse perodo histrico. O jovem Eduardo Loureno no desconhece, por exemplo, a realidade da censura poltica e ideolgica, mas tambm especificamente filosfica que persegue os espritos mais sequiosos de uma sabedoria realmente livre. A preocupao que move este texto de Eduardo Loureno no radica, no entanto, num horizonte imediatamente poltico ou social, mas, sim, a um nvel, por assim dizer, antropolgico ou at ontolgico. Efectuemos uma leitura mais atenta das primeiras frases deste artigo: Limitados pelo nascimento e pela morte e situados no seu intervalo pela histria, pelo carcter, pelo sexo, pela idade, pelo esquecimento ou pela ignorncia, no parece vivel acordar a ideia de liberdade com a de existncia humana. O recurso ideia de necessidade ou ideia de continA liberdade como realidade situada (LRS), Revista Filosfica, n. 1, Coimbra, Maro de 1951, pp. 54-64. 28 Ibidem, p. 58.27

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gncia, que uma necessidade dispersa pelo mltiplo, parece mais razovel. Simplesmente, neste caso, a possibilidade de uma vida pessoal ser abolida, pois na soma de actos que se necessitam uns aos outros ou surgem como relmpagos imotivados, todo o apelo a um centro ou a um responsvel destitudo de sentido29. Repare-se: no parece lcito admitir que a liberdade possa caracterizar a existncia humana, na medida em que esta se inscreve, inexoravelmente, dentro de um conjunto de limites que deveriam interditar a ideia segundo a qual decidimos o que fazemos e, num plano mais radical, o que somos. Todavia, essa aparente ilicitude decorre de um pressuposto que, por sua vez, carece de uma explicitao satisfatria. Com efeito, no pelo facto realmente indesmentvel de que a nossa aco no detm a prerrogativa de ultrapassar todo e qualquer condicionalismo que se pode inferir a tese de que, quando agimos, somos determinados por uma razo exterior ao nosso querer volitivo, quer se pense numa necessidade propriamente dita (por exemplo, os desgnios de uma divindade omnipotente), quer se considere uma espcie de contingncia imperial (porque detentora de uma imperiosa necessidade) que apenas se daria a conhecer a posteriori. Estas duas possveis respostas ao problema de como conciliar a liberdade humana com os limites do nosso agir tm a consequncia, de certo modo confortvel, de excluir todo o apelo a um centro ou a um responsvel e, nesse caso, a possibilidade de uma vida pessoal seria, portanto, realmente abolida. Como articular, ento, estas duas ideias primeira vista to irredutivelmente antinmicas, como sejam a liberdade e a existncia humana, na sua singularidade pessoal? Eduardo Loureno adopta o procedimento de desmontar aquilo que designa por uma concepo abstracta da liberdade. Tal abstraco constitui o fundamento sobre o qual se erige a noo, por vezes to confusamente enunciada, de que ser livre viver com o poder de se fazer o que se quer30. Ora, do ponto de vista do nosso autor, qualquer acto livre, se disso realmente se tratar, pressupe a existncia de um obstculo que no s no lhe retira29 30

Ibidem, p. 54. Ibidem, p. 57.

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a sua condio de acto livre como, pelo contrrio, mantm uma essencial correlao com essa sua liberdade. A liberdade como correlao com um obstculo significa que a existncia de um obstculo correlativa e coetnea com a existncia de um acto livre. Dum certo modo o obstculo que cria a liberdade31. Ora, mesmo no fazendo coincidir a liberdade com a existncia humana ( maneira de Sartre), Eduardo Loureno no deixa de sublinhar que um acto livre exactamente o tipo de acto que ningum pode exercer nem compreender por ns, porque coincide com o acto de assumir a nossa existncia como nossa32. Por isso, a questo de saber se somos, em absoluto, existncias livres ou condicionadas perde quase toda a pertinncia. Na verdade, cada um de ns a multiplicidade de projectos criados por obstculos, mas esses obstculos no existem seno como correlativos desses projectos33. Que obstculos se erguiam, ento, ao projecto filosfico to hegelianamente ambicioso do jovem estudante e depois assistente de Coimbra? ele mesmo quem, algumas dcadas passadas, revisita esse seu tempo primordial. Aqueles que se pretendiam vocacionados para o nobre estudo da filosofia, como era o meu caso, preocupavam-se com a verdade da miragem proposta. Embora parea ingenuidade (ou o seja), um jovem aprendiz de filsofo define-se pela paixo pura das ideias e at, mais radicalmente, pela paixo das puras ideias. Se Hegel tanto me fascinou nesses anos de aprendizagem sem a certeza de o ter compreendido foi por incarnar, de algum modo, a paixo filosfica em estado puro, a de representar o exemplo nico do pensador que ousou identificar o inteligvel ao real34. Ora, prossegue o ensasta, o que me separou do hegelianismo e do marxismo, sua inverso aparente foi o sentimento, tanto quanto possvel conceptualizado, do seu intrnseco hiper-racionalismo. Ou, em termos mais gerais, o seu idealismo. (...) No creio, contudo, que tenham sido consideraes filosficas puras (se existem) que me afastaram do idealismo, quer naIbidem, p. 58. Ibidem. 33 Ibidem, p. 61. 34 CMSF, p. 8.31 32

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sua forma hegeliana, quer marxista, realista de pretenso mas no de forma, e s esta importa. Creio que foi s a convico, passionalmente vivida e assumida, de uma diferena de estatuto ontolgico entre existncia e conceito, ou melhor ainda, a da anterioridade da existncia em relao ao conceito. Neste sentido, exacto que o meu ponto de apoio para resistir tentao filosfica como discurso do absoluto me veio do que se costuma designar por existencialismo. Em ltima anlise, foi a prpria figura da filosofia que em dado momento me pareceu suspeita. Quase ao mesmo tempo, a descoberta de Pessoa e Kierkegaard operaram nesse sentido, um exemplificando a iluso da prpria conscincia enquanto conscincia de si ontologicamente existente, outro a incomensurabilidade da existncia pessoal com todo o outro tipo de existncia. Num e noutro caso, fim da filosofia35. Evidentemente que se poder perguntar se o que aqui comea a estar em jogo ser apenas o abandono protagonizado por Eduardo Loureno da tarefa filosfica por excelncia, pelo menos como tradicionalmente ela prpria se viu a si mesma, ou se no foi a prpria filosofia que, num certo sentido, se ter abandonado a si mesma, (na justa medida em que ps de lado a sua tradicional vocao de pretender enunciar o Absoluto) convertendo-se no que alguns autores como Richard Rorty, por exemplo: mas, nesse caso, ser ainda lcito falar em filsofos? costumam chamar ps-filosofia? No querendo desmerecer o que possa constituir a importncia desta ltima questo, o que parece certo que, do ponto de vista de Eduardo Loureno, se, como j vimos, a existncia precede sempre o conceito ou, se se preferir, a vida se antecipa sempre em relao filosofia, por outro lado, a filosofia, a grande filosofia (mas, em rigor, s essa grandeza lhe confere estatuto filosfico), transborda sempre os limites que a sua pretensa objectividade discursiva pareceria querer instituir. Por outras palavras: a filosofia, a verdadeira filosofia, j sempre, num certo sentido, Literatura. Claro que entre os textos publicados no primeiro volume de Heterodoxia e a maioria dos ensaios escritos posteriormente por Eduardo Loureno encontramos, por assim dizer, uma notria diferena de tom. Todavia, importante no esquecer que, entre esses textos iniciais, deparamos com alguns que, por35

Ibidem, p. 9.

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se tratarem de trabalhos de natureza acadmica, no parecem poder evitar uma determinada retrica universitria, em que o aparato erudito obriga profuso de notas e referncias bibliogrficas que, mais tarde, quase vo desaparecer da totalidade dos textos de Eduardo Loureno. Por isso, no so, esses textos iniciais, particularmente exemplares ou ilustrativos da essencial tendncia deambulatria do trabalho do nosso ensasta de que, como sublinha Jos Gil, resulta uma obra que se vai construindo paradoxalmente ao acaso dos acontecimentos, mas seguindo sempre a lgica singular de um mesmo pensamento crtico: work in progress, que vai pensando a modernidade e a produo cultural mais recente. De Eduardo Loureno se poderia tambm dizer que no evolui, viaja, e no entanto, ele capaz de acompanhar as mais finas mutaes da obra de um escritor, como se a sua, de pensador e crtico, dispusesse sempre dos instrumentos conceptuais aptos a captar os movimentos da contemporaneidade mais imediata36. Essa capacidade e disponibilidade para trabalhar o presente evidencia que, por muitas reservas que ele prprio avance quanto natureza filosfica do seu trajecto, Eduardo Loureno tem um pensamento. Um pensamento coisa rara. No se define como viso do mundo, nem como concepo global, ou mesmo parcelar, da histria, mas como um movimento de conceitos que cria o seu prprio campo operatrio. O que implica, em geral, a inveno de conceitos, e uma abertura indita para domnios inexplorados. Quer dizer: um pensamento caracteriza-se, antes de mais, pelo seu prprio movimento, pelo movimento de pensamento. Um pensar sem pensamento pode ser uma aplicao mecnica de conceitos preexistentes, uma imitao de um pensamento original: em nenhum destes tipos de pensar o movimento de pensamento se aventura para alm de um molde preestabelecido. O que desde logo impressiona, no pensamento de Eduardo Loureno, a sua extrema mobilidade, a sua vivacidade mpar37. Esta ideia de vivacidade e de mobilidade , em nosso entender, particularmente fecunda,JOS GIL, O ensasmo trgico, JOS GIL e FERNANDO CATROGA, O Ensasmo Trgico de Eduardo Loureno, Col. Sophia, Lisboa, Relgio dgua Editores, 1996, pp. 7-8. 37 Ibidem, p. 9.36

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na medida em que, atravs dela, por um lado, podemos tentar perceber as relaes que fazem da obra e da vida do ensasta uma nica e inseparvel aventura e, por outro lado, podemos recuperar uma muito auroral ideia da essncia da filosofia, concebida no como soluo, mas como metafsica da interrogao, definida em funo da ideia-limite da expresso do incomunicvel e inabarcvel sentimento que cada um adquire da existncia como totalidade38. Na verdade, ao lermos esta passagem do seu estudo sobre a dialctica de Hegel, conseguimos descortinar como, desde muito cedo, para Eduardo Loureno, a partir da afirmao do primado da existncia que possvel tornar manifesto o equvoco do projecto hegeliano: temos o sentimento (que pode evidentemente ser expresso duma forma mais ou menos adequada por um sistema de ideias) de que a existncia no problemtica, mas meta-problemtica, uma vez que o prprio questionante est perpetuamente envolvido pela prpria questo. Sempre se teve conscincia disso ao longo da histria, pelo menos da parte dos msticos e dos poetas, mas s uma ideia corrente na filosofia desde Kierkegaard, sendo hoje defendida com profundidade sobretudo por Heidegger, Jaspers e Gabriel Marcel39. Como j dissemos, este estudo, publicado no I Tomo de Heterodoxia, recupera grande parte da Dissertao de Licenciatura apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra com o ttulo de O Sentido da Dialctica no Idealismo Absoluto. Primeira Parte. Curiosamente neste trecho que agora acabamos de citar, o texto da Dissertao apresenta uma redaco ligeiramente diferente e, do nosso ponto de vista, essa diferena pode marcar uma certa despedida da filosofia pelo jovem ensasta heterodoxo. Seno, repare-se: temos o sentimento (que pode evidentemente ser expresso duma forma mais ou menos adequada por um sistema de ideias) de que a existncia no problemtica, mas meta-problemtica, uma vez que o prprio questionante est perpetuamente envolvido pela prpria questo, como de resto sempre se teve conscincia, mas que hoje uma ideia acentuada com fora por vrios existencialistas sobretudo Heidegger, Jaspers e Gabriel38 39

H1, p. 95. Ibidem.

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Marcel40. De um texto para o outro, no perodo de trs anos, cai a designao de existencialista que, pelo menos para Heidegger, , como se sabe, bastante forada. Entram em cena, por um lado, Kierkegaard e, por outro, os msticos e os poetas, ocorrncia que, embora possa tambm, em parte, ser explicada pela libertao de uma certa retrica acadmica, no deixa, contudo, de revelar algum significado importante. Assim, e apesar de podermos afirmar que o parti-pris de Eduardo Loureno com a filosofia (e em especial com o idealismo hegeliano ou marxista) no resultou de razes puramente filosficas, a verdade que o que caracteriza o essencial movimento das chamadas filosofias da existncia precisamente o programa de desmascarar a pretensa pureza de um discurso que, desde sempre, quis apagar a sua marca existencial. Se quisermos, o que Sren Kierkegaard e Fernando Pessoa vm inscrever horizonte do pensamento originrio de Eduardo Loureno so os limites que obrigam a filosofia a reconhecer-se como existenciariamente situada, porque a prpria existncia que se descobre, por si s, meta-problemtica. Da que pensemos que Eduardo Loureno seguiu um trilho no muito diverso do percorrido por outros autores contemporneos que no difcil hoje reconhecer como filsofos. Ou seja, talvez o que caracterize a filosofia nos nossos dias seja o parti-pris que ela mantm consigo prpria ou pelo menos com os modos que tradicionalmente se foram impondo como seus. Com efeito, e como bem lembrou Luciana Stegagno Picchio, este desvio operado por Eduardo Loureno em relao filosofia stricto senso significa o trajecto de um mestre do ensaio com formao de filsofo (...) [que no seno] o caminho seguido por uma parte significativa dos filsofos nossos contemporneos, que para abrir dilogo com uma plateia mais ampla que a dos antigos especialistas, passaram a dedicar-se, e j sem pretenses de absoluta objectividade, a assuntos mais prprios da vida concreta dos indivduos, usando alm disso na sua escrita de todos os recursos retricos e estilsticos peculiares moderna fico41.O Sentido da Dialctica no Idealismo Absoluto. Primeira Parte, op. cit., pp. 5-6. LUCIANA STEGAGNO PICCHIO, Um mestre do ensaio com formao de filsofo, Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 7/VII/1992, pp. 8-9.40 41

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Talvez seja essa, de resto, uma das possveis formas de ler o ensasmo de Eduardo Loureno perscrutando, para l de todo o reconhecimento institucional que se, muitas vezes, o parece consagrar, por outro lado vive numa espcie de incontornvel desateno relativamente sua essencial e sem remdio problematicidade.

1.4. Uma outra concepo de ensasmo o prprio Eduardo Loureno quem nos previne: nenhum ensasmo, ou pelo menos o ensasmo tal como eu tenho vindo a pratic-lo, feliz. Talvez o nico ensasmo feliz tenha sido o primeiro, o de Montaigne, que assume frontalmente a subjectividade com tudo o que ela tem de positivo, fazendo do indivduo o prprio centro do mundo, e ao mesmo tempo pondo-se em causa (...). Mas o meu ensasmo diferente. Tive sempre em relao ao exerccio crtico em geral, e ao ensasmo em particular, uma atitude de frustrao, mas de frustrao assumida42. No para ns evidente a tese de que o ensasmo de Eduardo Loureno seja um legtimo herdeiro pelo menos se por herana se pretende significar uma continuidade sem rupturas do que poderamos designar como ensasmo racionalista portugus do sculo XX, cultivado sobretudo a partir de Antnio Srgio, mas de que tambm, e talvez sobretudo, exemplo Slvio Lima, designadamente numa obra bem conhecida, Ensaio sobre a essncia do Ensaio. Este Ensaio, sendo antes de mais um estudo precisamente sobre os Essais de Michel de Montaigne, anuncia e ao mesmo tempo sintetiza aquilo que pode ser visto como um bastante amplo projecto metodolgico do que possa ser uma essncia do modelo racionalista do procedimento ensastico. Neste ponto, parece-nos pertinente a distino operada por Eduardo Prado Coelho ao falar do ensasmo de Slvio Lima como sendo um exemplo do que designa ser a concepo humanista do ensaio que se inscreve numa perspectiva do conhecimento humano em que o grande confronto se realizaUm heterodoxo confessa-se(HC), entrevista por Vicente Jorge Silva e Francisco Belard, Expresso-Revista, Lisboa, 16/I/1988, p. 27.42

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entre as trevas e a luz da Razo uma perspectiva iluminista, por conseguinte43, ao mesmo tempo que sublinha que se torna difcil falar em essncia do ensaio, se por tal quisermos entender uma essncia pura. Porque no pureza, mas hesitao, indecidibilidade, mistura. Escreve [Jean] Starobinski sobre o que poderia ser a esttica do ensaio: Son esthtique est celle du mlange44. Ou seja, por um lado, encontramos uma perspectiva de ensaio que parece viver associada metfora do peso que, como sabemos, est tambm presente no termo pensar. O ensaio uma forma de pensamento em que se pesa o valor das ideias num exerccio intelectual de ponderao (outro vocbulo que tambm entra nesta teia metafrica)45. Mas, por outro, no nos podemos esquecer de uma perspectiva diferente em que avulta a importncia do enxame, da nuvem de pssaros, da proliferao ilimitada, do jogo de espelhos46. Eduardo Prado Coelho remete-nos, por outro lado, para a matriz dupla do antecedente latino do termo ensaio: assim, se as palavras exagium balana e exagiare pesar, ponderar tm uma relao estreita com a palavra examen (...), por outro lado, examen no designa apenas a noo de exame, mas tambm a noo de enxame (abelhas, pssaros voando em conjunto, mancha indecisa de multiplicidades)47. Ser especialmente arriscado admitirmos que o trabalho ensastico de Eduardo Loureno se casa, de um modo menos imperfeito, com esta mistura enxameada e indecidvel? Pelo menos, pensamos que desde j merecedora da nossa ateno a leitura que Eduardo Loureno realiza dos Essais de Montaigne, por assim dizer o inventor deste gnero aparentemente to difcil de generalizar literrio que , ao mesmo tempo, quase uma leituraEDUARDO PRADO COELHO, O Ensaio em geral, Colquio, Educao e Sociedade Metamorfoses da Cultura, n.os 8-9, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, Maro 1995, p. 197. Este estudo foi mais tarde republicado in O Clculo das Sombras, Porto, Edies ASA, 1997, pp. 18-49. A se indica que se trata de uma conferncia proferida em Paris durante o ano de 1988. Todavia, j em 1965, a propsito da 2. edio de Ensaio sobre a essncia do Ensaio, Eduardo Prado Coelho elogiava criticamente a importncia deste trabalho de Slvio Lima: EDUARDO PRADO COELHO, Slvio Lima: Sobre a essncia do ensaio, mais tarde integrado em O Reino Flutuante, Lisboa, Edies 70, 1972, pp. 45-51. 44 EDUARDO PRADO COELHO, O Ensaio em geral, op. cit., p. 197. 45 Ibidem., p. 194. 46 Ibidem, p. 195. 47 Ibidem, p. 194.43

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da existncia. Assim, escreve o nosso autor: Se Montaigne no sabia quem ele era e, se, para o saber, comeou a escrever, ento sabia quem era [que era, que existia] (...). No tendo encontrado mais ningum para alm dele prprio no seu caminho, converteu o interminvel espanto desse encontro em escrita48. Mas a verdade que, falando de Montaigne, Eduardo Loureno tambm de si que fala. Ou melhor, ele mesmo que(m) assim se (d)escreve. No prefcio de 1987 reedio conjunta dos dois volumes de Heterodoxia, texto de re-leitura dos passos primordiais do seu trajecto e significativamente intitulado Escrita e Morte, Eduardo Loureno confessa e confessa-se assim: No se sabe nunca porque se escreve. Da mitologia da modernidade podemos dat-la de Petrarca, de Erasmo ou de Montaigne faz parte a ideia de que se escreve por imperiosa necessidade. Todos os autores modernos so profetas que clamam no deserto sem ordem de Deus. Os mais temerosos crem assim fundar uma ordem humana. Alguns, mais modestos, escrevem para se salvar, quer dizer, para que o olhar dos outros, reconhecendo-os, os confirme na sua existncia precria. Falhada ou triunfante, toda a escrita um exerccio de imortalidade. Mas ningum sabe o que perde ou o que salva49. Nesta permanente e inacabada obscuridade sobre o que se salva ou sobre o que se perde na/com a escrita, no residir a indecidibilidade que atravessa o trabalho ensastico de Eduardo Loureno? Continuemos a l-lo no modo como se (d)escreve. No sei se era esta a minha convico [a convico de se salvar atravs da escrita] ao publicar, quase h quarenta anos, um livro de ensaios ainda todo banhado pelo fervor da adolescncia e o sabor a banco de escola. Uma universidade um lugar de escrita espera de impresso. Ela existe para nos propor uma leitura da aventura humana de que cedo descobrimos que ningum possui a chave. Em todo o caso, aquela que nos est destinada. A vida inteira no basta para a fabricar. Podemos guardar este seMontaigne ou la vie crite(MVE), EDUARDO LOURENO; PIERRE BOTINEAUS, Montaigne 1533-1592, Bordeaux, Centre Rgionale des Lettres dAquitaine Lescampette ditions, 1992, p. 9. 49 Escrita e Morte, Heterodoxia (H87), Col. Cadernos Peninsulares Ensaio/Especial, n. 11, Lisboa, Assrio & Alvim, 1987, p. XI.48

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gredo connosco ou public-lo. Ningum no-lo exige e cada um de ns sabe-o no momento em que cede tentao de se escrever. A glosa interminvel desta deciso consciente da sua prpria inanidade, lugar da interpelao pura, sem resposta vida, manifesta em letra de forma, o que se costuma chamar, desde Montaigne, ensaio. a forma escrita do discurso virtual de uma existncia que renunciou s certezas, mas no exigncia de claridade que nelas, em permanncia, se configura. Em boa verdade, no h ensasmo feliz. Na sua essncia uma escrita do desastre, pessoal ou transpessoal50. O ensaio, para Eduardo Loureno, est longe de apenas se constituir como uma atitude da Razo ou programa metdico; pelo menos, no sentido que lhe conferido por Slvio Lima. Mas bvio que, tal como no coincidem as concepes de ensaio destes dois ensastas, tambm cada um l o seu Montaigne. Isto , a atitude ensastica, para o autor de Heterodoxia, no se explica como sendo um conjunto de regras que acautelariam um sujeito transcendental, porque anterior irrupo da (sua) temporalidade, face s vicissitudes prprias da contingncia de cada novo acontecimento. No h, estamos convictos, uma essncia do ensaio para Eduardo Loureno. Pelo contrrio, o ensaio a excurso escrita que visa, se quisermos aludir traduo do ttulo de um texto de Maurice Blanchot (em que, tambm a, fico, autobiografia e teoria se parecem entrelaar), suspender a morte51. Por um lado, e esse o sentido aparentemente mais bvio do que queremos dizer, porque, falhada ou triunfante, toda a escrita um exerccio de imortalidade. E assim, encontramos nestas confisses o que uma certa hermenutica psicologizante poderia designar como razes pessoais, se no fosse precisamente essa artificial fronteira entre autor e escrita, entre vida e obra, entre existncia e absoluto, o que o ensaio, ou pelo menos o que esta concepo de ensaio, vem estilhaar por completo. Escreve o nosso autor: ns procuramo-nos apenas, e s devemos requerer dos deuses que nunca nos encontremos. Sob as pginas decididas, na sua indeciso incurvel, doIbidem, p. XII. MAURICE BLANCHOT, Morte Suspensa, Col. Caligrafias, Lisboa, Edies 70, 1988, traduo do francs de Jorge Camacho, [Edio original: MAURICE BLANCHOT, Larrt de Mort, Paris, ditions Gallimard, 1948].50 51

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meu primeiro livro, -me palpvel a sombra, ento ainda viva, de meus pais. Heterodoxia I foi publicado quatro meses aps a morte de meu pai. Minha me morrera um ano antes. Sem a sua morte nem estas pginas nem nenhumas outras, para descanso dos leitores e sobretudo meu, teriam existido. Este livro existe, nasceu sobre a sua morte, no de meros seres humanos, mas de gente que sentia, vivia, pensava, no interior de uma viso da vida que deixara de ser a minha, e lhes seria incompreensvel como inconcebvel lhes pareceria, e a justo ttulo, que algum encontre justificao para o acto, entre todos, extravagante, de se exibir, escrevendo. Assim, sem que ento tivesse plena conscincia disso, o que no sem vergonha chamaria a minha escrita aparece nascena marcado por um sentimento de culpabilidade e remorso. Cada livro reiterar o gesto da minha sobrevivncia imaginria sobre o que, presente, teria tido o sortilgio de me poupar iluso de ser um autor. Hoje sei que no posso desfazer este n inextricvel entre escrita e morte52. No provavelmente intil reafirmar que nos encontramos neste contexto demasiado longe, e de uma distncia sempre irremediavelmente intransponvel que aqui se trata, de um registo psicologista e/ou biografista, em que a vontade de escrever procederia de um acontecimento qualquer a que a escrita fosse a resposta ou uma espcie de consequncia. Ou seja, a deciso incuravelmente perpassada de indeciso de suspender a morte pela escrita no conseguiu apagar um intenso sentimento de culpabilidade e de remorso devido a motivos, por assim dizer, circunstanciais. A morte no iliba a extravagncia de nos excedermos, num gesto to exibicionista quanto imaginrio, ao escrev-la. A escrita no um simples ajuste de contas com a vida. E, portanto, com a morte. Tal iluso dependeria de uma outra, igualmente insustentvel. A de que a deciso da escrita seria, por assim dizer, exterior a uma e a outra, morte e vida, (suas) irms inseparveis. No pode espantar, por conseguinte, a declarao de Eduardo Loureno que tambm seria possvel colher para epgrafe deste captulo: Tenho conscincia de que tudo me pretexto para no falar de mim. Ou seja, para falar incessantemente de mim53.52 53

H87, pp. XIV-XV. TPFM, p. 6.

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O primeiro volume de Heterodoxia no consegue, assim, fugir, nem provvel que, explicitamente ou no, encerre em si tal desejo, a essa espcie de regra inelutvel da escrita. Assim, por entre as linhas dos estudos em que, de um modo menos disfarado, se descortina o que o seu autor chama sabor a banco de escola, comeam a travar-se os primeiros lances de um combate que, por se encontrar desde a primeira hora irremediavelmente perdido54, no pode nunca pretender iludir a sua dimenso de desastre. Atravessado pelo paradoxo irremedivel que constitui a mais incoercvel tentao humana e sobretudo pela tomada de conscincia de que, por ser incoercvel, nem por isso tal tentao fortuita ou acidental, o ensasmo de Eduardo Loureno (sobre)vive morte, suspendendo-a num diferimento sem fim. Esse inacabamento constitui a sua iniludvel infelicidade, mas, num mesmo gesto, a sua permanente condio de possibilidade. que a escrita, requerida pelo Tempo, pela nossa inexorvel condio temporal, no o dissolve, nem o poderia dissipar. Ferido de ingnita impotncia, o dis-curso traduz apenas o nosso-curso-no-mundo. O que ns somos, todavia, est fora da causa e do efeito, fora tambm do princpio de razo suficiente, imitao irrisria da lgica divina mas transcrio perfeita da nossa suficincia. Que ns bastamo-nos sem nos bastar. Sartre diz que estamos a mais. Parece antes que estejamos a menos. Mas mais ou menos significa que no estamos conformes. Somos, como Plato o entreviu, ao mesmo tempo mais novos e mais velhos do que somos. (...) Quem espera do Tempo que ele o vista como o vento cobre de folhas a avenida outonal ficar nu, pois o que o vento traz o vento o leva55. Como dar conta desta no contemporaneidade que, num s lance, nos constitui e nos desfaz? Esse o dilema da escrita, marcada no Tempo e por ele despojada, como folha esvoaante, to equvoca e paradoxal como o Instante. Sem nunca verdadeiramente ter principiado. Sem nunca poder ter a iluso de lhe conseguir traar quaisquer definitivos ou sequer duradoiros limites.

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2. Experincia Religiosa e Limites do Discurso Teolgico. A leitura de Sren Kierkegaard por um mstico sem f

Os portugueses sempre se sentiram tranquilos beira-mar de Deus. Nem xtases vertiginosos S. Joo da Cruz, nem desesperos Kierkegaard. EDUARDO LOURENO, Literatura e Interioridade A incrvel pretenso da comunidade crist de se imaginar tal por se apelidar de crist para Kierkegaard a mais insofismvel prova do seu anti-Cristianismo (...). A confrontao kierkegaardiana com o Cristianismo atravessada por uma ambiguidade to inquietante como a de Scrates em relao Verdade. EDUARDO LOURENO, Sren Kierkegaard, Espio de Deus (1813-1855). Repetio Se todos quantos, desde h sculos, se intitulam cristos o fossem, a sociedade ocidental no teria a forma que hoje a sua. EDUARDO LOURENO, A no esquerda e o socialismo

2.1. margem e no centro de tudo: memrias de uma Guarda profundamente clerical Recomecemos por algumas evocaes autobiogrficas: No meio sociolgico em que me inseria, tudo me empurrava para ser um representante tpico do conservadorismo nacional. Sou de uma famlia camponesa de uma regio extremamente catlica, no sentido sociolgico do termo. Uma famlia no s catlica, mas conscientemente catlica, apesar de se inserir num meio rural. Gente para quem a exemplaridade era representada pela Igreja e pelos seus ministros, para quem o padre era o representante simblico mais

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importante da sociedade em questo1. Contudo, nessa espcie de convivncia apaziguada com os outros e com o mundo, qualquer coisa como uma fissura vai lenta e quase imperceptivelmente emergindo. Da que seja difcil explicar por que razo a certa altura comeamos a duvidar disto ou daquilo, ou porque tomamos uma atitude crtica. Eu comecei relativamente cedo a interrogar-me sobre o discurso religioso portugus enquanto discurso mtico. Refiro-me a um discurso em que os fenmenos mais extraordinrios so apresentados com enorme naturalidade, como experincias realmente vividas. A certa altura, a contradio aparece de modo to evidente que qualquer pessoa pode reparar. A pessoa comea a no crer nesse tipo de discurso e inicia-se um fenmeno de perda de confiana nessa palavra maternal e ao mesmo tempo paternal que a palavra sociolgica de uma certa comunidade. Isso cria um estado de inquietude, uma espcie de mal-estar que em geral consciencializado ao aceder aos estudos superiores, Universidade onde se encontra gente de outros meios com outros discursos. So importantes os companheiros que se encontram, os livros que se comeam a ler, etc. evidente que tambm ter sido importante o facto de eu ter escolhido filosofia, um campo onde em princpio tudo discutvel. Mas na verdade tive colegas que fizeram os mesmos estudos de ordem filosfica e que foram, so e sero pilares da ideologia tradicionalista e conservadora, que no a minha2. Eis uma outra significativa recordao: Quando cheguei a Coimbra era um mocinho de 17 anos que tinha recebido uma educao catlica, num ambiente familiar catlico. Era sociologicamente catlico e conservei-me mais ou menos assim durante todo o tempo do meu curso de filosofia, mas com graves problemas em relao a toda a educao crist que tinha recebido. Em breve me instalei numa espcie de ambiguidade que, sob certos planos, nunca mais acabou. O lado sociolgico e praticante da minha existncia catlica desapareceu, mas ficou uma referncia permanente a certo tipo de valores que so de origem crist e que tm no Cristianismo, mesmo alterado, transfigurado, como o de hoje, o seu lugar prprio3.HC, p. 31. Ibidem. 3 Cultura e poltica na poca Marcelista, entrevista por Mrio Mesquita, Lisboa, Edies Cosmos, p. 35.1 2

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Ao convocar estas rememoraes biogrficas, procuramos recomear a aceder ao cho do que, em nosso entender, poder constituir o ncleo essencial do originrio gesto ensastico de Eduardo Loureno. Detenhamo-nos numa das frases citadas: Em breve me instalei numa espcie de ambiguidade que, sob certos planos, nunca mais acabou. De que ambiguidade se trata? Eis a nossa hiptese de leitura: no residir tal ambiguidade precisamente no facto de se situar num Cristianismo sem Cristianismo, se quisermos fazer aluso s palavras (que colhemos para epgrafe deste captulo) empregues por Eduardo Loureno ao tentar passar o testemunho da sofrida e insanvel, embora ela seja tudo menos infecunda, experincia religiosa de Sren Kierkegaard? Ora, precisamente de ambiguidade que Eduardo Loureno fala a respeito da relao que Kierkegaard mantm com o Cristianismo, estabelecendo uma analogia com o drama socrtico: a confrontao kierkegaardiana com o Cristianismo atravessada por uma ambiguidade to inquietante como a de Scrates em relao Verdade. No se trata realmente da confrontao de Kierkegaard com um contedo dogmtico constitudo por afirmaes tericas sobre certos pontos da doutrina crist (Trindade, Incarnao, Pecado Original). Kierkegaard no os discute pois a discusso terica no lhe interessa por manifesta desproporo com o objecto dela. A sua questo a da confrontao permanente da experincia que ele tem do Cristianismo com a experincia que desse mesmo Cristianismo lhe oferece a sociedade crist. Mas mais dolorosamente a confrontao do seu Cristianismo com a sua prpria experincia4. J o dissemos num momento anterior, o pensador dinamarqus e este um caso em que, provavelmente de um modo mais intenso do que qualquer outro, vida e obra (ou seja, teoria e prtica, ou ainda, existncia e pensamento) entretecem inseparveis laos que permanentemente se cruzam inscreve-se, decisivo e incontornvel, no horizonte de pensamento de Eduardo Loureno. Convm, por isso, no olvidar que a questo kierkegaardiana no se reduz a um problema terico. Pelo contrrio, sublinha Eduardo Loureno, esse problema agora um mortal exerccio, cujo

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H2, p. 82 (sublinhado nosso).

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JOO TIAGO PEDROSO DE LIMA

resultado no pode ser decidido do exterior pela interveno da multido, privada das suas razes de afirmar sem ressentir o aguilho da ignorncia, como no caso de Scrates, mas por Deus mesmo, de quem ele se constituiu espio junto dos homens, sem mandato algum e, mais tragicamente, ainda, sem f verdadeira. O objecto do combate justamente esse de distinguir o que se compreende e o que se no compreende sem ter por mdulo dessa compreenso outra coisa que a singular experincia de uma experincia de uma relao a Deus, sem cessar posta em questo, no teoricamente, pois no disso que se trata e bom compreend-lo de uma vez para sempre para no confundir o projecto de Kierkegaard com o de qualquer pensador preso da dvida, mas praticamente, pelas mil figuras que o confronto entre o homem e um Deus separado do homem por um abismo pode fazer tomar existncia humana5. E essa inscrio no deixa de ser, no o pode deixar de ser, tambm uma incisiva marca no corao da existncia do jovem estudante universitrio oriundo de um ambiente beiro profundamente conservador e catlico, a que porventura se deveria associar a experincia, eventualmente impulsionada pela famlia e sobretudo pelo Pai, vivida no Colgio Militar e que, de algum modo, talvez ajude a explicar outras das dimenses da sua obra. Repare-se, por isso, nestas palavras repescadas de uma outra entrevista: O senhor esteve alguns anos no Colgio Militar. Sim, sim. Quem entra no Colgio Militar passa a ser tratado por um nmero, de certa forma perde a sua identidade. A reduo ao nmero , sem qualquer dvida, um traumatismo... Qual era o seu? O 92. Nem estamos em condies de medir os riscos desse traumatismo. Alm disso estava num regime de internato, o que piorava um pouco as coisas. Ia a casa aos fins-de-semana? No porque a minha casa ficava muito longe. Ia nas frias grandes e nos nata