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Excertos luhmman

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Seguindo as proposies de Niklas Luhmann (2007), acreditamos que o principal papel da religio seja o de reduzir a complexidade (desparadoxalizao do mundo), assegurando o expediente de sentido frente a uma realidade que se apresenta cada vez mais fragmentada. Assim, sua principal funo hermenutica, na medida em que produz generalizaes simblicas que tm o poder de conectar simbolicamente aquilo que no se conecta na realidade (Cf. Lumann, 2007; Laermans e Verschraegen, 2001; Pace, 2006 e 2009). Em outras palavras, a religio confere um sentido ltimo existncia.

Nesse cenrio, em uma sociedade contempornea em que a certeza da grand narrative foi substituda pela precariedade do curto prazo, aos ouvidos dos apressados indivduos, a vara do inferno e as benesses do paraso fazem tanto eco quanto a remisso dos pecados do capital pela revoluo socialista.As preocupaes se concentram nos riscos dirios; nas pandemias que se alastram na esteira dos fluxos humanos; nos empregos de uma montadora no Brasil que podem ser ceifados em uma reunio da diretoria de multinacional em Wolfsburg ou Shanghai; ou nas crises financeiras, que, sem aviso prvio e sazonalmente, levam pases misria e empresas bancarrota. Ocupados demais com o aqui e agora, sobra muito pouco tempo para conjecturar sobre as narrativas ntico-existenciais (Bauman, 1997). Antes, necessitam de instituies que lhes ensinem a ir em frente, que lhes dem um mapa dirio da salvao, frente a desafios que se renovam a cada dia. Neste cenrio, as antigas e estticas narrativas da modernidade rgida no so capazes de traduzir simbolicamente o dinamismo da modernidade flexvel. As instituies religiosas tradicionais, com sua eterna mensagem sobre a insuficincia humana, precisam se adaptar a um mundo onde se espera que o indivduo atinja o mximo (Bauman, 1997). Por outro lado, proliferam novas agncias que, beneficiadas pela desregulamentao do que Foucault denominou regimes de verdade (1996), podem flexibilizar seu discurso teolgico em busca de adaptao a demandas cada vez mais dinmicas de um pblico que no est disposto a esperar o fim de seus dias para receber as bnos prometidas. A exemplo disso, em um culto da Igreja Universal do Reino de Deus na cidade do Porto-PT, no ms de dezembro de 2008, ouo o pastor dissertar longamente sobre as estratgias para enfrentar a crise financeira que se abatera sobre o globo dois meses antes.Como mostrei anteriormente (Gracino Jnior, 2008b), nessa sociedade que no mostra sinais claros e direes seguras, os antigos mapas oferecidos tanto pelo catolicismo oficial quanto pelo antigo pentecostalismo no se mostram eficazes. Alguns desses homens e mulheres que encararam o risco de frente no querem e no podem voltar para detrs dos muros sombrios das comunidades. A proposta que lhes oferecida pelas antigas igrejas evanglicas pentecostais recuar, constituir uma comunidade fraterna de irmos, negar o fictcio paraso capitalista, no comer da rvore mortal do consumismo, pois s assim atingiriam a plenitude e o conforto espiritual.Por outro lado, as que chamei religies de curto prazo vo justamente ao encontro dos aflitos homens e mulheres flexibilizados, ao postular que ser cristo constitui o meio primordial de obter prosperidade financeira, sade e triunfo nos empreendimentos terrenos. Longe de promover uma narrativa coerente, que teria incio com a converso e terminaria com a salvao espiritual, as religies de curto prazo estimulam a busca diria pela salvao. Este tipo de salvao a conta-gotas desloca seu foco para a resoluo dos problemas da vida cotidiana, deixando em segundo plano as respostas de longo prazo. Desta forma, esses alquimistas concentram-se na resoluo dos problemas localizados nas identidades individuais e na auto-segurana (Bauman 1998), reservando pouco espao para as inquietaes de ordem ontolgica, que sempre estiveram no centro da cosmoviso religiosa.Neste momento, talvez seja oportuno fazer um adendo: ao postularmos que as religies respondem a demandas da sociedade acoplando (Luhmann, 2009) e resolvendo problemas gerados em outro subsistema que no o religioso, no estamos apenas propondo um enunciado normativo sobre o carter da religio, mas tambm fazendo uma anlise a partir da evoluo do aparato teolgico. Quando uma religio tenta traduzir para o discurso teolgico problemas gerados em outro subsistema, como o econmico, por exemplo o que Luhmann classifica como desempenho (2009) , tais problemas no se tornam, de forma alguma, religiosos. Por conseguinte, tais solues tendero a assumir as caractersticas do subsistema de que so provenientes; solues econmicas para problemas econmicos e polticas para problemas polticos (Cf. Beyer, 1999). Os pastores da IURD, por exemplo, sabem que no por meio da orao, ou pelo menos s da orao, que se resolver um problema gerado fora do mbito religioso, como podemos ver na fala de Edir Macedo:Em toda a Bblia, vemos a necessidade da sociedade do homem na realizao dos Seus milagres. Trata-se de uma condio determinada pelo Senhor desde a criao. O povo de Deus tem de se conscientizar disso, a fim de no ficar toa, esperando as promessas divinas carem do Cu (Macedo, 2006)[footnoteRef:1] [1: Os exemplos do Calvrio, Bispo Edir Macedo. (www.arcauniversal.com.br/ fogueirasanta/2006-2/vhtml/img/menu1.jpg; site acessado em 12/12/2006).]

Para entendermos esse cenrio, acreditamos ser necessria uma breve incurso ao que autores como Luhmann e Giddens[footnoteRef:2] entendem como confiana. Comecemos por lembrar que para Luhmann (1996) a confiana um tipo de reduo da complexidade do sistema social, ou seja, na impossibilidade de montarmos planos de ao que levem em conta as infinitas contingncias futuras, baseamo-nos em constructos de uma realidade pr-ordenada e pr-selecionada por indivduos e instituies no caso de Luhmann, por subsistemas. Para o autor de Sistemas Sociais, a sociedade contempornea est dividida em subsistemas especializados econmico, cultural, poltico, religioso, etc. que se relacionam com a sociedade como um todo por meio de uma funo e com outros subsistemas pelo que denominou desempenho. Assim, a funo primordial de um sistema seria traduzir em um discurso para o seu interior os aspectos bsicos da realidade exterior (ambiente), atravs de um cdigo central binrio que estabelece termos positivos e negativos, a exemplo de dentro e fora da lei no subsistema jurdico; ou falso e verdadeiro nas cincias. [2: Estamos cientes de todas as incongruncias entre as obras desses autores, principalmente na concepo que cada uma tem de ao, indivduo e, claro, sistema. No entanto, obliteramos conscientemente tais diferenas em prol das proximidades dos modelos explicativos que ambos apresentam. ]

Mas o que geraria a confiana nesses sistemas? Para Giddens (1991:93-96), a confiana passa por uma inculcao pedaggica da validade de tais sistemas, sistemas peritos, que feita desde os primeiros anos escolares atravs do que ele chama de currculo oculto. Com tal termo, Giddens quer dizer, sem questionar o carter real ou construdo dos sistemas em questo, que o processo de educao formal , antes de tudo, um processo de legitimao do conhecimento cientfico-racional.Se formos mais longe, podemos imaginar, como Foucault (1996: 13), que a verdade est circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e a apiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem, ou seja, a construo da confiana um ato discricionrio de um discurso que se impe sobre uma realidade infinita ou complexa, diria Luhmann (2007). No sem razo que Habermas compara, em tom de crtica, Luhmann e Foucault: Luhmann transfere para os sistemas que processam o sentido e o operam (...) as mesmas propriedades que Foucault, com auxilio de um conceito histrico-transcendental de poder, atribura s formaes discursivas (Habermas, 2000: 492). Afora o problema da arbitrariedade dos discursos gerados pelo sistema, sua legitimidade reside na capacidade de traduo eficaz das questes sociais para o discurso interno, gerando a confiana no sistema: um litgio entre duas pessoas traduzido para e resolvido no sistema jurdico; um problema de escassez, traduzido em planilhas econmicas, etc. No entanto, a incapacidade de solucionar tais problemas deixa margem para que os mesmos possam ser alvo de outros subsistemas, o que Luhmann classifica como desempenho, como j foi visto. Alm disso, no difcil imaginar que a incapacidade de um sistema resolver problemas possa colocar em cheque a confiana que se lhe atribui, reduzindo seu poder de atrao e causando, por conseguinte, sua debilidade e desaparecimento.Neste ponto, chegamos a um n terico que parece ser necessrio desatar antes de prosseguirmos: o fato de utilizarmos os conceitos da sociologia luhmanniana no quer dizer que coadunamos com o autor em todos os pontos de seu arcabouo terico. Em especial, distanciamo-nos, principalmente da segunda fase do pensamento de Luhmann e sua virada autopoitica, ou seja, que estabelece auto-referencialidade e o fechamento operacional dos subsistemas. Ao dar esse passo, Luhmann no concebe mais os indivduos como sujeitos arbitrrios, mas como sujeitos cognoscentes voltados para o conhecimento de si mesmos. Para o autor, em um mundo complexo, funcionalmente diferenciado, o mundo da vida perdeu todo o significado, ou, como observa Habermas (2001):As operaes para construir um mundo de um sujeito transcendental que perdeu seu status de independncia em relao ao mundo e foi rebaixado ao nvel do sujeito emprico so reconceitualizadas enquanto operaes de um sistema que opera significativamente de maneira auto-referencial e que capaz de representar internamente seu mundo circundante. A produtividade criadora de fices (...) para qual a diferena entre verdade e iluso perdeu todo o sentido, reconceitualizada como sistema que domina a complexidade de seu mundo circundante, utilizando o asseguramento de sentido que intensifica sua prpria complexidade (...) [Este] triturador incansvel de reconceitualizao elimina, como resduo indigesto, todo mundo da vida subcomplexo (Habermas, 2001: 491-492)Desta forma, ao recorrermos a Luhmann, o fazemos pelo poder explicativo dos conceitos de sua teoria, ou, em seus prprios termos, pela capacidade que tem de reduzir a complexidade. Adotar conceitos derivados de um modelo formal como o de Luhmann no quer dizer que no recorremos a anlises genealgicas e histricas quando estas se fazem necessrias. Dito isto, estamos prontos para avanar em direo compreenso da manuteno do vigor do catolicismo em um ambiente de demandas plurais de toda sorte. Neste sentido, o que explicaria a manuteno dos ndices de confiana na igreja dada a escassez generalizada de confiana? A resposta parece estar na capacidade das religies neste caso, do catolicismo interagirem com uma realidade social em contnua transformao, em especial nas reas em que o fio da memria (Hervieu-Lerger, 2005) no foi rompido, ou pode ser restaurado atravs do acoplamento de aspectos da vida social pelo religioso ou vice-versa. No caso do catolicismo em Portugal, as principais reas de interseco so: (a) interveno em questes ticas ou sociais; (b) interveno, correo ou crtica de decises polticas ou econmicas; (c) manuteno das crenas e costumes tradicionais; (d) estabilizao das identidades nacionais e locais.Alm dos nmeros, alguns fatos com os quais nos deparamos durante o trabalho de campo em Portugal novembro de 2008 a maio de 2009 parecem ser prdigos a nossa argumentao. Durante este perodo, Portugal sentia os ventos da crise econmica mundial que teve incio em setembro de 2008. Enquanto o Governo portugus parecia tatear diante da crise, no conseguindo dar respostas rpidas em meio a um turbilho de acontecimentos, a Igreja Catlica posicionou-se frente aos acontecimentos, traduzindo os problemas e angstias da populao para dentro de seu discurso. Como podemos observar no pronunciamento do Bispo de Leiria-Ftima, por ocasio do dia 13 de maio: Na mensagem aos peregrinos, no trmino das celebraes da Peregrinao Aniversria de Maio, ao final da manh de 13 de Maio, o Bispo de Leiria-Ftima rogou a Nossa Senhora de Ftima para que interceda pela paz na Terra Santa, pela paz para a humanidade e para que Portugal viva com confiana este perodo difcil de crise.Nesta hora de crise mundial, que a todos afecta, os cristos devem viver com grande esprito de solidariedade e alto sentido de responsabilidade, afirmou D. Antnio Marto que pediu solidariedade para com todos os que sofrem as consequncias mais agravadas desta crise. (Jornal a Voz Portucalense, 14 de maio de 2009) Logicamente, o bispo tinha clareza de que os problemas de ordem econmico-social no poderiam ser resolvidos por preces e oraes ou, nas palavras de Beyer (1999), que os problemas enfrentados pelo desempenho da religio no so, de forma nenhuma, religiosos, e devem, por isso, ser resolvidos em seus sistemas de origem. Assim, o lder religioso no exorta a populao a buscar oraes e sacrifcio ainda que muitas vezes esses possam ser complementarmente exigidos ; pelo contrrio, apela identidade crist portuguesa, ao esprito e a valores ligados ao catolicismo, como solidariedade e responsabilidade.Ao contrrio do governo de maioria socialista que teve seu nvel de confiana sistematicamente abalado pela crise at perder o governo em 2011, a Igreja Catlica, por outro lado, parece ter aumentado seus nveis de confiana junto populao. Embora carecendo de outras fontes, o crescimento do fluxo de visitantes portugueses que peregrinaram ao Santurio de Ftima no ano de 2009,[footnoteRef:3] bem como o aumento no nmero de confisses, pode apontar nesta direo: [3: Santurio de Ftima, Estatsticas 2005.2006.2007.2008.2009. [http://www.santuario-fatima.pt/portal/index.php] Janeiro de 2010.]

O Reitor do Santurio de Ftima atribuiu recentemente este aumento de confisses ao facto de o Santurio disponibilizar um grande nmero de sacerdotes para ministrar o Sacramento, facilidade de acesso cidade e crise actual vivida pela sociedade. Para Monsenhor Luciano Guerra, a crise socio-econmica, com consequncias graves e situaes de stress no trabalho e nas famlias, dos principais motivos que levam as pessoas ao confessionrio. (Jornal O Pblico, Maro de 2009)Outro aspecto nodal para se compreender a manuteno dos nveis de confiana na igreja catlica a possibilidade de encontrar uma fonte normativa num cenrio em constante mutao. Como ficar mais claro no captulo quatro, a regio Norte de Portugal guarda maiores reservas quanto admisso do pas na Unio Europia. Vem com particular desconfiana a adoo de alguns valores europeus, principalmente por acreditarem que tal processo degrada a cultura nacional, em especial a cultura nortenha, que julgam ser o cerne da portugalidade. Esse descontentamento com a europeizao portuguesa parece crescer na mesma proporo em que as expectativas geradas quanto entrada do pas no clube europeu se frustram.