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CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE PÓS GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA “Na responsa” Craft e flexibilização do trabalho na participação de adolescentes periféricos no comércio de drogas ilícitas.

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CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE PÓS GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

“Na responsa” Craft e flexibilização do trabalho na participação de

adolescentes periféricos no comércio de drogas ilícitas.

Autor: Evandro Cruz Silva

Professora: Drª Rose Scopinho

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Introdução: O comércio de drogas ilícitas como parte do “comércio popular”

Esta comunicação tem como objetivo uma tentativa de relação entre ofício do comércio de

drogas ilícitas em periferias paulistas e a discussão sobre a flexibilização do trabalho ocorrida

nos últimos 35 anos. A forma aqui utilizada para alcançar tal relação será através da

apresentação e análise de um excerto de diário de campo concernente a parte da história de

um dos interlocutores que participam de minha pesquisa de mestrado sobre moral e circulação

de dinheiro entre adolescentes que derivam1 pelo “mundo do crime”2.

Nesta proposta de comunicação o comércio de drogas ilícitas será tratado como parte do

complexo compósito de sociabilidades caracterizados como “comércio popular” entendo o

popular não como uma atribuição direta as classes menos abastadas e sim ao caráter menos

burocratizado deste tipo de comércio frente a outros. Utilizando aqui das reflexões de

Fernando Rabossi (2004) e Vera Telles (ANO) o comércio popular não será tratado como uma

versão simplificada dos mercados formais, atentando assim para os arranjos próprios

intrínsecos as suas atividades.

Outro argumento que embasa a proposta da inclusão do comércio de drogas ilícitas como

parte do denominado comércio popular é que em ambos os casos as fronteiras porosas entre

legal e ilegal dificultam definições nítidas de diferenciação. Se na legislação brasileira o

comércio de drogas ilícitas é estritamente ilegal, não se pode dizer o mesmo sobre seu

consumo3 criando uma zona cinzenta sobre quais seriam os fatores separariam os

1 Utilizo aqui o conceito de David Matza (2014) de “deriva” para descrever a participação de uma certa juventude em circuitos “desviantes”, Matza descreve esse processo como uma potencialidade contingencial que resultará necessariamente em uma “carreira desviante” nem produz no sujeito do desvio uma alteridade moral em relação as populações “normais”

2 Utilizo o conceito de “mundo do crime” na forma descrita por Feltran (2011) como um conjunto de práticas, valores e ideias específicas de uma sociabilidade entre praticantes de atos incriminados

3 Nota sobre Lei de Drogas

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comerciantes dos usuários, produzindo assim uma gestão diferencial dos ilegalismos inerentes

a tais sociabilidades4

Nesta perspectiva, o comércio de drogas ilícitas não só pode ser visto como parte constitutiva

do chamado “comércio popular” mas também consequentemente como parte da “globalização

por baixo” (PORTES, 1997; TARRIUS, 2002) devido sua capacidade de produzir circulação

nacional e transnacional de sujeitos e mercadorias em busca nas mais variadas formas

negociação no varejo5 e no atacado6. É a partir desta perspectiva que a história de vida que

será descrita a seguir pode ser interpretada como parte do que Caroline Knowles (2014)

caracteriza como “microcena do capitalismo” uma vez que sua atividade de comércio reúne

uma grande cadeia logística de produção e venda de drogas.

É a partir desta perspectiva do comércio de drogas ilícitas como parte do comércio popular

que esta comunicação se propõe a investigar as relações possíveis entre esta prática e o

processo de flexibilização do trabalho discutida nas ciências sociais nas últimas décadas. Por

flexibilização de trabalho entende-se fundamentalmente por três aspectos amplamente

discutidos no debate sociológico o aumento progressivo da exposição do trabalhador a riscos

ocupacionais, a presença cada vez mais hegemônica do discurso empreendedor/individualista

entre todas as classes e a retirada constante de direitos trabalhistas dos contratos

profissionais.(BRAVERMAN, BOLTANSKI & CHIAPPELO 2009, HARVEY 1993,

DEJOURS 1999)

Para acessar empiricamente a discussão proposta o texto seguirá com a descrição parcial da

4 Para exemplos de gestões urbanas dos ilegalismos presentes nos comércios populares ver Hirata, Vera Tellles.

5 Sobre a circulação nacional e transnacional de sujeitos e mercadorias produzidas pelo comércio varejista de drogas ilícitas ver: Padovanni (2015)

6 Sobre a circulação transnacional de sujeitos e mercadorias ver produzidas pelo comércio atacadista de drogas ilícitas ver: Hirata (2015) Oliveira & Costa (2012)

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história de vida de Eduardo, adolescente de 17 anos que conheci há quase três anos na ocasião

de uma visita a um núcleo de medidas socioeducativas e que posteriormente se tornou

interlocutor de minha pesquisa de mestrado. Ao descrever as atividades de Eduardo tentarei

acessar o que o sociólogo Richard Sennet (2009) denomina de “craft” caracterizado como o

trabalho cotidiano pela perspectiva do trabalhador e não planilhas gerenciais ou conceitos

organizacionais, acessar o “craft” do trabalhador, segundo Sennet, possibilita ao analista se

aproximar dos efeitos subjetivos das relações de trabalho as quais o sujeito está inscrito, esta

proposta reforça o argumento de Jodelet (2009) sobre a volta ao sujeito como centro de

produção das ciências sociais.

Os excerto a seguir é produto da compilação de dados etnográficos produzidos entre

Novembro de 2013 e Janeiro de 2015, todos os nomes e localidades relatadas são fictícias, tal

decisão tem a finalidade de garantir o anonimato dos sujeitos envolvidos, garantia esta

protegida por lei no Estatuto da Criança e do Adolescente7

1. Os primeiros trabalhos de Eduardo no comércio popular de drogas ilícitas.

Eduardo tinha 16 anos quando o conheci, no fim de 2013, era a minha primeira vez no núcleo

de medidas socioeducativas São João, localizado em uma cidade média do interior de São

Paulo chamada aqui de Pinheiros8 nossa comunicação neste primeiro encontro foi tímida, ele

estava lá para encontrar sua orientadora de medida e eu para visitar o núcleo a partir de um

projeto da faculdade, nos cumprimentamos, ele me perguntou o que eu fazia ali, eu disse que

estava começando um trabalho e que ele me veria mais vezes lá no São João.

7 Nota do estatuto.8 Todos os nomes de localidades e pessoas presentes neste texto fictícios.

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O jovem de pele negra queimada pelo Sol media pouco mais de 1,60 e pesava no máximo 70

kilos, depois de muito tempo no núcleo São João pude me aproximar mais e assim começar

um diálogo mais extenso, eu contei minha história, coisas da minha vida, ele fazia varias

perguntas, por muito tempo nossas conversas se resumiram a falas biográficas extensas de

minha parte, Eduardo tem um jeito interessante de ouvir, tomba a cabeça para o lado, como se

tivesse prestando atenção em outro assunto, mas tempo depois sempre recordava de alguma

coisa específica que eu havia falado nos dias anteriores.

A primeira vez que Eduardo contou sobre sua vida foi durante uma oficina em que eu ajudara

a organizar, a dinâmica era simples: um dado de seis faces era arremessado e o número

resultante indicaria uma imagem com a temática do consumo/dinheiro e o participante que

arremessasse o dado deveria comentar sobre tal imagem. Na vez de Eduardo, a imagem

sorteada era a de uma algema dourada com diversos pingentes de metais precioso, o garoto

olhou por alguns segundos e comentou “porra, é isso ai memo”, continuei o assunto “Isso o

que Edu?” ele parou alguns segundos, e comentou: “o dinheiro prende a gente né professor, é

por isso que é difícil sair da vida loka, do crime, é porque o dinheiro prende a gente, você vê

aquele bolo de nota no bolso, chega estufar o bolso da calça, é difícil de não querer sair e

gastar tudo e depois sente falta né.”

Carlos, outro adolescente que participava da oficina complementou falando que o que ele

conseguia de dinheiro trabalhando como servente de pedreiro durante um mês, no tráfico era

seu ganho semanal e que agora que ele estava tentando sair do crime a vida financeira da sua

casa havia piorado.

Desde então eu e Eduardo começamos a conversar mais e pude marcar algumas conversas

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para perguntar de forma mais organizadas características importantes sobre sua vida. Eduardo

é natural da capital paulista, mais especificamente de São Jorge, um bairro pobre no extremo

leste paulistano, segundo filho de mãe e pai nordestinos, Eduardo costuma dizer que ele

atrapalha muito sua família, segundo o garoto ele e seus “problemas” seriam o motivo da

mudança da Zona Leste de SP para o bairro de Pitangas, projeto habitacional do CDHU na

cidade de Pinheiros.

Perguntei em uma das entrevistas quais eram os tais problemas que ele estava causando a sua

família, a resposta foi simples: “o crime”. Quando perguntei pra ele como foi o contato, se ele

se lembra da primeira vez que fez alguma coisa que considerasse “do crime” foi então a

primeira vez que Eduardo me deu uma resposta longa:

“Ah, então professor, coisa errada a gente sempre faz né, sabe como é, mas assim, no crime

do tráfico mesmo eu lembro bem, tinha 12 anos, tava numa festinha que uma tia minha tinha

me levado ai colou uma molecada mais velha e falou pra eu ficar andando de bicicleta numa

esquina, dando um peão pra ver se vinha polícia, e se viesse era pra eu vir andando em direção

a festa de novo, só isso, ai eu ganhei 30 conto nesse dia e tal, não fiz nada, nem toquei no

bagulho, mas fiz a do olheiro”

A participação de Eduardo com olheiro de um ponto de venda de drogas demonstra dois

aspectos importantes deste tipo de mercado: o primeiro é a primazia da rede de contatos como

forma de ingresso e movimentação dentro do universo do trabalho9 o segundo é o papel do

aprendizado como parte da inserção, Edu uma vez comentou que “todo olheiro uma hora vai

ser vapor né, porque o moleque fica ali, sem nada, sem perigo, só observando e aprendendo o

9 A capacidade de formar redes de contatos também é apresentado como fator fundamental em estudos sobre outros comércios populares ver: Rangel (2014), Hirata (2010), Pinheiro Machado (2004).

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procedimento” apesar do tom generalizante da frase, ela nos deixa antever como o processo

de aprendizado no comércio de drogas pode acontecer da maneira mais clássica possível:

através da observação do ofício de um trabalhador mais experiente10

2. Turno, responsabilidade e fixação: o aspecto taylorista do comércio de drogas.

Eduardo conta que trabalhou como olheiro por alguns meses, sempre que ia em alguma festa

com seus amigos era esse seu papel, como o trabalho dependia do acontecimento de festas e

da disponibilidade de seus amigos envolvidos com o comércio de drogas para acontecer a

renda retirada deste ofício não era muito grande, porém, conseguir entre 100 e 150 reais por

mês para um garoto de 12 anos já era o suficiente para satisfazer alguns desejos “gastava tudo

em roupa e passando umas horas na Lan House né professor, tinha uma perto da escola onde

eu estudava, ai eu pulava o muro pra ir lá”.

As advertências na escola e o fato de Eduardo conseguir comprar coisas sem pedir dinheiro

começou a chamar a atenção de seus pais, o garoto conta que no começo sua mãe o colocava

de castigo, proibindo-o de sair a noite, mas como ele mesmo gostava de repetir “nenhum

castigo dura pra sempre”. Logo Eduardo começou a trabalhar como olheiro fixo de uma

biqueira localizada a duas esquinas da escola onde estudava, das 14h as 00h, 4 dias por

semana, a atribuição era a mesma das festas: andar de bicicleta entre duas esquinas, avistar

policiais e guardas que se aproximassem, Edu usava agora um rádio para se comunicar com os

vendedores e fazia pequenas entregas para clientes mais recorrentes, tudo isso a 30 reais por

dia, uma média de 480 reais por mês.

10 Sennet argumenta em “The Craftsman” como a transmissão do ensinamento do oficio é parte fundamental da produção de solidariedade entre trabalhadores (2009, p10-32)

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Em sua clássica discussão sobre os efeitos da teoria gerência científica de Winslow Taylor no

mundo do trabalho, Harry Braverman (ANO) discute como o taylorismo se expandiu durante

todo o século XX, deixando de ser uma teoria organizacional para se tornar uma filosofia que

permeia as mais variadas formas de trabalho fazendo com que o Capital não exproprie do

trabalhador o produto do seu trabalho, como também o seu próprio modo de trabalhar

(BRAVERMAN 1981 p54)

Se no caso de Eduardo e de boa parte do comércio de drogas ilícitas a gerência de atividades

não segue critérios organizacionais clássicos com planilhas, controle intenso das atividades e

incentivo a produtividade máxima, vemos a “presença” do taylorismo na organização por

turnos e especificação funcional de cada um dos participantes do comércio. Essa evidência

corrobora a tese de Braverman ao mostrar que a capilaridade da invenção de Taylor afeta

diversas sociabilidades como “forma básica” de trabalho, mostrando assim como a

expropriação do modo de trabalho através de técnicas gerenciais.

3. Risco, responsabilidade e empreendedorismo de si.

Durante uma partida de futebol na rua de sua casa, Eduardo escorrega em uma garrafa pet

amassada, cai e fratura o antebraço esquerdo, as marcas da cirurgia agora são cobertas com

uma tatuagem que apresenta o nome da mãe em caligrafia manuscrita: “Elisângela”. A

contusão não tirou a disposição de Eduardo para trabalhar e ele foi posto para ajudar Carlos,

um amigo mais velho e que trabalhava como “vapor” a mais tempo, durante uma das

entrevistas realizadas, pedi que Eduardo me explicasse como era o dia a dia de trabalhar

ajudando um “vapor”.

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“Ah, é assim né professor, a gente sempre fica de dois numas esquinas e deixa o pacote em

algum canto, um terreno sei lá, embaixo de um carro velho, tipo, eu falei que eu ajudava mas

era tipo ser vapor mesmo, os dois faz a mesma coisa só depende de quem fala primeiro com

quem vai comprar né,ai fica um recebendo o dinheiro, conversando com quem vem comprar e

tal, ai o outro fica ali do lado, é esse que não tá conversando que vai pegar, entendeu? Ele vai

lá pega o que o cara comprou 'Ah, quero uma paranga11 de 10' ai esse parcerinho vai lá e pega

uma paranga de dez e dá pro cara, sem tocar no dinheiro nessa hora né, só depois, depois nóis

faz a conta: cada cem conto [vendido] é quarenta pro vapor e sessenta pro gerente”.

Mais tarde Eduardo me explicou que o trabalho de vapor tem como necessidade fundamental

a atenção aguçada ao “movimento na quebrada” primeiro devido o constante perigo de ser

pego pela polícia, e em segundo lugar, é prerrogativa de um bom vapor ter boa memória e

saber avaliar bem os compradores que tentam angariar algum tipo de compra fiada, perguntei

quais eram as consequências para o vapor e para o consumidor de uma compra dívida não

paga:

“Ah, é foda né professor, porque assim, complica pros dois lados né? Porque você vai falar

pro seu gerente:'porra o maninho lá não pagou' ai das duas uma, ou o cara acha que você é um

ramelão que não consegue fazer o cara pagar ou o você tá enrolando porque usou o bagulho

que era pra vender e tá inventando que alguém não pagou, ai isso tem que resolver né, pra ser

vapor tem que ser esperto, tem que ter mente e se virar sozinho, se não dá errado por isso a

gente já vai em quem tá devendo com outras ideias, tenta resolver no papo, mas se não der a

gente tem que se garantir também, dar uma pressão, num pode ir lá e matar o mano porque

isso é coisa de coisa, mas a gente pode dar um psicológico, dar umas madeiradas, as vezes o

11 Paranga é a palavra utilizada no contexto paulista para representar uma quantidade pequena de maconha, ela geralmente é acompanhada pelo seu preço em reais, ou seja, uma “paranga de 10” é equivalente uma pequena quantidade de maconha no valor de 10 reais.

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cara é até expulso da quebrada se tiver devendo pra muita gente.”

Aos 15 anos Eduardo se tornou gerente de uma biqueira composta por 6 vapores sob sua

coordenação, a rápida subida do garoto, segundo ele próprio, se deveu por sua capacidade de

articular bem as vendas e conseguir coordenar bem outros processos de comércio, como a

transação da carga no atacado, a separação desta em pequenas porções e a manutenção de uma

rede eficiente de olheiros. No posto de gerente Eduardo se tornou muito visado também pelos

policiais, apesar de já ter tido alguns problemas menores com a polícia, o garoto me explica

que foi a partir daquele momento que um policial militar específico, o soldado José, começou

a persegui-lo sistematicamente.

Logo após estes eventos Eduardo também experienciou sua primeira prisão, ele conta:

“Ah, foi assim, tava voltando pra casa né, era um domingo de tarde, fui visitar um parceiro na

casa dele mas nem tava vendendo nada, tava tirando um lazer, ai tava chegando em casa colou

duas viatura, e me rendeu, ai eu tava com 10 grama [de maconha] no bolso e uns trocados e

me deram flagrante por tráfico, foi foda né professor, ai minha família saiu na rua, minha mãe

chorando, porra você sente o coração bater mais rápido, já gela e pensa 'porra to preso, e se eu

pegar fundação12, e se os caras quiser me matar' ai já bate a vergonha, o medo, tudo junto,

foda, ai chegamo lá no Denarc né, e nem pode levar menor pro Dernarc você tá ligado né

professor, mas levaram pra lá, ai deu meia hora chegou o porra do soldado José lá, aquele

coisa13, e já veio querendo me intimar pra saber quem era meu contato, da onde vinha a droga

e se eu tinha dinheiro guardado né, ai eu falei pra ele perguntar pro delegado, que todo mundo

sabe que delegado é tudo envolvido, ele me deu um soco no baço e me disse que se me visse

12 Fundação Casa13 “Coisa”é uma gíria presente em diversas periferias paulistas para denominar sujeitos detestáveis.

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vendendo droga de novo ele ia me matar, ele disse que era pra eu sumir da quebrada”

A pena de Eduardo saiu ainda naquela semana: 1 ano de medida em semiaberto na liberdade

servente de pedreiro com um dos seus tios, foi na volta de um dos seus dias de trabalho que o

garoto trombou mais uma vez com o já citado “soldado José”, o PM passava com a viatura em

uma a duas quadras do local onde Eduardo trabalhava, ele conta que foi tudo muito rápido:

arma apontada, entrada no camburão, ameaças em um matagal, o garoto descrevia o gosto

metálico da arma em sua boca, minha pele gelava.

O PM disse que em uma terceira ocasião não haveria perdão e libertou o garoto após uma

série de socos, a segunda ameaça do soldado José foi estopim para o processo de migração da

capital paulista para o interior do estado, seu Edinaldo e dona Elisangela ficaram sabendo do

ocorrido com Eduardo e providenciaram a mudança para a cidade de Pinheiros, onde dois

irmãos do marido moravam. Um grupo de advogados ativistas de direitos humanos conseguiu

que o garoto tivesse sua pena transferida para o núcleo São João, em outubro de 2012 a

família de Eduardo se mudou definitivamente para o interior.

Em “A Banalização da Injustiça Social” Cristophe Dejours (1999) descreve como

enraizamento do discurso neoliberal que valoriza a superação individual tornou-se a base

discursiva para a banalização da injustiça e a retirada da gramática de direitos quando se

discute os problemas dos trabalhadores. No caso de Eduardo a banalização das injustiças

ocorridas em sua vida se acentua uma vez que, como participante do comércio de drogas

ilícitas é interpelado discursivamente como “bandido” o que retira seus direitos como

trabalhador como também seus direitos civis são extirpados, abrindo assim a possibilidade da

exposição do sujeito a todo tipo de agressão física e moral sem que se crie grande repercussão

Unknown Author, 30/01/16,
Arrumar aqui
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sobre estes fatos.

Por outro lado, o discurso neoliberal de empreendedorismo individual se apresenta quando

Eduardo descreve as capacidades que um vapor ou gerente precisa ter “atenção” “ter mente”

“saber desenrolar” “ser esperto” todas qualidades individuais que reafirmam o ideal de

superação pelos próprios esforços. Desta forma, a própria capacidade empreendedora do

sujeito serve como justificação para o engajamento bem-sucedido do sujeito neste tipo de

mercado, fazendo com que a oportunidade de faturar dentro do comércio varejista de drogas

ilícitas se coloque em uma relação delicada entre risco e empreendedorismo individual.

Na trajetória de Eduardo fica evidente como o engajamento no comércio de drogas e suas

mudanças de postos está atrelado a uma modulação dos riscos ocupacionais devido a dois

fatores essenciais: sua exposição como “alguém do crime” e a frequência com a qual o sujeito

fica responsável por uma carga de drogas. Um “olheiro” de biqueira ganha um rendimento

fixo baixo mas seu risco de exposição é relativamente baixo, já vapores e gerentes ganham um

rendimento variado dependendo da quantidade de vendas o que os coloca em exposição maior

de riscos em relação a polícia, além de serem responsáveis por arcar com os riscos das

resoluções de dívidas não pagas.

Por fim, outro ponto importante a se ressaltar sobre a relação entre o comércio de drogas

ilícitas e a flexibilização do trabalho é o caráter fundamental da formação de redes para o

sucesso da empreitada. Durante a trajetória de Eduardo vemos como a criação de contatos e a

posteriormente a capacidade individual de gerenciar uma rede diversificada de olheiros,

fornecedores e vapores é tarefa constante do dia a dia do comércio de drogas ilícitas.

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Estas redes são constantemente construídas e reconstruídas devido a alta exposição ao risco de

seus componentes (principalmente vapores, gerentes e fornecedores), no caso retratado, a

migração de Eduardo e sua família para o interior de SP retira um dos componentes de uma

rede estabelecida, abrindo assim a necessidade de se reorganizar a composição de postos para

atender a demanda de consumo varejista. A história retratada por Eduardo nas últimas páginas

é parte do cotidiano de diversos contextos urbanos atuais, a presença de jovens entre 13 e 21

anos no comércio varejista de drogas ilícitas compõe o horizonte atual de formas de “ganhar a

vida” e se relaciona de diferentes maneiras com diversos tipos de mercados formais e

informais e também com discursos e dinâmicas de diferentes regimes de trabalho e

organização.

Conclusão: Relação entre risco e empreendedorismo no comércio popular de drogas

ilícitas.

Seguindo o argumento de Jodelet sobre “volta ao sujeito” como princípio de investigação no

debate em ciências sociais, podemos produzir através dos relatos e observações de Eduardo

um panorama parcial da experiência de um integrante jovem do comércio popular varejista de

drogas ilícitas em periferias urbanas. O fato de Eduardo ter nascido na segunda metade da

década de noventa o coloca em um contexto geracional em que sua entrada no mercado de

trabalho (formal ou informal) é condicionada pelos processos de flexibilização do trabalho

ocorridos nas últimas décadas do século XX.

Investigar a história de vida de Eduardo é então investigar parte da experiência de uma

geração, para os interesses dessa comunicação mais especificamente as experiências

relacionadas as formas de trabalhos formais e informais aos quais sujeitos como ele se

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inserem em diferentes períodos de tempo. Como podemos ver no caso de Eduardo a relação

entre oportunidade de lucro e risco é fundamental para entender os efeitos subjetivos da

participação de sujeitos no comércio popular de drogas ilícitas..

Uma vez que o comércio de drogas dificilmente se torna um “emprego fixo”, uma vez que a

exposição contínua a riscos acaba por interromper suas atividades por diversas maneiras, a

atividade do comércio sempre é acompanhada por outros trabalhos temporários – no caso de

Eduardo como servente de pedreiro – fazendo com que o sujeito derive entre atividades

informais e ilegais sem grande possibilidade porém de almejar a entrada no mercado de

trabalho formal.

Desta forma, recai sobre o indivíduo a tarefa de participar de redes de contato que propiciem

oportunidades lucrativas de comércio de drogas e após sua inserção na rede controlar da

melhor maneira possível a relação entre ser um empreendedor bem-sucedido e perceber a

efetividade dos riscos a sua volta. O discurso individualista/empreendedor e a necessidade

constante de controle do risco são os efeitos subjetivos mais evidentes em trajetórias como a

de Eduardo e compõe paralelos com os efeitos da flexibilização do trabalho nas profissões

formais.

Por outro lado, a ilegalidade da prática e o estigma do criminoso periférico como “inimigo da

sociedade” torna diferente a forma como o empreendedorismo e o risco se agem no caso do

comércio de drogas ilícitas. Se no caso do trabalho formal risco e empreendedorismo se

tornam uma chave para o sucesso profissional, nos casos como o de Eduardo essa balança é

decisiva não só para a garantia de rendimentos como também para a preservação de sua

própria vida.

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Analisar processos subjetivos através de histórias de vida como a de Eduardo nos faz lançar

luz sobre uma outra faceta dos processos de flexibilização do trabalho e sua ligação com

diversos mercados se produzem nos poros entre a legalidade e a ilegalidade. Trabalhar a

perspectiva de Eduardo como um trabalhador inserido em um mercado de comércio popular

abre a possibilidade de desnaturalizar as atividades criminais como paralelas, estranhas ou

ofensivas aos mercados formais e a partir desta possibilidade entender a partir das

experiências dos sujeitos suas relações e distensões.

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