Eugênio Lara - Da Terminologia à Atualização

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  • 8/14/2019 Eugnio Lara - Da Terminologia Atualizao

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    (Jornal Abertura - Maio de 2003)

    Da Terminologia Atualizao

    Eugnio Lara*

    Quando Allan Kardec estruturou o Espiritismo, dando-lhe uma feio de cincia filosfica, foi

    obrigado a criar uma srie de palavras para que os novos conceitos fossem assimilados de formaadequada, sem que houvesse confuso com as teorias do espiritualismo em geral. A prpria palavraEspiritismo foi criada por ele a fim de diferenci-lo do Spiritualism, um movimento religiososurgido nos Estados Unidos e disseminado em alguns pases da Europa, de caractersticas religiosas,onde a mediunidade, ou melhor, o mediunismo desempenhava importante papel.

    Toda cincia que se preze possui a sua terminologia. Alis, trata-se de um dos vrios critriosepistemolgicos para que determinada forma de conhecimento possa ser considerada uma cincia.Se por conta deste e outros fatores, o Espiritismo ou no cincia, no cabe aqui discutir. Oobjetivo deste artigo bem outro.

    As cincias mdicas possuem um corpo de termos, de palavras com acepo bem especfica, a fimde que os mdicos no se confundam nos diagnsticos, nas anlises anatmicas, enfim, no exerccioda medicina. H um consenso terminolgico, aprovado em congressos mundiais, com o objetivo deordenar o uso de palavras especficas nos mais diversos idiomas. Os mdicos agem como umaverdadeira corporao e no permitem que qualquer gaiato ou novidadeiro venha a utilizar termosque no se enquadrem dentro dos critrios aprovados nos congressos mdicos.

    Isso demonstra no somente esprito de corpo, mas sobretudo seriedade, critrio cientfico,metodolgico, seno vira baguna. O que deveria ser uma cincia acaba virando um mercado persa,a "casa de Me Joana", uma feira livre, onde qualquer um d o seu palpite e tenta enfiar pela goelado fregus idias e conceitos nem sempre condizentes com o consenso universal, ao menos aquele

    aprovado em congressos srios e altamente qualificados.O mesmo critrio usado pela Medicina e outras cincias deveria ser utilizado no Espiritismo. Noque o fundador no tenha previsto a realizao de congressos e projetado uma forma de gestoadministrativa para a organizao e divulgao do Espiritismo. Isso ele o fez no Projeto 1868,publicado naRevista Esprita e em Obras Pstumas. No entanto, sempre foi ignorado.

    Os primeiros congressos internacionais realizados no final do sculo retrasado e incio do sculopassado chegaram perto do que Allan Kardec imaginou. Todavia, em funo da m orientao domovimento esprita, logo aps o desencarne da esposa de Kardec, Amlie Boudet, os espritastiveram de disputar o poder com segmentos do espiritualismo estranhos ao Espiritismo, como os

    adeptos da Teosofia, do Esoterismo, da Rosacruz. No fosse a atuao destacada de Lon Denis, jsenil, em um desses congressos, o Espiritismo se dispersaria em meio s correntes espiritualistasque disputavam com ele uma hegemonia absurda, j que cada uma dessas doutrinas nada em raiaprpria e atua em segmentos diferenciados do conhecimento espiritualista.

    Aps a II Guerra Mundial o movimento esprita praticamente desapareceu da Europa e tornou-seuma potncia em pases da Amrica Latina, notadamente no Brasil. Por aqui o processo dedesenvolvimento do pensamento esprita desandou, por fatores histricos, antropolgicos esociolgicos, mas sobretudo, pela ignorncia em relao aos fundamentos do Espiritismo. S parase ter uma idia disso, somente a partir dos anos 80 que a Revista Esprita se popularizou com olanamento de uma edio popular, sem ser encadernada. E mesmo assim, no todo mundo que

    tem recursos para adquirir doze volumes de uma s vez. Cabe lembrar que a Federao EspritaBrasileira nunca lanou essa obra fundamental do fundador do Espiritismo por consider-ladispensvel e sem importncia, sonegando dos espritas brasileiros essa informao bsica para oentendimento doutrinrio.

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    E a foram surgindo as novidades. Enumeraremos trs ocorrncias que foram incorporadas ao dia-a-dia do movimento esprita sem que houvesse um questionamento mais aprofundado, sem quehouvesse um consenso resultante da realizao de congressos, seminrios, colquios ou qualqueroutra forma de reunio que envolvesse os espritas brasileiros e estrangeiros numa assemblia, emum processo de discusso democrtica. Nada disso ocorreu e o prejuzo para o progresso dopensamento esprita foi enorme, incalculvel, pernicioso

    Cincia-Filosofia-Religio...

    A Federao Esprita Brasileira veio com essa novidade, Emmanuel em O Consolador ajudou apopulariz-la e intelectuais espritas influentes como Carlos Imbassahy e J. Herculano Piresadotaram a idia, j corrente entre os espritas. Durante muito tempo no se discutia isso. Algunspensadores espritas como Afonso Angeli Torteroli, Eusnio Lavigne, o Movimento UniversitrioEsprita nos anos 60, dentre outros, assumiram uma concepo mais kardecista, bem distante dofalso trplice aspecto, que chegou inclusive a ser nome de uma chapa da situao, a fim de se oporaos chamados no-religiosos, nas eleies da Unio das Sociedades Espritas do Estado de SoPaulo (USE), em 1986.

    A verdade lmpida e cristalina que Allan Kardec jamais afirmou que o Espiritismo cincia,

    filosofia e religio. Esse tal do trplice aspecto uma invencionice, um Cavalo de Tria, que trazembutida a idia de culto e o vrus nocivo do religiosismo. O uso da palavra religio para definir oEspiritismo foi veementemente rechaada por Kardec em passagens cruciais de sua obra (em O que o Espiritismo e naRevista Esprita).

    A partir dos anos 80, com o trabalho de esclarecimento sistemtico do escritor Krishnamurti deCarvalho Dias (1930-2001), a questo veio tona. O movimento de espiritizao, sob a liderana deJaci Regis, encampou a idia, dando origem chamada questo religiosa, que persiste at hoje. Foia que muitos integrantes do movimento esprita perceberam que Kardec nunca havia chamado oEspiritismo de religio. E o tal de trplice aspecto foi o que se poderia chamar de uma camisa defora intelectual.

    "Doutrina filosfica e moral", apenas isso, foi a definio de Kardec no Discurso de Abertura, porocasio da comemorao do Dia de Finados ( Revista Esprita - outubro 1868). mais do quesuficiente, no causa dvidas, no compromete e nem oferece perigo de qualquer tipo dedesentendimento doutrinrio

    O Passe

    Muitos crculos de magnetismo, aps o advento do Espiritismo, transformaram-se em sociedadesespritas. Allan Kardec era um estudioso do magnetismo, adepto do vitalismo, desde a juventude.Todavia, apesar disso, no h registros histricos de que alguma instituio esprita do sculo

    retrasado tenha incorporado a prtica do chamado passe. No h, na obra de Kardec, nenhumameno a esse respeito.

    A cultura do passe se incorporou de tal maneira ao Espiritismo que um centro esprita que noaplica passe visto com preconceito pelos dirigentes espritas. H quem diga que um centro queno tem passe no merece ser chamado de esprita, ou de que se esteja praticando um Espiritismosem espritos. Dois absurdos, fruto da ignorncia e do preconceito.

    Uma das causas dessa prtica, que se tornou corriqueira no movimento esprita, est na homeopatia.Os primeiros mdicos homeopatas eram, em sua grande maioria, espritas. O uso do magnetismocomo recurso teraputico servia como um complemento no tratamento aos pacientes.

    Outro aspecto a ser considerado a influncia da Umbanda, um movimento espiritualista fruto dosincretismo entre o Kardecismo e o Candombl. Os primeiros terreiros de Umbanda surgiram nofinal da dcada de 20 e incio dos anos 30 do sculo passado, no Rio de Janeiro, e foram fundadospor espritas kardecistas. A Umbanda filha bastarda do Espiritismo, que no Brasil produziu muitosoutros filhos, como a LBV, o Santo Daime, o Racionalismo Cristo etc.

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    O passe desempenha, no terreiro, uma importncia fundamental, seja ele aplicado por espritos decaboclos (ndios) ou de pretos-velhos, atravs do "cavalo" (o mdium). muito comum mdiunsatuarem, tanto no centro "de mesa branca" como em tendas umbandistas. H uma mtua influncia.At hoje comum vermos nos centros kardecistas mal orientados mdiuns que se utilizam datcnica umbandista: gestualidade meio circense, chiados, toque no paciente, preces e rezas ditasoralmente durante a aplicao do passe etc.. Da mesma forma, h terreiros de Umbanda queestudam obras espritas e incorporam, do Kardecismo, determinados termos e conceitos, comomdium, mediunidade, esprito obsessor. A expresso guia, por exemplo, equivalente a esprito

    protetor (ou anjo de guarda) do kardecismo, usada tanto no terreiro de Umbanda como no centroesprita.

    Outro fator a influncia do cristianismo. A imposio de mos, atribuda a Jesus de Nazar,instituda no cristianismo, notadamente no movimento pentecostal e no catlico-carismtico, tem nopasse esprita uma de suas maiores referncias. O Jor, o Do-in, Reike e tantas outras denominaesvm se somar transmisso ou transfuso de energias nos centros espritas, o chamado passe.

    O Plano Espiritual

    O fundador do Espiritismo denominou de mundo esprita ou dos espritos a dimenso onde os seres

    humanos desprovidos de seu envoltrio fsico vivem, se relacionam consigo, entre si e conosco,atravs da mediunidade.

    A expresso mundo esprita mostrou-se, com o tempo, inadequada, apesar de ser, em nvelterminolgico, a mais clara e precisa. Quem a ouve imagina se tratar de um mundo formado porespritas, e no por espritos. Da que mundo dos espritos deveria ser o termo mais adequado, osubstituto natural, opcional. No entanto, sem o menor critrio, os espritas passaram a se utilizar deoutras expresses, influenciados que foram pelos espritos, notadamente os que passaram a secomunicar pelos mdiuns Chico Xavier, Waldo Vieira e Yvonne Pereira.

    A mais usual e que se tornou padro em quase todos os segmentos do movimento esprita plano

    espiritual. Muito utilizado pelos espritos Andr Luiz e Emmanuel, esse termo ganhou status, veiopara ficar, sem o menor questionamento.

    Aparenta ser prtico, preciso, no entanto, se formos analisar com mais cautela veremos que ele, aoinvs de expressar a realidade, confunde, causa desentendimento do que seja a erraticidadeenquanto habitat dos espritos.

    Plano tem a ver com a tridimensionalidade, altura, largura, profundidade. Em Matemtica, naGeometria Descritiva, uma expresso muito usual. Plano x, plano y, dentro do sistema decoordenadas cartesianas, dos dois eixos horizontal e vertical (x e y, respectivamente), abscissas eordenadas. Aplica-se a um espao de trs dimenses, limitado, a uma determinada superfcie.

    O mundo dos Espritos segundo o relato dos desencarnados a Kardec e as informaes trazidaspelo esprito Andr Luiz atravs do mdium Chico Xavier no um plano, pois no possui trsdimenses. A palavraplano inadequada para definir esse hiper-espao, que se estrutura a partir deuma materialidade tnue, energtica, flexvel e sujeita s injunes mentais; um mundoideoplstico, quatridimensional. Ta, mundo, eis a palavra mais adequada ainda para classificar oque os espritas chamam erroneamente deplano espiritual.

    A aplicao do adjetivo espiritual, aqui est um segundo problema, no to pior quanto o primeiro,o uso de plano, mas que se mostra inadequado, inconveniente. Essa palavra foi pouco usada porKardec, a no ser em definies bem especficas, como no sinnimo de princpio inteligente

    (princpio espiritual) ou na classificao de fluidos, na interessante e profunda teorizao contidaem A Gnese.

    O fundador da Doutrina fez restries ao uso indiscriminado da expresso espiritual, no somentepara qualificar os fluidos, mas tambm o mundo dos espritos, seno teria cunhado a expressomundo espiritual de modo definitivo, e isso ele no fez, mesmo usando-a nesse trecho a seguir:

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    "No rigorosamente exata a qualificao de fluidos espirituais, pois que, em definitiva, eles sosempre matria mais ou menos quintessenciada. De realmente espiritual, s a alma ou princpiointeligente. D-se-lhes essa denominao por comparao apenas e, sobretudo, pela afinidade queeles guardam com os Espritos. Pode dizer-se que so a matria do mundo espiritual, razo porque so chamados fluidos espirituais." (A Gnese - cap. XIV - Os Fluidos - FEB).

    Nesse mesmo captulo, Kardec admite que a expresso fenmeno espiritual inadequada e queseria prefervel fenmeno psquico: " A denominao de fenmeno psquico exprime com mais

    exatido o pensamento, do que a de fenmeno espiritual, dado que esses fenmenos repousamsobre as propriedades e os atributos da alma, ou, melhor, dos fluidos perispirticos, inseparveisda alma. Esta qualificao os liga mais intimamente ordem dos fatos naturais regidos por leis;

    pode-se, pois, admiti-los como efeitos psquicos, sem os admitir a ttulo de milagres." (A Gnese -idem).

    Note-se que esse texto foi escrito antes da Psicanlise, bem anterior Parapsicologia, cincias queainda no existiam. O que qualifica ainda mais a preciso dos termos e conceitos inovadores usadospelo fundador do Espiritismo

    Idia nova, palavra nova!

    Bem antes da Semitica e do desenvolvimento da Teoria da Comunicao, Kardec j era semiticoe comuniclogo. Para idias novas, palavras novas, eis um princpio bsico hoje entre osestudiosos da Comunicao, seja no campo da Semitica ou mesmo da Semiologia. Logo naintroduo de O Livro dos Espritos, Kardec foi bem claro: "Os vocbulos espiritual, espiritualista,espiritualismo tm acepo bem definida. Dar-lhes outra, para aplic-los doutrina dos Espritos,

    fora multiplicar as causas j numerosas de anfibologia." (O Livro dos Espritos - Introduo aoEstudo da Doutrina Esprita - FEB, Grifo nosso)

    Enfim, em diversas passagens da Kardequiana, os espritos nos deram um puxo de orelha quantos palavras:

    "Tudo depende das acepes das palavras. Por que no tendes uma palavra para cada coisa?"(q.139)

    "As palavras pouco nos importam. Compete-vos a vs formular a vossa linguagem de maneira avos entenderdes. As vossas controvrsias provm, quase sempre, de no vos entenderdes acerca dostermos que empregais, por ser incompleta a vossa linguagem para exprimir o que no vos fere ossentidos." (q. 28)

    " uma questo de palavras, com que nada temos. Comeai por vos entenderdes mutuamente."(q. 138 - Sobre a questo da alma como principio da vida material).

    "Mas isto constitui uma questo de palavras. Chamai as coisas como quiserdes, contanto quevos entendais." (q. 153 - Sobre a perfeio e a vida eterna).

    "Uma coisa pode ser verdadeira ou falsa, conforme o sentido que empresteis s palavras. Asmaiores verdades esto sujeitas a parecer absurdos, uma vez que se atenda apenas forma, ou quese considere como realidade a alegoria. Compreendei bem isto e no o esqueais nunca, pois quese presta a uma aplicao geral." (q. 480 - Sobre a questo da expulso dos demnios).

    "Pura questo de palavras". (q. 668 - Sobre as manifestaes espritas e a pluralidade dosdeuses).

    "Tomai cuidado! Muito vos tendes enganado a respeito dessas palavras, como acerca de outras".(q. 764 sobre a Pena de Talio).

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    "Guerras de palavras! Guerras de palavras! Ainda no basta o sangue que tendes feito correr!Ser ainda preciso que se reacendam as fogueiras? (q. 1009 - mensagem de Plato sobre a questodas penas eternas).

    Foi justamente por no existir uma palavra para cada coisa que Kardec rechaou o uso da palavrareligio para conceituar a Doutrina Esprita. No foi por outro motivo que evitou o usoindiscriminado de espiritual e chamou a nova filosofia espiritualista que fundou de Espiritismo, e osseus adeptos de espritas ou espiritistas. Este ltimo termo, muito usado nos pases de lngua

    castelhana. E o passe, por ser prtico e sucinto, encaixou bem na mente dos espritas brasileiros,como num passe de mgica, sem autorizao, permisso, sem pedir licena.

    Um processo de atualizao do Espiritismo comea pela sua terminologia. Questes conceituais,epistemolgicas, axiolgicas, cosmolgicas etc. so mais complexas, exigem um preparo que nemsempre o movimento esprita possui, mas tem de ser feito. Agora, quanto aos termos prprios, trata-se de um estudo necessrio, um levantamento a ser feito por instituies espritas de mentalidademais aberta, que dever envolver estudiosos do Espiritismo, profissionais da linguagem, da rea deComunicao, Filosofia, Pedagogia, enfim, espritas envolvidos seriamente com a insero dafilosofia esprita na contemporaneidade.

    * Eugnio Lara, natural de So Vicente-SP (BRASIL), arquiteto e jornalista. Membro-fundador do Centro de Pesquisa eDocumentao Esprita (CPDoc) e do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS); expositor do Centro Esprita Allan Kardec(Santos-SP); articulista do jornal de cultura esprita Abertura e um dos coordenadores do site PENSE - Pensamento Social Esprita(www.viasantos.com/pense).