Ethel Pinheiro - Cultura, subjetividade e experiência: dinâmicas contemporâneas na arquitetura

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    SIMPSIO TEMTICO

    Cultura, Subjetividade e Experincia: dinmicascontemporneas na Arquitetura

    TTULO DO TRABALHO

    Noes de tempo e espao na cidade contempornea

    Pinheiro, Ethel. Arq., Prof. Adjunta FAU-UFRJ

    Resumo

    Nada neste mundo ocorre que no seja emoldurado por algum tipo de tempo. Falarsobre tempo , para ns seres humanos o mesmo que falar de nossas

    ansiedades, nossas expectativas, nossas vontades. A relao de oposio e decorrespondncia que se estabelece no cruzamento de diversos tipos de tempoapontados por alguns tericos atuais (Batten, 1995; Benkirane, 2005) aponta para umentrelaamento com as teorias em arquitetura que pregam uma diversidade infinita detempos coadunando com as transformaes na cidade contempornea. Esta mescla,essencial interpretao da bricolage urbana (Rowe, 1984) e do emaranhado delinguagens e signos na cidade de extrema importncia para a formao de umarcabouo consistente em nossos estudos sobre o papel da memria, uma vez que amistura de tempos essenciais para uma nova compreenso dos espaos acontecede maneira desordenada e promove a construo de lugares que ganham e perdematributos ao sabor da velocidade com que se modificam. Para Bacon (1976, p. 21),neste processo, o corpo humano passa a atuar como base anloga da arquitetura e

    revela nas novas formas de articulao do espao arquitetnico o poder daexperincia temporal, produzida por arquivos de memria. Pretendemos com estaabordagem sinalizar o papel da memria como agente fundamental compreenso ereestruturao dos espaos contemporneos na cidade, assim como relativizar sobreo redimensionamento desses espaos diante de uma noo sensvel de cidade ouseja, aquela que se manifesta por elementos no estveis do indivduo e que produzmltiplos instantes de evocao memorial. Podemos dizer que o tempo da cidade ditado por esses instantes que amadurecem na mente dos indivduos e ganham saborcom os elementos que incorporam espaos absorvidos, mentalizados erepresentados. O tempo, neste ponto, um referencial inerte para sua base espacial,mas quando relativizado sobre os caracteres sensveis apreendidos pela durao traz tona o que assunto latente nas sociedades atuais: a memria.

    Palavras-chave: cidade, memria, arquitetura.

    Preliminares

    O tempo, desde a sua remota inveno como artefato manipulado que

    promove uma contagem progressiva ou cclica dos acontecimentos e pode ser visto

    como uma flecha (um seguimento linear que conduz) ou um ciclo (um fenmeno

    circular que volta ao seu incio) dentro de cada extrato espacial. Circular ou linear, o

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    tempo sempre anda seguido de suas molduras, que so os conjuntos de valores

    especficos para cada cultura. O fator diferenciador nas relaes interculturais quecada cultura tem suas prprias molduras onde os padres geralmente so nicos e

    regulares, dificilmente transmutados. Culturas que se expressam cada vez mais

    uniformemente por um processo veloz de ps-globalizao, que constri uma

    urbanidade em todo lugar (Mongin, 2008).

    A urbanizao est ligada ao princpio da civilizao.A urbe(sua raiz) era

    originalmente o termo romano para a caracterizao de uma comuna italiana (a

    unidade bsica de organizao territorial na Itlia e posteriormente na Frana), similar

    ao municpio brasileiro.1

    Do sculo XVIII a meados do sculo XIX, as concepes iluministas sobre

    cidade e intervenopassaram a preconizar a nova cincia. De Cerd (1859) ao incio

    do sculo XX, todas as formulaes de cidades industriais e metrpoles nascentes

    corroboraram para a constituio do chamado urbanismo moderno, ainda bastante

    calcado em verses de cunho formalista e quantitativo para as cidades.

    Recentemente, em tese defendida pelo Prourb, Araujo (2007) comprometeu-

    se com uma nova verso para o Urbanismo apregoado por todas as cidades mundiais;

    votando por um retorno ao antigo tema cosmopolita ou cidado do mundo, a autora

    transmuta o urbanismo em orbanismo, chamando-o de cincia do sculo XXI. Ora,

    uma vez orbesignificar globo, mundo, a ideia central a de que no havendo mais,

    para ns, referncias a fronteiras ou limitaes (fruto do desenvolvimento das TIs)

    estaramos tratando como cidade no s o mundo, mas tambm o universo

    conhecido e a conhecer(Op. cit., p.85).

    A nossa percepo uma representao mental do que est fora de si. o

    que se denomina de representacionismo. Em consequncia disso, ao relatar a algum

    o modo como percebemos o mundo, transmitimos o resultado de nossas percepes

    objetivas e estruturamos uma ordem na desordem. Por isso, diante do cenrio de

    complexidade com que encaramos nossa vida, nossa posio na sociedade, e com

    que crescem os edifcios, servios e bens de consumo no mundo, preciso ficar

    1 A comuna era o ente local fundamental, autnomo e independente segundo princpios consolidados na IdadeMdia e parcialmente retomados pela Revoluo Francesa que estruturava as cidades; etimologicamente significavaalforria, libertao. E, originalmente, era empregada a grandes unidades de produo rural, abrangendo a agricultura epequenas indstrias, de forma coletiva e centralizada. Por isto mesmo, as comunas organizavam a vida social e polticados seus habitantes. Mas as prprias comunas tinham o direito de se tornar cidade, bastava que se adequassem condio conferida por um decreto especfico do chefe da Repblica, a partir de uma iniciativa autnoma ou de uma

    proposta de Governo ou do commune interessado.

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    atento a esta subjetivao que tanto traz diferena para a interpretao das estruturas

    arquitetnicas.Apesar de a experincia quotidiana nos mostrar a cada passo que a

    percepo ocorre de maneiras assindticas, a teoria representacionista hoje sob

    crescente questionamento continua a ser amplamente adotada. Em seu nome, as

    sociedades em que vivemos nos pedem que sejamos diretos e objetivos. No entanto,

    recentes descobertas da cincia cognitiva e da neurocincia j revelaram que o mundo

    externo percebido de acordo com a estrutura cognitiva do observador e que

    percebemos o mundo segundo o modo como essa estrutura est preparada para

    perceb-lo, e no exatamente como ele , ou seja, no objetivamente.Aprender a repensar o tempo e o espao, dentro de uma complexidade,

    significa renunciar a prefigurar inteiramente a imagem do futuro da cidade para

    retornar a compreend-lo como uma emergncia, um cenrio aberto, um jogo em

    grande parte imprevisvel, cujo resultado no pode manifestar-se por imposio de

    uma soluo ou projeto imposto do exterior.

    Para (des)estruturar os sistemas imbricados da complexidade, que tanto

    amparam as modificaes presentes, preciso se perguntar, dentro desta

    complexidade, de que cidade falamos. Ou seja: conceitu-la.

    Neste trabalho, o primeiro passo conceitual para se analisar a cidade

    contempornea e o papel da arquitetura em sua fabricao atual est no papel daquilo

    que a transforma em objeto difuso e mltiplo: o tempo.

    1. Tempo e espao contemporneos

    O meu tempo no o seu tempo.O meu tempo s meu.

    O seu tempo seu e de qualquer pessoa,O seu tempo o tempo que voa.O meu tempo s vai aonde eu vou.O seu tempo est fora, regendo.O meu dentro, sem lua e sem sol.O seu tempo comanda os eventos.O seu tempo o tempo, o meu sou.O seu tempo s um para todos,O meu tempo mais um entre muitos.O seu tempo se mede em minutos,O meu muda e se perde entre os outros.O meu tempo faz parte de mim.

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    O meu tempo acabar comigono meu fim.

    (Arnaldo Antunes. O meu tempo. In: Dois ou mais Corpos no mesmo Espao.So Paulo: Perspectiva, 1998).

    O tempo psicolgico, relacionado no poema de Antunes (Op. cit.), primeira

    pessoa, o tempo interior que interrompe a existncia do universo, a cada

    constatao de uma ausncia. O meu tempo acabar comigo / no meu fim. Trata-se

    de um tempo que participa, no indivduo, da construo de sua identidade; tempo

    pertinente complexidade do sujeito e sua trajetria pessoal. Dito isto, fica claro

    para ns que nenhum tempo imaterial.

    A ideia de que o tempo possa ser pensado separadamente da matria, como

    uma dimenso externa do devir dos fenmenos, uma das questes apresentadas

    por Descartes em seu Discurso do Mtodo.2 A questo de distncias planas e

    homogneas sem histria, na qual o passado e o futuro podem ser comprimidos em

    um eterno presente, e em que apenas sobressai o futuro, configura a idia de

    refundao e reordenamento, assim como de manipulao e controle, que percorre

    intimamente a inteira concepo de cidade contempornea e alinhava os

    acontecimentos consequentes.

    Com Foucault (1986, p. 43) podemos traar um paralelo justamente no ponto

    em que associa-se contemplao inspida, distante e atemporal de Descartes (Op.

    cit.) atuao dos planejadores e urbanistas que tomam a idia de cidade atual

    somente pela visualizao de um todo:

    Como Descartes fechado em seu gabinete, contentando-se em ver sem serperturbado pelas paixes e pelos corpos, mas com um olhar de guia voltado a

    dominar o mundo, o planejador observa a cidade do alto, tomandoexclusivamente suas formas. E, do mesmo modo que aquele que, do avio,observa a espuma do mar e a enxerga como imvel, sem compreender que, de

    perto, ela pulso e movimento, ele no se d conta de que, por detrs dosilncio das formas, explode o fervilhar da vida.

    Olhar do alto, como que ordenando e dominando as esferas de planejamento

    uma das maiores incongruncias do urbanismo atual, que em muitas esferas ainda

    procede desta forma. A sinalizao mais bvia nesta advertncia de Foucault (Id.,

    2 DESCARTES, R. Discurso do Mtodo. Baixado eletronicamente pela instituio CultVox em.

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    Ibidem) justamente no momento em que revela que por trs de qualquer silncio, ou

    contemplao atpica, est o cerne da vida na sociedade. Ainda assim, silncio econtemplao necessitam de ritmos doados pelo tempo.

    No livro The Dance of Life, Hall (1989) discute o tempo como objeto da

    cultura como [o tempo] conscientemente ou inconscientemente formulado, usado e

    patenteado em diferentes culturas (1989, p.3). Da mesma forma que Hall, cunhamos

    este captulo com uma sondagem do tempo (e consequentemente do espao dotado

    por este), de acordo com as diferentes formas engendradas pela associao do

    movimento humano em seu espao fsico e social.

    Leach (Apud Hall, 1989, p. 5) comenta que ns criamos o tempo ao criarmosintervalos na vida. At fazermos isso, no h tempo a ser medido. Aparentemente

    no nos damos conta disto, mas, ao apreciarmos o desenvolvimento de um beb no

    seu primeiro ano de vida, perceberemos uma srie de condicionantes espao-

    temporais simplesmente desnecessrias para a compreenso de mundo nesta fase de

    vida pela qual todos passamos. E com justo conhecimento de causa, ao conviver com

    um beb, tambm o nosso tempo pessoal se dissolve, se anula, se entrega a uma

    ausncia de medidas e valores, da mesma forma que impossvel para uma pequena

    criana responder a um adulto se meia hora mais ou menos do que dez minutos ou

    exigir que o ponteiro de um relgio conduza as necessidades do beb, como conduz

    os nossos compromissos.

    Ora, se o tempo uma metfora para toda cultura, para toda cidade e toda

    gente, podemos dizer que a questo do(s) tempo(s) e de sua relao com o espao

    parece ter sido respondida apenas no ltimo sculo concludo (XX), quando o cientista

    Albert Eisntein colocou que o tempo simplesmente o que o relgio l. Le Goff

    (2003, p. 12) revela o mesmo, colocando a idia de calendrio (ou de contagem dos

    dias e anos) como um trabalho cultural de interpretao do tempo, mais do que

    ambiental:

    O calendrio revela o esforo realizado pelas sociedades humanas para

    domesticar o tempo natural, utilizar o movimento natural da lua ou do sol, do ciclo das

    estaes, da alternncia do dia e da noite. Porm suas articulaes mais eficazes a

    hora e a semana esto ligadas cultura e no natureza.

    O relgio pode ser a rotao da terra, um objeto em movimento, a pulsao

    sangunea, um morro de areia que se desfaz com o vento, os objetos fsicos de um

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    trajeto. De fato, o tempo ao final das contas parece irreal e apenas uma inveno

    humana que auxilia os depsitos materiais, estimula as conquistas do porvir e exprimeum sistema de valores. Sem ele, colocaramos nossas questes vitais de lado e

    abraaramos o instante como nosso nico objeto de desejo, sem nos questionarmos

    do que vimos, sentimos ou produzimos. Mas, como falamos anteriormente, por sua

    natureza carnalmente associada existncia humana, nada mais palpvel nas

    sociedades e nas cidades atuais que o tempo.

    Atravs desta capacidade imagtica de reproduzir cenrios, sons, cheiros e

    reinterpretar o vivido, muitas pessoas conseguem expandir o tempo, um efeito que

    traz o passado para o tempo futuro no apenas instantneo. Nestas consideraes,o presente no se materializa, ele simplesmente no existe como entidade de valor.

    (Hall, 1989, p. 139).

    Tambm por isso, diante de afirmativas retiradas de diversas concluses de

    literatura e da experincia pessoal, podemos dizer que o tempo da cidade ditado por

    esses instantes outros que amadurecem na mente dos indivduos e ganham sabor

    com os elementos sensveis que incorporam espaos absorvidos, mentalizados e

    representados. O tempo, em si, um referencial inerte para sua base espacial, mas

    quando relativizado sobre os caracteres sensveis apreendidos pela durao traz

    tona o que assunto latente nas sociedades atuais: a memria.

    2. Uma resposta ao Tempo> Memria

    As memrias, pois, no nos oferecem um esquema de experincias comuns,mas sim um campo de possibilidades compartilhadas, reais ou imaginrias. Adificuldade para organizar estas possibilidades em esquemas compreensveis erigorosos indica que, a todo o momento, na mente das pessoas se apresentam

    diferentes destinos possveis. Qualquer sujeito percebe estas possibilidades, sua maneira, e se orienta de modo diferente em relao a elas. Mas esta miradede diferenas individuais nada mais faz do que lembrar-nos que a sociedade no uma rede geometricamente uniforme como nos representada nasnecessrias abstraes das cincias sociais, parecendo-se mais com ummosaico, um patchwork, em que cada fragmento (cada pessoa) diferente dosoutros, mesmo tendo muitas coisas em comum com eles, buscando tanto a

    prpria semelhana como a prpria diferena. uma representao do real maisdifcil de gerir, porm parece-me ainda muito mais coerente, no s com oreconhecimento da subjetividade, mas tambm com a realidade objetiva dosfatos. (Burke, 1992, p. 72).

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    A relao da memria com os lugares de longa data e a histria dessa

    relao no deixa de ser a histria das formas de conhecimento do mundo, dasmaneiras como as verdades sobre o mundo foram elaboradas pelas diferentes

    racionalidades culturais da humanidade.

    O impulso globalizador que vem delineando os rumos da histria recente e

    redimensionando a compresso das noes sensveis da cidade, antes

    aparentemente estveis de tempo e espao, tem transmutado as memrias urbanas

    em objeto de novas disputas sociais (Machado, 2006). Isto porque as TIs esto

    tornando a velocidade da comunicao entre partes distintas do mundo cada vez

    mais prxima e resoluta. Para ancorar as vivncias e remontar um quadro que fuja docontexto cosmopolita homogneo, que caracteriza o nosso presente, buscamos a

    estabilidade de memrias e smbolos para recompor e explicar a cidade que

    habitamos, como se mirssemos num espelho invisvel.

    Para Machado (2006), devemos interagir com as cidades e suas memrias

    particulares como um estrangeiro que consegue estabelecer a distncia necessria

    para desconfiar das coisas demasiadamente familiares e, desta forma, problematizar o

    presente para compreender melhor os (des)caminhos desta recente cultura da

    memria.

    Na arquitetura e no urbanismo a memria ganha um novo estatuto atravs do

    novo paradigma terico e os novos temas definidos pelo ps-modernismo (Nesbitt,

    2002). Neste novo estatuto a memria aproxima-se do espao fsico construdo, que

    agora tambm ascende diferente nas disciplinas arquitetnicas e urbansticas como

    Ambincia, ou seja, como realidade vivenciada e significada.

    Por outro lado, a memria adquire fora de conhecimento do mundo atravs

    do corpo, que agora retorna arquitetura no mais como escala humana fisiolgica a

    ser refletida no desenho espacial, mas o corpo que experimenta, que sente, que toca,

    que dobra; a memria aqui fora significadora neste corpo que potencializa o

    mundo. a memria sensvel que se relaciona com os lugares na reaproximao que

    a arquitetura faz entre o corpo e o edifcio, entre o corpo e a cidade (Vidler Apud

    Nesbitt, 2002).

    Nora (1997), por sua vez outro terico que contribui muito nas reflexes

    atuais sobre memria e espao, principalmente atravs do conceito de Lugares de

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    Memria, afirma: os lugares de memria no so aqueles dos quais nos lembramos,

    mas l onde a memria trabalha(1997, p.18).A apreenso da memria nos conduz, desta forma, construo do sentido

    urbano; faz emergir os significados e valores dos lugares, atribudos por indivduos

    que neles esto, fomenta as ligaes simblicas entre o ambiente de uma pessoa e

    suas crenas essenciais, e principalmente nos faz olhar para as imagens e prioridades

    dos usurios conjuntamente com o ambiente fsico.

    A memria tambm depende do momento em que est sendo articulada e

    pelas preocupaes inerentes ao processo em que est sendo expressa. Portanto no

    uma fonte pronta e definitiva, e sim, esculpida durante o processo de recordar.Na busca pelo resgate das memrias urbanas, o passado tende a ser

    recriado de forma a refletir ntida e metaforicamente os desejos do presente. Esta

    recriao passa por interferncias de ordem subjetiva e torna-se, para ns, um objeto

    de anlise sensitiva.

    Hoje, a aplicao histria dos dados da filosofia, da cincia, da experincia

    individual e coletiva tende a introduzir, junto destes quadros mensurveis do tempo, a

    noo de durao, de tempo vivido, de tempos mltiplos e relativos, subjetivos ou

    simblicos. O tempo histrico encontra, num nvel mais sofisticado, o velho tempo da

    memria que atravessa a histria e se alimenta. (Le Goff, 2003, p. 13). Para Santo

    Agostinho, o sistema das trs vises temporais (passado, presente e futuro) s

    expresso no presente, mas esse presente tem vrias dimenses: o presente das

    coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras

    (Confisses, XI, p. 20-26ApudLe Goff, 2003, p. 211). Para Santo Agostinho, a noo

    do instante e da divindade personificavam a noo de acontecimento e sabedoria,

    sendo ambas uma manifestao da memria, esta, produto de uma coletivizao.

    Claudine Haroche (2008) colocou o imprio da memria individual como um

    mote das ltimas vinte dcadas; apesar de construda sobre bases coletivas e

    antepassadas esta memria insurgente nica, subjetiva e s pode ser ancorada

    num sujeito nico. A autora sugere a substituio da palavra coletiva por individual,

    pois rebate que em nossos tempos no h sujeito que no seja individualizado e no

    h experincia que no seja subjetiva. Le Goff (2003, p. 422) complementou que:

    Os esquecimentos e silncios da histria so reveladores destes mecanismos de

    manipulao da memria coletiva, que a princpio, se entrega memria

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    individual por adeso, mas, finalmente, pode ser renegada diante dasubjetividade inerente ao indivduo.

    Podemos neste ponto nos perguntar, silenciosamente, mas o que

    memria?

    A constituio da palavra memria remonta ao mnemon grego, que

    historicamente representa uma pessoa separada especificamente para guardar a

    lembrana do passado na sociedade. Na Mitologia, o mnemon o servidor de um

    heri que o acompanha sem cessar para lembrar-lhe de algo que poderia lhe causar a

    morte, caso esquecido. Le Goff (2003, p. 433) comenta que com o desenvolvimento da

    escrita, estas memrias vivas transformaram-se em arquivistas e o papel do mnemonpassou a ser atribudo memria registrada, facilmente encontrada por estar

    catalogada. Este ato de catalogar, reter e arquivar o que representa a nossa noo

    de memria atualmente.

    A memria, como propriedade de conservar certas informaes, remete-nos

    em primeiro lugar a um conjunto de funes psquicas, graas s quais o homem pode

    atualizar impresses ou informaes diversas (...) que ele representa como passadas.

    (Le Goff, 2003, p. 419).

    Com a morte dos mnemones, a lngua falada e escrita passou a prevalecer

    sobre a funo de se reter uma informao. Estando disposio alheia, a qualquer

    hora e local, o registro memorial (em obra de qualquer espcie) passou a ocupar este

    cargo e se instaurou como objeto fixo. Isto significou, para nossas sociedades atuais,

    uma mudana profunda na noo de memria, que frequentemente passou a parecer-

    se com o aprender de cor ou o lembrar a todo momento, uma grotesca dissociao

    do valor de permanncia que a memria deveria ter.

    No Fedro (p.274-275),3 livro elaborado por Plato, o autor coloca a lenda do

    deus egpcio Thot, patrono dos escribas e da astronomia, inventor dos nmeros e do

    alfabeto. Plato afirma que, inventando os ltimos dois elementos, Thot transformou a

    memria, mas contribuiu para enfraquec-la mais do que desenvolv-la. Ele pe que:

    [o alfabeto] engendrar o esquecimento nas almas de quem o aprender: estascessaro de exercitar a memria porque, confiando no que est escrito,chamaro as coisas mente no j do seu prprio interior, mas do exterior,

    3 PLATO. Fedro. (2003). Disponvel em brochura, Rio de Janeiro: Ed. Martin Claret. Dilogo entre Scrates e Fedro sobre a Retrica, oumelhor, sobre a genuna arte de falar.

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    atravs de sinais estranhos. Tudo (...) uma receita para trazer as coisas mente.

    Plato criou, assim, o papel do arquivo mvel (e das atuais pastas eletrnicas

    de todos os computadores no mundo); para ns, a idia de memria est justamente

    no fato de que desejamos rejeitar os escritos, as imagens e os padres arquivistas da

    cidade analisada e, ao invs, recorrer ao exerccio de traduzir a memria atravs dos

    sentidos apreciados atravs dos diversos tempos da cidade. Em nossa tese

    recentemente defendida (Santana, 2010), esta memria se intitula Memria do

    Futuro.

    Apesar de historicamente apresentada, a memria (como estrutura

    conceitual) vai muito alm de sua definio etimolgica. Falar de memria, antes da

    capacidade de evocar, explorar a noo de tempo; nos ltimos anos, as

    consideraes sobre tempo e espao tm direcionado os usurios para um encontro

    s escuras, dentro dos conceitos desenvolvidos para as cidades genricas e

    efmeras (Koolhaas, 1996; Mitchell, 1995). O espao, para esses conceitos, no

    mais que um palco assptico para as interaes humanas e a vida urbana. Estas

    noes falharam, por sua vez, em no considerar que o palco interage com a vida

    urbana e com diferentes instantes de apreenso que doam velocidadesespecficas na

    cognio ambiental e deslocamentos coordenados pelas novas inseres urbanas,

    que tencionam uma ordem na desordem. H um processo dialtico de autoconstruo

    e autorreconstruo da imagem urbana das cidades, segundo diferentes aspectos

    econmicos, sociais e culturais.

    Mas no apenas da condicionante tempo estrutura-se o conceito de

    memria. preciso que outras foras contingentes do fsico e do metafsico trabalhem

    em equipe para que a operao de reter, arquivar e evocar relacionadas ao passado

    se processe de maneira adequada a trazer tona o que entendemos como

    processos mnemnicos da mannesi. Esta atividade cerebral, de recordar e fazer

    ressurgir, a reminiscncia (mannesi), antes de tudo, traz a estrutura coesa dos

    registros memoriais por possibilitar recuperar os lugares e tempos perdidos e por

    auxiliar na estruturao de pensamentos lineares, ou seja, encadeados por

    acontecimentos lgicos e sequenciais. A noo de Memria Sensvel (termo definido

    em conjunto com o grupo de pesquisa ASC Arquitetura, Subjetividade e Cultura),

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    acima apresentada, remonta reminiscncia, atividade agrupadora e apoiada na

    retrica (ou cincia das palavras):Agostinho deixou de herana para o cristianismo medieval uma adaptao da

    teoria da retrica sobre a memria. Em Confisses, ele parte da concepo dos

    lugares e imagensda memria, mas traz uma enorme profundidade psicolgica ao se

    referir imensa sala da memria e sua cmara vasta e infinita (Apud Le Goff, 2003,

    p. 440):

    Chego agora aos campos e vastas zonas da memria, em que repousam ostesouros das inumerveis imagens de toda a espcie de coisas introduzidas

    pelas percepes; em que esto tambm depositados todos os produtos donosso pensamento, obtidos atravs da ampliao, da reduo ou qualquer outraalterao das percepes dos sentidos (...). Quando estou l dentro, evocotodas as imagens que quero. Algumas se apresentam no mesmo instante, outrasse fazem desejar por mais tempo, quase que so extradas dos esconderijosmais secretos. Algumas se precipitam em vagas (...) e afasto-as com a mo doesprito da face da recordao, at que aquela que procuro rompe da nvoa eavana do segredo para meu olhar; outras surgem dceis (...) medida que as

    procuro (...). Tudo isso acontece quando conto qualquer coisa de memria.

    Com Agostinho, a memria passou a penetrar o homem interior sendo

    reposta pelos estmulos do exterior, assim como se espera da reminiscncia. Mas foi

    tambm a partir dele que a memria ganhou statusde entidade esttica, pronta a ser

    recuperada quando da manipulao das lembranas.

    Desta forma para Nora (1997), na medida em que uma memria escrita

    substitui uma memria viva, espontnea e diretamente ligada s experincias, que

    uma mudana radical na racionalidade e na sensibilidade da humanidade ocorre. E

    sociedade atual, amparada sob o princpio de um produtivismo arquivista e de um

    culto documentrio, cabe delegar ao arquivo o cuidado de se lembrar por ela e de

    multiplicar os signos onde ela se deposita. Diz o autor (Op. Cit., p. 31):

    Nenhuma poca foi to voluntariamente produtora de arquivo como a nossa, nosomente pelo volume que segrega espontaneamente a sociedade moderna, nosomente pelos meios tcnicos de reproduo e de conservao que ela dispe,mas pela superstio e o respeito pelo vestgio. (...) na medida em quedesaparece a memria tradicional, nos sentimos impelidos a acumularreligiosamente vestgios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, signosvisveis daquilo que foi, como se este dossi cada vez mais proliferante devesseter no-sei-que-prova, para no-sei-qual tribunal da histria.

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    O arquivo armazena uma quantidade finita de dados, dispostos e alocados

    por semelhanas em sobreposio, e tributa-se a eles o dever de relembrar, como sea tivessem estado todo o tempo. O arquivo tambm fabrica imagens e mais imagens

    coesas e tumultuadas de diversas cidades.

    Assim como a racionalidade medieval acreditou na escritura como chave para

    congelar a memria, a modernidade do sculo XX foi aquela que comeou a

    desconfiar disto, dando campo ao reconhecimento de que o efeito do arquivamento

    pode no ser necessariamente o de conservao da memria, mas, pelo contrrio, o

    de sua substituio (Huyssen, 2000; Nora, 1997).

    Uglione (2008, p.32) comentou em sua tese recentemente defendida peloProarq/UFRJ que, com esta desconfiana,

    (...) um desafeto, por parte da racionalidade contempornea, incluindo-se aracionalidade arquitetnica e urbanstica, surge com relao ao arquivo comodispositivo da memria: a idia de arquivo passa a ser de maneira ampla,vinculada, no de modo homogneo, a uma no-vontade de memria nasociedade.

    E se a vontade de memria se esvai como defendem Huyssen (2000), Nora

    (1997) e Uglione (2008), falar sobre memria questo das mais atuais na anlise do

    espao urbano das cidades contemporneas. Pois como , de fato, cientfico, a

    memria est relacionada ao trato humano que lida com as emoes, ela

    contingente do sistema emocional que desenvolvemos em relao com o mundo. E se

    as referncias fsicas so desarticuladas com uma rapidez nunca vista na histria

    mundial, se os tipos psicolgicos multiplicam em bulas de remdios e se o papel da

    memria como elemento associado escrita se restringe ao arquivo, ento

    atravs de uma anlise subjetiva que trataremos de delinear o conceito da cidade

    atual.

    3. Desmembrando cidade e memria um campo de imagens, ou uma

    cidade entre

    Sob o impulso globalizador que vem redelineando os rumos da histria

    recente, a memria emerge, portanto, como uma das preocupaes centrais das

    sociedades (ocidentais), que buscam nesta cultura da memria disputar o que

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    lembrar e o que esquecer. Num mundo em constante mutao, o passado

    presentificado como lugar redentor no qual podemos ancorar sonhos eexpectativas, assim como elementos significantes por ele apresentados surge como

    o lugar das experincias e possibilita a formao de novas imagens que reconfiguram

    a cidade de tantos lugares perdidos.

    Como afirmou Marco Plo a Kublai Khan, na densa narrativa de talo Calvino4

    a metrpole tem este atrativo adicional que mediante o que se tornou pode-se

    recordar atravs de novas imagens aquilo que se foi [grifo nosso]. As cidades

    invisveis da imaginao de Calvino, contidas na descrio de Marco Plo ao grande

    imperador, fazem parte deste relato do sujeito narrador que caminha como umembriagado, um flaneur, buscando na satisfao de saudosas recordaes pela

    metrpole a visibilidade de uma mobilidade e prtica concreta de cidade.

    Cercados dessas consideraes, nossas pesquisas foram enriquecidas com

    esta certeza de que a cidade da memria (sensvel) no da memria estvel e fixa

    do passado, mas a memria do presente, articulvel e ampla existe, possvel e se

    refaz a cada segundo, com a mescla dos diversos tempos que se interpolam na

    linguagem das lembranas. Cidade a que chamamos entre (Santana, 2010) e que se

    constri por imagens catalogadas em diversos tempos de apreenso nas cidades.

    Esta cidade subjetiva, inerente, no partidarista e bastante cambivel com as

    necessidades de representao do tempo (presente) em que construda por seus

    indivduos.

    Somente quando o conceito de memria (do futuro) se apresentou (Santana,

    2010) foi que conseguimos entender o efeito metafrico da extenso da memria nas

    cidades contemporneas e da importncia de diversos outros tipos de memria que

    acabam por construir sua noo transtemporal,5 ou seja, quanto mais tentamos nos

    projetar ao futuro, simultaneamente nos projetamos ao passado, criando possveis

    futuros, que podem nunca ser tangenciados.

    Ficou claro em nossas pesquisas que caracterizar e expandir o leque de

    abordagens no espao mutvel e carnalmente entranhado nas mudanas que

    exercemos sobre o espao e em ns mesmos (a cidade entre) assunto para

    4CALVINO, talo. As Cidades Invisveis. Trad. De Diogo Mainardi. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 1996.5Fazendo aluso palestra da Prof. Maria do Cu (EBA, UFMG) durante o evento A Arte da Memria e a Memria do Futuro, produzido pelo

    IEAT em 26.11.2008. CEU, M. (2008). As Machinas Memoriales e as Memrias como Inveno do Discurso. Palestra de 1:44h proferida em26.11.2008. Acessado em 11.02.2009 e e disponvel em .

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    diversas cincias o que retira qualquer autonomia do saber (sobre cidade) em

    arquitetura.Acenando em direo ao espao contemporneo e suas formas de

    engendramento nos usurios e no(s) tempo(s) de cidade, alguns autores

    contemporneos contriburam para consolidar uma certeza que corrobora com

    diversos outros escritos e teorias vigentes e, ainda, auxiliaram na demonstrao de

    que pensar o espao (e a arquitetura) da atualidade pensar o homem em suas

    necessidades mais individuais e subjetivas.

    Quando Virilio (1993) constri sua tese de uma cidade vinculada s imagens

    circulantes e velocidade imperante, tambm Castells (1995) funciona como um libi,ao dizer que tudo isso um processo construdo em conjunto e que a cidade-

    informao esta cidade entre que necessita dos avanos e da juno de tempos e

    memria para se arraigar e espraiar completamente.

    Tambm quando Deleuze (1988) recria (e reconfigura) sua cidade

    continuamente, tambm Soja (1996) defende esta (re)criao na terceira-cidade e na

    cidade-imanente, e acabam juntos alertando que o processo de reconstruo um

    processo temporal, subjetivo, transitrio, randmico e consequentemente

    memorial. No na memria dos traos passados novamente nos justificando mas

    na memria de todos os tempos, a Memria do Futuro presente tambm na cidade-

    depois de Mongin (2003).

    Este cenrio oferecido pelos autores permite-nos comprovar que se a

    memria construo, o jogo de linguagens impostas por fachadas e edifcios

    arquitetnicos no pode se engessar numa viso simplesmente compositiva da

    arquitetura. Se a contao de histrias (de uma cidade) reverte e refaz as noes

    representativas da cidade (como grande objeto sensvel), atravs da admisso de

    instncias de tempo e permanncia (ou durao) que esta imagem deve se solidificar

    e se traduzir.

    Consideraes finais

    Ao final de nosso trabalho podemos assumir e atestar que pensar a memria

    implica abandonar perspectivas de uma banal rememorao e assumir a dimenso

    desejante do espao; ao passo que a memria escolhe seus traos desejantes, como

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    nas linguagens indiretas, tambm as representaes de cidade se rendem a uma

    forma estritamente relacionada com o corpo individual.Se a arquitetura favorece a formao de uma imagem coletivamente

    compartilhada (assim como a linguagem), tambm ela, como prtica, contribui muitas

    vezes para a confuso metodolgica da estrutura edificada das pequenas, mdias e

    grandes cidades. Devemos lembrar, sempre, que a cidade uma inveno e s ela

    campo possvel para o crescimento e desenvolvimento da arquitetura e das

    sociedades.

    No lanar um olhar crtico sobre a subjetividade operante na condio

    sensvel da contemporaneidade negar um princpio bsico da arquitetura, o daexperincia. E no relacion-la (a arquitetura) s inmeras possibilidades de

    expanso e retrao do espao desconsiderar o fator temponas cidades globais

    estas, sempre margem de um excessivo controle.

    Chamarmos cidade contempornea este grande conjunto de cidades

    tambm reduzir sua competncia, mas, por outro lado, sumarizar esta quantidade de

    processos. Ela isto: uma denominao alimtrofe, superurbanizada e, antes de

    tudo, informacional (Castells, 1995); baseada no espao de fluxos e de complexos

    modelos organizacionais que absorvem variadas ideias de tempo; ela uma

    videocidade (Virilio, 1993)6 um espao sem portas, onde o urbano perde sua

    realidade geopoltica em benefcio de sistemas instantneos, que acontecem e se

    desfazem com rapidez.

    No seria demais repetir, portanto, que a flexibilidade promovida por essas

    mudanas fabricou tambm um cidado muito menos comprometido com o solo e

    muito mais ligado ao confronto ttil (seja ele virtual ou no). E por isso, algumas

    noes de mobilidade na cidade se rendem ideia dos fluxos, que no necessitam do

    corpo material para acontecer; eles (os fluxos) operam em dimenses atpicas e muito

    mais relacionadas ao tempo, este elemento de operao silenciosa. E tambm isto

    serve de comida para o pensamento na forma de se atuar arquitetonicamente no

    espao urbano, pblico ou privado.

    6Para Virilio (1993), a videocidade uma cidade sem portas, onde o sistema urbano perde sua hegemonia geopoltica e se solidifica no campoda transio de informaes.

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    Assim, a ideia de uma virtualidade7(como um lugar possvel e do possvel) se

    colocaria para demonstrar que a cidade concreta (da visualidade, da objetividadepoltica) s se compreende atravs de uma terceira cidade (Soja, 1996) ou de

    tantos outros nomes que delimitada por uma colagem de tempos que estabelece

    na memriaseu caminho para a construo.

    Dominar o virtual, subjetivar-se e compreender a perda de um sentido original

    de cidade tornam o homem cada vez mais aberto a estruturar sua memria (do futuro)

    e construir um entre. Da mesma forma que para arquitetos e urbanistas, seja na

    prtica ou no ensino, compreender estas razes de mundo capacita a melhor

    abordagem e experincia do/no espao.Uma cidade entre narrada todos os dias por cada usurio. Ela se constri e

    reconstri mantendo algumas ou muitas caractersticas originais, mas mantm seu

    enredo na memria. E por que exigir uma mesma histria mais de mil vezes? A

    Psicanlise infantil responde a isso claramente: para dominar melhor o relato;

    controlando o enredo, os personagens, os locais de desenvolvimento do fato e as

    inquietaes prprias das mudanas, o futuro se antecipa.8O conhecedor da histria

    o autor do (alter) enredo e espera sem medo o seu desenlace, pois o confirma pelo

    que considera conhecimento. Na repetio evocativa da memria, mesmo que sempre

    representada (ou seja: nunca real), tambm assim se manifesta o conceito de

    Memria do Futuro na construo de uma cidade entre.

    Desde Foucault (Vigiar e Punir, 1977), a ideia de vigilncia e controle que

    induziriam ordem permeia a construo de uma sociedade obediente, educada e

    apartada de eventuais conflitos fsicos e que, assim, evitaria aes punitivas pelo

    poder governamental. Se assim a vida social se estabeleceu, e tantos sculos de

    civilidade foram impostos, fica em ns um problema: tambm as cidades que fogem

    regra merecem algum dispositivo penitencial? No uma punio empregada por

    pequenos e escusos grupos de pessoas nos procedimentos de demolio,

    reabilitao, revalorizao dos edifcios; mas uma punio baseada em pressupostos

    7 Podemos facilmente admitir que as operaes mediticas da tecnologia da virtualidade fazem com que as distncias geogrficas no sejammais empecilho para a interao de subjetividades, mas isso diferente de abolir totalmente a noo de espao fsico, enquanto perspectiva devivncia cognitiva pessoal. A ideia de espao virtual relacionado exclusivamente ao mundo digital falsa, ela prescinde da interpretao econtextualizao individual humana das experincias vividas. Por isso, podemos dizer que a virtualidade acontece no nvel imagtico e trabalhaem consonncia com a memria e o espao real.

    8FREUD, S. (1996). Edio Standard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

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    definidos da mesma forma que para a sociedade (excluso, recluso, morte). Alguns

    bons ensaios j abordaram este assunto.A resposta imediata que nem a punio nem a prpria ideia de cidade

    cabem em ancoragens voltadas ao controle. S ela (a cidade) comporta de forma

    irrestrita a imprevisibilidade, a casualidade, o desejo, as benesses e mazelas que

    tantas vezes repreendemos nos atos humanos. Ela sempre possvel.

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