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ÍNDICE
1. Introdução …………………………………………………………………….….. 3
2. Questões ético-legais .………………………………………………………….…. 6
3. Apreciação ………………………………………………………………………... 6
3.1. História de vida do Sr. Rui ………………………………………………….…. 6
3.2. Dinâmica Familiar ………………….………………….…………………….… 10
3.3. Relação da história de vida com a literatura …..…………………………….. 12
3.4. Levantamento dos factores de stress ….………………………………………. 14
3.4.1. Factores de stress intrapessoais ...………………………………………….. 15
3.4.2. Factores de stress interpessoais …………………………………………….. 16
3.4.3. Factores de stress extrapessoais …………………………….……………… 16
3.5. Levantamento dos factores de reconstituição ………………………………... 16
4. Plano de cuidados ………………………………………………………………... 17
5. Considerações gerais e conclusão ……………………………………………….. 25
6. Referências Bibliográficas ………………………………………………………. 27
1. INTRODUÇÃO
Uma componente essencial do Ensino Clínico V, que realizei no piso quatro do serviço de Psiquiatria
do Hospital de Santa Maria, foi sem dúvida a minha experiência e contacto mais próximo com uma das
pessoas internadas, o “Sr. Rui” (nome fictício) a quem prestei cuidados de enfermagem. Quando, na
minha terceira semana de estágio, tive que escolher o utente pelo qual ficaria “responsável” e cujo caso
acompanharia mais de perto, fiquei um pouco indeciso tal era a diversidade de opções interessantes que
detinha à minha frente. Houve, apesar de tudo, algo que me chamou a atenção: constatei que um senhor,
que dera entrada no serviço dois dias antes, apresentava o diagnóstico de “Jogo Patológico” com
sintomatologia depressiva associada.
Mas o que seria isto de Jogo Patológico? O que poderia levar uma pessoa a jogar compulsivamente e
que consequências podiam advir daí? E o que é que eu, enquanto estudante de enfermagem/futuro
enfermeiro poderia fazer para o ajudar a superar este problema? Todas estas dúvidas aguçaram a minha
curiosidade e quando a minha orientadora de local de estágio me disse que este tipo de situação não era
muito frequente no serviço percebi que esta era uma oportunidade única de estudar e compreender
melhor o fenómeno, que tinha que aproveitar. Estaria assim a acrescentar aos conhecimentos que já
tinha sobre a Saúde Mental e os seus problemas (como a Esquizofrenia e a Depressão, por exemplo)
outros saberes respeitantes a um tema que não foi abordado nas aulas e que me despertava bastante
interesse.
Para a realização deste trabalho baseei-me no modelo conceptual de Sistemas de Saúde de Betty
Neuman.
Este modelo centra-se na pessoa, encarando-a como um todo global que inclui indivíduos, famílias,
grupos e comunidade e que é afectado por todas as variáveis que podem atingir o ser humano (Pearson,
1984). Cada indivíduo é visto como um sistema aberto que é constituído por um centro “CORE” no qual
estão incluídos factores básicos de sobrevivência comuns a todos os seres humanos e que, por sua vez,
se encontra rodeado por três contornos hipotéticos: linha de resistência, linha normal de defesa e linha
flexível de defesa.
A primeira, como o sistema neuroendócrino, representa a última defesa de um indivíduo face a
factores agressores do centro, podendo a sua ineficácia resultar em morte para a pessoa. Já a linha
normal de defesa diz respeito àquilo que o indivíduo foi adquirindo ao longo de toda a sua vida e inclui
inteligência, atitude face à vida, capacidade de resolver problemas e capacidade de lhes fazer frente,
sendo influenciada por factores genéticos e físicos. Por seu lado, a linha flexível de defesa alberga o
máximo potencial para a mudança e pode ser distendida ou comprimida pela aprendizagem de
enriquecimento de saúde e comportamento protector, sendo influenciada por variáveis como a nutrição,
descanso, exercício físico, actividade social, etc. (Benvinda et al, 1985).
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Segundo Neuman (1995), todas as pessoas encontram-se num estado de equilíbrio dinâmico com o
seu meio envolvente, resultando no bem-estar e estabilidade do seu sistema. O stress surge enquanto
produtor de tensão que tem o potencial para causar instabilidade no sistema e, por consequência,
desequilíbrio ou distúrbio na harmonia pessoal. Esta desarmonia pode ocorrer sempre que os factores de
stress rompam as linhas de defesa de um dado indivíduo. Estes factores são de origem ambiental e
podem-se dividir em factores intra, inter e extrapessoais. Os intrapessoais dizem respeito a forças que
provêm do próprio indivíduo, como por exemplo, atributos físicos, atitudes ou grau de desenvolvimento
pessoal. Os interpessoais são relativos a forças que se manifestam entre duas ou mais pessoas, por
exemplo, na relação marido-mulher ou enfermeiro-utente. Os extrapessoais correspondem a forças do
exterior que agem sobre o indivíduo, por exemplo, a habitação e as condições económicas (Neuman,
1995).
Neuman (1995) propõe que o processo de enfermagem se organize em três fases principais:
diagnóstico de enfermagem, metas de enfermagem e avaliação dos resultados de enfermagem. A
primeira fase está intrinsecamente relacionada com a identificação e avaliação dos factores estressores
reais ou potenciais que ameacem a estabilidade do utente; as metas de enfermagem correspondem a
objectivos traçados pelo conjunto enfermeiro-utente de modo a conseguir a mudança prescrita e
desejada de modo a corrigir o desvio do bem estar. Para concretizar esta mudança serão necessárias
intervenções de enfermagem. Esta autora refere que existem três tipos de intervenção a nível preventivo
para a acção de enfermagem, nomeadamente a prevenção primária (intervenção antes da ocorrência de
reacção a factores de stress), prevenção secundária (tratamento de sintomas após a reacção a factores de
stress) e prevenção terciária (manutenção de um nível óptimo de bem-estar após o tratamento); a
avaliação de enfermagem permite confirmar o grau de consecução dos objectivos e estabelecer novas
metas, se necessário.
Atendendo ao modelo de Neuman, dividirei este trabalho em duas partes fundamentais:
Inicialmente farei uma apreciação do caso do senhor Rui, que constará de uma exposição da
história de vida do senhor Rui e consequente relação com a revisão bibliográfica existente
sobre o jogo e com o modelo de Neuman, procedendo ao levantamento dos factores
estressores e de reconstituição;
Na segunda parte descreverei o plano de cuidados específico em relação a esta situação, que
consta de diagnóstico, metas, intervenções de enfermagem (a nível primário, secundário e
terciário) e avaliação dos resultados.
O jogo patológico afigura-se como uma realidade muito complexa, em que interferem muitas
variáveis diferentes – biológicas, afectivas, cognitivo-comportamentais, psicossociais – e que,
infelizmente, ainda foi muito pouco estudada a nível mundial, sobretudo na esfera da enfermagem. O
termo “jogo patológico” é usado no DSM-IV – TR (American Psychiatric Association, 2002) para
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descrever uma desordem mental caracterizada por uma dependência emocional e preocupação com o
jogo e com o comportamento de jogar que é excessiva, repetitiva e recorrente, marcada por um impulso
e perda de controlo relativa ao acto de jogar, que é continuado apesar do aparecimento de consequências
significativamente adversas e negativas. Estas podem afectar “quer o jogador a nível individual quer a
sua família, podendo inclusivamente estender-se à comunidade” (Blaszczynski, 1999. p. 95).
O inicio da conduta de jogo patológico ocorre normalmente na adolescência ou em adultos jovens,
sendo a sua evolução muitas vezes insidiosa. Anos de jogo social podem ser seguidos pelo início
abrupto de jogo patológico, o qual é susceptível de ser desencadeado por uma maior exposição a
factores de stress. (Gelder et al, 1996).
Ainda não foram conduzidos estudos em Portugal acerca do prevalência do jogo patológico. A
Associação Portuguesa das Medicinas de Adicção (APMA) acredita que a realidade portuguesa não seja
tão grave como em países como os Estados Unidos, onde foi estimado que 1,2% a 2,8% da população
adulta sofreria deste problema ou como na Espanha em que a estimativa ronda os 1,7% - 2,5%
(Becoña), uma vez que nestes países o fenómeno do jogo é muito promovido e facilmente acessível à
população em geral. No entanto, é provável segundo a APMA que pelo menos cinco portugueses em
cada mil sejam jogadores patológicos.
Existem diversas teorias relativamente à etiologia deste fenómeno. A mais aceite actualmente defende
que o jogo patológico é uma adicção comportamental, uma vez que as pessoas com este problema
experimentam os quatro sintomas-base de uma adicção: a obsessividade em relação ao jogo, a perda de
controle do acto de jogar, o aumento da tolerância ao jogo, sendo necessário uma maior quantidade de
tempo e apostas mais elevadas para produzir os níveis de excitação desejados e um síndroma de
abstinência manifestado por sintomas físicos e psicológicos como a irritabilidade, insónias ou dores de
cabeça. Ficam deste modo dependentes do jogo (Gettings e McCuster, 1997).
Após a realização deste trabalho pretendo:
possuir uma maior compreensão do senhor Rui, da sua história de vida e situação actual;
aprofundar conhecimentos teóricos sobre o jogo patológico, compreender como é que este
problema afecta o senhor Rui e, extrapolando, como pode vir a afectar outras pessoas;
desenvolver competências para a intervenção junto de utentes com problemas de jogo
patológico;
incrementar a capacidade de operacionalizar o modelo de Sistemas de Saúde de Betty
Neuman;
ver promovida a minha capacidade de análise e reflexão relativa a situações-problema.
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2. QUESTÕES ÉTICO-LEGAIS
É de frisar que antes de ter tornado o caso do Sr. Rui como objecto deste estudo, procurei cumprir com
os princípios éticos expressos em diversos documentos, inclusive no Código de Nuremberga (1947) e no
artigo 85º do Código Deontológico dos Enfermeiros (1998). Assim foram explicados ao utente a
natureza, o propósito, a duração do estudo e o método segundo o mesmo iria ser conduzido. O mesmo
aconteceu com os seus familiares e amigos quando foi pedida a sua colaboração.
O utente foi igualmente informado de que o seu direito à confidencialidade seria respeitado e que tinha
a liberdade de, em qualquer altura, se retirar do processo.
Após estas informações e todas as dúvidas do Sr. Rui terem sido esclarecidas, este prestou-se a
colaborar neste trabalho, tendo-se mostrado, desde o início até ao final do meu contacto com ele
enquanto prestador de cuidados, sempre assertivo em relação à problemática do jogo e muito
colaborante no que concerne às acções de enfermagem que empreguei com ele.
3. APRECIAÇÃO
3.1. História de Vida do Sr. Rui
A história do Sr. Rui foi construída com base nas entrevistas realizadas ao utente, ao seu irmão Rafael,
a um colega dele de profissão (Renato) e à psiquiatra que o acompanha. Recorri também ao processo
clínico para complementar alguns aspectos que tinham ficado pouco claros. É de salientar que, por
vezes, surgiram algumas informações contraditórias, sendo isto já de si indicador que cada pessoa tem
uma visão própria sobre uma mesma situação. Daqui surge a importância de realizar várias entrevistas,
para obter uma visão mais global e aproximada da pessoa em questão.
O Senhor Rui é um homem de raça caucasiana, com 40 anos de idade, natural do conselho de Oeiras e
residente em Cascais. É professor universitário de um curso relacionado com a área das letras.
Foi admitido no Serviço de Psiquiatria – Piso 4 do Hospital de Santa Maria a 3 de Janeiro de 2003,
proveniente da Urgência. Tem um diagnóstico médico de Jogo Patológico com Depressão associada.
Rui nasceu no seio de uma família de classe média-alta e refere ter tido uma “ infância normal, com os
seus altos e baixos como qualquer outra infância”. Quando foi questionado em relação à sua educação e
relação com os seus pais durante este período, evitou o assunto. Foi em conversa com o seu irmão
Rafael que pude obter mais informações a este respeito: “O meu pai batia-nos. Com um cinto. A última
vez que o meu pai me bateu eu tinha quinze anos. Mas o meu irmão acho que foi menos. A gente fazia
um disparate, a minha mãe telefonava para o meu pai, para o emprego dele, dizia-lhe «os seus filhos
portaram-se mal» e depois chegávamos a casa, tínhamos que estar com as calças para baixo,
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levávamos com o cinto… e não jantávamos!” Rafael refere que a relação entre o irmão e os seus pais
nunca foi muito estável, particularmente com o progenitor, sobretudo devido ao “feitio” de Rui: “ o Rui
sempre foi uma pessoa ansiosa e impulsiva; ele «passa-se» muito facilmente quando algo não lhe
agrada”.
Rui afirma ter sempre gostado de jogar e tê-lo feito frequentemente na infância – “ jogava aos jogos
que havia na altura… às cartas e ao dominó. . .” – tendo continuado esta conduta na adolescência, mas
nunca compulsivamente ou a dinheiro: “jogava pelo aspecto lúdico, para desanuviar e estar na galhofa
com os meus colegas. Chegámos a fazer noitadas a jogar à sueca, à canasta e ao bridge”.
Foi durante a adolescência que Rui teve um primeiro contacto com máquinas de jogo a dinheiro:
“penso que uma vez, quando tinha uns 19 anos, fui ao casino só para ver como é que era. Devo ter
jogado uns trocos nas máquinas de poker, não me lembro bem. Mas foi só para ver como é que era,
depois fiquei anos sem lá voltar”.
Rui casou aos 20 anos, teve o seu primeiro filho (João) aos 21 anos e o seu segundo filho (Ricardo)
quatro anos mais tarde. Os seus primeiros anos de casamento foram estáveis; concluiu a sua tese de
mestrado nesse período e mudou de escalão, aumentando o seu ordenado na universidade; a sua mulher
exercia também um cargo de ensino e juntos auferiam um rendimento que lhes permitia “viver bem”.
Mas os problemas com a mulher começam a surgir quando o seu filho mais velho entra na escola
preparatória na qual ela leccionava. “Reparei que a Helena começou a ser super-controladora em
relação ao João. Andava sempre a querer saber para onde é que ele ia, intrometia-se no seu círculo de
amigos, e era capaz de armar um chinfrim por uma coisa de nada. Tentei falar com ela por causa disto,
mas ela não me ouviu, continuava a fazer o mesmo, ou pior!”. Associado a este problema surgiram
outras incompatibilidades entre o senhor Rui e a mulher – “ela «trazia o trabalho para casa» e depois
descarregava as frustrações dela na família, sobretudo em mim e no filho mais velho”. A frequência das
discussões entre o senhor Rui e a mulher a respeito da educação dos filhos e de “outras trivialidades”
começaram a aumentar e culminavam muitas vezes numa “frustração profunda, por não conseguir
mudá-la”.
No final de 1996 começa a trabalhar na sua tese de doutoramento e entra numa fase da sua vida que
considera “muito estressante, com muito trabalho e pouco tempo para o realizar”. Começa a sentir-se
“extremamente fatigado, quer pelo excesso de trabalho, quer pelo ambiente que se vivia em casa”.
Devido ao seu horário não tinha muitos contactos sociais, exceptuando com os colegas da faculdade e
com os alunos. Tanto o irmão, como um colega dele referiram que o Rui sempre foi conhecido por
manter óptimas relações professor-aluno. “Toda a gente gosta dele, sejam colegas sejam estudantes”,
refere o professor que o está a substituir.
Durante o primeiro semestre de 1997 surge um evento que considera ter alterado a sua vida… “para
pior!” Nesta altura, Rui e a mulher decidem trocar o seu condomínio por um apartamento maior em
Carcavelos. Pouco tempo após esta mudança, Helena expressa à mesa a sua vontade de adquirir um cão.
“Já tínhamos dois gatos em casa. Mas ela quis um cão, um Cocker Spaniel. Os miúdos também estavam
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a favor da ideia. Já se sabe, são uns animais endiabrados, difíceis de se ter em casa e que ainda por
cima roem tudo. Roeu muitos dos meus livros, que são a menina dos meus olhos! Comecei a ter medo
de entrar em casa, tal era o pandemónio que lá reinava!”. A partir deste episódio começa a sentir uma
“tristeza profunda”. “Tinha a sensação de que das quatro pessoas da casa a minha opinião era a que
menos contava. Havia uma constante medição de forças entre mim e a minha mulher”.
Um dia (meados de 1997) resolve não voltar imediatamente a casa. “A família costumava adormecer
cedo, eu não tinha nada que fazer, acabei por passar pelo casino Estoril que ficava a um quarto de
hora de automóvel. Gastei lá um dinheirito, nada de especial, mas gostei da experiência. Achei, na
altura, que era uma boa alternativa para o meu tempo de ócio, para descomprimir um bocado do
doutoramento… e podia sempre ganhar uns cobres. Além disso, em casa não fazia nada, só me
aborrecia ou pior, arriscava-me a arranjar chatices com a Helena”.
O senhor Rui começa por ir jogar ao Casino Estoril ocasionalmente, de uma forma “ tranquila e
descontraída”. Inicialmente ia lá uma, duas vezes por semana. “Depois a situação começou a agravar-
se. Tornou-se uma compulsão, eu ia lá cinco vezes por semana, praticamente todos os dias do mês. A
partir de determinada altura apercebi-me que estava viciado, mas era muito difícil parar – penso que
demorei quatro meses a ficar completamente viciado”.
Durante cerca de dois anos vai ao casino jogar, permanecendo lá entre a meia-noite e as três-da-manhã
(hora de fecho). “Eu fui sempre jogar sozinho. Sempre sozinho. Tinha uma vida dupla, o professor e
pai de família de dia, o jogador de poker de noite”. Quando questionado acerca das horas perdidas, era
evasivo ou mentia: “achava que não devia dizer, porque os casinos sempre foram conotados como um
mau ambiente; não são um fenómeno bem visto pela sociedade”.
Inicialmente houve uma fase em que ganhou uma quantia razoável de dinheiro (cerca de 100 contos
no mesmo dia), o que o motivou a aumentar a frequência do jogo e das apostas, com o intuito de ganhar
mais. Começou por levar 5 mil escudos todos os dias, depois passou a 10, 15… Aquando do seu
primeiro internamento, já fazia levantamentos de 20 contos “que acabava por perder, a maior parte das
vezes”.
Ia ao casino somente para ganhar dinheiro, nunca como actividade lúdica. Refere não ter feito um
único amigo lá. Descreve o ambiente do casino como frenético, tenso e, por vezes dramático. “Quando
jogava sentia-me sempre bem, quase como se estivesse num sonho…” No entanto, afirma nunca ter
perdido completamente a consciência do que estava a fazer - “tinha até uma voz interna a dizer: «vai-te
embora, vai-te embora». Mas ficava. Por mais que perdesse, voltava sempre a jogar, porque tinha que
recuperar o dinheiro. Houve muitas vezes que saí do casino e ia chorar para o carro. Chorei muitas
vezes… pela perda do dinheiro, mas também do tempo que podia estar a utilizar para estar com a
família, para trabalhar ou simplesmente para descansar”.
Refere períodos de grande irritabilidade, insónias e distúrbios de memória e atenção quando não
jogava. Tal incomodava-o, sobretudo porque sabia que estava a ficar obcecado pelo jogo e a perder o
controle sobre o seu comportamento: “A próxima ida era uma coisa obsessiva para mim. Acabava
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completamente com o meu descanso mental. Eu adormecia, sonhava e acordava com a imagem das
máquinas! Isso repercutia-se na vida familiar e também no trabalho”. As relações familiares e laborais
começam a deteriorar-se progressivamente e o senhor Rui isola-se cada vez mais dos que o rodeiam.
Começa a ser menos assertivo em relação aos filhos e a faltar ao emprego devido ao “cansaço mental”.
Segundo um professor da sua escola “não só os colegas como os próprios alunos repararam que o Rui
estava diferente”.
Até Novembro de 1999 consegue esconder a situação de toda a família, mas o seu saldo bancário
acaba por “atraiçoá-lo”. Pressionado, acaba por confessar à mulher que jogava. “Ela não ficou nada
contente quando soube; a grande preocupação dela era com o dinheiro.” Apesar dos apelos da esposa,
pais e irmão (que entretanto ficaram ao corrente da situação) Rui continuou a ir regularmente ao casino,
“porque simplesmente não conseguia parar!” As discussões conjugais, já frequentes, tornam-se diárias
– “discutíamos por múltiplos motivos, mas sobretudo por causa do meu problema de jogo e também
pelas atitudes que ela sempre teve e que vão um bocado contra a minha maneira de ser. Chegou a
haver agressões físicas de parte a parte”. Da discussão final que o levou à separação fala pouco – refere
apenas que havia perdido a mais alta quantia da sua vida no casino num só dia - 300 euros - e que após
mais uma discussão foi “expulso de casa”.
A separação ocorreu em finais de Março de 2000, tendo o senhor dado entrada neste mesmo serviço
no dia 1 de Abril desse ano, com um episódio depressivo major. Permaneceu internado durante cerca de
um mês onde experimentou uma “evolução muito positiva” na sua condição. Após a alta começou tomar
medicação (Anafranil, Diplexil) e a ser seguido regularmente por um psiquiatra, realizando com ele
sessões de psicoterapia individual, que lhe permitiram permanecer “13 a 14 meses sem jogar”.
Após a alta, Rui alugou um quarto e passou a viver sozinho. Durante o tempo que permaneceu sem
jogar refere ter voltado a ter uma vida mais ou menos estável. Sempre de “costas viradas” para Helena
procurava, no entanto, permanecer em contacto constante com os filhos, que entretanto já não moram
juntos – João muda-se para casa dos avós paternos após a separação dos pais enquanto que Ricardo
permanece com a mãe.
Em Abril de 2002, Rui refere ter começado a insurgir-se contra a medicação – “perturbava-me as
capacidades intelectuais, retirava-me a criatividade e a imaginação, para além de me provocar
tremores”. Tal facto levou-o a faltar às consultas com receio de represálias por parte do psiquiatra.
Sensivelmente dois meses depois, um amigo desconhecedor do seu problema convida-o a ir com ele ao
bingo. Rui nunca tinha ido e resolve experimentar. Após este primeiro contacto começa a ir jogar bingo,
de uma forma mais ou menos esporádica, não se considerando um adicto na altura.
Em finais de Setembro, após o término de uma relação amorosa que entretanto encetara e que
considerou como “muito forte”, Rui sente-se completamente deprimido e regressa-lhe a ânsia de jogar.
“Mas não podia voltar ao bingo, tinha que ser algo mais forte. Porque nos bingos perde-se menos é
verdade, mas também ganhar é muito mais raro e os prémios são irrisórios”. Volta ao casino e piora
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consideravelmente, manifestando uma progressão rápida no sentido da adição: “Durante as primeiras
duas ou três semanas fui lá só para descontrair, mas a partir daí foi porque estava viciado outra vez”.
Apesar de tudo, a sintomatologia depressiva agrava-se. Regressam as preocupações com o jogo, as
mentiras e evasões, a irritabilidade, insónias e isolamento social. Acresce-lhe um sentimento de “solidão
terrível” e um completo desleixo com aspectos práticos da vida que Rui não admite, mas que são
relatadas pelo irmão e pelo seu colega. Diz Rafael que “o Rui não sabe viver sozinho. Ele nunca foi
muito arrumado e esteve sempre habituado a que lhe fizessem as coisas. Mas nos últimos tempos era
demais. Quando passava por casa dele era tudo péssimo. Ele fecha-se em casa, não abre os estores,
está sempre um cheiro nauseabundo e tudo numa balbúrdia, papéis espalhados por todo o lado. É a
decadência!” Rui começa a permanecer “dias inteiros” na cama, faltando às aulas sem dar qualquer
justificação e auto-repreendendo-se por isso – “os alunos precisavam de mim, mas eu não me sentia em
condições. Sentia que estava a trair a sua confiança e a dos meus colegas. Era uma situação que me
atormentava muito”. A única altura em que saia de casa era para ir ao casino…
Em Novembro regressa ao nível de perdas registados em Março de 2000, com a agravante de já não
ter o salário da mulher como suporte económico. O seu – cerca de dois mil euros – esfumava-se em
duas, três semanas. Nessa altura as dívidas – relacionadas sobretudo com a renda da casa - começam a
acumular-se e recorre a empréstimos (o irmão relata um no valor de 1250 euros a um amigo comum)
não para as pagar, mas para continuar a suportar o seu vício.
No dia de ano novo, a família estranha que não Rui não tenha “passado lá por casa”, como fazia
sempre. Preocupado por Rui permanecer incontactável, Rafael dirige-se a sua casa no dia 2 de Janeiro
com o intuito de saber notícias. Encontra uma casa vazia, mas razoavelmente arrumada, com presentes e
cartas de despedida para muitas pessoas significativas do Rui. “Percebi que decidira suicidar-se e fiquei
desesperado. Contactei amigos comuns e fomos procurá-lo”. Nessa altura Rui já estava perto da Boca
do Inferno, a contemplar as águas que “seriam a solução para os seus problemas”. “Tinha perdido tudo
o que era importante para mim. Sentia-me só, fazia-me falta uma companheira. Tinha acabado de
perder 350 euros ao jogo, e as dívidas eram cada vez maiores. Sobretudo, tinha perdido a minha
dignidade… Não era capaz de parar de jogar, só havia uma solução para acabar com o vício…”
No entanto, acaba por não se suicidar. Deambula pelas praias, “adiando o inevitável”, segundo as suas
próprias palavras. À meia-noite liga o telemóvel e Rafael consegue finalmente falar com ele e mediante
essa conversa chegar até Rui. Em seguida leva-o ao Hospital de Santa Maria, onde é visto pelo
psiquiatra de urgência e lhe é aconselhado o internamento, que Rui acata, embora “relutantemente”.
(segundo o irmão e a psiquiatra).
3.2 Dinâmica familiar
Porque os indivíduos não existem sozinhos é necessário saber um pouco mais das suas relações com a
família. Para Neuman, a família é perspectivada como um conjunto de elementos com identidade
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própria, é um sistema que afecta todos os aspectos de vida de um indivíduo, ou seja, qualquer mudança
que afecte o sistema pessoa afecta o sistema família sendo também verdade no sentido inverso
(Neuman, 1995). O Ecomapa e o Genograma (Anexo 1 e 2) constituem-se como instrumentos de
avaliação da estrutura familiar e da sua interacção com o exterior. Os dados representados resultam da
colheita de dados por parte do enfermeiro e devem, se possível, ser corroborados pelo utente e pessoas
significativas (Anjo, 1991).
Das suas relações familiares mais significativas há a destacar:
O seu pai, que tem 60 anos de idade, é tradutor e segundo Rui é uma “pessoa reservada e rígida,
que quando eu era novo passava muito tempo em casa devido à sua profissão – mais agarrado
aos seus livros do que a mim, apesar de tudo. Ele nunca foi uma pessoa de muitas conversas”.
Apesar de vários conflitos entre ambos, tanto o utente como o irmão concordam quando dizem
que Rui e o pai se toleram mutuamente;
A sua mãe com 59 anos e que neste momento é doméstica, apesar de ter sido dona e gerente de
uma loja de roupa durante muitos anos. Da sua mãe refere que “é uma pessoa triste, mas que
sempre me procurou apoiar da melhor maneira que podia, ao longo de toda a minha vida”.
Rafael corrobora esta versão, afirmando que a mãe “sempre foi uma pessoa que teve muita força,
mas que se vai abaixo de vez em quando, entrando em depressões”;
O irmão Rafael, que é 19 meses mais novo que ele. Rui diz nunca ter tido “conflitos de grande
monta com ele”. “Sempre foi meu amigo e confidente, apesar de o ver poucas vezes devido aos
seus afazeres no estrangeiro”. Sempre me ajudou e permaneceu ao meu lado nos momentos de
crise. Rafael, por seu lado, afirma “gostar muito do irmão e só querer o melhor para ele”;
A mulher, Renata, de quem se encontra separado. Descreve-a como uma pessoa descontrolada,
impulsiva, frívola, muito controladora em relação aos filhos, particularmente o mais velho. Em
entrevista, Rafael considera-a “a fonte de todos os problemas do irmão”. “Ainda não sei o que é
que ele viu nela. É uma pessoa falsa, invejosa e pretensiosa”;
O filho mais velho, João, presentemente com 18 anos e que saiu de casa após a separação dos
pais, “completamente revoltado com a mãe e chateado com algumas atitudes do pai” (Rafael),
tendo-se mudado para casa dos avós paternos. Rui sente que, apesar de tudo, já consegue ter uma
boa relação com João;
O filho mais novo, Ricardo, com 14 anos de quem Rui afirma “gostar imenso” e ter “muita pena
de não ver tanto quanto desejaria, uma vez que vive com a mãe”. Sempre fomos muito amigos e
nunca nos chateámos. É um desgosto para mim não passar muito tempo com ele”;
O melhor amigo, Renato, que o tem “ajudado imenso”. “Foi ele que me substituiu a dar aulas e
ajudou-me a manter o emprego ao ir falar com o Reitor. Estaria bem pior se não fosse ele”.
É também de destacar um avô do lado paterno que aparentemente era um “boémio” (segundo
Rafael) e que “perdeu muita da fortuna da família ao jogo” (Rui).
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3.3 Relação da História de Vida com a Literatura
Com a análise da história de vida e da dinâmica familiar do senhor Rui conclui-se que vários foram os
factores que podem ter contribuído para a sua dependência de jogo. O facto de já haver registos de
perturbações semelhantes na sua família pode indicar uma predisposição genética para este
comportamento, como Saiz e Ibanés (1999) sugerem. Freud (1961) por seu lado, atribui ao jogo uma
conotação sexual e “compara o jogo patológico com uma compulsão masturbatória em resposta a um
sentimento de culpa edipal” (Freud, 1961 cit. Lamberton e Oei, 1997, p.93). O facto do seu pai estar
muitas vezes ausente (não em casa, mas ausente para ele) e de o castigar frequentemente contribuiu
para um ambiente interno instável, em que a tensão se ia acumulando lentamente, constituindo o jogo
uma maneira de a libertar. Esta ideia é confirmada por Jacobs (1989) que identificou uma tendência para
os jogadores patológicos responderem a uma reportada frustração e infelicidade na sua infância e
adolescência através da combinação de fantasias de negação e de satisfação de desejos e sugere que
estes tenham procurado experiências de jogo onde se sentissem aceites, admirados e amados
(Townsend, 1993).
O jogo no casino surge num momento de grande stress pessoal para o senhor Rui. Aos problemas de
foro conjugal, já frequentes na altura e à mudança para uma casa diferente (que, para ele, se encontrava
caótica devido ao “cão infernizante”) acrescentou-se a tese de doutoramento que lhe roubou imenso
tempo para a família e para si próprio. Assim, é muito possível que, como Bergler (1975) sugere e como
o próprio Rui deixa implícito, este tenha procurado o casino Estoril como um escape emocional para os
seus problemas, buscando no conforto fisiopsicológico do jogo um alívio para uma realidade que se lhe
afigurava cada vez mais dolorosa e difícil de lidar. O jogo patológico acabou por surgir como o
resultado de ansiedade associada a estados de humor disfóricos que surgiram como consequências de
estratégias de coping inadequadas (Blaszczynski, 1999).
Toda a sintomatologia descrita pelo senhor Rui enquadra-se dentro dos critérios de diagnóstico do
DSM-IV – TR (American Psychiatric Association), nomeadamente:
A preocupação excessiva com o jogo e com a obtenção do suporte financeiro para jogar;
A necessidade de aumentar as quantias apostadas no sentido de obter a desejada excitação;
As tentativas falhadas de controlar, reduzir ou parar o comportamento face ao jogo;
A inquietude ou irritabilidade quando tenta reduzir ou parar de jogar;
O acto de jogo como forma de escape a problemas e/ou forma de alivio de humor disfórico
(sentimento de desamparo, culpa, ansiedade e depressão);
As perdas repetidas ao jogo e comportamento de “resgate” no sentido de as recuperar;
As mentiras à família quanto à extensão e envolvimento no jogo;
O pôr em risco (e acabar por perder) relações significativas por causa do jogo;
Contar com os outros para obter dinheiro com o fim de regularizar uma situação financeira
desesperada devido ao jogo.
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É de frisar que os quatros primeiros sintomas correspondem à obsessividade, aumento de tolerância,
perda de controle e síndroma de abstinência face ao jogo, “imagens de marca” do fenómeno da adicção
(Jacobson, 1997). Daí poder-se afirmar que o senhor Rui está dependente de um comportamento – o
jogo.
A própria maneira como ele entra no jogo é em tudo semelhante às adições. Não só devido ao stress,
mas também enquanto vontade de fazer algo novo e diferente do quotidiano, Rui vai ao casino em busca
de uma sensação agradável que já obtivera com os jogos da infância e numa experiência prévia com o
jogo de máquinas durante a adolescência. Procura a excitação e sensações agradáveis, não apenas com o
acto de jogar, mas provenientes da própria aposta e da expectativa do lucro. Esta sensação é semelhante
ao «high» dos toxicodependentes e vai reforçar a sua vontade de jogar, criando dependência psicológica
(Bergler, 1975). O aumento da frequência do jogo corresponde ao mecanismo de uso-abuso-
dependência das adicções. Esta mudança é gradual e insidiosa e na fase final assume proporções de não-
retorno, isto é, uma pessoa que atinge o nível de dependência será dependente toda a vida. Neste sentido
o jogo patológico deve ser encarado como uma doença crónica que pode, apesar de tudo, ser controlada
(Gettings e McCuster, 1997). Para isso é essencial, em primeira instância, uma compreensão e aceitação
da doença por parte do senhor Rui, bem como uma (força de) vontade em se manter afastado do vício.
Este seu “querer” deve ser acompanhado por estruturas de apoio adequadas quer a nível familiar, quer
comunitário, de modo a prevenir as recaídas após a implementação do tratamento (O’Brien, 1999).
Como todas as dependências, o jogo tem os seus custos e acarreta várias consequências negativas para
a pessoa. A depressão é um fenómeno que surge muitas vezes associado a este tipo de problema (Kaplan
et al, 1997) e que é normalmente despoletado por duas ordens de factores: predisponentes e
precipitantes (Serra, 1999). Os factores predisponentes mais habituais são de ordem genética e/ou
biológica. Neste capítulo, é de realçar o facto de a mãe do senhor Rui ter uma depressão diagnosticada
há vários anos, “transmitindo” assim uma potencial vulnerabilidade hereditária ao filho. Os factores
precipitantes estão muitas vezes relacionados com o stress e com “perdas que os sujeitos sofram”
(Wolpert, 2000). E não há dúvida que o jogo induziu muitas perdas ao senhor Rui, não apenas a nível
económico, mas igualmente físico, psicológico, social, nas relações, ocupação e na sua própria auto-
estima.
Destas perdas advêm os sentimentos de tristeza, vazio e aborrecimento; a diminuição da sua energia,
fadiga e lentidão; a perda de interesse e prazer nas actividades diárias; o pessimismo e desesperança; os
sentimentos de culpa, de auto-desvalorização e de ruína; as alterações de concentração, memória e
raciocínio e, por fim, as ideias de morte e tentativas de suicídio, sinais característicos de um episódio
depressivo major (American Psychology Association). Estes sintomas associam-se aos problemas
causados pelo jogo e perturbam significativamente o rendimento no trabalho, a vida familiar e o simples
existir da pessoa doente, que sofre intensamente (Matos, 2001).
Segundo a médica psiquiatra que acompanha o senhor Rui, a depressão com que ingressou no serviço
é “um fenómeno reactivo derivado ao jogo”, cujo tratamento se constitui como objectivo imediato do
13
internamento. No entanto, ”apenas com a resolução do problema de base (o jogo patológico) é que se
evita o aparecimento de novas depressões e se acaba com o círculo vicioso em que o senhor Rui se
encontra”. Esta ideia vai ao encontro aos estudos de Ladoucer e Sylvain (1999) que sugerem um
esquema de tratamento para este tipo de situações em que a cura da depressão se constitui como meta a
curto prazo, ao mesmo tempo que se mobilizam recursos para providenciar uma boa
reabilitação/recuperação da adicção ao jogo. Foi com base neste esquema que todo o internamento foi
delineado.
3.4 Levantamento dos factores de stress
Segundo Serra (1999) desde que nos encontramos na barriga da nossa mãe que somos afectados pelo
ambiente que nos rodeia e é a partir desse mesmo momento que tomamos um primeiro contacto com o
stress, que nos irá acompanhar ao longo de toda a nossa vida. O senhor Rui não é excepção: a crer pela
sua história de vida foi sujeito a agentes estressores desde muito cedo. A figura paternal ambígua,
muitas vezes ausente, mas demasiadamente severa quando presente, que o “castigava com o cinto”
durante a sua infância pode ter tido graves repercussões no seu crescimento saudável, constituindo uma
crise do desenvolvimento importante, que o afectou a nível da formação da personalidade. Assim,
apesar de Rui nunca se ter referido explicitamente a este evento, deve-se considerá-lo como factor de
stress pois, tal como Neuman (1999) preconiza, qualquer crise do desenvolvimento assume-se como
stressor para um indivíduo, mesmo que esta não seja percepcionada como tal pelo utente.
Até à data do primeiro internamento Rui foi sujeito a vários factores de stress, conseguindo-os atenuar
através do ajuste continuo da sua linha flexível de defesa, adaptando-se progressivamente a situações
em que o nível de bem-estar era menor. As incompatibilidades conjugais, com discussões frequentes
com a mulher; o trocar de casa, com todos os problemas que são inerentes a este tipo de mudança; a
perda de bens de estimação e um sentimento diário de falta de controlo e desorganização devido à
compra de um animal doméstico; finalmente a entrada para o curso de doutoramento com toda a
ansiedade, gasto de tempo e preocupações normais deste tipo de situações, tudo se foi acumulando e
aumentando o desgaste físico e emocional do senhor Rui, ameaçando o seu sistema de falência. O jogo
pode ter surgido como uma derradeira tentativa de alcançar um bem-estar, harmonia e equilíbrio há
muito perdido. Mas como reza a tradição popular, foi “pior a emenda que o soneto”, porque a
dependência do jogo que se originou a partir daqui constituiu-se talvez como o maior factor de stress de
todos, agravando a situação em vez de a resolver, ao mesmo tempo que criou novas dificuldades e
problemas ao senhor Rui, que a partir de certo momento se constituíram como factores de stress
independentes.
A separação conjugal, associada a perdas monetárias elevadas, foram os derradeiros factores de stress
antes desse internamento, penetrando profundamente as linhas normais de defesa e começando a pôr em
risco o CORE. Rui dá entrada então neste serviço e o acompanhamento psiquiátrico, tratamento
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farmacológico, apoio do irmão e quiçá o tempo, acabam por fazer “sarar algumas feridas” e conferir
alguma estabilidade ao sistema. Isto, principalmente, porque o agente estressore principal – a
dependência do jogo – havia sido controlada. No entanto, devido às características da patologia (uma
adicção, fenómeno crónico), este factor de stress subsistirá sempre, a nível intrapessoal, porque é uma
luta diária da vontade de Rui face ao impulso de jogar.
Após o internamento afiguram-se-lhe novas dificuldades, novos agentes estressores. Terá agora que
viver sozinho, algo que nunca havia acontecido, terá que ser independente e resolver por ele próprio
todos os afazeres práticos da vida quotidiana. Por outro lado encontra-se agora mais afastado dos filhos:
com o mais velho pouco fala, uma vez que este ficou ressentido com todo o episódio da separação.
Apesar de tudo, constata que há uma maior aproximação entre eles e a ansiedade a esse nível reduz-se,
embora o seu relacionamento ainda seja, neste momento, muito fraco. O que o preocupa realmente é o
seu filho mais novo, Ricardo. Com esse sempre teve uma relação forte, mas ele permanece com a mãe e,
por esse motivo, Rui não o vê tantas vezes quanto desejaria.
Talvez numa tentativa de superar o sentimento de solidão e conseguir dar uma maior organização à
sua vida, eliminando (ou pelo menos atenuando) deste modo dois factores de stress “de uma só
cajadada”, Rui enceta uma relação amorosa que acaba por correr mal (novo agente estressor) e que o
leva a incorrer novamente no jogo de casino, almejando uma sensação de bem-estar e equilíbrio –
apenas aparente e a curto prazo, contudo.
A dependência do jogo, factor de stress “invisível”, mas omnipresente instala-se mais rapidamente
que nunca, aproveitando linhas de defesas já fragilizadas e despoleta todo um ciclo que culmina com a
tentativa de suicídio e consequente internamento.
Já no contexto deste internamento, foi-me possível identificar vários factores de stress que podem
influenciar o seu desenvolvimento pessoal e corromper a integridade do seu sistema. Estes devem ser
levados em linha de conta durante a elaboração do plano de cuidados, no sentido de melhor planear
intervenções que promovam ao máximo o restabelecimento/reconstituição das linhas de defesa e do
equilíbrio do sistema.
3.4.1 Factores de stress intrapessoais
Dependência e ambivalência face ao jogo – Uma das maiores preocupações de Rui no internamento
é relativa à sua situação de jogo. Manifestava uma baixa de auto-estima acentuada, referindo em tom
desiludido e triste sentimentos de impotência e frustração profunda por não ter conseguido manter o
controlo sobre o vício e atitudes de desesperança face ao futuro. Permanecia apático e passivo,
demasiado centrado em si e nos seus próprios problemas.
Por outro lado, a ambivalência entre o querer tratar-se e o desejo de continuar jogar , bem como o
síndroma de abstinência característico da doença suscitaram-lhe outros problemas de ordem
psicofisiológica, nomeadamente ansiedade e insónias.
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Insónias – O próprio facto de não conseguir dormir, apesar de ser uma consequência da sua patologia
(acorda a pensar no jogo) não invalida que tal não deixe de se constituir como um factor de stress e que
lhe provoque bastante fadiga.
Efeitos secundários da terapêutica – O receio já manifestado previamente ao internamento de que a
terapêutica prescrita lhe cause problemas no mecanismo de cognição e memória e que lhe perturbe a
actividade laboral, permite designar esta variável como factor estressor. Pode inclusivamente levar ao
abandono ou recusa da terapêutica.
3.4.2 Factores de stress interpessoais
Carências afectivas – O senhor Rui afirma sentir-se “muito só” e precisar de alguém que o ame e que
cuide bem dele, apesar de rejeitar a mulher nesse papel. Apesar disso, acaba por entrar por vezes numa
situação de isolamento social – consequência da depressão que o acomete – o que dificulta o
estabelecimento de relações significativas.
3.4.3 Factores de stress extrapessoais
Incapacidade de cumprir tarefas laborais – Apesar de se encontrar de baixa o senhor Rui ainda se
sente responsável pela cadeira que lecciona e pelos alunos que a frequentam. O facto de não poder estar
presente nas aulas, assumindo um papel passivo enquanto professor, tem-no vindo a “incomodar”.
Acumular de Dívidas – As contas que tem para pagar relativas à água, electricidade, telefone e renda
da casa ascendem a 3000 euros e o seu saldo bancário anda “nos mínimos”. Assim, a sua situação
económica está comprometida e tal facto constitui-se como factor de stress.
3.5 Levantamento dos Factores de reconstituição
A vida não é apenas feita de aspectos negativos e, neste sentido, existem não só factores de stress que
têm o potencial para agravar a situação do senhor Rui, mas igualmente factores de reconstituição que
devem ser identificados e mobilizados pelos profissionais de enfermagem para, no âmbito de uma
intervenção multidisciplinar, ajudarem o utente a repor/manter o equilíbrio no seu sistema.
Analisando a história de vida do senhor Rui concluí-se que a forte ligação de amizade e confiança que
nutre quer pelo irmão Rafael, quer pelo seu melhor amigo Renato, pode funcionar a favor da sua
reabilitação. Por outro lado, o facto de ainda manter o seu emprego e o rendimento razoavelmente
elevado que daí advém, constitui-se igualmente como um factor positivo, podendo funcionar como um
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ponto de partida importante para a resolução dos seus problemas económicos. Por fim, o próprio
internamento pode ser encarado como factor de reconstituição, na medida em que fornece ao senhor Rui
estruturas de acompanhamento e apoio importantes na luta contra a sua doença, dando suporte a nível da
situação de crise e igualmente após a alta.
4. PLANO DE CUIDADOS
Com base na apreciação feita à história de vida do senhor Rui e atendendo aos factores de stress e de
reconstituição encontrados, procurou-se delinear um plano de cuidados adequado à pessoa em questão,
que lhe permitisse reconstituir/manter o equilíbrio do sistema, fortalecendo as suas linhas de defesa.
Por motivos estruturais e de compreensão do trabalho, vai-se proceder à identificação individual de
cada problema de enfermagem encontrado, delineando-se em seguida os objectivos de enfermagem,
intervenções de enfermagem (a nível primário, secundário e/ou terciário) e avaliação dos resultados
respectivos.
Problema: Risco de suicídio, potenciado por uma história recente de tentativa de suicídio,
depressão e problemas não-resolvidos de vária ordem (físicos, psicológicos, sociais e económicos).
Objectivos de enfermagem: Que Rui não manifeste intentos de pôr término à sua vida, ajudando-
o a confrontar e resolver os seus problemas ao invés de fugir deles. Evitar a tentativa de suicídio
caso esta seja manifesta, protegendo a vida do utente.
Intervenções de enfermagem: A nível da prevenção primária é importante existir uma maior
vigilância do utente e estar-se atento em relação aos sinais de alarme do suicídio. Os avisos
suicidas devem ser levados a sério, procurando-se o feedback do utente em relação ao que o leva a
assumir tal atitude. Em caso de melhoria súbita da sintomatologia depressiva há que redobrar a
atenção, porque pode indicar a “calma” típica de um suicida resoluto. Toda a equipa deve estar
informada do potencial suicida do utente, de modo a promover uma acção mais concertada no
sentido de o evitar. Deve-se implementar acções para combater a baixa auto-estima e isolamento
social, bem como para reduzir a ansiedade. A nível da prevenção terciária, destaca-se o ensino aos
familiares e pessoas significativas em relação aos sinais de alarme e aos recursos que podem
mobilizar nestas situações.
Avaliação dos resultados: Ao longo de todo o internamento não foi detectado pela equipa
qualquer sinal de alarme ou tentativa de suicídio, apesar de, sensivelmente duas semanas após o
internamento, Rui demonstrar melhoras substanciais da sua depressão e uma calma e tranquilidade
atípica. No entanto, essa condição manteve-se mais ou menos uniforme no restante internamento
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sendo por isso, no entender da psiquiatra “um bom sinal de recuperação e que valida a hipótese de
depressão reactiva”. Nesta altura, Rui procura-me por sua iniciativa porque precisava de “falar
sobre os seus problemas”. Nessa altura, admite que o que aconteceu na Boca do Inferno foi uma
atitude “insensata” da sua parte e que não pensa em voltar a repeti-lo. Foi igualmente discutido
com o irmão todo o episódio de 2 de Janeiro e feito o ensino em relação aos sinais de alarme e
intervenções adequadas a ter nessas situações. Rafael aparentemente compreendeu e agradeceu a
informação prestada.
Problema: Baixa de auto-estima relacionada com incapacidade para controlar o impulso de jogar e
de inverter o ciclo de perdas e dificuldades que esta adição lhe proporcionou e manifestada por:
expressão de um sentimento de desesperança e inutilidade; avaliação de si mesmo como incapaz
de defrontar a situação e os acontecimentos actuais; verbalizações autonegativas; conduta indecisa
e pouco assertiva.
Objectivos de enfermagem: Que Rui consiga aprender a lidar com a frustração, identificando e
mobilizando estratégias de coping adequadas à resolução dos seus problemas e que este adquira
um auto-conceito positivo de si próprio.
Intervenções de enfermagem: A nível da prevenção secundária deve-se: encorajar o senhor Rui a
participar em actividades de grupo que possam devolver feedback positivo e apoio dos seus pares;
procurar promover o auto-conceito positivo do utente através da obtenção de uma relação de
confiança e dando uma resposta positiva ao seu progresso, o que ajudará a modificar o seu estilo
de vida; providenciar reforços positivos de modo a aumentar a auto-estima e a encorajar o utente;
estimular a relação interpessoal e promover o desenvolvimento de actividades que facilmente
obtenham bons resultados. A nível da prevenção terciária há que fazer apelo às pessoas
significativas de Rui para que procurem estimulá-lo e o envolvam em actividades significativas
para ele e incentivá-lo para que ele próprio procure que fazer. Por outro lado, afigura-se como
muito positivo estabelecer um contacto com grupos de auto-ajuda como os Jogadores Anónimos
que providenciarão um maior apoio na alta e que transmitirão ao utente e família conselhos e
estratégias de coping face ao jogo, ao mesmo tempo que promovem, com o seu exemplo pessoal
de “sucesso”, um optimismo e esperança a Rui e aos seus.
Avaliação dos resultados: Os resultados foram positivos, tendo havido um incremento gradual na
auto-estima e na percepção do self como capaz de resolver problemas intra, inter e extrapessoais
por parte do senhor Rui. É de realçar o entusiasmo com que acolheu a notícia de que existia uma
associação de Jogadores Anónimos (JA) em Portugal e o seu desejo de falar com um dos membros
e, se possível, aderir. É também de louvar o esforço empregue em conseguir que tal fosse possível,
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tendo havido um verdadeiro trabalho multidisciplinar entre a médica psiquiatra que acompanha o
utente, a assistente social do serviço e eu próprio, no sentido de providenciar uma oportunidade ao
utente e família (pois o irmão também queria participar - “para conhecer um pouco mais acerca
da doença e poder ajudar o meu irmão de outra forma”) para que tal fosse possível. Infelizmente,
até à data do final do meu estágio tal não havia sido possível, por indisponibilidade do membro da
Associação. No entanto, a reunião ficou em stand-by e é muito importante que ela chegue a
ocorrer porque a possível adesão do senhor Rui pode-se constituir como um passo fundamental no
seu processo de cura e reabilitação, contribuindo decisivamente para que não volte a ter recaídas e
para que possa reconstruir e harmonizar a sua vida.
Problema: Ansiedade relacionada com sentimento de ambivalência face ao jogo, problemas psico-
socio-económicos que este suscitou e com desconhecimento face ao futuro e manifestada por:
agitação, insónias, irritabilidade, preocupações crescentes, aumento da frequência cardíaca (nos
dias em que se confessou ansioso, houve registos de pulsações até 120 p/m, sendo o seu “normal”
90 p/m), dificuldades de concentração.
Objectivos de enfermagem: Ajudar Rui a compreender o porquê da sua ansiedade e trabalhar
com ele, com a sua família e com a equipa multidisciplinar no sentido de encontrar, dentro do
possível, soluções satisfatórias para os seus problemas, reduzindo assim a sua ansiedade.
Intervenções de enfermagem: A nível da prevenção secundária deve-se procurar proporcionar ao
utente um ambiente terapêutico seguro, tranquilo e positivo. Deve procurar-se estabelecer uma
relação empática e de confiança e demonstrar-se disponibilidade e interesse em ouvir o que ele tem
para dizer, permitindo-lhe expressar as suas preocupações livremente. Este “expressar” das
angústias pode, só por si, reduzir a ansiedade do utente. Deve-se incentivá-lo a aderir a
experiências de grupo e actividades como o relaxamento, música e movimento ou pintura. A
manutenção de um suporte farmacológico adequado é também essencial. É importante que se
trabalhe com toda a equipa multidisciplinar (onde o utente e família se incluem) no sentido de
eliminar/atenuar factores de stress que possam estar a contribuir para a ansiedade. Neste sentido,
quase todas as intervenções descritas podem servir para a redução do estado ansioso do utente, na
medida em que promovem a resolução dos seus problemas. No que diz respeito à prevenção
terciária deve-se trabalhar com o utente, numa perspectiva de alta, estratégias de manejo do stress
e promover a adesão à prática de actividades redutoras de ansiedade (como o exercício físico ou
massagens, por exemplo). Deve-se igualmente procurar mobilizar recursos comunitários que
possam ajudar Rui a lidar melhor com a problemática do jogo, afinal o sua maior fonte de
ansiedade.
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Avaliação dos resultados: Rui tem-se mostrado progressivamente menos ansioso. A irritabilidade
fácil que lhe era característica no início do internamento desapareceu. A frequência cardíaca
estabilizou e mantém-se dentro do padrão que é normal para ele. Afirma “estar menos nervoso”,
por um lado porque compreende melhor a sua patologia e por outro porque os seus problemas a
nível económico e laboral parecem bem encaminhados (como isto aconteceu é explicado mais
tarde). Considera as actividades de musica e movimento, relaxamento, pintura, modelagem em
barro e desenho realizados no âmbito do serviço como muito importantes (“porque para além de
me distraírem, e de eliminarem algum do aborrecimento inerente a cá estar ainda me relaxam e
fazem-me perceber que não sou um inútil, ainda sou capaz de fazer muitas coisas”) e agradeceu-
me por ter “puxado” por ele a inicio, para que a elas aderisse. Demonstrou igualmente iniciativa
própria de entrar numa actividade relaxante após a alta o que é muito positivo –» quando fomos
num passeio de grupo ao museu da cidade passámos por uma rapariga que estava a praticar tai chi
num jardim. Eu achei curioso e comentei o facto, referindo (sem quaisquer segundas intenções,
confesso) que existiam reuniões semanais grátis dessa arte marcial/técnica de relaxamento. Qual
não é o meu (agradável) espanto, quando no dia seguinte o senhor Rui se dirige a mim,
perguntando o local e a data de tais encontros. Felizmente, ainda me lembrava: é nos jardins de
Belém, todos os Sábados, às 10h! Ele agradeceu e disse que provavelmente iria experimentar,
porque “adora” de tudo o que é oriental e gostou muito do resultado das sessões de relaxamento
que fez no serviço.
Problema: Deterioro do padrão de sono relacionado com ansiedade, síndroma de abstinência do
comportamento do jogo e/ou depressão e manifestado por: queixas verbais de dificuldade em
conciliar o sono; queixas verbais de não se sentir bem descansado; insónias matinais.
Objectivos de enfermagem: Que Rui consiga restabelecer o seu padrão de sono normal e obtenha
o descanso essencial a uma boa recuperação física e psicológica dos seus problemas.
Intervenções de enfermagem: A nível da prevenção secundária deve-se procurar proporcionar ao
utente um ambiente nocturno confortável e promotor de um bom padrão de sono, reduzindo ao
máximo quaisquer estímulos incomodativos, como luzes ou sons. Podem-se proceder ao deitar a
técnicas como massagens, que induzem uma sensação de relaxamento e bem-estar “propícia” ao
sono. Deve-se igualmente assegurar um bom tratamento farmacológico da situação. Intervenções
ao nível da redução da ansiedade e promoção da auto-estima podem igualmente ser benéficos. A
nível da prevenção terciária é importante que se ensine (ou recorde) técnicas e estratégias de
relaxamento simples com boa aplicação para as insónias (desde o “contar carneiros” até à
musicoterapia).
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Avaliação dos resultados: As insónias foram uma constante de Rui ao longo de quase todo o
internamento. Se bem que a início possam ter sido induzidas pela terapêutica anti-depressiva
(Anafranil*) e pelo facto de não lhe ter sido prescrito qualquer ansíolítico (que usava normalmente
já antes de ter dado entrada no serviço – a sua médica foi informada deste facto), o que é certo é
que mesmo após duas semanas de internamento e já a tomar Morfex, Rui continuava com queixas
frequentes de “acordar a meio da noite” a pensar no jogo. Só quase no fim da minha experiência
com ele é que revelou estar melhor deste problema, em parte, segundo ele, devido à técnica de
relaxamento muscular progressivo de Jocobson, que lhe ensinei e que propus que realizasse ao
deitar. Por outro lado, e ainda de acordo com as suas palavras, a verdade é que estava mais
descansado e confiante que iria superar o problema do jogo e que isso permitia-lhe dormir melhor.
Problema: Risco de abandono ou recusa da terapêutica relacionado com efeitos secundários da
medicação instituída indesejáveis e perturbadores para a pessoa e com episódio prévio de
abandono de medicação. É manifestado por: inúmeros receios por parte do senhor Rui de que
ocorram tremores e perturbações cognitivas que comprometam as suas actividades laborais e
sociais.
Objectivos de enfermagem: Que Rui consiga compreender a importância do uso de medicação
para a sua total recuperação/reabilitação e que não a abandone, apesar de potenciais efeitos
secundários adversos; ajudar o utente a adoptar mecanismos de coping adequados face a esta
situação.
Intervenções de enfermagem: A nível da prevenção secundária deve-se procurar indicar este
risco ao médico responsável pelo utente, de modo a que este possa eventualmente negociar com o
utente um regime terapêutico mais favorável e com uma menor susceptibilidade de surtir efeitos
secundários indesejáveis; deve-se assistir e apoiar esta negociação, complementando a informação
médica em relação aos benefícios da continuação da terapêutica no processo de cura e na
prevenção de recaídas; adoptar intervenções no sentido de promover a auto-estima e reduzir a
ansiedade; validar com o utente o conhecimento que tem acerca dos eventuais prejuízos que
podem advir do interromper da medicação. A nível da prevenção terciária é importante lembrar
Rui que deve consultar o médico caso surjam efeitos secundários, pois estes podem ser devidos a
um excesso de dosagem, por exemplo, e constituir problemas de fácil resolução. Deve igualmente
dirigir-se às consultas caso efeitos secundários já existentes se agravem consideravelmente num
curto espaço de tempo. Por outro lado, convém alertar os próprios familiares e amigos do senhor
Rui para esta problemática, para que estejam atentos e possam funcionar como agentes preventivos
e de apoio ao ente querido.* a lista da medicação prescrita para o senhor Rui ao longo de todo o internamento encontra-se exposta no Anexo 4
21
Avaliação dos resultados: O senhor Rui manifestou uma maior compreensão dos fenómenos
associados aos medicamentos, tendo participado activamente numa reunião com a médica em que
foi negociada e revista toda esta situação. Tem esperanças que no futuro não o acometam tantos
efeitos secundários, mas refere que caso estes surjam tentará resolver os problemas “um a um”
com a sua médica assistente. O seu irmão Rafael e também Renato estão alertados para esta
situação e referem que vão procurar “controlar” o senhor Rui... por exemplo, perguntando-lhe se
tem tomado a medicação e igualmente incentivá-lo e apoiá-lo neste acto.
Problema: Isolamento social relacionado com a depressão, com a problemática do jogo e com
vivência solitária numa casa, com ausência de uma companheira ou pessoa significativa mais forte
que o acompanhe continuamente. É manifestado por verbalizações de incapacidade para auferir
uma sensação de pertença, carinho, interesse ou história compartilhada num passado recente e por
interacção disfuncional com companheiros, família e amigos.
Objectivos de enfermagem: Que Rui deixe de se alhear do mundo exterior e seja capaz de
procurar o estabelecimento/fortalecimento de relações interpessoais e de lidar com as outras
pessoas de uma forma adequada e salutar.
Intervenções de enfermagem: A nível da prevenção secundária deve-se procurar proporcionar
um ambiente terapêutico seguro, tranquilo e positivo, que não promova um aumento de
dependência e alheamento; ajudar Rui a realizar o que quer que esteja ao seu alcance e que seja
vantajoso e útil para ele, sem reforçar comportamentos de dependência; mostrar disponibilidade e
transmitir reforços positivos por comportamentos independentes; explorar sentimentos com o
utente e ajudá-lo a aperceber-se de comportamentos que são originados pelos medos e de como
interferem nas relações. Por outro lado, devem-se também mobilizar intervenções já descritas
relativamente à baixa auto-estima e ansiedade, por exemplo no que concerne às actividades e
terapias de grupo e à exploração de problemas. Em termos de prevenção terciária deve-se procurar
fornecer um suporte social minimamente estável após a alta para o utente e tentar envolvê-lo em
actividades que considere enriquecedoras e satisfatórias e que o coloquem mais em contacto com
outras pessoas. A sua família e amigos podem ajudar nesta tarefa.
Avaliação dos resultados: Este problema foi percepcionado no inicio do internamento, mas com a
rápida evolução da sintomatologia depressiva em breve este isolamento deixou de se registar.
Apesar de tudo ainda houve tempo para se explorarem sentimentos do utente, mediante uma breve
conversa (para não correr o risco de quebrar a relação terapêutica revelando-me demasiado
intrusivo a um nível ainda muito inicial de contacto) que Rui considera ter ajudado a superar a
22
crise. Achei por bem colocar este problema então, sobretudo por causa da prevenção terciária. Tive
um cuidado muito grande em tentar analisar com o senhor Rui o porquê das suas “dificuldades”
com as mulheres. Acabámos por chegar à conclusão que havia algumas culpas dele, devido ao seu
carácter muito impulsivo e possesivo no que toca às relações. Tal deixou-o “pensativo”, como me
referiu mais tarde, e acabou por me afirmar que iria ter um pouco mais de cuidado com este
aspecto da próxima vez que tentar encetar um relacionamento. A eventual entrada para os
Jogadores Anónimos, o suporte a nível de trabalho, família e amigos (como Rafael e Renato me
garantiram que iam fornecer) e, quem sabe, a ida todos os sábados ao Tai-Chi permitem-me pensar
numa evolução positiva face a este capítulo.
Problema: Situação económica comprometida relacionada com a dependência do jogo e
manifestada por: acumular de despesas sobre bens essenciais não pagas; falta de recursos
financeiros; recurso a empréstimos para resgatar as dívidas; ansiedade; impotência; desespero.
Objectivos de enfermagem: Que Rui consiga desenvolver a sua actividade laboral de uma forma
normal e que se abstenha de actos de jogo, para assim poder resgatar as suas dúvidas mediante os
seus próprios recursos.
Intervenções de enfermagem: A nível da prevenção secundária é essencial proceder a
intervenções no sentido de prevenir a ansiedade e a baixa auto-estima. Deve-se procurar também
analisar com o utente o seu problema de jogo e procurar destrinçar o que o leva a jogar, divisando
estratégias no sentido de evitar este tipo de comportamento no futuro. É importante igualmente
discutir com o senhor Rui os recursos que ele tem disponíveis para o pagamento das dívidas,
incentivando-o a mobilizar os possíveis. É conveniente pôr-se a Assistente Social a par da
situação, uma vez que ela pode fornecer meios de apoio comunitários inacessíveis ao senhor Rui
enquanto mero cidadão.
Avaliação dos resultados: Os resultados a este nível foram positivos, na medida em que se
conseguiu mobilizar um dos recursos de apoio mais importantes de qualquer indivíduo – a família
e os amigos. O seu irmão Rafael disponibilizou-se a pagar do seu próprio bolso metade do
montante em dívida, para impedir que o irmão “ficasse sem casa”. O seu amigo Renato, já havia
feito algo muito importante. Substituiu o Sr. Rui nas aulas e contribuiu assim decisivamente para a
manutenção do emprego deste. O facto de o montante em dívida não ser assim tão elevado (é
possível de ser resgatado com dois meses de salário de Rui – também ajuda em muito ao bom
prognóstico desta situação. Tudo depende agora da evolução do senhor Rui face ao jogo. Se voltar
aos casinos tudo se afigura mais complicado. Mas este momento não parece provável de suceder a
curto prazo. Segundo as palavras da médica psiquiatra “o senhor Rui está muito melhor e aparenta
23
ter a força de vontade e as estruturas de apoio suficientes para se manter longe do jogo pelo
menos durante algum tempo”.
5. CONSIDERAÇÕES GERAIS E CONCLUSÃO
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Ao longo de todo o tempo que estive com o senhor Rui pude constatar uma evolução muito positiva
em todos os aspectos da sua condição. Desde uma fase inicial e (felizmente!) breve em que se
encontrava muito deprimido, ansioso, isolado e apático em relação a tudo o que o rodeava, com os
padrões de sono completamente trocados, uma baixa de auto – estima muito grande, um sentimento de
impotência face ao controlo sobre o seu impulso de jogar e uma desesperança em relação ao futuro até
ao momento em que o deixei – e onde tive o prazer de constatar que sorria, brincava com as outras
pessoas, assumia uma atitude positiva face à vida e aparentava forças para enfrentar a “sua”
dependência – passou sensivelmente um mês.
Ao longo de toda a minha intervenção e independentemente do que já escrevi até agora, procurei
sempre duas coisas essenciais:
1) fazer com que o senhor Rui compreende-se em pleno as características e implicações do seu
problema de jogo – sobretudo, compreender que o jogo patológico é uma doença, não um vício
assumindo-se como algo crónico – um impulso, muito semelhante ao fenómeno das adicções,
para jogar que deve ser combatido diariamente. Assim, é essencial que o senhor Rui evite
qualquer tipo de jogo (particularmente, como é obvio, jogos que envolvam apostas monetárias),
porque nestes casos “à primeira vez é de vez” – uma única “jogatana” pode ser sinónimo de uma
recaída. Tentei um grande número de estratégias para faze-lo compreender isso. A que melhor
resultou, no meu entender, foi ter-lhe fornecido alguns artigos sobre o jogo patológico, literatura
que encontrei na Internet e igualmente um esquema com alguns tópicos acerca do mecanismo da
adicção aplicado ao jogo. Lembrei-me de usar este recurso porque o senhor Rui é professor de
um curso relacionado com a área de Letras e não houve um único dia que não o tivesse visto a
ler. Assim, e recordando-me das aulas da disciplina de Educação para a Saúde, procurei “chegar”
ao senhor Rui por via de um meio com que este se identificasse, porque sabia que teria maiores
possibilidades de o fazer reter a informação. Assim, entreguei-lhe a documentação e pedi-lhe que
a lesse, para discutirmos o seu conteúdo no dia seguinte. Ele não só leu, como sublinhou os
aspectos com que mais se identificava e gastámos duas horas a discutir o assunto. Penso que
ambos ficámos satisfeitos, ele porque mo manifestou dizendo: “agora percebo mais da doença e
já sei o que posso fazer para me ajudar a mim próprio”; eu, devido à sensação de dever
cumprido.
2) mobilizar ao máximo os recursos disponíveis a nível do serviço para, na minha condição de
estudante de enfermagem, poder ajudar em todos os aspectos possíveis à recuperação/reabilitação
do senhor Rui. Sabendo que a “união faz a força” e seguindo tudo o que me havia sido ensinado
na escola, procurei mobilizar apoios ao nível de toda a equipa multidisciplinar para que, em
conjunto, pudéssemos dar resposta às necessidades e problemas vivenciados pelo senhor Rui.
Devo dizer que, de um modo geral, houve uma boa capacidade de interligação e de entreajuda
entre profissionais (e estudante), particularmente no que diz respeito ao contacto com a
Associação dos Jogadores Anónimos de Portugal. Apesar de todas as dificuldades sentidas
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(inicialmente não existia informação da sua existência e quando se obteve finalmente um número
de contacto este permaneceu durante dias... incontactável!) não desistimos! Houve uma grande
insistência e um esforço concertado meu, da assistente social e da médica psiquiatra e lá se
conseguiu marcar uma reunião, que iria decorrer no próprio serviço. Infelizmente, esta reunião
acabou por não se concretizar, por cancelamento da outra parte. Esperemos que ainda venha a
ocorrer, pois a adesão do senhor Rui a um grupo de auto-ajuda constitui sem dúvida um
importante factor de reconstituição do seu sistema e pode contribuir para que este nunca mais
tenha recaídas e possa levar uma vida equilibrada e saudável, longe das consequências nefastas
do jogo.
Penso que cumpri todos os objectivos a que me propus no início deste trabalho, se bem que tenha
experimentado grandes dificuldades no aprofundar de conhecimentos teóricos sobre o Jogo Patológico,
isto porque, a inicio, tinha muito pouco material bibliográfico disponível com que me pudesse guiar.
Constatei que poucos ou nenhuns estudos foram conduzidos sobre este tema no âmbito da enfermagem
e considero tal facto uma pena, porque é um fenómeno muito interessante e onde um enfermeiro pode
ter “muitas palavras a dizer”.
Gostei muito de realizar este trabalho, porque aprofundei um assunto completamente desconhecido
para mim e que se constituiu como um desafio à minha aprendizagem. Estou satisfeito porque penso que
superei o desafio e aprendi muito acerca do jogo. Sobretudo (e mais importante) aprendi a ajudar melhor
pessoas como o senhor Rui, que vêm a sua vida transformar-se num “inferno” de perdas e a monetária
nem sempre é a maior...
Não sei se já o escrevi em alguma ocasião, mas certamente já o pensei: uma pessoa com problemas de
saúde mental tem muitas vezes uma vida triste e amarga e corre um sério risco de ficar triste e amargo
também. Os sorrisos que vi ao senhor Rui são, para mim, a melhor recompensa!
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