ESTREIAS CINEMA OS BELOS DIAS DE...

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ESTREIAS CINEMA 8 NOVEMBRO | DEZEMBRO '16 OS BELOS DIAS DE ARANJUEZ DE WIM WENDERS COM SOPHIE SEMIN, REDA KATEB, JENZ HARZER, NICK CAVE Duração: 1h 37min LES BEAUX JOURS D’ARANJUEZ ESTREIA 15 DEZEMBRO No terraço de uma vila pitoresca com vista sobre Paris, um homem e uma mulher conversam de forma casual, saltando de tópico em tópico tão livremente quanto os professores de Hans Castorp em A Montanha Mágica de Thomas Mann. Quando não está ocupado a observá-los e a anotar apressadamente as suas deixas numa máquina de escrever, o autor põe a tocar numa jukebox as suas canções favoritas. Em termos gerais, o resumo do enredo fica-se por aqui no que respeita à última incursão de Wim Wenders no 3D, Os Belos Dias de Aranjuez, filmado na mansão de Sarah Bernhardt ao longo de dez dias e baseado na recente peça epónima de Peter Handke, à qual a primeira produção de Wenders na língua francesa, de outro modo bastante fiel, introduz um terceiro personagem — o escritor. Os Belos Dias de Aranjuez foi o único título verdadeiramente radical e experimental da competição de Veneza deste ano; sonda a própria natureza do seu meio e recusa tenazmente vergar- se perante o gosto dominante. O facto de Handke, com quem Wenders colaborou em quatro das suas obras mais aclamadas, conceber um arranjo muito especial, cuja sensibilidade poética se encontra no limite da abstracção, torna ainda mais impressionante o feito da realização. Um alquimista que controla com mestria o seu estranho ofício, Wenders parte do essencial — a palavra, o rosto, a voz, o cenário — e introduz o seu público ao processo sempre imprevisível do cinema que surge destes elementos. No entanto, o resoluto minimalismo de duas pessoas que falam incessantemente a uma mesa é, no mínimo, ilusório, pois o enquadramento de Wenders vai sempre adquirindo novas dimensões, à medida que o universo de Os Belos Dias de Aranjuez se expande incessantemente, desejando ser visto por um espectador arrebatado e ansiando pela sua co-autoria. De A Montanha Mágica, o cineasta toma de empréstimo a consistência metódica na abordagem de vários modos de perceber o mundo, tanto interna como externamente. Num diálogo ininterrupto, a mulher fala da sua dor profunda, enquanto o homem tenta distraí-la com alusões de beleza; por vezes, o seu intercâmbio assemelha-se a um confronto entre autobiografia e ficção. Jardim Mágico “Os Belos Dias de Aranjuez foi o único título verdadeiramente radical e experimental da competição de Veneza deste ano” Boris Nelepo EXCLUSIVO CINEMAS MEDEIA

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ESTREIAS CINEMA

8 NOVEMBRO | DEZEMBRO '16

OS BELOS DIAS DE ARANJUEZ DE WIM WENDERSCOM SOPHIE SEMIN, REDA KATEB, JENZ HARZER, NICK CAVE

Duração: 1h 37min

LES BEAUX JOURS D’ARANJUEZ

ESTREIA 15 DEZEMBRO

No terraço de uma vila pitoresca com vista sobre Paris, um homem e uma mulher conversam de forma casual, saltando de tópico em tópico tão livremente quanto os professores de Hans Castorp em A Montanha Mágica de Thomas Mann. Quando não está ocupado a observá-los e a anotar apressadamente as suas deixas numa máquina de escrever, o autor põe a tocar numa jukebox as suas canções favoritas. Em termos gerais, o resumo do enredo fica-se por aqui no que respeita à última incursão de Wim Wenders no 3D, Os Belos Dias de Aranjuez, filmado na mansão de Sarah Bernhardt ao longo de dez dias e baseado na recente peça epónima de Peter Handke, à qual a primeira produção de Wenders na língua francesa, de outro modo bastante fiel, introduz um terceiro personagem — o escritor.

Os Belos Dias de Aranjuez foi o único título verdadeiramente radical e experimental da competição de Veneza deste ano; sonda a própria natureza do seu meio e recusa tenazmente vergar-se perante o gosto dominante. O facto de Handke, com quem Wenders colaborou em quatro das suas obras mais aclamadas, conceber um arranjo muito especial, cuja sensibilidade poética se encontra no limite da abstracção, torna ainda mais impressionante o feito da realização.

Um alquimista que controla com mestria o seu estranho ofício, Wenders parte do essencial — a palavra, o rosto, a voz, o cenário — e introduz o seu público ao processo sempre imprevisível do cinema que surge destes elementos.No entanto, o resoluto minimalismo de duas pessoas que falam incessantemente a uma mesa é, no mínimo, ilusório, pois o enquadramento de Wenders vai sempre adquirindo novas dimensões, à medida que o universo de Os Belos Dias de Aranjuez se expande incessantemente, desejando ser visto por um espectador arrebatado e ansiando pela sua co-autoria. De A Montanha Mágica, o cineasta toma de empréstimo a consistência metódica na abordagem de vários modos de perceber o mundo, tanto interna como externamente. Num diálogo ininterrupto, a mulher fala da sua dor profunda, enquanto o homem tenta distraí-la com alusões de beleza; por vezes, o seu intercâmbio assemelha-se a um confronto entre autobiografia e ficção.

Jardim Mágico“Os Belos Dias de Aranjuez foi o único título verdadeiramente radical e experimental da competição de Veneza deste ano” Boris Nelepo

EXCLUSIVOCINEMASMEDEIA

9NOVEMBRO | DEZEMBRO '16

Diferentes formas de arte são materializadas numa rápida progressão. Antes de mais, o cinema. Filmar uma cena com duas pessoas que conversam uma com a outra é uma competência fundamental de um cineasta e, todavia, este exercício simples demonstra ser tão exigente como quaisquer outras cenas aparentemente mais elaboradas.

Repetidamente, Wenders reorganiza de forma subtil a sua mise-en-scène enquanto o autor lança olhares furtivos às suas personagens, a câmara faz uma panorâmica à frente delas, e a rotina do campo-contracampo tradicional adquire uma elegância inesperada. Actualmente, depois de Tudo Vai Ficar Bem e de Os Belos Dias de Aranjuez, é impossível negar que Wenders usa o 3D como um mecanismo artístico legítimo e figura entre os eleitos que exploram o potencial criativo da tecnologia (os outros dois são Jean-Luc Godard e, talvez, Paul W.S. Anderson). De vez em quando, a câmara faz uma delicada dança ao redor das personagens, e o mundo parece envolvê-las num abraço terno.

Daí, a próxima forma de arte — a pintura. Não via tantas tonalidades de verde desde Os Amores de Astrea e Celadon (2007), de Eric Rohmer. Luz e folhagem, o sol e as árvores são tão cruciais aqui como as pessoas: são os guardiões da harmonia. O filme chega a uma graciosa conclusão com uma paisagem de Paul Cézanne. Um quadro emoldurado parece continuar a cena improvisada que o autor observa através da janela. Daí o teatro.

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Depois a música: Os Belos Dias… é pontuado por selecções de jukebox, que cumprem aqui a mesma função que os discos de Hans Castorp no seu sanatório alpino. Nick Cave faz uma breve aparição para interromper uma música a meio e acabá-la ele mesmo, ao piano.

O universo de Wenders em Tão Longe, Tão Perto (1993) fora também uma vez perturbado por Lou Reed, cujo Perfect Day abre Os Belos Dias… sobre as desoladas ruas matutinas de Paris: uma escolha arriscada que nenhum outro cineasta seria capaz de fazer. Afinal, trata-se, da parte de Wenders, de um sinal de amizade e de um gesto comemorativo, já que parece remeter para o deserto urbano da sua curta-metragem inicial, Silver City Revisited, e recorda as interacções reflexivas que teve com Handke sobre a relação paisagem citadina/música na sua primeira colaboração, 3 American LP's.“Amizade” é aqui o termo operativo. Quando um jardineiro entra no jardim do autor, não é outro senão o próprio Peter Handke, e ao espaço fílmico acresce um outro qualificativo, sob a forma de outro autor, que aparece como que para ver o seu mundo reelaborado por um cineasta segundo o seu próprio critério.Boris Nelepo [trad. Inês Viana]

FOTO DE DONATA WENDERS

FOTO DE LEOCADIE HANDKE