Estética e Tipologia Dos Ex-Votos

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    1Anais do XXI Encontro Estadual de Histria ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

    Esttica e tipologia dos ex-votos do Brasil:Diversidade, permanncias e evoluo. (1)

    Jos Cludio Alves de OLIVEIRA (2)

    As pinturas ex-votivas, em telas, tbuas ou papel, so as primeiras formas ex-votivas tradicionais

    a serem analisadas por pesquisadores, principalmente pelo seu carter documental rica mdia ,

    que se projeta como importante testemunho de seu tempo. Seu aspecto narrativo estimula oespectador a descobrir no s conotaes religiosas subjetivas, mas tambm a realidade de um

    tempo e um espao especfico seja no meio rural ou urbano, em qualquer tempo, desde que

    projetem os acontecimentos.

    O ex-voto pictrico, marco tradicional dos ex-votos, hoje pouco trabalhado no Brasil, largamente

    produzido no Mxico, traz em sua mensagem a escrita e a imagem encenativa, que conta uma

    histria, e se mostra um forte veculo de emoes. O discurso que aparece nas tbuas e telas ex-

    votivas, ainda produzidas em San Miguel del Milagro, Guadalupe (ME) e Matosinhos (BR),

    dentro de seus elementos constitutivos, pertence ao alfabeto de uma escrita implcita, na qual a

    histria narrada a sintaxe.

    Como explica Prampolini (1983), referindo-se ao que Frida Kahlo toma dos Ex-votos (v. figuras

    1 e 2):

    Frida recoge del alma popular del exvoto (...) la sinceridad, el infantilismo de las formas y larealizacin de una verdad dicha de tal manera que parece encerrar una mentira, porque no haylimites que demarquen el mundo de lo real () y el mundo de la invencin (p. 37)

    1 Trabalho apresentado no ST 017 IMAGEM, ARTE E HISTORIA: DILOGOS, CRUZAMENTOS E ANLISES DEOBRAS DE ARTE, o XXI Encontro Estadual de Histria, de 03 a 06 de setembro de 2012 na UNICAMP, Campinas - SP.2Doutor em Comunicao e Cultura Contempornea (FACOM-UFBA). Professor do PPG-Cultura e Sociedade da UniversidadeFederal da Bahia (UFBA). Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) e da

    Fundao de Amparo Pesquisa da Bahia (FAPESB)

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    Figura 1. Frida Kahlo. Votive ofering dedicated to Lord SaintJosephFonte:http://www.googleartproject.com/search/?q=frida&limit=5Acesso em 23 de junho de 2012

    Figura 2. Frida Kahlo. Museo Frida Kahlo. Votive offeringdedicated to San Nicols de Tolentino 1938.Fonte:http://www.googleartproject.com/search/?q=frida&limit=5Acesso em 23 de junho de 2012

    No ex-voto est expressa uma verdade subjetiva que parece mentira aos olhos incrdulos ou

    cultos, e to real o acontecimento como a interveno extraterrestre (no sentido espiritual)

    que se torna possvel no milagre. (Id, p. 47)

    As convenes artsticas nas pinturas votivas brotaram de um interesse e participao coletivos,por isso a linguagem do ex-voto popular, seja do sculo XIX ou do XX, similar na Europa e na

    Amrica. Anita Brenner (1929) observou que tanta gente atarefada pintando coisas comuns a

    todos, acabou desenvolvendo uma linguagem.

    Na sua tradio, disseminada da Europa s Amrica, o ex-voto usa uma dupla narrao:

    imagtica e verbal. Em geral, a imagem, ou imagens milagrosas, vem na parte superior,

    proporcionando o redimensionamento do espao celeste. O texto, em verbete, aparece na parte

    inferior, na maioria dos exemplos, embora haja tipos em que a narrativa textual, j no sculo XX, colocada na parte superior central ou em diagonal superior.

    O texto oferece um comentrio sobre o sucesso representado e em geral curto e bastante

    objetivo. Ao mesmo tempo, as palavras so usadas como recurso prtico da composio, para

    tecer uma informao mais precisa do fato ocorrido, do nome do padroeiro, da enfermidade, do

    estado do convalescido, a depender do caso, como o documentado em maro deste 2012, em San

    Miguel del Milagro, no Mxico, o ex-voto de 1961, tradicional em sua esttica, com escrita

    castelhana em caixa alta, e ainda preservado na sala de milagres. (v. figura 3) Alm desses

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    detalhes, notria o mix de imagens. O pster traz miniaturas do carro, como se estivesse caindo

    em ribanceira; esquerda, o carro novamente, mas com o proprietrio, de p, em frente aoveculo. Na parte superior, em vez de uma imagem de So Miguel, est, direita do texto, a

    figura do milagrado, em busto.

    El dia 7 de mayo de 1961 se volco um carro comperegrinos del pueblo de Santa Ana Necoxila queveniamos procedentes de San Miguel del Milagro.

    y salimos todos cn bien por lo que em accion degracias dedicamos el precene a la milagrosaimagen de San Miguel que se venera em estelugar. Septiembre 29 de 1961. (sic)

    Figura 3. Poster. San Miguel, Potos (ME)

    Outras caractersticas marcantes que sobressaem na maioria das tbuas e telas ex-votivas so a

    ortografia, a fontica e o uso de termos da linguagem coloquial que deixam em evidncia o nvelcultural do pagador da promessa ou at mesmo do riscador de milagres. As legendas so

    redigidas em geral na terceira pessoa, com sintaxes nem sempre claras, num vocabulrio popular

    e sem ortografia apurada, mas importante assinalar que tudo isso mostra a espontaneidade, e

    provoca a simpatia de quem contempla os ex-votos pictricos. Alm do mais, mostra que, no

    universo comunicacional dos ex-votos, a gramatica errada traz a compreenso no observador.

    (LUHMANN Apud OLIVEIRA, 2007)

    Por outro lado, cabe assinalar uma preocupao pela caligrafia em que a maioria dos ex-votos

    pictricos apresenta. O predomnio do verbo invocar, sempre em meno ao milagre que fez tal

    santo aps fulano ter invocado o pedido quele padroeiro em um difcil momento.

    Nos espaos pictricos dos ex-votos h simultaneidade em dois caminhos: o da vida diria do

    crente e o sobrenatural da imagem divina, o qual oferece uma ampla gama de possibilidade

    fantasia do artista (riscador de milagres) que tece a obra a partir da narrativa do crente. O mesmo

    acontece com as cartas ex-votivas, de pessoas que ditam para a pessoa que sabe escrever, fatores

    ainda recorrentes em diversos cantos do Brasil, e percebidos recentemente no Mxico.

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    Os ex-votos possuem uma iconografia e simbologia prprias. A presena da divindade um dos

    elementos definitivos do ex-voto, pois rompe com os fatos visveis do mundo e estabelece arealidade de todos os demais elementos integrados pintura, proporcionando significao e

    movimento. (PRAMPOLINI, 1983, p. 58)

    Em geral as imagens sagrada esto suspensas por conjuntos de nuvens na parte superior para

    realar o feito sobrenatural. Em alguns momentos, trata da hierarquia, quando figuras de maior

    importncia ganham mais destaques.

    O estudioso desse assunto poder perceber arranjo entre espao, ambiente, luz e movimento na

    cena. No entanto, poder compreender que o impulso da tcnica objetiva tratar de um mundo de

    esperana onde possvel o milagre. Precisamente por isso situa elementos heterogneos do

    mundo da inveno e do smbolo, mas distante do tempo cronolgico e do espao natural.

    (CALVO, 1994, p. 73) Tudo (des) enquadrado com as mos da cultura popular, do riscador de

    milagres que enriquece a Comunicao Social, a Histria da Arte, as Letras, a Semitica, a

    Histria, e substncias particulares do tempo, como a moda, os objetos utilizados no tempo, o

    mobilirio.

    O espao pictrico do ex-voto tende a distoro, como se a encenao e sua ao estivessem a

    ponto de englobar o espectador. Em alguns exemplos as figuras invadem a paisagem ou certosinteriores, formando um desenho uniforme. Sem dvida, as pinturas ex-votivas mostram um

    momento que busca enfatizar certo expressionismo das pinceladas: linhas palpitantes e aplicao

    de fortes cores justapostas.

    Assim, o ex-voto pictrico e escrito cobra um forte carter de dramatismo e logra nos

    espectadores um grande nmero de emoes e, consequentemente, so impulsionados a

    participarem da narrao intimista do sucesso.

    Da Iconografia cultura

    Mesmo sendo denominada de mtodo, a iconografia tambm entendida como o estudo das

    formas, da volumetria, dimenso, histria e tipologia dos objetos imagticos e tridimensionais.

    Dela, teoricamente advinda de Panofsky (1976), advm a Iconologia, que tem como campo

    especfico de estudo a interpretao dos valores simblicos de uma composio, seja ela um

    quadro pictrico, uma fotografia, uma escultura, uma cadeira de rodas por assim dizer.

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    Para Panofsky, o iconolgico o sentido da essncia, ou seja, a interpretao iconolgica vai

    alm do estudo da forma, da descrio.O objeto da iconologia representado por princpios que revelam a atitude fundamental de uma

    nao, de um perodo, uma classe, uma concepo religiosa ou filosfica, inconsciente ou

    conscientemente produzida. A Iconologia, ao contrrio da iconografia, est preocupada com o

    contedo, a essncia, a filosofia da imagem produzida.

    Como base do estudo iconolgico, ser levada em conta a tese de Erwin Panofsky, que prope a

    anlise minuciosa desta matria que elucida questes da iconografia e iconologia, e v a arte em

    movimento junto sociedade, o que possibilita compreender os aspectos sociais que refletem nos

    ex-votos.

    Assim, a Iconologia vem a ser uma base terica relevante para o estudo das mentalidades

    coletivas, por elucidar mensagens cujos cdigos esto alm do descritivo e formal, do escrito e

    verbal. A iconologia vai alm do estudo das datas, origens e autenticidade que so momentos

    iconogrficos , para trazer a essncia da mensagem, seu carter intrnseco e psicolgico.

    Para analisar um acervo ex-votivo, e defini-lo como fonte rica e importante para a histria da arte

    e as artes plsticas, deve-se estudar os signos (variao) de sinais utilizados nas diferentes

    linguagens (artsticas, escritas, fotogrficas), sua natureza especfica e os cdigos, regras quegovernam o seu comportamento e utilizao. (VOVELLE, 1987) Tal forma investigativa se

    aflora a cada momento em que um tipo mais hermtico catalogado, como placas de automveis,

    roupas, mechas de cabelo, aparelhos ortopdicos, computadores etc..

    Deste modo, a decodificao dos signos para elucidar as mensagens e histrias de vida ser feita

    a partir da semntica, ramo da semitica que estuda os significados, que decodifica uma

    mensagem a partir dos signos. (ECO, 1991)

    Umberto Eco escreveu um livro inteiro sobre o signo e nele apresenta vrias noes distintas.No h necessidade de expor todas, mas apenas algumas que se aproximam do tema Ex-voto:

    "Imperfeies, indcio, sinal manifesto a partir do qual se podem tirar concluses e similares a

    respeito de qualquer coisa latente. (...) Qualquer processo visual que reproduza objetos concretos,

    como o desenho de um animal para comunicar o objeto ou o conceito correspondente". (ECO,

    1977, p. 15-16)

    A semiologia estuda os signos, passveis de serem visualizados em suas infinitas formas, com o

    auxlio, evidente, de estudos interdisciplinares. E, a partir dos dois dados de Eco, pode-se remeter

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    ao ex-voto a questo sgnica e simblica. Isso implica, inclusive, na perspectiva do objeto

    enquanto testemunho, pois a semiologia permite ler, desvendar o aspecto signolgico dos objetosque trazem indcios de fatos, acontecimentos e narrativas.

    Assim, o ex-voto nas formas escrita, artstica em bi e tridimenso , como miniaturas de casas

    colocadas nas salas de milagres, a muleta (smbolo da enfermidade ou desenfermidade), enfim

    uma infinidade de objetos passveis de serem analisados e interpretados, um mundo em que a

    percepo visual e tctil reserva para a decodificao-explicao da comunicao entre o crente e

    a divindade. (v. figura 4)

    A prpria expresso sala de milagres conduz o pensamento a promessas e essas a pernas

    esculpidas, embora hoje os aparelhos telefnicos, computares, rdios, violes chaves e uma

    quase infinita tipologia que foge do esteretipo.

    A profuso de elementos em uma "sala de milagres" proporciona uma codificao maior dos

    signos votivos. Desse modo, o ex-voto se dinamiza em sua tipologia. Para o cientista, o ex-voto

    no apenas um elemento de arte e promessa, tambm um testemunho, uma mdia (de vrias

    formas) que equivale aos registros e divulgaes das graas alcanadas, implicando nesse

    contexto as diversas formas especficas de almejar e de comunicar no espao dos milagres.

    Figura 4. Profuso de ex-votos, com variao tipolgica.Sala de milagres de Nossa Senhora Aparecida, SP.

    Cabe tambm indagar e colocar o problema da prxis da teoria. Eco (1977, p.24), afirma que a

    "semitica no somente uma teoria, deve ser tambm uma forma de prxis". O assunto cresce

    de interesse estendido por Bauman (2012), com a contextualizao semiologia e cultura ao se

    considerar a importncia assumida pelos meios de comunicao de massa da atualidade. E cresce

    tambm quando o cientista sabe que um romeiro ou peregrino cria e possui cdigos para

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    testemunhar a sua "promessa", numa articulao que faz fluir a comunicao e a cultura, quando

    podemos notar que o funcionamento da cultura inseparvel da comunicao, como bem afirmaSantaella (1992):

    A semitica est apta a desempenhar um papel fundamental no estudo dos meios decomunicao ou aquilo que preferimos aqui chamar de mdias. Isto porque a semitica percebeos processos comunicativos das mdias tambm como atividades e processos culturais quecriam seus prprios sistemas modelares secundrios, gerando cdigos especficos e signos deestatutos semiticos peculiares, alm de produzirem efeitos de percepo, processos derecepo e comportamentos sociais que tambm lhes so prprios. (p. 13)

    Para Santaella (Id), no h separao entre cultura e comunicao, j que h uma produocultural de formas miditicas que servem de veculos comunicacionais que tornam a

    comunicabilidade uma prxis. O que confirma as relaes interpessoais, interculturais, portanto

    intercambiais formadoras de uma fuso natural e inextricvel (sic) entre comunicao e cultura.

    (Id. p. 13)

    A autora, assim como Bauman (2012) e Thompson (2008), ao revelar a impossvel separao

    entre cultura e comunicao, ressaltando a semitica apta a desempenhar um papel fundamental

    no estudo dos meios de comunicao ou aquilo que preferimos (...) chamar de mdias (sic, Id)

    nos beros populares e de massa, atenta-se para a universalizao, apropriao e particularismos

    dos signos, quando se ocultam numa intimidade quase que inalcanvel pela iconologia e

    semitica.

    fcil perceber, tambm, que a arte no poderia escapar das consideraes dos estudos culturais,

    uma vez que ela pertence ao domnio da cultura em geral. Na linguagem vulgar, e at mesmo

    filosfica, ela tomada, por vezes, como sinnimo de cultura; considerada quase como a mais

    cultural das atividades culturais. nesse processo que se pode perceber comunicao, bem

    afirmada Navarro (2003):

    La comunicacin, como quiera que la definamos, implica sistemas y prcticassocioculturales, cognoscitivas, econmicas y polticas, y dimensiones psicolgicas, biolgicas yfsicas de las que necesariamente participamos. (Navarro, Id., p. 36)

    Em complemento, Duarte (2003, p. 40), ao trabalhar a etimologia e a epistemologia da

    comunicao, destaca que torna-se objeto da comunicao o fenmeno do encontro de planos

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    cognitivos que pela percepo do outro so arrastados para uma fronteira criativa de novas

    formas cognitivas, em cujo processo est a construo de valores e smbolos.Para Langer (1971), a produo simblica um caminho potente no amplo que gira em torno

    semiologia. Por produo simblica, entende-se a produtividade coletiva de cada sociedade como

    forma de construo e encaminhamento do seu modus vivendi.

    A autora parte do postulado de uma necessidade simblica presente no homem, e diz que a

    funo de fazer smbolos uma das atividades primrias do ser humano (...), da mesma forma

    comer, olhar e mover-se de um lado para outro. o processo fundamental do pensamento, mas

    um ato essencial ao pensamento e anterior a ele. (LANGER, 1971, p. 51)

    A referida autora trabalha com o duplo imaginrio: o do pensamento (interior) e o prtico-

    produzido (exterior). E com isso percebemos que, diante da simbolizao, a arte carrega signos

    que so exatamente o significado do pensamento elevado pela (e na) sociedade, produto da

    exteriorizao ideolgica de um grupo, comunidade, pas etc.

    A produo simblica abrange, ainda, a eleio de elementos, processos, formas, objetos

    preexistentes, tanto artificiais quanto naturais, para representao de ordens de realidade ou

    valores que, por um lado, so considerados transcendentes aos "suportes", mas por outro, neles

    (quando assim recontextualizados) se consideram presentes e manifestos. Compreende tambm, claro, a construo de objetos e a estruturao de esquemas ideolgicos que visam muito alm do

    campo da experincia, ou que simplesmente no lhe correspondem (crenas v.g.) e engloba,

    inclusive, a definio de praxes e normas que tem semelhantes esquemas por fundamentar.

    Vemos, ento, a fora que tem a arte (pela carga simblica que traz em seu bojo) em representar

    os elementos significativos de uma dada sociedade. O trabalho, e a constante produo-

    reproduo de smbolos que retratam e desenvolvem o modus vivendi, a crena e as atitudes so

    pertinentes a uma comunidade e constituem uma constante essncia da produo cultural, quedesemboca consequentemente na identidade cultural, tornando vivo o referencial significante da

    civilizao.

    Civilizao que se encontra em constantes mudanas. Mutaes por demais recorrentes em salas

    de milagres. Se em algumas localidades h a manteneo de formatos, em outros h a velocidade.

    Tal fator pode ser baseado no que Bauman (2005) denomina de modernidade lquida, onde

    objetos, modos e modas, ritmos e at o amor, so passageiros, construdos e dissolvidos numa

    tica que revela o descartvel ou o efmero.

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    Os lquidos, diferentemente dos slidos, no mantm sua forma com facilidade... Enquanto osslidos tem dimenses especiais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem asignificao do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou tornam irrelevante), os fluidos nose atem muito a qualquer forma e esto constantemente prontos (e propensos) a muda-la (Id, p.8)

    de grande importncia ter um pensador hodierno implicado no objeto que aqui se questiona e se

    investe cientificamente, mas vele ressaltar que, embora Bauman sugira que o tempo esteja

    engolindo o prprio tempo, pois apenas o presente interessa. O agora (presente) descarta o antes

    (passado) e o depois (futuro) numa clara negao de referencialidade com a histria...,

    necessrio dizer que o ex-voto mantem o referencial histrico em cinco vertentes:

    A tradio; O pagamento de uma promessa feita h um tempo; A tradio do prprio pagamento da promessa numa grande porcentagem de pessoas; As narrativas nos ex-votos escritos (bilhetes, cartas e verbetes em pinturas), contandohistria e estrias. As imagens. Alm das tradicionais pictricas, as fontes em VHS, DVD, desenhos e fotos.

    Escrita versus imagens no mundo ex-votivo.

    Para Luhmann (1992), podemos ir alm da afirmao banal do comunicar-se questionando as

    vantagens ou funes de tal reflexividade. Isso porque a comunicao pressupe (sempre) (sic)

    uma situao de dupla contingncia. Atravs dos processos comunicativos do senso comum, ou

    seja, populares, as opes de um indivduo so transmitidas a outro. Quando entendidas, essas

    opes podem ser aceitas ou rejeitadas. E s por isso (e porque todos os parceiros comunicantes

    esto conscientes disso e podem comunicar sobre o mesmo) que os interlocutores tambmpodem, e devem ser capazes, de comunicar sobre comunicao quando se torna necessrio.

    Esse o reflexo mais claro de uma sala de milagres, oposta a um museu de ex-votos. Na sala, as

    pessoas j percebem que a mdia ex-voto ir intermediar o acontecimento com o padroeiro, que

    levar a Deus o recado. E, ao mesmo tempo, esse crente, que inicia todo o processo, perceber

    que, naquele espao dos milagres, centenas, milhares, de observadores testemunharo o seu feito,

    o ocorrido com ele, o milagre.

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    O ex-voto de Antonia Gomes Rodrigues, em Canind, CE, ilustra bem essa questo (Figura 5),

    quando ela conclama os leitores a conhecerem a sua trajetria. O texto claro, num portuguscom poucas falhas gramaticais, datilografado e, ainda, com a sua foto 3X4 colada ao lado. No seu

    pequeno discurso, a narrativa dos fatos, o antes e o depois, a doena e a cura, e o percurso que

    teve, com o sacrifcio, e acompanhamento das filhas menores, para chegar ao ambiente

    consagrador dos milagres.

    Parnaba-P, 17 de Junho de 1983QUERIDOS LEITORES:Aos 3 anos e 5 Meses e 5 Dias que tinha sido operada

    do Corao, tive uma crise muito forte de dores no corao edesmaios. Fiquei muito doente, e toda a famlia ficoupreocupada. Um dos membros da minha famlia sentindo-semuito aflita, depois de uma crise muito forte que tive, dirigiu-se ao SO FRANCISCO e pediu com muita f e amor a graade eu ficar boa. Passando aquelas crises que abalava a todos,depois de (3) Trs dias que o mdico de corao Dr.FRANCISCO XAVIER afirmava-me que o corao estavanormal. Hoje dia de Meu Aniversrio e vim passar comSO FRANCISCO e fazer minhas penitncias que promet.Estou acompanhado de minhas duas filhas, sendo uma de (2)Dois Anos e outra de (1) um Aninho.

    MINHAS PENITNCIAS SO: Pedir esmola parachegar aqui. Entrar na igreja, ajoelhada e acompanhada por

    minhas filhas. Rezar (3) Trs Teros. Confessar-me ecomungar no dia de meu Aniversrio passando a parte do diana Igreja. Agradecer ao meu Santo protetor a todas as graaspor mim recebidas. Deixar um corao de madeira na casa dosmilagres. Antonia Gomes Rodrigues (sic)

    Figura 5. Carta datilografada. Canind, CE.

    Em outras palavras, aqui tambm uma teoria adequada ao sentido e estrutura do comportamento

    comunicativo deve incorporar conceitos auto referenciais. Alm do mais, tal como na teoria dos

    sistemas, defendida por Luhmann (1992), no se trata de um fato entre outros de um assunto

    opcional que poderia ser facilmente ignorado, mas de algo que ganha destaque, entre milhares de

    observadores, por ser seu, e pelo ex-voto ter um significado num processo que est trazendo o

    caso, nico, do crente que pagou a promessa e tem um caso singular a relatar entre tantos outros

    num mesmo ambiente.

    Nesse sentido, no h uma preocupao com a relao de um sistema com o seu ambiente a par

    de numerosas outras estruturas e processos. A liberdade diante da profuso dos ex-votos numa

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    sala de milagres no interessa somente pela tradio que ali existe, nem naquela forma prpria de

    enviar uma mensagem ao santo. O interesse est em perceber que h um ambiente possvel parafalar com Deus e demonstrar a sua razo de ser a observadores. O que consagra um sistema de

    comunicao mais democrtico, digamos, em que todos lero todos, e todos interrogaro muitos,

    principalmente quando as mensagens forem ocultas, improvveis de decifrar.

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  • 7/27/2019 Esttica e Tipologia Dos Ex-Votos

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